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A eficácia da alienação fiduciária em relação ao bem de família dado em garantia de empréstimo que beneficiou os devedores

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Atualizado às 08:16


Texto de autoria de Sérgio Eduardo Martinez

Embora a crise econômica verificada nos últimos anos no Brasil, afetando de forma intensa o mercado imobiliário, é notório o aumento de empreendimentos imobiliários de condomínios de casas e edifícios, loteamentos, shopping centers, prédios comerciais e mistos, lojas, hotéis etc.

É possível reconhecer que são várias as circunstâncias que contribuíram para o retorno do interesse do empreendedor e do investidor. Porém, é certo que é preponderante a edição de leis ocorridas nos últimos anos regulando as diversas possibilidades de formatação de negócios imobiliários.

Pode-se, destacar, exemplificativamente as seguintes leis: Alienação Fiduciária de Imóveis (lei 9.514/97), Patrimônio de Afetação (lei 10.931/04) Multipropriedade (Lei 13.777/18), Direito de Superfície (arts. 1369 a 1377 do CCivil/02), Condomínio de Lotes e Direito de Laje (lei 13.465/17), Lei dos Distratos (lei 13.768/18), Contratos Built to Suit (lei 12.744/12), Concentração de atos na matrícula (lei 13.097/15) entre tantas outras.

Da mesma forma, a interpretação que essas diversas atividades empresariais tem recebido nas variadas questões controvertidas que são submetidas ao Poder Judiciário tem favorecido, de forma geral, o mercado imobiliário.

É necessário construir um ambiente propício de negócios, sobretudo de segurança jurídica, como forma de incentivar a atividade imobiliária que tanta impacta no desenvolvimento econômico do País.

Para tanto, há que se privilegiar o sistema de garantias, de liberdade econômica e de segurança jurídica como forma de incentivo e incremento a tão importante atividade econômica.

Foi exatamente isso que fez, com acerto, recente decisão do Superior Tribunal de Justiça, através da 4ª Turma no julgamento do Recurso Especial 1.559.348 - DF, que examinou e definiu importante questão sobre os efeitos e consequências da obtenção de empréstimo com garantia da alienação fiduciária de imóvel pertencente a sócia de pessoa jurídica e que se beneficiou dessa operação.

No ponto que aqui se trata, a discussão estabelecida foi sobre a validade e eficácia da garantia imobiliária estabelecida por alienação fiduciária de imóvel pertencente a sócia da empresa tomadora do empréstimo, diante da impenhorabilidade do bem de família (cf. art. 1º da lei 8.009/90).

A primeira questão debatida diz respeito a eventual impossibilidade de renúncia à proteção conferida ao bem de família, sempre que o proveito não se tenha revertido em favor da entidade familiar.

Todavia, foi referido na decisão: "O abuso do direito de propriedade, a fraude e a má-fé do proprietário conduzem à ineficácia da norma protetiva, que não pode conviver, tolerar e premiar a atuação do agente em desconformidade com o ordenamento jurídico. (...) Como advertiu o julgado, a boa-fé do devedor é determinante para que se possa socorrer da regra protetiva do art. 1º da lei 8.009/90, devendo ser reprimidos quaisquer atos praticados no intuito de fraudar credores, de obter benefício indevido ou de retardar o trâmite do processo de cobrança".

Foi ressaltado que os devedores, que buscam amparo na lei protetiva do bem de família, concederam voluntariamente, em alienação fiduciária, o bem imóvel dado em garantia, em favor de empresa da qual uma das devedoras é, também, a única sócia.

E diante de valores e princípios estabelecidos pelo Direito Civil, sobretudo da boa-fé contratual que impõe aos contratantes o dever de honrar com o pactuado e cumprir com as expectativas anteriormente criadas pela sua própria conduta, não se pode admitir que uma das partes venha a ofertar o bem em garantia para depois alegar a ilegalidade dessa disposição, buscando a sua exclusão.

Em que pese a divergência instalada pelos votos do Ministros Raul Araújo e Marco Buzzi, acolhendo o recurso para desconstituir a garantia do imóvel, prevaleceu o voto do Min. Luis Felipe Salomão acompanhado pelo voto do Min. Antônio Carlos Ferreira que afirmou:

"A expressa previsão da alienação fiduciária de bens imóveis pela lei 9.514/1997 representou evolução nos mecanismos de garantia, viabilizando a formatação e a execução de contratos com a agilidade exigida por um sistema negocial dinâmico, como se apresenta no atual estágio da modernidade. Isso porque, segundo afirmava José Carlos Moreira Alves, citado por Melhim Namem Chalhub, "as garantias 'existentes nos sistemas jurídicos de origem romana, e são elas a hipoteca, o penhor e a anticrese, não mais satisfazem uma sociedade industrializada, nem mesmo nas relações creditícias entre pessoas físicas, pois apresentam graves desvantagens pelo custo e morosidade em executá-las'" (CHALHUB, Melhim Namem. Alienação fiduciária: Negócio Fiduciário. 5ª ed., rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2017)".

Por outro ângulo, não existe - pelo sistema de execução do contrato de alienação fiduciária, a "penhora" do imóvel, mas toda uma sequência de atos e requisitos para o cumprimento das exigências legais que podem resultar na consolidação da propriedade em favor do credor ou venda em leilão, eis que o imóvel, como garantia, já está vinculado ao cumprimento das obrigações desde o início da contratação.

A alienação fiduciária de imóvel resulta de ato voluntário do proprietário e devedor, assumindo obrigações previstas em contrato expresso e de livre e espontânea vontade. Difere da penhora que na maior parte das vezes é ato que independe da vontade do devedor que pode até dela discordar, além de ser realizada em ação judicial onde o imóvel não está necessariamente vinculado a obrigação exigida.

E não age com lealdade e ética o contratante que, desde a contratação, sabia que o ajuste firmado poderia resultar na perda do imóvel dado em garantia, caso descumpridas as obrigações. É inaceitável tal conduta abusiva servindo-se da lei quando lhe convém.

Certamente o contrato de empréstimo foi viabilizado e formatado - ao menos em relação aos juros, em razão da garantia ofertada, tornando o negócio muito mais vantajoso aos devedores se tal bem não tivesse sido concedido.

Assim, prevaleceu a manutenção da garantia nos termos do contrato firmado, reafirmando-se a necessidade de se exigir dos contratantes uma conduta ética e de boa-fé, tanto na contratação como na execução do contrato, evitando-se práticas e atitudes que maculam o atual estágio de evolução do sistema de garantias imobiliárias.

Louve-se essa decisão. Salvo raras exceções, os contratos devem ser cumpridos, ainda que possam ser desfavoráveis em certos momentos, evitando-se interpretações excessivamente protetivas e que prejudicam a confiabilidade do sistema legal de garantias.

* Sérgio Eduardo Martinez é advogado. Sócio de Martinez Advocacia. Especialista em Direito Imobiliário pela Universidade do Rio dos Sinos - Unisinos. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - IBRADIM. Membro da Comissão Especial de Direito Imobiliário da OAB/RS.