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Migalhas Infância e Juventude

Temas vinculados ao Direito da Criança e do Adolescente, por meio do exame de diplomas internacionais, CF, ECA, legislações e normas esparsas.

Angélica Ramos de Frias Sigollo, Elisa Cruz, Hugo Gomes Zaher e Marília Golfieri Angella
A partir de 1990, com a instituição do Estatuto da Criança e do Adolescente, assim como, com a efetiva ruptura da Doutrina da Situação Irregular, instalou-se no país uma nova lógica para o atendimento e acompanhamento de adolescentes a quem se atribui a autoria de ato infracional. Esta substituição de paradigmas, representou a inclusão social do adolescente em conflito com a lei, que deixou de ser um mero objeto de intervenção como era no passado. No Título III do ECA, entitulado "Da Prática de Ato Infracional", a legislação, sem descrever o 'modus operandi' trouxe em seu escopo, normas para a apuração de ato infracional, tipificação do que é o ato infracional, direitos e garantias aos adolescentes e as medidas socioeducativas a serem aplicadas em caso de cometimento destes. Passados 12 anos da concepção do ECA, dada a ausência de diretrizes quanto à execução das medidas socioeducativas, o CONANDA (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), enquanto responsável por deliberar sobre a política de atenção à infância e a adolescência no país, e a SEDH/SPDCA (Secretaria Especial dos Direitos Humanos), em parceria com a ABMP (Associação Brasileira de Magistrados e Promotores da Infância e Juventude) e o FONACRIAD (Fórum Nacional de Organizações Governamentais de Atendimento à Criança e ao Adolescente) realizaram encontros nacionais, regionais e estaduais a fim de debater a respeito da Lei de Execução das Medidas Socioeducativas, a prática pedagógica a ser desenvolvida nas Unidades socioeducativas em todo país, e principalmente, a elaboração de parâmetros e diretrizes para a execução das medidas socioeducativas. O resultado destas ações, foi a Resolução 119/2006, que dispõe sobre o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo e dá outras providencias, que em 2012, serviu de escopo para a Lei 12.594, de 18 de janeiro de 2012, que instituiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo e regulamentou a execução das medidas destinadas a adolescente que pratique ato infracional (art.1º). E por que se faz importante a retrospectiva destes importantes marcos normativos? Primeiramente, para reforçar a importância dos parâmetros pedagógicos das medidas socioeducativas, os objetivos às quais estas se destinam, mas principalmente, reforçar a competência da União, dos Estados e dos Municípios enquanto responsáveis pela implementação dos programas de atendimento e financiamento destes, partindo da lógica da incompletude institucional descrita no artigo 86 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Ocorre que, em meados do ano de 2019, um projeto entitulado "Novo Socioeducativo", estruturado pela Caixa Econômica Federal, em conjunto com o então, Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH), a Secretaria Especial do Programa de Parcerias de Investimento do Ministério da Economia (SPPI), os governos estaduais, em parceria com o UNOPS (organismo das Nações Unidas especializado em infraestrutura e gestão de projetos), tendo por principal objetivo, a construção e manutenção de novos centros socioeducativos e a contratação de infraestrutura e gestão dos serviços realizada por meio de parceria público-privada, colocando em risco a efetiva proteção e garantia de direitos dos adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas de restrição e, ou privação de liberdade nos estados brasileiros. Como é sabido, a medida socioeducativa de internação, prevista no art.121 do ECA, tem caráter excepcional, devendo ser aplicada somente nos casos dispostos na lei, com atenção aos princípios da brevidade, excepcionalidade e, fazendo prevalecer desta forma, o direito à liberdade e de convivência familiar e comunitária, cabendo ao Estado, como segue no disposto do art.125, do mesmo mandamento legal, zelar pela integridade física e mental dos internos. É importante salientar que, a par deste mandamento, o Supremo Tribunal Federal, no âmbito do Habeas Corpus Coletivo nº 143.9881, em consonância com o previsto nas legislações nacionais e internacionais, reforçou ser o Estado o responsável pela garantia dos direitos desses adolescentes, tornando ainda mais equivocada a parceria firmada e disposta no Decreto supracitado. Aqui, importante abrir um parêntese, para mencionar que no Levantamento Nacional de Atendimento Socioeducativo2 publicado em novembro de 2023, foi demonstrada a queda no número de adolescentes e jovens nas medidas socioeducativas restritivas e de privação de Liberdade, o que não justifica a construção de novos centros educacionais, proposta nesta parceria firmada e que já vem sendo efetivada em alguns estados, como no caso de Minas Gerais, que, em pouco tempo de Cogestão, já conta com histórico de denúncias de violações de direitos, como restou explicitado na Nota Técnica nº 10/20223, do Mecanismo Nacional de Combate à Tortura. Fica demonstrado que a lógica adotada por este "Novo Socioeducativo" é perversa e implica na perda de direitos já garantidos nas legislações nacionais e internacionais aos adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas de semiliberdade e, ou, internação. Não diz respeito só ao orçamento público ou corte de gastos, implica em retrocessos, de tornar o adolescente mero objeto de 'per capitas' recebidas, de sucatear as politicas públicas voltadas ao atendimento devido aos adolescentes em conflito com a lei, como no caso da educação, da capacitação ao mundo do trabalho, esportes, cultura, dente outras. Para além da questão orçamentária, a proposta deixa explicitada a tentativa de aproximação do sistema socioeducativo às práticas já existentes no sistema penal brasileiro, de reforçar os estigmas e a seletividade que há tempos resta demonstrada nos relatórios oficiais, ou seja, criminalizando ainda mais a adolescência negra, periférica, de baixa renda, na perspectiva de "Quanto vale? Ou é por quilo?", metaforicamente, fazendo alusão ao filme de Sérgio Bianchi, de 2005. Jus aqui mencionar que o CONANDA, em 27 de junho de 2023, emitiu uma Nota Técnica4, manifestando-se contrário ao Projeto "Novo Socioeducativo", salientando que, em caso de aprovação deste, deve-se prever formas de redução de danos em relação às possíveis perdas nos direitos dos adolescentes, enumerando as seguintes recomendações: a) A garantia e proteção dos direitos de adolescentes e jovens inseridos no sistema socioeducativo brasileiro em conformidade com a Lei do SINASE; b) A redução do tempo previsto de 30 para 5 anos da proposta, no que se refere à operacionalização e funcionamento das unidades socioeducativas, após a construção das unidades, bem como que não sejam propostas novas experiências antes da finalização da avaliação das presentes, caso sejam implementavas; c) Recomenda-se a revogação do Decreto 10.005/19, de forma a se fazer cessar as possibilidades de novas experiências neste sentido; d) Recomenda-se a produção de um plano educacional que seja implementado apenas pelo poder público nas unidades geridas pelo setor privado para manutenção do caráter pedagogicamente da medida conforme estabelecido pelo ECA, no SINASE, e na Resolução CNE/CEB nº 3, de 13 de maio de 2016, do MEC; e) A garantia da manutenção dos agentes socioeducativos e das equipes técnicas como corpo prioritário dentro das unidades socioeducativas sem transformá-los em agentes de segurança. Cabe neste momento, uma franca reflexão acerca deste movimento contrário às garantias de direitos de adolescentes inseridos ou não no sistema socioeducativo, uma vez que, aqueles que já se encontram ingressos no sistema, sofrerão com as consequências desta politica orçamentária neoliberal que assombra a politica socioeducativa e, aqueles que porventura não adentraram o sistema, caso venha a ser apreendido, já serão acometidos por uma série de violações e desrespeito aos seus direitos antes mesmo da elaboração do seu PIA (Plano individual de Atendimento). Não se trata somente de uma parceria ou uma cogestão, se trata de uma expressa incompatibilidade com os parâmetros e diretrizes pedagógicas previstas pelo SINASE (2006), de descumprimento dos dispostos no ECA e na Lei do SINASE, e principalmente, uma negação ao previsto no artigo 227 da CF, que declara ser dever do Estado, da Sociedade e da Família, a proteção integral aos direitos de crianças e adolescentes. Permitir o avanço desta proposta, é romper com todos os avanços alcançados até aqui, é aceitar que a vida de um adolescente é medida pelo lucro que o setor privado vai obter, e, deste modo, negar a doutrina da Proteção Integral. __________ 1 HC 143988/ES. Supremo Tribunal Federal. Julgado em 24.08.2020. 2 BRASIL. MDHC. Levantamentos Nacionais do SINASE. 3 MPCT. Nota Técnica nº 10, 2022, Sistema de Cogestão de unidades de internação e APAC juvenil no Sistema Socioeducativo do estado de Minas Gerais. 4 Nota Técnica nº 21/2023/CONANDA/GAB.SNDCA/SNDCA/MDHC.
Passados seis anos desde a realização do último Levantamento Nacional do SINASE, em dezembro passado, foi divulgado pela Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, dados oficiais pertinentes ao atendimento socioeducativo no país, neste caso, em especial, ao meio fechado. Aqui, importante abrir um parêntese para suscitar que o adolescente que comete ato infracional deve ser compreendido como um sujeito em processo peculiar de desenvolvimento (ECA, 1990, art. 6º), que se encontra em contextos político, social, familiar, econômico, cultural e histórico específicos, onde a transgressão figurou como meio de resposta aos impasses e tensões vivenciadas. Neste sentido, por ser considerado um sujeito em desenvolvimento, como apontado acima, e descrito como ser em busca de sua autonomia, o adolescente está mais propenso a transgredir e a se opor às tradições impostas pela sociedade, às normas culturais a eles imputadas, potencializando deste modo, a ameaça à ordem civilizatória impostas a todos os indivíduos adultos na sociedade. Portanto, para compreender aquele que se envolve em condutas infracionais, é necessário levar em consideração, dentre outros aspectos, os fatores de risco que estão relacionados à entrada no mundo infrator, nos quais se apontam algumas variáveis importantes, como: elevada vulnerabilidade; tendência à exclusão social; situações de negligência e abandono; pobreza; criminalidade e violência na família, na escola, na comunidade e na sociedade em geral; e abuso de substâncias psicoativas. O cometimento de um ato infracional não é explicado pela presença isolada de um fator adverso, mas sim, através da complexa cadeia de eventos da trajetória do jovem (Costa e Assis, 2006), que pode refletir a frágil condição da infância e da juventude no cenário mundial. As trajetórias de vida dos adolescentes aos quais se atribui a prática de atos infracionais evidenciam a sua invisibilidade no âmbito das políticas públicas, identificada por meio do não-acesso a elas ou na sua desqualificação quanto ao reconhecimento das reais necessidades do sujeito e produção de respostas adequadas. Em uma realidade de exclusão e de negação dos direitos, de desigualdade social e de ausência de oportunidades, de falta de expectativas sociais e a desestruturação das instituições públicas, o adolescente influenciado pela ideia de desejo e de consumo, passa a buscar, muitas vezes, na ilicitude, a resposta para a superação de sua realidade. Uma vez inserido em um sistema que o excluí, busca no meio ilícito, um lugar de aceitação, pertencimento e reconhecimento (COSTA, 2005). Segundo o art. 103 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o ato infracional é uma conduta comparável ao crime ou contravenção penal. Crime é toda infração penal que se caracteriza com a conduta tipificada pela lei penal como ilícita ou antijurídica, passível de punição. Contravenção penal, possui as mesmas características, porém, com menor gravidade. Os atos infracionais cometidos por adolescentes constituem um fenômeno complexo em virtude das múltiplas causas envolvidas. Por isso, requer uma visão mais integral, que possa considerar aspectos da pessoa e dos seus diferentes contextos de inserção, especialmente a família (Nardi e Dell'Aglio, 2012), tendo em vista que o envolvimento com o ato infracional corresponde apenas a um dentre outros agravos que compõem o quadro de vulnerabilidade dos jovens (Costa e Assis, 2006). O crime é um acontecimento na vida do adolescente, e olhar para o ato infracional exclusivamente inviabiliza a compreensão sobre a motivação pela prática daquela conduta, da forma como se desconsidera a sua história pessoal, que gera sentido para o ato infracional. O levantamento do perfil de adolescentes a quem se atribui a prática de ato infracional apresenta indicadores de que, em algum momento de sua vida pregressa ou de seu desenvolvimento enquanto sujeito de direitos, estaria em condições de vulnerabilidade e, ou, risco social, inseridos em núcleos familiares pertencentes às camadas mais pobres da sociedade, sem ou com algum indicio de uso ou abuso de álcool e, ou, outras drogas, em baixa escolaridade (ou em distorção série-idade), quando não, exclusos do sistema educacional e, em sua maioria, negros. Mas, a fim de evitar quaisquer generalizações, cabe desde logo, salientar que, embora os dados nos levem a este perfil, é importante mencionar que nem todo adolescente negro, morador periférico, pobre é ou está envolvido no meio infracional. Entretanto, este perfil, historicamente, pertence a um grupo de pessoas que foi excluido socialmente no Brasil e, como sabido, a exclusão social está dentre um dos fatores de vulnerabilidade que interfere na ressocialização e socioeducação de adolescentes a quem se atribui a prática de ato infracional. Os dados do último levantamento demonstram que houve uma redução no numero de adolescentes cumprindo medidas de privação de liberdade (semiliberdade, internação, internação provisória e internação-sanção), correspondendo a aproximadamente, 11.556 (dados apresentados até 30 de junho de 2023), ao passo de que em 2017, eram 24.803 adolescentes. Destes 11.556, apenas 4,21% correspondem a meninas cisgênero (461), ou seja, a prevalência na incidência no cometimento de ato infracional, tal como descrito em 2017, continua sendo masculina (cerca de 11.167 - meninos cisgênero). Do total, 117 adolescentes eram PCD's, 241 adolescentes encontravam-se gestantes e, ou, com filhos e 55 meninos com filhos. Relativo à incidência infracional, diferentemente do meio fechado, a maior incidência é de ato infracional tipificado como tráfico de drogas, seguido de roubo e furto (no meio fechado, a prática de roubo supera ao de tráfico). Aqui, se faz importante abrir um parêntese, para talvez justificar a maior incidência da prática infracional de ato equiparado ao crime de tráfico de drogas que, o referido crime embora sua hediondez, não dá ensejo por si só, a aplicação de medida socioeducativa em meio fechado, embora muitos magistrados ainda assim, entendem de forma diversa, por não apresentar violência ou grave ameaça à pessoa (requisitos estes presentes no art. 122, ECA, para justificar a aplicação da medida mais gravosa, no caso, internação). Neste sentido, após a impetração de alguns habeas corpus1, o ato infracional de tráfico de drogas passou a ser motivo para o ensejo das medidas em meio aberto, tanto Liberdade Assistida, quanto Prestação de Serviços à Comunidade. É importante suscitar que o tráfico de drogas, conforme a OIT, é considerado uma das piores formas de exploração de trabalho infantil e, merece um olhar diferenciado frente aos demais atos infracionais, pois para além da venda da droga, estamos diante da criminalização dos pobres e da juventude e das próprias estratégias de sobrevivência dessa população. Embora não seja este o enfoque que queremos dar, a questão do tráfico, muitas vezes, está interligada às questões de classes sociais e raça, para tanto, basta observarmos a dinâmica do aprisionamento e criminalização desta juventude. Também importante mencionar que, diferentemente do que é debatido em sociedade, que ainda defende a coercitividade e a punição como resposta ao crime, e muitas vezes defendido na mídia (sensacionalista), os números de casos de atos infracionais relacionados aos crimes contra a vida, são ínfimos. E, independentemente de ser medida em meio aberto ou fechado, o próprio levantamento do SINASE, já aponta números baixos de crimes contra a vida na internação. Majoritariamente, os adolescentes são apreendidos ou por cometimento de ato infracional - crime contra o patrimônio (roubo, furto) ou por envolvimento no tráfico de drogas (associação ao tráfico, tráfico ou porte de drogas). As práticas infracionais, às quais nos referimos, são muitas vezes, justificadas em pesquisas, pelo viés consumerista que já retratamos acima e, as motivações, tantos dos meninos, quanto das meninas são muito similares. Surgem como os principais fatores para o ingresso nessa prática delitiva: alcançar a visibilidade social, conquistar uma posição que lhe permita o exercício do poder, ganhos financeiros, além de status e possibilidades de ostentação de bens materiais e de consumo. No que tange à raça, embora seja o Brasil, um país de uma diversidade étnica racial, o ingresso no Sistema Socioeducativo, continua sendo predominantemente de adolescentes que se declaram de cor parda ou preta, sendo estes 63,8% do total de ingressos, contra 22,3% daqueles que se declaram brancos, o que nos suscita a importância de refletirmos sobre como o racismo também impacta de maneira significativa o atendimento socioeducativo no país e, principalmente, debater a respeito da seletividade penal, punitivismo e criminalização das classes, consideradas ainda "perigosas" pela sociedade. Muito embora queiramos desvincular a questão econômica ou de classe social da incidência de atos infracionais, 19,1% dos adolescentes, estão inseridos em famílias com renda de até 1 salário-mínimo, e 58,9% de famílias que sobrevivem de atividades informais ou sem qualquer renda. Estes adolescentes, ou são oriundos de centros urbanos (30,1%) ou de regiões periféricas (26,7%). Em relação a outros dados relevantes, temos que no que tange à educação, à época da coleta dos dados, o levantamento demonstra que 10.465 adolescentes estavam inseridos na escola, 6.690 frequentavam cursos ou atividades de profissionalização, 1.020 em atendimento no CAPSi e 647 em acompanhamento pelo CAPS AD. Diante destes números, fica explicito que a realidade de desigualdades e exclusão social de adolescentes em conflito com a lei reforçam ainda as mesmas violações de direitos e exposições às mais diversas formas de violências vivenciadas por eles cotidianamente e, muito embora, tentemos fugir dos esteriótipos já descritos, retornamos ao status quo, ou seja, de adolescentes com vínculos familiares fragilizados, situação de abandono escolar, desemprego ou em condições de sub-empregos, baixo nível socioeconômico e exposição precoce na marginalidade ou situações de violências, sendo cooptados pelo tráfico de drogas e outras práticas delitivas que os levam ou ao Sistema de Justiça, ou à morte, nos casos mais extremos. __________  Referências BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providencias. Brasília: Presidência da República, 1990. BRASIL. Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Levantamento Nacional do Atendimento de dados do SINASE - 2023, Brasília: Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, 2023. COSTA, Ana Paula Motta. As garantias processualista e o direito penal juvenil: como limite na aplicação da medida socioeducativa de internação. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. NARDI, F.L.; DELL'AGLIO, D.D. 2012. Adolescentes em conflito com a lei: Percepções sobre a família. Psicologia: Teoria e Pesquisa, p.181 - 191. __________ 1 HC 173636 PE, Rel. Ministro Og Fernandes, Sexta Turma, julgado em 16/09/2010, DJe 04/10/2010. HC 180953 PE, Rel. Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, julgado em 05/05/2011, DJe 18/05/2011. HC 185474 SP, Rel. Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, julgado em 07/04/2011, DJe 28/04/2011.  HC 213778 RJ, Rel. Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, julgado em 22/05/2012, DJe 28/05/2012. HC 231459 PE, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 03/05/2012, DJe 14/05/2012. 
O Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei 8.069/90, inaugurou uma nova ótica frente aos adolescentes a quem se atribui a autoria de ato infracional, principalmente, ao instituir por intermédio do artigo 112, medidas cujas quais, para além da responsabilização, tem o viés socioeducativo, capaz de proporcionar a este sujeito de direitos, a reflexão perante sua ação e a ressignificação desta ação em sociedade. Em 2006, passados 16 anos desde a sanção do ECA, é apresentado o SINASE - Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, cuja construção concentrou-se especialmente num tema, que há tempos já mobilizava a opinião pública em diversos segmentos da sociedade: como enfrentar situações de violência que envolviam adolescentes enquanto autores de ato infracional ou vítimas de violações de direitos no cumprimento de medidas socioeducativas. O SINASE, bem como sua implementação, tinha por objetivo, lá em 2006, o desenvolvimento de uma ação socioeducativa sustentada nos princípios de Direitos Humanos. Entretanto, mesmo sendo um documento com diretrizes e parâmetros claros sobre a Política Socioeducativa, principalmente, em relação a natureza pedagógica da medida socioeducativa, a Resolução 113/06, que instituiu o SINASE, não trouxe em seu escopo, o modus operandi para a execução das propostas incutidas nesta resolução, deixando um "vácuo normativo" para a concretização destas com vistas a garantia de direitos e proteção aos adolescentes autores de ato infracional. A fim de suprir essa "carência normativa" e, por também ter sido traçado como meta, foi apresentado em 2007, o projeto de lei 1.627, cujo objetivo era a instituição do SINASE e o estabelecimento de um padrão de execução das medidas socioeducativas em todo território nacional. O mesmo foi aprovado em plenária pela Camara dos Deputados em junho de 2009 e, finalmente sancionado pela Presidência da República, transformado na Lei 12.594, de 12 de janeiro de 2012. A Lei do SINASE, como assim ficou "popularmente" conhecida, além de instrumentalizar a execução das medidas, trouxe em seu escopo parâmetros claros em relação a responsabilidade dos entes na esfera nacional, estadual e municipal. Para além de padrões arquitetônicos, normas relativas aos Sistemas Estaduais, Municipais e Distritais, a Lei trouxe a obrigação da elaboração de planos, políticas e programas específicos de atendimento a adolescente em conflito com a lei, possibilitando um novo olhar a este adolescente, a partir de sua individualidade e história de vida. Contudo, passados 11 anos de sua sanção, é notória a (in) visibilidade da efetividade da politica socioeducativa, haja vista que, mesmo sendo uma ferramenta de efetivação ao principio basilar do ECA, que é a proteção integral de crianças e adolescentes, aqui no caso, adolescentes autores de ato infracional, ela ainda segue os mesmos padrões estigmatizadores e exclusivos da situação irregular. A lei, em seu artigo 1º, §2º, inciso II, refere que a medida socioeducativa tem por objetivo a reintegração social do adolescente e a garantia de seus direitos individuais e sociais, por meio de seu plano individual de atendimento, mas o que se percebe ainda é a negação aos seus direitos, haja vista, as altas taxas de exclusão escolar, discriminação em decorrência de raça e cor, violência institucional e policial, dentre tantas outras violações. Outro dado que nos faz refletir sobre a executoriedade da lei, são os processos de avaliação e monitoramento dos Planos Decenais de Atendimento Socioeducativo, nas esferas nacional, estadual e municipal. Estes planos, com período de dez anos, tinham por meta de inicio a elaboração do plano nacional, sequencialmente, o estadual e por fim, o municipal/distrital e, sua elaboração não tinha por escopo o cumprimento de mera formalidade burocrática ou de cumprimento de uma determinação legal, mas sim, promover a intersetorialidade entre as politicas, capazes de ensejar um atendimento de qualidade, individualizado e especializado não só aos adolescentes, mas extensivo aos seus familiares. O Plano Nacional foi aprovado pela Resolução CONANDA nº 160, de 19 de novembro de 2013, 22 meses depois da publicação da lei do SINASE. E competia, passados 360 dias, a elaboração e aprovação dos planos estaduais e, por fim, municipais e distrital. Aqui, necessário abrir um parêntese à competência atribuída à União de manter o processo de avaliação dos Sistemas de Atendimento Socioeducativo, seus planos, entidades e programas (art. 3º, VII, lei 12.594/12), mas que desde 2017, não realiza o Levantamento Nacional Socioeducativo, instrumento utilizado para coleta de dados sobre adolescentes em conflito com a lei (em especial, nas medidas de internação e semiliberdade). Ainda sequer há um cruzamento que nos permita ter acesso a dados precisos quanto aos adolescentes egressos do sistema que tiveram êxito quanto à sua "ressocialização". O aumento nos números de jovens de 18 a 24 anos encarcerados no Sistema Penitenciário pode ser um reflexo negativo das ações que deixaram de ser efetivadas no momento oportuno quando do egresso do Sistema Socioeducativo. Tampouco observamos uma interface SUAS - SINASE, ao passo de que seja, minimamente, traçado um perfil do adolescente autor de ato infracional, que por fatores diversos, ingressou no sistema socioeducativo nas medidas em meio fechado ou aberto, como mecanismo de fomento às politicas públicas necessárias ao desenvolvimento deste sujeito de direitos, principalmente, a fim de fazer prevalecer o princípio da Incompletude Institucional prevista no art. 86 do ECA, na garantia plena dos direitos deste público alvo. Não podemos também deixar de pontuar que o CONANDA - Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, nos atributos de suas funções, nos últimos anos deixou de efetivamente avaliar e monitorar as ações previstas no Plano Nacional de Atendimento Socioeducativo, e num efeito dominó, isso refletiu negativamente, nas ações do CONDECA - Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente e CMDCA - Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, nos Estados e Municípios. Estes fatos, nos mostram que, embora criada para uniformizar e padronizar as politicas, serviços e programas de atendimento aos adolescentes em conflito com a lei, a Lei do SINASE, segue na (in)visibilidade das politicas públicas. E, passados 11 anos de sua sanção, muitos de seus parâmetros e diretrizes, foram "engavetados"junto com seus Planos Decenais pelas políticas governamentais dos últimos anos, enfraquecendo, de certo modo, o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente, que necessitará romper com os fragmentos deixados pelas gestões passadas, a fim de promover politicas intersetoriais efetivas com vistas a garantia dos direitos da população infantojuvenil dentro do campo das medidas socioeducativas.
O mês de agosto, a partir da sanção da lei 14.617/23, passou a ser considerado o Mês da Primeira Infância no país. Esta iniciativa visa, principalmente, promover e dar visibilidade a pauta da primeira infância no Brasil, discutindo a importância a qual deve ser dada aos cuidados na fase que vai desde a gestação até os primeiros seis anos de vida da criança. A referida Lei Federal prevê ações integradas de conscientização sobre o tema e fomenta o atendimento multiprofissional a crianças de 0 a seis anos, conforme descritas no Marco da Primeira Infância1, lei 13.257, de 08 de marco de 2016, que completou 7 anos de sua existência. A primeira Infância é importante porque, como aponta Gaby Fujimoto2, nela se estruturam as bases fundamentais do desenvolvimento humano, tanto físicas como psicológicas, sociais e emocionais, as quais vão se consolidando e se aperfeiçoando nas etapas seguintes do desenvolvimento3. Estudos científicos comprovam que, do nascimento aos primeiros seis anos de vida, uma criança é capaz de desenvolver-se das mais diversas formas e, a partir das experiências vivenciadas neste período, pode ser impactada positiva ou negativamente ao longo de sua vida. Estes estudos, iniciados há décadas, vem acumulando inúmeras evidências da importância dos primeiros seis anos de vida no desenvolvimento do ser humano e, se por um lado este período pode ser considerado como aquele de maiores oportunidades para a plenitude da vida, ele também é aquele de muitas vulnerabilidades e de extrema suscetibilidade às influências e ações externas, como a violência e a pobreza. Deste modo, se a criança nasce e cresce em um ambiente cercado de afeto, respeito, estímulos positivos ao seu desenvolvimento, muito provavelmente terá um desenvolvimento sadio. Contudo, se ela nasce e cresce num ambiente hostil, permeado das mais diversas formas de violações a seus direitos e garantias, é provável que terá impactos negativos em sua saúde, educação, relacionamentos sociais etc. Entretanto, cabe aqui uma breve reflexão: a qual infância estas legislações se destinam afinal? Pois, é sabido que o Brasil é multicultural e possui não só uma infância, mas várias infâncias, cada qual com suas particularidades. Será que, de fato, todas as infâncias são objetos deste cuidado? Segundo dados prévios da coleta do Censo Demográfico de 2022, feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), estima-se que há no país cerca de 68,6 milhões de crianças e adolescentes entre 0 e 19 anos. Segundo pesquisa recente do UNICEF, deste total, cerca de 32 milhões de crianças e adolescentes vivem na pobreza (aqui abarcando a pobreza em suas dimensões: renda, alimentação, educação, trabalho infantil, moradia, água, saneamento e moradia) E, numa situação ainda pior, 10,6 milhões de crianças e adolescentes4 (de 0 a 14 anos) vivem em condições de extrema pobreza. Ou seja, parte de toda uma população submetida às mais diversas violências, em que as politicas públicas elencadas como prioritárias no Marco da Primeira Infância, não são contempladas em sua integralidade, pelo contrário, é escassa, quando não, ausente. Não obstante retratar em números a questão socioeconômica na qual grande parcela da população infantojuvenil se encontra, faz-se importante retratar outras violências às quais as crianças são cotidianamente submetidas. E, num recorte por faixa etária e cor, as crianças negras são as maiores vítimas. Dados do Anuário Brasileiro de Segurança apontam que 67,1% de crianças vítimas de mortes violentas intencionais eram negras, numa faixa etária de 0 a 11 anos; sendo que 55,8% foram mortas por arma de fogo. Ainda neste sentido, dados do "Panorama da violência letal e sexual contra crianças e adolescentes no Brasil", que é fruto de uma parceria entre a UNICEF e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, apontam que de 2016 (ano de sanção do Marco da Primeira Infância) e 2020, foram 35 mil crianças e adolescentes mortos de forma violenta no Brasil. Este mesmo levantamento reforça os dados citados do Anuário Brasileiro, ou seja, a maioria das vítimas eram meninos negros, cerca de 1.070, entre 0 e 9 anos. Cabe aqui ressaltar que, só no primeiro semestre de 20235, houve um aumento de 24% de denúncias e 53% de violações contra crianças e adolescentes no país. Diante destes dados, reforço o questionamento deste texto, "A quais infâncias as referidas legislações se destinam?", considerando que no Brasil a primeira infância carece de uma atenção mais focada, sensível às particularidades da idade e, infelizmente, nem todas as crianças nesta faixa etária terá efetivo o acesso às políticas públicas e/ou cuidados essenciais ao seu desenvolvimento. Historicamente, a infância no Brasil foi e tem sido marcada por diversas formas de privações e violações, de maus tratos, a abusos sexuais, mas repensar este marco temporal que fixa a prioridade de políticas estatais para esse público, pode minimizar tais situações a fim de assegurar acesso e proteção aos mais diversos direitos fundamentais. Não podemos resumir a defesa da infância à leis ou datas comemorativas, mas sim, tratá-la como uma missão cotidiana, capaz de produzir frutos que nos levem de fato a ações propositivas, mas que venham a ser efetivadas. E mais, ter como premissa que estas leis atenderão desinteressadamente crianças reais, distintas da criança universal, abstrata e conceitual, a cuja qual tudo é possível - apenas no papel. Deverão atender, sem quaisquer distinções, todas as crianças que tem rosto e nome, que em sua maioria moram nas regiões periféricas de nossas cidades, que necessitam de creche ou pré-escola de qualidade, que buscam atendimento nos postos de saúde, querem atenção e espaços adequados para exercer o seu direito de brincar e, acima de tudo, desejam ter o pleno desenvolvimento do artigo 227 da Constituição Federal, bem como os princípios do Estatuto da Criança e do Adolescente, reforçados pelo Marco Legal da Primeira Infância. Trata-se de um grande desafio olhar as infâncias a partir das distintas realidades em que crianças de 0 a 6 anos encontram-se inseridas, em especial sob o argumento das diferenças econômicas, sociais e culturais às quais são submetidas. Mas, ainda assim, requer-se das políticas estatais, com máxima urgência, a devida proteção e cuidados no desenvolvimento integral da criança nesta fase de sua vida. __________ 1 Nota: No Brasil, considera-se primeira Infância o período até os seis anos de idade (72 meses de vida). 2 Doutora em Educação, Especialista em Primeira Infância. 3 CRC/C/GC/7/ Rev.1, OBSERVAÇÃO GERAL nº 7 (2005). "Definição da primeira Infância (.) varia nos diferentes países e regiões, segundo suas tradições locais e a forma em que estão organizados os sistemas educacionais. Em alguns países, a transição da etapa pré-escolar à escolar ocorre pouco depois dos 4 anos de idade. Em outros países, esta transição ocorre por volta dos 7 anos". 4 Relatório Fundação Abrinq "Cenário da Infância e da Adolescência no Brasil 2023" 5 Fonte: Disque 100/MDHC.
O abuso sexual contra crianças em ambiente digital transcende fronteiras. Na medida em que a tecnologia avança, as modalidades para o cometimento dos crimes em meio virtual fortalecem a possibilidade do anonimato dos autores, necessitando de uma grande rede de proteção para combater e prevenir os atos criminosos em face desse grupo tão vulnerável que, no Brasil, representa um terço da população. O Estatuto da Criança e do Adolescente, lei 8.069/90, prevê os crimes de abuso sexual infantil em meio virtual entre os artigos 240 e 241-E, quando especifica as condutas de produção, comercialização, transferência e armazenamento do conteúdo ilícito por qualquer meio de comunicação. Importante destacar que a terminologia "Pornografia Infantil", conforme as Diretrizes de Luxemburgo (2016), deve ser substituída por "Abuso Sexual", a fim de que sejam abarcadas as condutas criminosas de produzir, possuir e/ou compartilhar os materiais ilícitos em desfavor de crianças e colocando-as devidamente como vítimas, haja vista a impossibilidade de consentimento em situação de abuso. Não custa lembrar que o art. 227 da Constituição Federal do Brasil de 1988 prevê que É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.  Exige-se, portanto, uma cooperação efetiva não só entre os Estados, mas entre a sociedade como um todo, bem como aos membros das famílias, a fim de que sejam garantidos os direitos fundamentais às crianças e aos adolescentes, com a absoluta prioridade que preconiza a nossa Carta Magna. Assim, em que pesem os riscos oferecidos pelas ferramentas tecnológicas que podem inserir as crianças em situação de risco e vulnerabilidade, necessário se faz o uso dessas mesmas ferramentas para combater o abuso sexual contra elas no ambiente virtual. Nesse sentido, importante frisar o papel crucial das plataformas digitais para a cooperação internacional na transferência de dados às autoridades locais, a fim de apurar os fatos a partir de conteúdos suspeitos, bem como para identificar a autoria que se busca esconder através do anonimato na internet, a fim de cessar a conduta criminosa e punir os agentes. O NCMEC - National Center for Missing & Exploited Children, por exemplo, é uma organização não governamental e sem fins lucrativos que recebeu apoio do Governo norte-americano para estabelecer mecanismo centralizado de recebimento indicativos de materiais de abuso sexual infantil. No Brasil, a ONG SaferNet oferece um canal de denúncias para crimes identificados em meio virtual. Neste ano de 2023, as denúncias relacionadas às imagens de abuso e exploração sexual infantil online compartilhadas pela plataforma com as autoridades aumentaram 70% no primeiro quadrimestre. A empresa Google, uma das principais big techs, consegue filtrar em suas plataformas como Gmail, Photos e Drive, e identificar material com suspeita de conteúdo ilícito. A partir dessa ferramenta, é feita a procurar de hashes, identificador numérico, a fim de verificar se as imagens já fazem parte de algum acervo que visa o combate ao abuso sexual infantil ou, através do uso de machine learning, se trata de produção nova. A partir dessas informações, as empresas passam a compartilhar os dados dos usuários suspeitos às autoridades competentes, para que sejam identificados os agentes criminosos e apurada a conduta ilícita para promover a proteção às vítimas. Conforme abordado acima, o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê os crimes de abuso sexual infantil em meio virtual entre os artigos 240 e 241-E, quando especifica as condutas de produção, comercialização, transferência e armazenamento do conteúdo ilícito por qualquer meio de comunicação. No que tange à tipificação das condutas previstas nos artigos 241-A e 241-B do Estatuo da Criança e do Adolescente, recente informativo do Superior Tribunal de Justiça (n. 782) aponta a autonomia das condutas e inaplicabilidade do princípio da consunção, o que indica, portanto, a possibilidade de reconhecimento de concurso material dos crimes, fortalecendo os mecanismos de combate a ações conflitantes com a lei que resultam nas vulnerabilidades ora tratadas ao público infantoadolescente. Assim, é de suma importância o compartilhamento das informações detalhadas trazidas pelas instituições que recebem as denúncias pelas plataformas digitais, a fim de enriquecer o arcabouço probatório para configurar as condutas criminosas praticadas. Com efeito, é sabido que o Brasil é signatário da Convenção Internacional sobres os Direitos da Criança, conforme o Decreto n° 99.710/90. O art. 34 da referida Convenção prevê que os Estados Partes se comprometem a proteger a criança contra todas as formas de exploração e abuso sexual, e tomarão, em especial, todas as medidas de caráter nacional, bilateral e multilateral que sejam necessárias para impedir a exploração sexual infantil. Dessa forma, imperiosa se faz a observância quanto à legalidade do compartilhamento de informações entre as empresas e instituições internacionais que se dispõe a reportar os materiais ilícios e os dados dos usuários que praticam as condutas ilegais para fins de apuração pelas autoridades do Brasil. Ademais, como mencionado acima, o art. 227 da Constituição Federal prevê o dever não só estatal, mas social, com prioridade absoluta, em proteger as crianças e adolescentes de toda forma de abuso, principalmente considerando a hipervulnerabilidade desse grupo social. Por fim, vê-se inquestionável a necessidade em utilizar as ferramentas tecnológicas disponíveis para prevenir e denunciar os abusos sexuais infantojuvenis sofridos em ambiente virtual, a fim de tornar o meio virtual um ambiente seguro paras as crianças e adolescentes do nosso país. Referências BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível aqui. Acesso em: 13/08/2023. BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível aqui. Acesso em: 13/08/2023. BRASIL. Decreto n. 99.710, de 21 de novembro de 1990. Promulga a Convenção sobre os Direitos da Criança. Disponível aqui. Acesso em: 20/08/2023. HENRIQUES, Isabella. Direitos Fundamentais da Criança no Ambiente Digital: o dever de garantia da absoluta prioridade. São Paulo, Thomson Reuters Brasil - Revista dos Tribunais, Ano 2023. FEAC. ''Combater abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes é uma luta de todos''. Disponível aqui. Acesso em: 13/08/2023. SAFERNET. ''Denúncias de imagens de exploração sexual infantil online compartilhadas pela SaferNet com as autoridades tem aumento de 70% em 2023''. Disponível aqui. Acesso em: 20/08/2023.
No último dia 12 de junho, o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil lançou a campanha "Proteger a infância é potencializar o futuro de crianças e adolescentes. Chega junto para acabar com o trabalho infantil"1, que propõe um chamado à sociedade para erradicar o trabalho infantil, observando que a proteção à infância é fundamental tanto para o enfrentamento do trabalho infantil, como para o florescimento das potencialidades de crianças e adolescentes. A data (12 de junho) foi instituída no ano de 2002, pela OIT - Organização Internacional do Trabalho, como Dia Mundial contra o trabalho infantil e no Brasil no ano de 2007 pela Lei nº 11.542/2007 (Dia Nacional de Combate ao Trabalho Infantil). Mas, a questão do trabalho infantil não é uma problemática dos tempos atuais. Há informações na literatura de ocorrência da exploração de crianças e adolescentes desde a Antiguidade, pelas sociedades escravocratas. Não muito diferente, era a inserção de crianças e adolescentes nos mais diversos tipos de trabalhos, na Idade Média, como forma de contribuir para a situação financeira de suas famílias. Ou seja, desde os primórdios, já normalizavam a inserção e exploração servil da mão de obra infanto-juvenil, sem levar em consideração seu desenvolvimento enquanto ser em condição peculiar. E o que é o trabalho infantil? Segundo a Convenção 1382 da OIT - Organização Internacional do Trabalho, o trabalho infantil é aquele realizado por crianças e adolescentes abaixo da idade mínima de contratação exposta pela legislação local. Essa prática persiste em todo mundo, e em suas piores formas, aquelas descritas na Convenção 182 da OIT3, principalmente, nos casos de crianças e adolescentes, cujas famílias, encontram-se em condições de pobreza ou de extrema pobreza. Vale mencionar que a Convenção 138, foi ratificada pelo Brasil através do Decreto 4.134, de 15 de fevereiro de 2002 e a Convenção 182, pelo decreto 3.597, de 12 de setembro de 2000. Embora considerada uma prática condenável, principalmente, por ser uma grave violação de direitos humanos de crianças e adolescentes, até o ano de 2019, cerca de 1,8 milhões de crianças e adolescentes encontravam-se em condição de exploração de trabalho infantil no Brasil segundo dados do PNAD4 (Programa Nacional por Amostra de Domicilio) do IBGE, com idades entre 5 e 17 anos; deste montante, cerca de 706 mil, encontravam-se inseridos nas piores formas de trabalho infantil, previstos na lista estabelecida no país por intermédio do Decreto 6.481/2008. Vale aqui mencionar que, dentre as 89 modalidades, estão o trabalho doméstico, venda de bebidas alcoólicas, coleta de materiais recicláveis, trabalho na rua (comércio de rua, guardador de carros, carregador de bolsas em feiras, etc.), exploração sexual, trafico de drogas, além de trabalhos análogos a escravidão. Esta situação agravou-se com a decretação do estado pandêmico, no ano de 2020, quando, aumentou-se os casos de famílias em situações de extrema pobreza e moradores de ruas. Outro fator preponderante para este aumento, foi o fechamento das escolas, em especial, nos locais em que era mais dificultoso o acesso a modalidade de ensino a distância, aumentando o tempo ocioso das crianças e adolescentes e propiciando sua permanência na rua para fins de trabalho. Deste modo, não podemos falar de exploração de trabalho infantil sem relacioná-la a condição de pobreza e desigualdade social, uma vez que esta demanda atinge em sua maioria, crianças e adolescentes, residentes em regiões periféricas. A referida pesquisa de 2019 confirma as características do trabalho infantil apontadas em pesquisas anteriores. A maioria dos trabalhadores infantis eram meninos (66,4%) negros (66,1%); 21,3% (337 mil) estão na faixa etária de cinco a 13 anos. A faixa etária de 14 e 15 anos corresponde a 25% (442 mil). A pesquisa apontou também que 53,7% têm entre 16 e 17 anos (950 mil). O trabalho infantil fere o disposto no art.2275, da Constituição Federal, e responsabiliza o Estado, a Sociedade e a Família a promover ações com vistas a prevenir e erradicar sua ocorrência, com vistas a proteção integral de crianças e adolescentes. Equivoca-se aquele que ainda reproduz que a premissa de que "é melhor trabalhar do que roubar" ou que equipara crianças e adolescentes em situação de trabalho nas ruas a empreendedores mirins, justificando cenas cotidianas de exploração de trabalho infantil nas ruas dos grandes centros. O trabalho infantil acarreta inúmeros prejuízos ao desenvolvimento físico, moral, psíquico e social de crianças e adolescentes, ao expô-los a situações perigosas, insalubres, penosas, e é isto que todos devemos coibir e não alimentar. Crianças e adolescentes, em quaisquer classes socioeconômicas, devem ter seus direitos, aqueles assegurados no art. 227, da CF e art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente6, protegidos, não violados. É de suma importância ressaltar que a Constituição Federal criminaliza a exploração do trabalho infantil, a Consolidação das Leis do Trabalho7, estabelece normas para a inserção de maiores de 14 anos no mercado formal de trabalho e o ECA o faz a partir do capítulo V, reforçando a proteção necessária para os casos de trabalho infantil. Cumpre-nos destacar que o Brasil assumiu o compromisso junto a OIT e à ONU, por intermédio da Agenda 2030 (Objetivos do Desenvolvimento Sustentável) - Meta 8.78, de promover ações com vistas a erradicação do trabalho infantil até o ano de 2025, e em análise aos dados dos últimos relatórios sobre o tema, é notório que ainda há muito que se fazer, sendo a principal ação, o cumprimento efetivo da legislação vigente de proteção integral das crianças e adolescentes, de proibição do trabalho infantil. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 Disponível aqui. 6 Disponível aqui. 7 Disponível aqui. 8 Disponível aqui.
No dia 15 de junho de 2023 o site do Superior Tribunal de Justiça divulgou julgado no qual a Corte entendeu pela possibilidade do filho atuar como testemunha no processo de divórcio de seus pais1, cujo número não foi divulgado em razão do sigilo processual. Do que se lê da notícia, o STJ interpretou o artigo 447, § 2º, inciso I, do Código de Processo Civil, cujo texto diz: "Art. 447. Podem depor como testemunhas todas as pessoas, exceto as incapazes, impedidas ou suspeitas. (...) § 2º São impedidos: I - (...) o ascendente (...) salvo se o exigir o interesse público ou, tratando-se de causa relativa ao estado da pessoa, não se puder obter de outro modo a prova que o juiz repute necessária ao julgamento do mérito". Pela literalidade da lei, como se vê, os filhos (ascendentes em primeiro grau) são impedidos de depor como testemunha. O STJ, contudo, entendeu que tal regra de impedimento só é válida quando o filho presta depoimento como testemunha em processo no qual o seu pai e/ou a sua mãe litiga contra uma terceira pessoa, não incidindo, porém, nos casos em que a demanda é proposta pelo pai em desfavor da mãe, ou vice-versa. Para o STJ, nas hipóteses em que a pessoa que presta depoimento possui idêntico vínculo com ambas as partes não há presunção de parcialidade e a regra não tem razão para se aplicar. A notícia divulgada no portal eletrônico do Superior Tribunal de Justiça não esclarece se o filho ouvido como testemunha é maior ou menor de idade. De todo modo, a idade não parece ter sido o objeto da divergência levada à apreciação pelo Tribunal Superior, e sim o alcance da regra objetiva que impede o ascendente de atuar como testemunha. Sem embargo, com a resposta positiva do STJ, que confirmou que o filho pode sim atuar como testemunha no processo de divórcio dos pais, uma nova questão se abre no horizonte: o filho menor de 18 (dezoito) anos de idade pode atuar como testemunha no processo de divórcio dos pais? O mesmo artigo 447 do Código de Processo Civil prescreve, no § 1º, inciso III, que "§ 1º São incapazes: (...) III - o que tiver menos de 16 (dezesseis) anos". Trata-se de reprodução do artigo 405, § 1º, inciso III, do Código de Processo Civil de 1973. De acordo com o texto literal do CPC, portanto, as crianças (pessoas até doze anos de idade incompletos) e os adolescentes que tenham entre doze e dezesseis anos incompletos não poderão ser ouvidos como testemunhas. São incapazes de testemunhar. A ratio da regra está indisfarçavelmente conectada ao artigo 3º, caput, do Código Civil (antigo art. 3º, inciso I, na redação anterior à lei 13.146/2015), que dispõe: "São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos". A propósito, a mesma previsão estava contida no artigo 5º, inciso I, do Código Civil de 1916. Logo, toda pessoa com menos de dezesseis anos de idade é considerada pela legislação civil brasileira, material e processual, como incapaz. Incapaz de exercer pessoalmente os atos da vida civil. Incapaz de testemunhar. Assim sendo, levando em conta apenas e tão somente a literalidade da lei em cotejo com a recente decisão do STJ, concluiríamos que o filho pode atuar como testemunha no processo de divórcio de seus pais, mas, desde que tenha mais de 16 (dezesseis) anos de idade. Entretanto, desprendendo-se da letra "fria" da lei, a conclusão deixa uma inquietante lacuna e uma dúvida que carece de adequada solução: o filho menor de 16 (dezesseis) anos não poderá prestar depoimento como testemunha no processo de divórcio dos pais? A nosso ver, ainda que não venha a ser admitida formalmente como testemunha, a criança e/ou o adolescente que tiver menos de 16 (dezesseis) anos de idade poderá ser ouvida no processo de divórcio de seus pais, mesmo que a título de "informantes". Em primeiro lugar porque ser ouvido e manifestar os seus pontos de vista e as suas opiniões é um direito que é reconhecido a toda criança e a todo adolescente pelo artigo 12 da Convenção das Nações Unidas Sobre os Direitos da Criança, que diz ser assegurado "à criança que estiver capacitada a formular seus próprios juízos o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados com a criança, levando-se devidamente em consideração essas opiniões, em função da idade e maturidade da criança" e que, por consequência, deve ser proporcionado à criança "a oportunidade de ser ouvida em todo processo judicial ou administrativo que afete a mesma" (BRASIL, 1990). A doutrina especializada aponta que o artigo 12 da Convenção da ONU agasalha o direito à participação, conceito que projeta a criança como sujeito pleno de direitos, "capaz de formar e expressar opiniões, participar de processos decisórios e influenciar soluções"2 (PAIS, 2000, p. 93). Ou seja, a criança e o adolescente têm o direito de participar de todos os processos judiciais que sejam de seu interesse ou que tenham o condão de afetar as suas vidas, como é o caso da ação de divórcio, na qual pode ser decidido, por exemplo, a qual dos genitores será concedida a guarda da criança ou do adolescente. Porém, lamentavelmente, "muitos são os processos judiciais nas Varas de Família e nas Varas da Infância e da Juventude que trazem a criança e o adolescente não como sujeitos a serem ouvidos, mas sim como objetos de disputa acirrada entre os familiares" (BRETZ, 2023, p. 89). É preciso mudar esse cenário, de exclusão, em que os rumos da vida dos filhos são tomados à sua revelia, como se fossem meros objetos de intervenção, e não sujeitos de direitos cuja vida pode ser sensivelmente impactada pela decisão tomada pelos adultos. Noutras palavras, é preciso dar voz às crianças, ouvindo-as. E mais: é insuficiente apenas tomar os seus depoimentos, pois "não basta apenas dar às crianças o direito de serem ouvidas. Também é importante levar a sério o que eles têm a dizer"3 (LANSDOWN, 2005, p. 03), sem que isso signifique que o juiz deva acatar, necessariamente, o desejo da criança. Não. Mas, deve levá-lo em conta no momento de decidir, devendo fundamentar as razões por que entende ser mais prudente e benéfico à criança decisão contrária à sua manifestação. Em segundo lugar porque a oitiva da criança ou do adolescente, de modo irrestrito, em laudos e estudos psicossociais, por meio do setor técnico do juízo (assistentes sociais e psicólogos judiciários), pode não ser a solução mais consentânea com o direito à participação em todo e qualquer caso. Nesse sentido, aliás, a lei 13.431/2017 deixou claro que deve se assegurar à criança e ao adolescente também o protagonismo para decidir sobre a forma de sua participação. A criança e o adolescente têm o direito de prestar depoimento, seja através de métodos adaptados de inquirição (depoimento especial), seja diretamente ao magistrado. Inclusive, é preciso deixar claro que a criança e o adolescente têm o direito de depor, mas não o dever. A participação é um direito a eles assegurado e não uma obrigação imposta. Foi o que reconheceu a Diretriz 46 do Comitê de Ministros do Conselho da Europa sobre a justiça adaptada às crianças: "O direito a ser ouvido é um direito, e não um dever, da criança". Como consequência, algumas regras formais devem ser flexibilizadas e não há que se falar em condução coercitiva da criança ou adolescente arrolada como testemunha e que não comparece para depor (CARVALHO, 2021) e tampouco deve ser tomado o compromisso da criança ou adolescente de dizer a verdade sob juramento (nesse sentido, aliás, o artigo 22 da Lei Modelo para a Justiça em Matérias que envolvam Crianças Vítimas e Testemunhas de Crimes prevê que "crianças testemunhas recebam total imunidade de processo criminal por prestar falso testemunho"4 (UNODC/UNICEF, 2009, p. 51). Em terceiro lugar porque depor em juízo, seja como testemunha ou um informante, confere agência às crianças e adolescentes e podem trazer-lhes benefícios. De fato, dentre as vantagens da participação, MILLER (2009) indica que as crianças aprendem a expressar os seus próprios interesses, desenvolvem habilidades de cooperação, negociação e resolução de problemas e assimilam que contribuíram para a decisão, o que aumenta seu compromisso em efetivá-las. Além disso, "as percepções obtidas das crianças ajudam os adultos a trabalhar com mais eficiência e garantem que os serviços prestados sejam relevantes para as necessidades das crianças"5 (MILLER, 2009, p. 05). À vista do que foi dito, respondendo à pergunta lançada acima, é forçoso concluir que, nada obstante a literalidade do texto do Código Civil e do Código de Processo Civil (cujo teor se assentam em bases adultocêntricas que se baseiam no critério exclusivo da idade, desconsiderando as competências infantojuvenis e que, por isso, merecem urgente revisão, assunto que ultrapassa os limites desse artigo), o filho menor de 16 (dezesseis) anos poderá sim prestar depoimento como testemunha no processo de divórcio dos pais, notadamente quanto às questões existenciais envolvidas na lide e que estejam diretamente envolvidas, como a guarda e o regime de visitação, excluídas, portanto, questões meramente patrimoniais como a disputa por bens. Nesse sentido, diz o Enunciado nº 138 da III Jornada de Direito Civil do CJF: "A vontade dos absolutamente incapazes, na hipótese do inc. I do art. 3º é juridicamente relevante na concretização de situações existenciais a eles concernentes, desde que demonstrem discernimento bastante para tanto". Assentado o direito das crianças e dos adolescentes de participarem dos processos de divórcio de seus, sendo ouvidas como testemunhas, é preciso salientar, por derradeiro, que nem sempre será recomendável a oitiva em todo e qualquer hipótese. Pelo contrário, é recomendável que, previamente à escuta, seja feita avaliação preliminar, pelo setor técnico, a fim de averiguar o impacto da entrevista para a criança e o adolescente. Afinal, não se olvida que "os acirrados embates entre os genitores, em disputas judiciais, acabam por tornar a vida das crianças e dos adolescentes um campo de batalha minado, em que não raro há conflitos de lealdade dos filhos em relação aos genitores" (BRETZ, 2023, p. 90), razão pela qual é preciso perquirir (e a avaliação preliminar é ideal para tanto) até que ponto depor em juízo pode colocar a criança ou o adolescente num conflito de lealdade que, ao fim e ao cabo, viola o seu interesse de manter uma boa e harmoniosa convivência com ambos os pais. Justamente por isso, é preciso que a criança e o adolescente sejam informados das possíveis consequências de seu depoimento e que se colha o seu consentimento informado para participação voluntária. Em outras palavras, é preciso que, previamente ao depoimento, crianças e adolescentes sejam consultados acerca de sua participação como testemunhas, momento no qual devem ser repassadas informações importantes acerca de tal participação. E é preciso se pensar, inclusive, o modo como deve ser feita tal consulta. Nas palavras de MELO (2021, p. 29), "para garantir o livre exercício do direito de ser ouvido, é importante não apenas proporcionar um contexto institucional onde ele se sinta confortável e seguro para entender o significado e o impacto da participação, mas também que essa consulta possa ser significativa e compreensivo"6. Não se admite, pois, que as partes (no caso, o ex-casal que litiga em juízo, genitores das crianças e adolescentes) arrolem a prole como testemunhas e o magistrado simplesmente defira o pedido e designe audiência. Não. É imprescindível cautela: as crianças e os adolescentes devem ser consultados e se recomenda a avaliação preliminar.  Em suma, "antes de decidir se os filhos devem testemunhar em questões familiares, deve-se levar em consideração a sua posição vulnerável na família e o efeito que tal testemunho pode ter nos relacionamentos presentes e futuros. As crianças devem ser informadas das consequências de testemunhar ou não" (IAYFJM, 2017, p. 81). Por fim e finalmente, caso se decida pela oitiva da criança e/ou do adolescente como testemunhas em ações de divórcio, é fundamental que se pense como ocorrerá, na prática, essa escuta. De fato, o depoimento deve ser prestado em ambiente e em formato que mais favoreça o exercício das competências da criança ou do adolescente, portanto, em ambiente adaptado e amigável (child-friendly), sendo recomendável que seja tomado em sala especial, com a intermediação de entrevistador forense e seguindo-se protocolos específicos7. O divórcio dos pais é uma matéria que perpassa por uma série de questões que afetam diretamente os filhos e, por isso, nos termos do artigo 12 da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (1989), mesmo sendo crianças e adolescentes têm o direito de serem ouvidos como testemunhas, observadas as cautelas necessárias. É chegada a hora de trazer as crianças como participantes dos processos, como sujeitos de direitos, que têm voz e não como meros objetos a quem se imporão os efeitos práticos das decisões judiciais. Referências bibliográficas  BRASIL. Decreto 99.710, de 21 de novembro de 1990. Promulga a Convenção sobre os Direitos da Criança. Brasília, DF: Presidência da República, 1990. Disponível aqui. Acesso em: 24 jun. 2023. BRETZ, Talita. Os conflitos familiares na justiça: desafios da atuação integrada e protetiva da infância. Revista IBDFAM: Famílias e Sucessões, v. 56, Belo Horizonte, MG, IBDFAM, mar./abr. 2023, p. 86-122. CARVALHO, Sandro Carvalho Lobato de. A impossibilidade da condução coercitiva de criança e adolescente, vítima ou testemunha de violência, no Processo Penal brasileiro. Revista do CNMP, n. 9, Brasília, DF, CNMP, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 21 jun. 2023. IAYFJM. International Association of Youth and Family Judges and Magistrates. Diretrizes: crianças em contacto com o Sistema de Justiça. IAYFJM, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 20 jun. 2023. LANSDOWN, Gerison. Can You Hear Me? The right of young children to participate in decisions affecting them. Working Papers in Early Childhood Development, No. 36. Bernard van Leer Foundation, The Hague, The Netherlands, 2005. Disponível aqui. Acesso em: 23 jun. 2023. MILLER, Judy. Never too young. How young children can take responsibility and make decisions. London, Save the Children, 2003.  MELO, Eduardo Rezende. Child participation in family and protection matters: an AIMJF's collaborative research. AIMJF 's Chronicle, vol. 1, No. 1, 2021b. Disponível aqui. Acesso em: 23 jun. 2023. PAIS, Marta Santos. Child Participation. Documentação e Direito Comparado, nos 81/82. Lisboa, Portugal, 2000, p. 92-101. Disponível aqui. Acesso em: 20 jun. 2023. UNODC. United Nations Office on Drugs and Crime; UNICEF. United Nations Children's Fund. Justice in Matters involving Child Victims and Witnesses of Crime. Model Law and Related Commentary. United Nations: New York, 2009. Disponível aqui. Acesso em: 24 jun. 2023. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em: 19 jun. 2023. 2 Tradução livre. No original: "the child is envisaged as a subject of rights, who is able to form and express opinions, to participate in decision-making processes and influence solutions". 3 Tradução livre. No original: "It is not sufficient just to give children the right to be listened to. It is also important to take what they have to say seriously". 4 Tradução livre. No original: "child witnesses be given complete immunity from criminal prosecution for giving false testimony". 5 Tradução livre. No original: "Insights gained from children help adults to work more effectively and ensure that services provided are relevant to children's needs". 6 Tradução livre. No original: "To grant a free exercise of the right to be heard, it is important not only to provide an institutional context where he or she will feel comfortable and secure to understand  the  meaning  and  impact  of  the  participation,  but  also  that  this consultation could be meaningful and comprehensive". 7 A Portaria nº 359, de 11 de outubro de 2022, do CNJ, instituiu Grupo de Trabalho para debater e propor protocolo para a escuta especializada e depoimento especial de crianças e adolescentes em ações de família.
O triste caso do ataque que resultou na morte de quatro crianças em creche de Blumenau reavivou novamente o debate, cuja temática é caríssima: como garantir a segurança de nossas crianças no ambiente escolar? Tal pergunta ressoa na sociedade há muito tempo e ainda carecemos de respostas efetivas. Desde o "massacre de Columbine", episódio de violência ocorrido em 1999 com grande cobertura midiática que chocou os norte-americanos, bem como toda a comunidade internacional, enfrentamos de perto casos de notória crueldade em ações que comumente possuem como alvo estudantes e professores. A respeito de Columbine, segundo descrição do The New York Times no documentário "Haunted by Columbine"1 (tradução livre: Assombrados por Columbine), o que se pôde observar a partir de então foram ondas de violência no ambiente escolar. E a grande preocupação é explicar o porquê de um episódio que a princípio parecia isolado ter se tornado um fenômeno de grande escala pelo mundo desde então, segundo apontam levantamentos. Segundo o jornal Washington Post, mais de 349.000 (trezentos e quarenta e nove mil) estudantes nos Estados Unidos experienciaram a violência armada nas escolas desde Columbine2. Este fato alarmante fez com que milhões de dólares fossem empreendidos no país para promover a segurança escolar. Tal feito, que evidentemente tem uma preocupação compreensível, a proteção de nossas crianças, contudo, não impediu novos ataques. De um lado, altos investimentos financeiros e materiais para aumentar a segurança escolar. De outro, um crescente número de massacres em escolas e universidades. Ressaltamos que embora seja legítima a preocupação com a segurança de crianças e adolescentes nas escolas, de modo que seja natural e esperado um aumento nos investimentos em câmeras de segurança, monitoramento, contratação de segurança local, entre outras medidas, principalmente nos momentos logo após os atentados violentos, deve-se ter em mente que reação se difere de prevenção. Segundo reforça o especialista em violência nas escolas e bullying da University of Southern California, Ron Avi Astos, "tornar as escolas parecidas com prisões tende a ter um impacto negativo a longo prazo (...) a solução passa por medidas amplas para prevenir, e não simplesmente reagir a esses episódios"3. Dessa forma, diferenciando reação de prevenção, é esta última que torna necessário um amplo debate para encontrar soluções adequadas e eficazes em um mundo cada vez mais complexo e dinâmico. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada autor está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível -  Foucault, Vigiar e Punir. Embora o foco deste arquivo não sejam as críticas feitas ao panóptico foucaultiano no ambiente escolar, o que nos surge a partir desta leitura é a seguinte dúvida: mesmo que as escolas passem a ser amplamente vigiadas, como controlar as relações externas a ela, sobretudo quando estamos considerando o vasto ambiente digital na sociedade atual? Como monitorar as redes sociais de estudantes e funcionários de instituições de ensino, considerando as questões relacionadas ao algoritmo das plataformas virtuais, a fim de evitar atentados de ódio voltados às crianças, adolescentes, Professores e ao próprio ambiente escolar? Parece-nos uma tarefa de difícil execução e controle, discussão que também se vincula à pauta da regulação das mídias e das redes sociais, mas é fato que, com o uso de inteligência artificial, podemos como sociedade acompanhar e evitar situações de fomento ao ódio e à violência, o que, ao final, pode ter um efeito positivo ao ambiente escolar vez que favorável à promoção de uma Cultura de Paz, tema que vem sendo trabalhado pela UNESCO.4 Voltando à diferenciação aqui proposta de reação e prevenção, segundo a entidade, mais do que teoria e prática contra atos violentos, a prática da não violência nas escolas deve ser uma atitude que permeia o ensino, envolvendo os profissionais de educação e os estudantes da escola, os pais e a comunidade, em um desafio comum e compartilhado entre todos e todas. Essa não violência integrada à vivência escolar conferiria ao professor outra visão do seu trabalho pedagógico - vez que não se limitaria apenas a este papel educacional -, de modo que a escola se posicionaria em favor do diálogo, da troca e do  compartilhamento comunitário. Assim, a escola passaria a ocupar um lugar de verdadeiro centro para a vida cívica em comunidade, fomentando o desenvolvimento integral de crianças e adolescentes, garantindo o acesso à educação de qualidade, e fortalecendo a própria rede de proteção, na qual se inclui a família. E sobre a temática aqui debatida, cabe frisar o importante papel da família no combate à violência escolar, de modo que, através de medidas educacionais e assistencialistas pela migração do papel da escola na sociedade, os ciclos familiares - em especial os mais vulnerabilizados - também estariam mais informados para trabalhar em conjunto na garantia de direitos infantojuvenis com a prioridade legal estabelecida no Art. 227 da Constituição Federal. Desse modo, medidas relacionadas a valores, atitudes e modos de comportamento que rejeitam a violência podem ser frutíferas e é nesse contexto que propomos uma visão sociojurídica sobre o dilema da segurança nas escolas, rechaçando a ideia de que a mera reação, muitas vezes motivada pelos ideais midiáticos e políticos, não é suficiente. No âmbito do Direito, tornam-se cada vez mais presentes as discussões sobre meios alternativos de resolução de conflitos, mormente daqueles vinculados à autocomposição a partir da busca de um maior protagonismo das partes na solução do problema. Pela implementação de novas políticas judiciárias e até mesmo por meio de alterações legislativas, a prática da mediação e da conciliação no âmbito do Poder Judiciário é já parte do cotidiano dos atores do Sistema de Justiça. Exemplo disso é a inovação garantia pelo Art. 334 do Código de Processo Civil em 2015 e a promulgação da Lei de Mediação no mesmo ano, que, para além da garantia da prática, aprimoram o sistema, fomentando discussões sobre a remuneração adequada dos profissionais que atuam junto aos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania, presente nos Fóruns, e sua frequente e constante formação para a condução assertiva da questão posta em debate pelas partes na busca pelo consenso e pelo diálogo. Torna-se a prática, assim, mais assertiva, resolutiva e eficaz, contribuindo para o desafogamento do Judiciário e em prol da citada Cultura de Paz. Nesse mesmo sentido é que avançam as discussões sobre a prática da mediação escolar, importante aliada ao fomento da segurança nas escolas, e que mereceria mais detida atenção por parte do Poder Público na prevenção do conflito, seja internamente na escola, entre alunos, entre professores e alunos, entre professores, permitindo várias composições diferentes de trabalho, ou mesmo no âmbito das famílias e da própria comunidade. Isto é: a mediação escolar não se resume a uma tentativa pontual de resolução de conflitos (ou seja, como reação), mas também se coloca como prevenção e transformação dos indivíduos e da coletividade através de um maior empoderamento, vivenciando boas práticas para saber resolver outros problemas no futuro, da garantia de informação e formação em direitos sociais, ou mesmo da validação de si e do outro, com alteridade e empatia. Dentro da Cultura de Paz e do papel da escola antes explicado, como centro de cidadania, pois, a medida se apresenta como uma solução legítima para o dilema da segurança nas escolas. Com efeito, uma das medidas instituídas pelo Governo de São Paulo, em resposta à crescente demanda da sociedade civil pela prevenção e combate à violência nas escolas, foi a contratação de psicólogos para efetuar o acompanhamento dos alunos no ambiente escolar. Dentro do contexto que se propõe, tal presença tende a ser benéfica, em um primeiro momento, como forma de acolher os alunos, os professores e as famílias, receosos diante dos episódios e ameaças reiteradas à segurança dentro do ambiente escolar. No mais, em termos preventivos a curto prazo, os psicólogos podem ser decisivos na identificação precoce e mapeamento de casos de violência e bullying no ambiente escolar, orientando o corpo acadêmico em como atuar diante de situações de conflito, além de prestarem suporte psicológico àqueles estudantes e professores que apresentam questões emocionais ou comportamentais neste cenário específico e exacerbado de ameaça às escolas. Contudo, tal presença se faz pertinente não apenas para "conter ameaças" à segurança escolar, mas visando ações de longo prazo na convivência nesse ambiente como um todo. É evidente que o trabalho desses profissionais é de extrema relevância no contexto atual das escolas no Brasil, porém é necessário ter a clareza que a mera introdução dos psicólogos nas escolas da rede estadual não é uma solução imediata e suficiente para resolver o problema histórico da violência no ambiente escolar. Mais do que contratar esses profissionais em um momento de crise, é fundamental que eles permaneçam nas escolas e passem a integrar regularmente o quadro de funcionários da educação básica no Brasil, colocando-se a promoção da saúde mental e emocional dos alunos, dos professores e da comunidade escolar como um todo. Esta iniciativa poderia garantir o desenvolvimento de políticas públicas estruturantes, fomentar as práticas de mediação escolar e contribuir com a criação de um ambiente escolar mais acolhedor e preparado, onde os alunos se sintam seguros e amparados emocionalmente, fortalecidos em sua autoestima também pelo cultivo, de forma coletiva no ambiente escolar, do respeito mútuo, da tolerância e da empatia entre seus membros. A prática de ações de ordem preventiva, que também se soma ao exercício pleno da cidadania, busca mitigar estruturalmente os riscos de que se desenvolvam problemas graves que estão na raiz do dilema da violência nas escolas, tal como o bullying, os discursos de ódio, a depressão, a ansiedade e outras questões que afetam significativamente a qualidade de vida e saúde mental dos alunos. Dentro da ótica sociojurídica proposta, acreditamos que possa ser mais produtivo ações contínuas pautadas na prevenção, tais como, o monitoramento das redes sociais com o apoio de núcleos de Coordenação de Inteligência Cibernética, como vem sendo trabalhado no âmbito do Governo Federal, a realização de mediação de conflitos nas escolas, principalmente da Educação Básica, em um projeto de longo-prazo, com formação de profissionais e empoderamento dos próprios alunos, e a adoção do trabalho estrutural de um corpo de psicólogos de forma permanente. Isto porque medidas de segurança estão sendo propostas pelos Estados e pelos Municípios de forma difusa e visando a mera reação, apresentando-se propostas diametralmente opostas variando entre um diálogo mais intenso com os alunos, ou mesmo maior ostensividade na segurança física, com o uso de detectores de metais e a presença de policiais durante o horário de funcionamento das unidades escolares, esquecendo-se de modo geral da Cultura de Paz proposta pela UNESCO. As conclusões sobre a temática certamente não são absolutas e se prestam, aqui, apenas para tecer reflexões a partir de algumas medidas benéficas que podem ser trabalhadas no ambiente escolar e, igualmente, apresentadas pelos profissionais do Direito, enxergando-se a necessidade de que o Sistema de Justiça não esteja distante e alijado das pautas sociais existentes.  __________ 1 Disponível aqui; acesso em junho/23. 2 COX, John Woodrow; RICH, Steven; CHONG, Linda; TREVOR, Lucas; MUYSKENS, John; ULMANU, Monica. More than 349,000 students have experienced gun violence at school since Columbine. There have been 377 school shootings since 1999, according to Post data. The Washington Post, 11 de abril de 2023. Disponível aqui; acesso em junho/23. 3 CORRÊA, Alessandra. As medidas adotadas nos EUA para combater massacres em escolas. Folha de S. Paulo, 18 de março de 2019. Disponível aqui; acesso em junho/23. 4 "A cultura de paz no Brasil". Brasília: UNESCO. Disponível aqui; acesso em junho/23.
No próximo dia 18 de maio, completará 50 anos do caso Araceli, que foi assassinada aos oito anos de idade, em Vitória, Espírito Santo. À época dos fatos, como é de conhecimento de toda sociedade, seu corpo foi encontrado seis dias após sua morte brutal, com sinais de violência, abuso sexual e desfigurado por uso de ácido. Os acusados, após reexame do processo, foram absolvidos pela Justiça. Nos anos 2000, a data tornou-se símbolo do Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. Mas por que recordar estes fatos em 2023? Simplesmente, porque em pleno ano de 2023 temos que mostrar o óbvio a toda sociedade a fim de evitar que mais casos brutais como o de Araceli continue acontecendo bem debaixo de nossos olhos. Proteger crianças e adolescentes de qualquer forma de violência não é uma opção do governante, seja ele de qual partido for, é uma imposição da Constituição, que através do artigo 227, estabeleceu ser dever do Estado, Sociedade e Família tal obrigação. É válido nos recordar que antes mesmo da Constituição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente ser sancionado e ter entrado em vigor no país, a Declaração Universal dos Direitos da Criança de 1959, no princípio 9, trazia em seu texto que "A criança gozará proteção contra quaisquer formas de negligência, crueldade e exploração. Não será jamais objeto de tráfico, sob qualquer forma. Não será permitido à criança empregar-se antes da idade mínima conveniente; de nenhuma forma será levada a ou ser-lhe-á permitido empenhar-se em qualquer ocupação ou emprego que lhe prejudique a saúde ou a educação ou que interfira em seu desenvolvimento físico, mental ou moral", demonstrando o quão importante era proteger e prevenir quaisquer tipos de violências contra as crianças e os adolescentes. Esse princípio, reiterado na Convenção dos Direitos da Criança, de 1989, cuja qual foi ratificada pelo Brasil em 24 de setembro de 1990, através de seu artigo 19, item 1, reforçou tal mandamento recomendando "Os Estados Partes devem adotar todas as medidas legislativas, administrativas, sociais e educacionais apropriadas para proteger a criança contra todas as formas de violência física ou mental, ofensas ou abusos, negligência ou tratamento displicente, maus-tratos ou exploração, inclusive abuso sexual, enquanto a criança estiver sob a custódia dos pais, do tutor legal ou de qualquer outra pessoa responsável por ela". Entretanto, mesmo diante de legislações tidas progressistas e protecionistas, as violências, às quais crianças deveriam ser protegidas, seguem estampadas nas principais manchetes jornalísticas. Não obstante, estas violências, traduzidas em números, nos mostram o quão falha é a rede de proteção existente. Dados do último Anuário Brasileiro de Segurança Pública elucidam o aumento dos casos de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes no país. A cada hora, 4 meninas são vítimas de estupro no país. São 100 crianças violentadas por dia no país. E o perigo está dentro dos lares: 76,5% dos casos ocorrem no ambiente doméstico, sendo o abusador, conhecido da vítima. A ineficiência das políticas públicas e o silêncio seguem perpetuados na sociedade, tal como há cinquenta anos atrás, quando Araceli foi vítima. E por que o tema ainda segue sendo um tabu? Justamente por ser tão difícil falar sobre educação sexual com crianças e adolescentes, muitas vezes, motivado por crenças familiares e interferência de líderes religiosos. E nós, adultos, responsáveis para que essas orientações e informações cheguem ao público alvo, no caso crianças e adolescentes, seguimos inertes, omissos, delegando tal tarefa à terceiros ou, no pior dos casos, às redes sociais. Aí que mora o perigo. Quem está de fato educando nossas crianças e adolescentes? Às vezes, e por que não afirmar, na maioria das vezes, pedófilos, que usam de meios ardilosos para atrair, corromper e violenta-los das mais diversas formas (como por exemplo, os casos de estupro virtual). Estamos falhando. Não podemos negar. As alterações legislativas que sucederam o Estatuto da Criança e do Adolescente, tal como a Lei Menino Bernardo1 e Lei Henry Borel2, vieram a criar novos mecanismos de punição aos indivíduos que praticam quaisquer tipos de violências contra crianças e adolescentes, porém, elas estão, de fato, responsabilizando quem de direito? Diante de mais este questionamento, basta refletirmos sobre a Lei de Alienação Parental3, que por vezes, coloca as crianças e os adolescentes sob tutela dos abusadores. Neste sentido, é fato que enquanto o Sistema de Justiça também continuar violando os direitos das crianças, esse crime continuará entre nós. Frente a tantas mazelas e desapontamentos, cumpre-nos por fim, aqui destacar as iniciativas que a sociedade civil, por intermédio de organizações não governamentais, que vem atuando de forma a promover a discussão sobre o tema, trazendo luz à problemática que segue vitimando crianças e adolescentes em todas as regiões do país, para que tenhamos, de fato, um Sistema de Garantia de Direitos de crianças e adolescentes que acolha, defenda e escute as infâncias. Referências: BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em: 10 mai. 23. 23 _______. LEI 8.069 (1990). Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília, DF: Senado, 1990. Disponível aqui. Acesso em: 10 mai. 23 FORUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2022. Disponível aqui. Acesso em: 10 mai. 23. ONU. Declaração dos Direitos das Crianças, 1959. Disponível aqui. Acesso em 10 mai. 23. ____. Convenção dos Direitos da Criança e do Adolescente, 1989. Disponível aqui. Acesso em: 11 abr. 23. __________ 1 Lei 13.010 de 26 de junho de 2014 - Lei Menino Bernardo. 2 Lei 14.344 de 24 de maio de 2017 - Lei Henry Borel. 3 Lei 12.318 de 26 de agosto de 2010 - Lei de Alienação Parental.
terça-feira, 2 de maio de 2023

Alienação parental não é tudo igual!

famílias, uma das temáticas mais polêmicas é a referente ao termo alienação parental, que, no ordenamento jurídico brasileiro atual, é mencionado em diversas leis ordinárias. As leis que tratam sobre o tema alienação parental vêm, equivocadamente, sendo apontadas, por parte da sociedade, como instrumentos que contribuiriam para separar pais ou mães de filhos, proteger abusadoras ou abusadores, ocultar ilícitos praticados contra crianças e adolescentes, etc. Entretanto, ao contrário do entendimento desta parcela da população, as leis que versam sobre alienação parental têm exclusivamente viés protetivo preventivo ou  em último caso, repressivo, buscando colocar as pessoas crianças e adolescentes, cidadãos hipervulneráveis, sujeitos de direito, a salvo de toda e qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, almejando, com isso, dar efetividade a mandamentos constitucionais.   Questão ainda pouco explorada pela doutrina jurídica, de grande importância para realçar o caráter protetivo das leis que abordam a questão da alienação parental, é o fato de que alienação parental não é tudo igual, pois os possíveis atos ilícitos promovidos ou induzidos pela pessoa alienadora possuem naturezas jurídicas distintas, múltiplas, conforme será a seguir demonstrado. A alienação parental, na forma tratada na Lei Federal nº 12.318/2010, tem natureza jurídica de abuso de direito, abuso moral, praticado através de atos objetivos, conscientes ou inconsciente, com mero potencial de interferir na formação psicológica da criança ou do adolescente, promovida ou induzida por ascendentes, familiares ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua responsabilidade, guarda ou vigilância para que repudie(m) familiar(es) (nuclear, extenso, socioafetivo ou por afinidade) ou para que cause prejuízo ao estabelecimento, à manutenção, ao fortalecimento ou à reconstrução de vínculos saudáveis com este(s). A lei Federal 12.318/2010 tem caráter protetivo preventivo, uma vez que exige apenas a presença de indício de atos que potencialmente, hipoteticamente, possam vir a causar danos psicológicos à criança ou ao adolescente, ou impactar, negativamente no constitucional direito de tais pessoas à convivência familiar e comunitária saudável, em ambientes que lhe garantam seu desenvolvimento integral. Assim, as medidas protetivas previstas no artigo 6º da lei Federal 12.318/2010, ostentam caráter preventivo e pedagógico, buscando evitar que pessoas crianças e adolescentes sofram efetivos danos psicológicos, tal qual garantir a tais cidadãos o direito constitucional à saudável convivência familiar e comunitária, direito esse que está compreendido no fundamental direito à liberdade, do qual ninguém pode ser privado sem o devido processo legal. O caráter preventivo e pedagógico de tais medidas protetivas, constantes da lei Federal 12.318/2010, foi confirmado e reforçado com a revogação, pela lei Federal 14.340/2022, do antigo inciso VII, que figurava em seu artigo 6º, onde era previsto a suspensão da autoridade parental, medida essa com nítido escopo protetivo repressivo. Eventual descumprimento de tais medidas protetivas preventivas, atrairá a incidência de sanções de caráter unicamente processual ou cível, como, por exemplo, astreintes, multa por ato atentatório à dignidade da justiça, redução de prerrogativas parentais, etc. A competência para solucionar conflitos derivados de ato de alienação parental, na  forma prevista na Lei Federal nº 12.318/2010, que detém natureza jurídica de abuso de direto, abuso moral, abuso no exercício do poder familiar, pertence às Varas de Família, devendo a atuação do Judiciário ser prioritariamente voltada à orientação, apoio e promoção social da família natural, junto à qual a pessoa criança e adolescente deve permanecer, preferencialmente através da adoção de medidas de caráter pedagógico, que visem ao fortalecimento, manutenção, criação ou reconstrução dos vínculos familiares e comunitários saudáveis, ressalvada absoluta impossibilidade, demonstrada por decisão judicial devidamente fundamentada. Noutro giro, a alienação parental abordada nas leis Federais 13.431/2017 e 14.344/2022, possui natureza jurídica de violência psicológica, forma de violação dos direitos humanos, praticada através de atos conscientes ou inconscientes, que causam efetiva interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente, promovida ou induzida por ascendentes, familiares ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua responsabilidade, guarda ou vigilância, que, causando sofrimento psicológico, leve ao repúdio de familiar(es) (nuclear, extenso, socioafetivo ou por afinidade) ou que provoque prejuízo ao estabelecimento, à manutenção, ao fortalecimento ou à reconstrução de vínculo saudáveis com este(s).                Referidas Leis Federais, tal qual as medidas nelas indicadas, ostentam caráter protetivo repressivo, pois buscam a efetiva cessação da violência psicológica em curso, conceder proteção prioritária e integral às vítimas, às pessoas crianças e adolescentes, visam dar efetividade à prerrogativa constitucional outorgada a tais sujeitos de direito, de serem colocados a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Eventual descumprimento de tais medidas protetivas repressivas, atrairá a incidência de sanções de caráter cível e penal, pois sua inobservância poderá tipificar o crime previsto no artigo 25 da lei Federal 14.344/2022, Lei Henry Borel. A competência para solucionar conflitos derivados da alienação parental, no modalidade prevista nas leis Federais 13.431/2017 e 14.344/2022, que ostenta natureza jurídica de efetiva violência psicológica, forma de violação dos direitos humanos, pertence às Vara Especializada em Crimes contra a Criança e o Adolescente ou  às Varas da Infância e Juventude e, no caso de inexistência dessas, à Vara Criminal Comum, devendo a atuação do Judiciário ser prioritariamente voltada à proteção e socorro imediato das crianças e adolescentes, em quaisquer circunstâncias, através de atuação precoce, mínima e urgente, tão logo a situação de perigo seja conhecida, sendo assegurado a tais cidadãos o direito de exprimirem suas opiniões livremente nos assuntos que lhes digam respeito, consideradas a sua idade e a sua maturidade, garantido o direito de eventualmente permanecerem em silêncio. Por fim, importante salientar que qualquer que seja a natureza jurídica do ato de alienação parental, abuso de direito ou violência psicológica, a respectiva ação sempre terá, desde sua distribuição, prioridade absoluta de tramitação, independente de prévia declaração de indício de ato de alienação parental, pois, só assim, aos vulneráveis, às crianças e aos adolescentes, reais destinatários das normas protetivas preventivas ou repressivas, serão disponibilizados, de forma precoce e célere, os meios aptos que viabilizarão o seu pleno desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições familiares de liberdade e de dignidade.
Uma dúvida comum que surge, usualmente quando há a separação de genitores que possuem diferentes religiões, inclusive, é como agir em relação aos filhos. Na constância da união, um diálogo respeitoso se torna possível, fazendo com que a convivência da criança com diferentes religiões seja um processo equilibrado e natural, alternando-se a participação da criança com ambos os genitores para na vida religiosa, por exemplo. Mas quando a separação acontece, a situação pode se inverter, ocasionando até mesmo crimes de intolerância religiosa. Importante lembrar que desde 1997 é crime qualquer atitude que resulte em discriminação ou preconceito em relação à religião, inclusive ações que induzam ou incitem tal ato. Assim, para além da empatia e conhecimento sobre a lei, é necessário respeito ao próximo e um cuidado de pais e responsáveis na condução da questão junto aos infantes. Nesta coluna, abordaremos algumas considerações sobre religião e infância. O ECA garante à criança e ao adolescente o direito à liberdade religiosa. Este direito é, inclusive, independente dos pais e/ou de seus responsáveis. O Art. 16, inserido no capítulo sobre liberdade, respeito e dignidade, garante à criança o direito à crença e ao culto religioso, tanto quanto garante o direito da criança de brincar, praticar esporte e se divertir, dada a relevância do tema na proteção e desenvolvimento integral infantojuvenil. Contudo, um levantamento feito pelo movimento Agenda 227, indica que somente na internet os crimes de ódio ligados à intolerância religiosa aumentaram em 456% em 2022, segundo dados coletados da Central Nacional de Denúncias. O movimento também relembra os ataques contra as religiões de matriz africana ocorridos na época da publicação do livro infantil "AMORAS", do cantor e escritor Emicida, o qual trata do tema, fazendo com que a intolerância religiosa esteja presente no cotidiano de vários meninos e meninas, principalmente indígenas, quilombolas, de comunidades tradicionais e praticantes de religiões de matriz africana, como nos provam tristes reportagens encontradas nos noticiários sobre crianças serem alvo de ataques violentos por intolerância religiosa. O livro "Nascer do Rio", de Paola Odònílé, disponível online na íntegra, discute o direito à liberdade religiosa da criança e do adolescente em terreiros de candomblé. Em seus estudos, a autora aponta que a introdução de crianças no candomblé ocorre com ativa participação das famílias, quando "ensinamentos são transmitidos, a fé é estimulada, as regras são instituídas, os limites são postos, para que encontrem o discernimento de vivenciar ou não essa prática religiosa" (p. 105). Da mesma forma ocorre com outras religiões, a família ocupa um importante papel na garantia do apoio religioso às crianças, garantindo-se sua introdução na comunidade religiosa de forma respeitosa e compatível com a idade, o que também encontra reflexo na responsabilidade legal que a família tem de zelar integralmente pela garantia de direitos de crianças e adolescentes, como preconiza o Art. 227 da Constituição Federal e o Art. 4º do ECA. Em artigo publicado no site da CNBB, a psicóloga Aline Rodrigues indica a importância da prática religiosa para o desenvolvimento de comportamentos humanizados, tais como compaixão, solidariedade, respeito, amor e clareza do certo e do errado em diversas situações. A participação das crianças em comunidades religiosas é comumente retratada a partir da alegria e da diversão, com simbolismos comuns atrelados à infância, como ocorre nas festas de Cosme e Damião, normalmente realizadas pelo catolicismo e também pela umbanda, representando os Orixá Ibeji, filhos de Inhançã e Xangô, e outras celebrações voltadas à religiosidade infantojuvenil. Igualmente, o aprendizado religioso se dá normalmente pela vivência e prática nas comunidades religiosas, com atividades lúdicas. Nesse sentido, o Ministério Infantil da Catedral Evangélica explica que a introdução da criança na crença religiosa deve garantir seu desenvolvimento com segurança adequada à cada idade, o que também tem previsão legal, vez que devem ser respeitada a "condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento" (ECA, Art. 6º). No mesmo sentido, o Portal Lunetas traz uma fala da pedagoga Ana Paula Ramos, a qual informa que a umbanda é um ambiente de formação, construção de valores e compreensão de mundo para as crianças que dela participam, demonstrando que, independentemente da religião, a preocupação com a formação da criança recebe uma atenção especial, o que lhe garante os direitos fundamentais à vida, à saúde, física e psíquica, bem como à educação, ao lazer, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, tão presentes na vivência religiosa. Esses breves apontamentos, assim, nos mostram que há uma coesão das religiões no tocante à participação e ao papel da criança na vida religiosa, devendo ela ser tratada como sujeito de direitos, merecedora de especial atenção por seu estágio de desenvolvimento ainda em formação. Ainda, pode a criança ocupar lugares de destaque dentro das celebrações, atuando de forma ativa junto à sua comunidade religiosa, quando há atenção e cuidado dos pais ou responsáveis em relação à sua maturidade, necessitando que estas ações estejam em consonância com os direitos previstos no ECA, em especial a atenção ao desenvolvimento pleno com respeito e liberdade. Na lei, portanto, não há qualquer óbice à participação religiosa da criança junto à sua comunidade e nem tampouco proibição que faça com que a criança precise escolher apenas uma religião ou aquela que é professada por seus pais ou responsáveis, já que se trata de direito autônomo da criança previsto no ECA. A chave do êxito é o diálogo e respeito, ao outro, à criança e à sociedade. Estamos avançando nas discussões sobre uma educação crítica, inclusive de ordem religiosa, que permita que as pessoas possam compreender e combater atos de discriminação de qualquer espécie, uma vez que vivemos em um país plural, democrático e livre. Com isso, promoveremos cada vez mais um ambiente livre de violências na infância, respeitando-se os direitos previstos no ECA, com uma atuação coordenada e coesa por parte do Estado, da sociedade e da família, como determina a lei.
A alienação parental é um tema presente nos debates jurídicos e que de tempos em tempos aparece em matérias jornalísticas ou outros produtos culturais, como filmes, séries, podcasts e afins. É impossível ignorar a sua existência e os apoios ou críticas que atrai. A atração pelo tema, a meu ver, tem relação com a empatia que um momento crítico na parentalidade é capaz de gerar, aliado a percepções bastante subjetivas sobre quem agiu certo, errado, que é forte ou frágil na relação entre pais e/ou mães, afinal, falar sobre família é falar sobre os nossos pertencimentos nas nossas próprias famílias e sobre o projetamos como desejo a ser realizado. É, assim, um produto cultural com forte capacidade de persuasão e adesão. No Brasil, a alienação parental foi disciplinada pela lei 12.318/2010 (e leis que parcialmente a modificaram) e é entendida como "a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este". Trata-se da positivação de um pensamento proposto por Richard Gardner e pela manipulação de Gardner dos resultados de sua pesquisa e possível apoio a práticas pedófilas, a lei tem sofrido um profundo rechaço e movimentos para sua revogação tem aumentado. Ao lado disso, denúncias de utilização machista da lei tem sido cada mais frequentes, angariando apoios públicos a favor de sua revogação. Todas as críticas feministas contra a lei são terrivelmente verdadeiras e a pesquisa de Helena Campos Refosco e Martha Maria Guida Fernandes é um excelente caminho para provar isso a partir de pesquisa empírica em tribunais de justiça da região sudeste. A pergunta que remanesce sem ser feita (ou é feita por muitas poucas pessoas) é: a alienação parental é sobre pais e/ou mães? Essa é a pergunta que, a despeito da minha concordância com todos os vieses machistas sobre a lei de alienação parental, me afastam e me fazem recusar a revogação da lei. Infelizmente ainda vivemos num mundo em que a pessoa adulta é o centro de referência da subjetividade e de direitos. Mesmo com a Declaração Universal de Direitos Humanos e a Convenção sobre Direitos da Criança, não tivemos, de fato, o reconhecimento de crianças e adolescentes enquanto pessoas e sujeitos de direito. A falta dessa passagem teórica faz com que o Direito tenha como referência os adultos, no caso, pais e/ou mães, quando a questão inerente à alienação parental é a disfuncionalidade do exercício da autoridade parental perante crianças e adolescentes. Ou seja, o elemento central da alienação não são adultos, mas a criança e adolescentes que são filhos ou filhas. Mais, a alienação parental envolve o exercício disfuncional e abusivo da autoridade parental, porque a pretexto de proteger a criança ou adolescente, se suprime deles a possibilidade de entender, avaliar e construir as suas próprias memórias sobre episódios de violência (aqui, usada em sentido amplo) e de decidir quais os papeis relevantes seus pais e/ou mães exerceram na sua vida. Essa substituição, me parece, está circunscrita na incapacidade de entender que o melhor interesse não se trata do que pessoas adultas acham melhor, mas da permissão em que crianças e adolescentes tenham "o caminho livre" para avaliar suas vidas e decidir sobre si e seu futuro. Uma segunda importante consideração sobre a alienação parental é feita por Helena Campos Refosco e Martha Maria Guida Fernandes, para quem não basta olhar e "corrigir" o comportamento do(a) alinador(a), devendo a alienação ser tratada como fenômeno familiar que deve exigir intervenção judicial e psicoterápica que envolva toda a família, pois apenas assim será possível construir um ambiente socialmente adequado para o desenvolvimento de crianças e adolescentes. A junção da proposta de Helena e Martha e da reformulação do sentido do princípio do melhor interesse vai ao encontro do direito à convivência familiar, previsto no art. 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente, definido por Ana Carolina Brochado Teixeira e Marcelo de Mello Vieira como "um direito de toda população  infantojuvenil,  independentemente de origem,  etnia  ou  classe  social (princípio da não discriminação), à formação e manutenção de vínculos, buscando assegurar que as crianças e os adolescentes façam parte de uma família, o que não se resume a ter os nomes dos genitores na certidão de nascimento. É fazer com que eles sintam que pertencem àquele núcleo familiar, integrando e participando ativamente das rotinas e dos rituais da família, sendo, também, respeitados em sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento e sua autonomia (princípios da participação e da autonomia progressiva). É, também, o direito de viver em um ambiente saudável, livre de situações ou de pessoas que possam obstaculizar o seu processo de amadurecimento, incluindo a preservação do contato com os familiares e outras pessoas, desde que tal relação seja benéfica à criança. Excepcionalmente, a inserção em família substituta poderá ocorrer quando tal medida for necessária para a garantia da integridade biopsíquica e para o desenvolvimento sadio da personalidade e da autonomia (princípios da proteção à vida e ao desenvolvimento e do melhor interesse)". Compreender o sentido do direito fundamental à convivência familiar e sua conexão com a alienação parental permite perceber que a revogação da lei não tem o impacto imaginado por determinados movimentos. No TJRJ e no TJSP, por exemplo, existem precedentes anteriores a lei de 2010 que fundamentavam as decisões no art. 19 do ECA. E, trazendo direito comparado, nos EUA, que não conta nem com diploma similar ao ECA nem é signatário da Convenção sobre Direitos da Criança, a alienação parental é um tema objeto de análise judicial por interferir no direito da criança em ter os pais e/ou mães como atores participantes do seu desenvolvimento. Assim, é perceptível que nesse momento a alienação parental tem como pano de fundo um debate sobre a proteção de direitos de mulheres e de direitos de crianças. Qualquer resposta em casos concretos deve pender, como regra, em favor da criança, pois ela é destinatária de proteção integral e prioridade no atendimento de seus interesses, que, são diferentes dos interesses e direitos de sua mãe. Talvez seja essa a mais difícil percepção no campo jurídico e falha no conhecimento sobre o conteúdo do melhor interesse e da proteção integral: o interesse dos pais e/ou mães não se confunde com os dos filhos(as). A alteração da ordem de prioridade exige justificação forte no caso concreto, item que tem sido apontado como insuficiente nas decisões judiciais. Em suma, o movimento de revogação da lei de alienação parental é importante para pautar a aplicação machista da lei, mas revela-se insuficiente para resolver o fenômeno do machismo e patriarcalismo no sistema judicial, até porque, o direito à convivência familiar supre de forma autônoma o fundamento jurídico de uma LAP revogada. O enfrentamento do machismo e patriarcalismo no sistema judicial envolve muito mais do que a revogação de uma lei, sendo essencial que os discursos feministas sejam apropriados e articulados judicialmente. De outro lado, são bem conhecidos os efeitos negativos no desenvolvimento psicossocial da alienação parental sobre crianças e adolescentes, de modo que a desconsideração completa do fenômeno não irá contribuir na proteção desse grupo de pessoas. Por isso, no confronto entre direitos de crianças e direitos de mulheres, é imprescindível se despir de pré-conceitos e tentar olhar cada caso como único e buscar em relação a cada um deles a melhor resposta, tendo como diretriz a maximização dos direitos de todos e todas os(as) envolvidos(as).
O ano é 2023, porém, poderíamos facilmente dizer que vivemos tempos que nos remetem ao período anterior a redemocratização e do alcance a direitos fundamentais e essenciais à vida em sociedade. Tempos sombrios nos chocam, mas isso ainda é pior para uma parcela da população, que, para além da supressão de direitos, ainda se vê mais à margem da sociedade e em condições de riscos. Os dados estatísticos falam por si e demonstram quão frágeis são. Eles são vítimas e algozes, numa sociedade que não pensa políticas públicas que visem minimizar a desigualdade, o acesso e a permanência, seja na educação, na saúde ou no mercado de trabalho. Retratando em números, o Levantamento do Anuário Brasileiro de Segurança Pública1 traça o perfil daqueles que mais sofrem com as violências, não somente advindas de agentes estatais, mas de uma sociedade que é preconceituosa, racista, aporofóbica etc. Não raro a arma que fere ou mata o adolescente periférico é a mesma que o faz vítima de sua violência, o agente estatal à serviço do Estado. Este mesmo levantamento, aponta que nos casos de mortes violentas, as vítimas são negras (77,9%), possuem entre 12 e 29 anos (50%) e são predominantemente do sexo masculino (90%), ou seja, a letalidade incide sobre um mesmo segmento: negros, jovens e pobres que circulam ou residem nas periferias. É inegável dizer que há uma seletividade. Neste viés, a letalidade e o recorte racial também são observados entre crianças e adolescentes. Entre os anos de 2016 e 2021, cerca de 35 mil crianças e adolescentes até 19 anos foram mortos de forma violenta no país, como aponta o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Cerca de 83,6% das vítimas são adolescentes negros e em sua maioria (87,8%), do sexo masculino; 88,4% foram vítimas de arma de fogo e 43,4% destes crimes ocorreram em vias públicas. Ou seja, em nada se difere do que ocorre com a população adulta. O alvo é sempre o mesmo. Não bastassem os números absolutos em casos de mortes violentas, outro recorte que nos faz refletir recai sobre a população encarcerada no país. Os dados refletem não somente a questão racial, mas a desigualdade social que assola o país. No ano de 2021, de um total de 820.689 presos, cerca de 429.255 presos, um total de 67,5% eram negros; em detrimento de 184.682 (29%) brancos. Em relação à faixa etária, 46,4% correspondem à idade de 18 a 29 anos, o que equivale também a população que mais é vítima das violências estatais e sociais. Por muito tempo, quiçá ainda hoje, a prisão e o Direito Penal desempenham esse papel de alojar os excluídos da dinâmica social e econômica. Os dados que demonstram o expressivo encarceramento de pessoas por crimes patrimoniais ou praticados sem violência ou grave ameaça à pessoa corroboram essa noção2. Essa lógica em nada se difere quando nos referimos aos adolescentes a quem se atribui a prática de ato infracional. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública, no ano de 2021, apontou que haviam 13.684 adolescentes internos e sob a égide do Sistema Socioeducativo, sendo 4.847 (34%) só no estado de São Paulo. Destes, segundo o Levantamento do SINASE, publicado em 2019, porém, com dados relativos a 2017, haviam sido apreendidos por: roubo (38,1%), seguido de tráfico de drogas e associação ao tráfico (26,5%) e homicídio (8,4%), ou seja, os crimes contra o patrimônio continuam sendo os principais responsáveis pela apreensão e internação de adolescentes. Diante destes dados, é incontestável que a desigualdade econômica e social brasileira dificulta o pleno crescimento e o desenvolvimento de milhões de adolescentes, que se veem privados de oportunidades de inclusão social em seu contexto comunitário, vivendo em moradias inadequadas e à mercê de diversas problemáticas, como: restrições severas ao consumo de bens e serviços; estigmas e preconceitos; falta de qualidade no ensino; relações familiares e interpessoais fragilizadas; e violência em todas as esferas de convivência (Assis e  Constantino, 2005). Corroborando com as autoras, Volpi (2001) salienta que os adolescentes em conflito com a lei são meras vítimas de um sistema social, ou "produto do meio", e o delito é uma estratégia de sobrevivência ou uma resposta mecânica a uma sociedade violenta e infratora em relação aos seus direitos. A análise que fazemos é que o Sistema Socioeducativo, assim como o Sistema Penal, possui uma seletividade nata, abarcando adolescentes negros, periféricos e privados ou com pouco acesso às políticas públicas básicas, muitas vezes, desde o momento de seu nascimento e, os dados acima comprovam tal teoria. E ressaltamos que, ainda que haja a possibilidade de meios alternativos para a responsabilização destes adolescentes, que não a medida de internação (para os casos que não correspondem ao art. 122, I, ECA), eles seguem sendo "encarcerados", como resposta aos anseios da sociedade e que, não raramente, remete à política higienista e de exclusão marcada pelos dois códigos de menores que antecederam o ECA. Por fim, frente à tamanha problemática, acredita-se que, enquanto houver inflexibilidade por parte do Estado, em especial, na garantia dos direitos fundamentais e constitucionais devidos a esta população, de maneira preventiva e na promoção desses direitos e da cidadania, haverá ainda mais o aumento da vulnerabilidade destes jovens negros, pobres e marginalizados, cabendo aos agentes estatais, um olhar mais humano a eles,  maiores ofertas nos campos da educação e trabalho, podendo, no futuro, haver uma mudança nestas estatísticas, no quadro do encarceramento e na desigualdade social entre as raças.  Referências ASSIS, S.G.; CONSTANTINO, P. 2005. Perspectivas de prevenção da infração juvenil masculina. Ciência & Saúde Coletiva, p. 81-90. FORUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2022. Disponível aqui. MONTEIRO, Felipe Mattos e CARDOSO, Gabriela Ribeiro. A seletividade do sistema prisional brasileiro e o perfil da população carcerária: Um debate oportuno. Civitas - Revista de Ciências Sociais [online]. 2013, v. 13, n. 1 [Acessado 12 Junho 2022] , pp. 93-117. Disponível aqui. Epub 01 Jul 2020. ISSN 1984-7289. https://doi.org/10.15448/1984-7289.2013.1.12592. VOLPI, M. Sem Liberdade, Sem Direitos: A experiência de privação de liberdade na Percepção dos adolescentes em conflito com a lei. São Paulo: Cortez, 2001. __________ 1 Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Acesso aqui. 2 MONTEIRO, Felipe Mattos e CARDOSO, Gabriela Ribeiro. A seletividade do sistema prisional brasileiro e o perfil da população carcerária: Um debate oportuno. Civitas - Revista de Ciências Sociais [online]. 2013, v. 13, n. 1 [Acessado 12 Junho 2022] , pp. 93-117. Disponível aqui. Epub 01 Jul 2020. ISSN 1984-7289.
O início do ano de 2023 foi marcado pela revelação da tragédia Yanomami, que estampou a capa dos mais importantes noticiários e jornais do nosso país e do mundo, evidenciando um quadro de vulnerabilidade e abandono extremos, marcado pelo esquecimento dos povos indígenas pelo Governo Federal. O texto dessa primeira coluna do ano pretende chamar atenção para os indicadores deste drama, especialmente em relação às meninas, crianças e adolescentes indígenas, sob a ótica do Direito Infanto-Juvenil. Em pesquisa sobre o tema, é possível enxergar que as mulheres sofrem mais durante o quadro de crise, inclusive com altas taxas de estupro, sucedidos de abortos e más-formações fetais causados pelo mercúrio, usado no garimpo ilegal, conforme reportagem da Agência Sumauma. Uma reportagem publicada pelo Portal UOL, produzida pelo jornalista Leon Ferrari, demonstra que ao menos 30 meninas Yanomami estão grávidas de garimpeiros e que há adoções irregulares em andamento, com crianças acolhidas ilegalmente por famílias não indígenas, sendo impossível não associar tais fatos à denúncia contra a ex-Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos  a respeito da irregularidade na retirada de Lulu Kamayurá de sua tribo e família de origem quando ainda era criança. Os abusos sexuais, portanto, avassalaram a história de vida de várias gerações de meninas e adolescentes Yanomani, demonstrando que a infância feminina indígena assumiu um papel de protagonista de um filme de terror anunciado. A denúncia atual escancara ainda um quadro de intensa vulnerabilidade infantil: uma morte lenta e dolorosa de crianças por fome. Segundo o Ministério da Saúde e Agência Sumauma, em levantamento feito pelo Fantástico, entre 2019 e 2022, ao menos 152 crianças morreram de desnutrição, um aumento de 360% frente a dados do passado. Lastimável ver como alguns atacam as notícias afirmando que tal quadro é histórico e não atribuível ao governo anterior, numa tentativa insensível de explicar o inexplicável. Acusam os meios de comunicação de sensacionalismo e manipulação política. A verdade, contudo, é que em 2019 o UNICEF - Fundo das Nações Unidas para a Infância já havia divulgado dados sobre desnutrição de crianças indígenas de até 5 anos de idade em aldeias inseridas no Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami, revelando o cenário de desnutrição crônica de oito em cada dez crianças menores de 5 anos1. A alimentação é um direito social garantido pela Constituição Federal a todas as pessoas, inclusive com dotação orçamentária destinada diretamente para sua garantia, recebendo especial atenção no Art. 227, pelo qual família, sociedade e Estado são obrigados a assegurar, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde e à alimentação, entre outros, a crianças e adolescentes. A regra se repete integralmente logo no início do texto do Estatuto da Criança e do Adolescente, no Art. 4º, dispondo também sobre a atenção especializada às gestantes e lactantes, que precisam receber alimentação complementar saudável para garantir o desenvolvimento saudável de suas crianças. Na realidade do povo Yanomami, todavia, as gestantes e as lactantes já sofrem de restrição alimentar, além de consumirem alimentos e água contaminados pelo mercúrio. Da mesma forma, sem apoio médico são infectadas pela malária, e passam a doença aos filhos através da amamentação. Mais uma vez, o protagonismo às avessas do público infanto-juvenil. Vê-se que o direito à alimentação, à saúde e à vida, básicos no corpo juris internacional e nacional como garantias humanas e fundamentais, tão caros na legislação pátria e tão presentes no cotidiano do Poder Judiciário, passam ao largo da população indígena, que carece de tais direitos e mesmo de acesso à justiça, como se fossem "não gente". O protagonismo da infância na legislação, a partir da absoluta prioridade na proteção garantida pela Constituição Federal, encontra reflexo em um protagonismo às avessas de crianças na crise Yanomami, já que elas são as mais atingidas pelos quadros severos de abusos, fome e mortes. Não se quer com isso minimizar as demais vítimas dessa catástrofe humanitária, flagelados que foram e continuam sendo em suas histórias, mas evidenciar que o Princípio Constitucional da Prioridade Absoluta - de forma simplificada, segundo o qual crianças e adolescentes têm prioridade em relação a outros sujeitos de direito - tem sido solenemente ignorado e deixado de ser perseguido pelos atores que compõe o sistema de proteção desses direitos. __________ 1 A pesquisa foi financiada e requisitada pelo UNICEF e implementada em parceria com Fiocruz, Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), Coordenação-Geral de Alimentação e Nutrição (Cgan), do Ministério da Saúde, e a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e, dentre outras coisas, concluiu que 81,2% das crianças menores de 5 anos pesquisadas tinham baixa estatura para a idade (desnutrição crônica), 48,5% tinham baixo peso para a idade (desnutrição aguda) e 67,8% estavam anêmicas. Disponível aqui. Acesso em 13 fev, 2023.
As eleições se aproximam e as evidências são notadas: horário eleitoral gratuito na TV e rádio, campanhas eleitorais em pleno 7 de setembro (embora vedadas), manifestações políticas espalhadas ali e acolá, discursos de ódio e fake news em redes sociais. Sim, de fato, as eleições se aproximam. Por força do art. 77 da Constituição Federal, a eleição presidencial ocorrerá dia 02.10.22, primeiro domingo de outubro (e no último domingo de outubro, em 2º turno, se houver), juntamente com as eleições de senadores, deputados federais, deputados estaduais e governadores. E, enquanto muitos cidadãos nem se deram conta de que votar é exercício democrático (mergulhados em alienações, mentais ou políticas), apenas poucos se debruçam sobre programas de governo, procurando motivação para justificar suas escolhas. No Brasil o voto é obrigatório a partir dos 18 anos, mas já aos 16, adolescentes podem votar se quiserem. Trata-se de estímulo à cidadania ativa voluntária e ato de responsabilidade política. Mas então, se crianças não votam (0 a 12 anos) e se apenas uma pequena parcela de adolescentes pode votar (maiores de 16 anos, inscritos na justiça eleitoral e que efetivamente desejem), por que, afinal, as eleições têm a ver com eles? Tudo a ver, se considerarmos que o Brasil deve conferir prioridade absoluta à crianças e adolescentes; se tivermos claro que isso foi uma decisão constitucional e que não se trata de uma mera sugestão aos eleitos. Todas as pessoas são iguais perante a lei no Brasil, sem distinção de qualquer natureza (art 5º, caput da CF), contudo, ultrapassada essa igualdade formal, existe uma vantagem constitucional conferida à crianças e adolescentes frente aos demais sujeitos de direito. Isso mesmo, muitos desconhecem, mas o público infanto-juvenil (0 a 18 anos incompletos) é "destinatário privilegiado" de todos os direitos fundamentais e de outros direitos exclusivos do grupo. Infelizmente pouco se fala a respeito, mas crianças e adolescentes brasileiros ou estrangeiros residentes no país são pessoas elevadas a um status especial em comparação às demais pessoas, como jovens1 (15 a 29 anos), adultos (maiores de 18 anos) e idosos2 (maiores de 60 anos), devendo ocupar posição prioritária tanto na elaboração de políticas públicas como na concretização de direitos e garantias. Você pode estar se perguntando: como assim? o porquê dessa prioridade? E a resposta é simples: porque NÓS assim quisemos em 1988, quando, representados por membros da Assembleia Nacional Constituinte, promulgamos a Constituição Federal, prevendo expressamente tal prioridade no art. 227: "É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.  Tratou-se, portanto, de decisão do poder constituinte originário ao inaugurar a nova ordem constitucional brasileira, revelando formal e expressamente a intenção de valorizar de forma diferenciada crianças e adolescentes, como sujeitos de direitos imprescindíveis na construção de um futuro social e economicamente sustentável para toda a sociedade, incluindo gerações presentes e futuras3. A despeito de tudo isso, infelizmente, não há unanimidade entre os presidenciáveis quanto à prioridade absoluta, sendo que dos 12 postulantes ao cargo poucos incluíram em seus planos de governo a necessidade de aprimorar e fortalecer o sistema de garantia dos direitos das crianças e adolescentes e, mesmo os que previram não necessariamente concretizarão práticas nesse sentido, a se basear por seus históricos. Pensando na importância do tema e no intuito de conscientizar a população antes de irem às urnas, o Portal Lunetas, em parceria com o Instituto Alana, selecionou o que cada candidato descreve para crianças e adolescentes em seus planos de governo4. Uma preocupação que se depreende da leitura dos planos de governo está na limitação das propostas quanto a problemas estruturais, sendo simbólicos e midiáticos, sem a devida formulação e implementação de políticas públicas de forma integrada e articulada com os demais programas de governo. Ademais, as sondagens demonstram que os presidenciáveis não abordam como pretendem enfrentar os gargalos de financiamento e articulação com Estados e Municípios, tudo a demonstrar a desimportância que conferem à pauta. Quem sabe o tema ainda possa ser devidamente explorado pelos candidatos nos próximos debates, a partir de cobranças de entidades de proteção ao público infanto-juvenil, de atores dessa área de atuação e mesmo da opinião pública, que devem exigir cumprimento dos ditames constitucionais. Volto a dizer, propor e implementar políticas públicas para garantir direitos de crianças e adolescentes não é mera recomendação eleitoreira ou sugestão aos candidatos, mas sim um mandado constitucional explícito e prioritário, do qual nenhum eleito pode se eximir, estejam ou não previstas em seu plano de governo. Por isso, a coluna Migalhas Infância e Juventude não poderia deixar de abordar o tema, ainda que sem posicionamento político-partidário eis que, embora crianças e adolescentes não votem são destinatários diretos de políticas públicas por parte dos "ditos" mandatários da democracia, sendo urgente recuperar5 e robustecer investimentos na área da infanto-juvenil. __________ 1 Art 16, §1º da Lei 12.852/13. Disponível aqui. Acesso 12.09.2022. 2 Art 1º da lei 10.741/03. Acesso 12.09.2022. 3 Segundo dados do IBGE, em 2021, o número de crianças e adolescentes entre zero e 19 anos residentes no Brasil era de 69 milhões, representando cerca de 33% da população total. Disponível aqui. Acesso 21.09.2022. 4 Disponível aqui. Acesso 13.09.2022. 5 Disponível aqui. Acesso 21.09.2022.
No mês em alusão ao combate à violência contra a mulher, faz-se oportuno debater a respeito das diferentes formas como a mulher enfrenta situações de violência na sociedade brasileira, a qual se transforma em ciclo vicioso, afetando a criança e adolescente que delas descendem. A despeito do atual panorama sociojurídico brasileiro, o qual se caracteriza pela concepção da proteção integral à infância e à adolescência como pilar de todas as normativas elaboradas desde a Constituição Federal de 1988, tendo como seu primeiro desdobramento o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA/1990), a partir da concessão de direitos e do estabelecimento de obrigações a diversas instituições - temos atualmente um panorama que indica a necessidade de avanços na aplicação das leis e na transformação da cultura, para maior entendimento dos preceitos que sustentam o arcabouço legal contemporâneo. Acerca dessa temática, faz-se necessário, a princípio, verter ponderações sobre a historicidade que envolve as práticas e políticas públicas de assistência às crianças e adolescentes e suas famílias, notadamente, aos mais vulneráveis. Segundo Alves (2007), esse contexto histórico não é linear, posto que se caracteriza por uma tendência secular de contradições do Poder Público em relação à criança e adolescente, coexistindo paradigmas conservadores e progressistas, que influenciaram a legislação, assim como a efetivação de serviços e programas governamentais implementados ao longo das décadas. Em virtude disto, há uma tendência entre autores que debatem essa temática em dividir essa trajetória histórica em cinco períodos distintos, assim denominados: período assistencial-caritativo (1554 a 1874), período filantrópico-higienista (1874-1924); período assistencial (1924 a 1964); fase institucional (1964 a 1990); e, finalmente, o período de desinstitucionalização, iniciado em 1990 e vigente até os dias atuais. A demarcação temporal destes períodos não representa um limite rígido de existência destas práticas e concepções no debate público, na construção das políticas públicas e na implementação dos serviços. Muitas são as iniciativas que tramitam no legislativo, baseadas em ideias conservadoras de atendimento à criança e adolescente vulneráveis. As propostas de redução da maioridade penal, a culpabilização de famílias pobres, a exemplo da produção de conceitos como "famílias incapazes", as quais são responsabilizadas como as únicas fomentadoras da violência, da pobreza e da negligência com os mais vulneráveis, fazem parte de iniciativas dentro do Congresso Nacional, que tendem a marginalizar ainda mais as classes sociais subalternizadas. Porém, é necessária uma reflexão mais aprofundada, avaliando a atuação do Estado, perante os grupos sociais que vivem às margens do acesso a bens e serviços socialmente produzidos. Aqueles que não estão inseridos formalmente no mercado de trabalho, não têm escolaridade mínima para desempenhar funções mais complexas e atingir melhores condições de renda, dependem fortemente da atuação do poder público, por meio das políticas públicas que possam lhes oferecer acesso a ações que viabilizem a transformação de suas condições de vida.  Diante desta realidade de fortes negligências vividas por toda a sua trajetória, com o dilema da impossibilidade de assumir as responsabilidades de maternagem, muitas mulheres, ou casais, optam por entregar o filho para adoção. Tais condutas, entretanto, são consequência de outra prática também bastante comum na realidade brasileira: a entrega de bebês por suas próprias genitoras, realizadas à margem da lei. Prática conhecida como entrega direta - intuitu personae -, ou ainda como adoção à brasileira, quando o bebê entregue é registrado por terceiros como se fosse seu filho biológico. Mesmo quando a mulher, ou a família, opta pelo caminho legal, observamos que existe forte (pré)conceito a respeito da entrega de crianças para adoção. O episódio da atriz que recentemente foi exposta na mídia nacional, por ter tomado a decisão de entregar o filho que gerou, após sofrer violência sexual, para adoção, apontou holofotes para o forte desconhecimento da sociedade a respeito da lei e de sua fundamentação.                 Quando falamos da gritante necessidade de maior debate a respeito da entrega legal de crianças recém-nascidas para adoção, casos como este nos indicam que a estratégia de informação e esclarecimento da população se faz cada vez mais necessária. A culpabilização das mulheres se evidencia mais quando o assunto é debatido na perspectiva de famílias pobres, diante da produção jurídica das "famílias incapazes" - como debatido na obra "Produção Sociojurídica de Famílias Incapazes", da Graciele Feitosa de Loiola (2020). Nos referimos aqui à "subjetividade socialmente compartilhada" (apud, 2020), de uma realidade que não se refere a uma família isoladamente, mas a uma conjuntura macrossocial, na qual os sujeitos não possuem as estruturas mínimas para superação de suas vulnerabilidades, diante das condições sociais impostas à maioria da população. Esta é a realidade da maioria das mulheres que entregam seus filhos para adoção - mulheres que se percebem "incapazes" de cuidar de seus filhos, e que de forma "despolitizada", alienada, não têm consciência da condição de classe social desfavorecida, que não lhes possibilita a superação de sua atual condição, o que as impede de oferecer a seus filhos a garantia de direitos fundamentais, fazendo com que se sintam incapazes e se culpem e se julguem negativamente diante de sua decisão. Em diversas comarcas por todo o país existem programas de acolhimento a mulheres/famílias que desejam entregar o filho para adoção. No Tribunal de Justiça da Paraíba, desde 2011 existe o Programa Acolher. De acordo com os dados do Programa, entre os anos de 2015 a 2020, foram atendidas 66 (sessenta e seis) gestantes/puérperas nas Comarcas de Campina Grande e João Pessoa, que manifestaram seu desejo de entregar os filhos para adoção, e foram devidamente acompanhadas pelas equipes interprofissionais do TJPB, por meio do referido Programa. Destas, aproximadamente 40 (quarenta) entregaram os filhos efetivamente para que fossem adotados. Dentre as demais, 20 (vinte) desistiram do processo e 3 (três) tiveram gestações que resultaram em morte do feto durante o acompanhamento (SILVA, 2022)1. Estes dados indicam que, com o devido acompanhamento pelas equipes interprofissionais, com as decisões tomadas pelos(as) magistrados(as), a respeito de possível acolhimento da criança, acompanhamento da família ou da mulher pelas equipes da Rede de Proteção, é possível realizar um trabalho permeado pela garantia dos direitos da criança, desde a primeira infância e da mulher, consequentemente. Porém, tendo a falta de conhecimento sobre o direito da entrega legal como uma realidade concreta, associada a diversos fatores que advêm de uma sociedade constituída culturalmente no alicerce do patriarcado e da misoginia, como garantir que essas mulheres consigam decidir qual o seu futuro e o futuro do filho gerado? Apontamos para este desafio pois, de acordo com "A advogada Gabriela Souza, especializada no direito das mulheres [...] mais de 95% dos crimes envolvendo vazamento de informações pessoais na Internet têm mulheres como alvo e que, por isso, trata-se de um crime de gênero". Ela aponta para este dado quando se refere ao crime de violência institucional, cometido pela equipe de um hospital, ao fornecerem informações para pessoas externas publicarem a história da entrega do filho de uma atriz para adoção. A entrega legal não foi evidenciada na mídia nacional por ser um mecanismo judicial de garantia de proteção a mulheres e crianças, mas foi estopim para levantar o debate de forma mais abrangente em relação a como os profissionais que fazem parte da Rede de Proteção estão executando esse trabalho. Em qual momento alguns destes profissionais escolhem por possíveis "recompensas" e deixam de lado o compromisso ético e a obrigação de atender à mulher e à criança recém-nascida com o respeito e a dignidade que lhes são garantidos por lei - de forma sigilosa e humanizada. Considerando que é direito da mulher decidir realizar a entrega sob sigilo e ser resguardada de qualquer tipo de constrangimento, por parte de qualquer profissional que lhe atender, direitos estes garantidos pelo Art. 19-A do Estatuto Da Criança e do Adolescente, a questão que devemos fazer diz respeito a como trabalhar para que haja uma reeducação e preparação da Rede de Proteção, a qual envolve Saúde, Assistência Social, Educação, Segurança Pùblica, entre outros, para que atuem na perspectiva do que preconiza a lei. Para isso, entendemos que se faz necessária uma formação profissional com ênfase na necessidade de condutas mais comprometidas com as diretrizes e princípios éticos de cada categoria, tendo em vista que estão  em consonância com a defesa dos direitos humanos, entendendo também que somente tendo uma Rede que se implique com estas mulheres, se conseguirá viabilizar seus direitos e, assim, proteger a mulher, a criança, a família e a sociedade como um todo. __________ 1 Artigo do Trabalho de Conclusão de Curso de Lyzandra Teixeira da Silva, ex-estagiária da Vara da Infância e Juventude da Comarca de Campina Grande/TJPB, 2022 - o qual inspirou a elaboração do presente artigo.
Trinta e dois anos se passaram desde a promulgação do estatuto da criança e do adolescente e, na atual conjectura em que o país se encontra, cabe-nos um questionamento: O paradigma da proteção integral está em risco? Os dados abaixo demonstram tamanho temor. Hoje no Brasil, temos mais de 33 milhões de pessoas que passam fome, como aponta o 2º inquérito nacional sobre insegurança alimentar no contexto da pandemia da covid-19 no Brasil1, publicado no último dia 8 de junho. De acordo com o referido inquérito, o número de crianças em situação de insegurança alimentar, quase dobrou entre os anos de 2020 e 2022, de 9,4% para 18,1%. Cerca de 74% de crianças de 2 a 9 anos, não tem acesso a três refeições diárias. Em função do quadro pandêmico e a deflagração da crise sanitária, que resultou no fechamento das escolas, 13% das crianças brasileiras deixaram de comer na pandemia. Não obstante à ausência de proteção aos direitos à alimentação, observamos o crescente número de crianças em situação de rua e em exploração de trabalho infantil. No ano de 2020, pesquisa feita pela UNICEF2, indicou um aumento de 26% no número de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil. Conforme relatório da Fundação Abrinq3, cerca de 1,7 milhão de crianças e adolescentes estão ocupados com trabalho. Referente à educação, no final de 2020, cerca de 5 milhões de crianças e adolescentes encontravam-se fora da rede escolar, agravando ainda mais a situação de exploração de trabalho infantil (dados Unicef). No ano de 2021, dados do relatório da Fundação Abrinq, aponta que cerca de 25,3% de crianças deixaram de ser matriculadas no ensino infantil, o que compromete seu desenvolvimento, ainda na primeira infância. Além destes dados alarmantes, outros são ainda mais assustadores. No ano de 2021, mais de 35 mil crianças e adolescentes foram vítimas de estupro, segundo levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Ainda mais grave é o fato de que a cada vinte minutos, uma criança dá à luz4. Casos de maus-tratos contra crianças, nestes dois anos, subiram 21,3%5. Diante destes dados, não resta dúvidas quanto a ausência de proteção aos direitos de crianças e adolescentes. Mais do que isso, explicita violação de direitos assegurados constitucionalmente, sendo-nos necessário lembrar os ditames do art. 227 da CF/88, que traz em seu escopo que "É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Redação dada pela EC 65/10), que é reforçado pelo art. 4º do ECA, reforça "É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Há falhas. E por isso, reforço meu questionamento inicial: o paradigma da proteção integral está em risco? O Brasil é signatário da convenção sobre os direitos da Criança, ratificada em 1990 e assumiu o compromisso em assegurar os direitos de crianças e adolescentes. Contudo, os dados não mentem e a negligência a estes sujeitos de direitos é a cada dia mais notória, colocando o paradigma da Proteção Integral em risco. Desta feita, compete-nos reforçar que enquanto Estado, sociedade e família, devemos assegurar que crianças, já na primeira infância, tenham acesso e prioridade absoluta aos direitos fundamentais apontados nos arts. 227 da CF e 4º do ECA, além dos cuidados que possibilitem seu desenvolvimento saudável, tal como disposto também no marco da primeira infância, através dalei 13.257/16, haja vista que, cerceada destes cuidados e direitos, poderá, consequentemente, permanecer em situação de vulnerabilidade e violação. Cabe investimento em prol da infância e juventude (e não redução de investimentos, como vem ocorrendo desde o final do governo Temer e persistido no atual governo), implementação de políticas públicas, fiscalização e monitoramento das ações já iniciadas, pois somente deste modo, poderemos dar um futuro digno às crianças e adolescentes no país. Por fim, embora haja poucas pessoas que nos sugiram haver motivos para celebrar o aniversário de promulgação do ECA ocorrido no último 13 de julho, o que nos denota tamanha incoerência diante de todos os fatos aqui brevemente mencionados, e mesmo sendo esta lei um feito histórico e de suma importância à proteção e defesa de crianças e adolescentes em nosso país, ainda há muito que ser feito para que tenhamos reais motivos para comemorar o fato de termos uma lei progressista e garantista como o Estatuto da Criança e do Adolescente, principalmente nos últimos tempos em que, ao invés de garantia de direitos, temos nos deparado com constantes violações de direitos. _____ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Rede feminista de saúde. 5 Disponível aqui.
No sistema de mau trato (reprimir bebês, dando tapinhas, ou ajustar adolescentes a enganosas instituições totais que se dizem... de bem estar), todos sabemos, basta usar a agressividade e a violência (mesmo que sutis, como em certos casos de tapinhas no bebê e no ajuste do adolescente). Com o uso da agressividade e da violência (sutis, leves, disfarçadas ou manifestas, duras, declaradas), os choques se resolvem (ou se agravam). Mas, claro, com mau trato (um trato que não é bom, é mau, sendo ou não ele um crime, porque há formas de mau trato que não são crimes), os choques se resolvem ou se agravam sempre em detrimento do pensar mais débil, do querer mais exposto à imposição alheia e do agir inacessível a um sistema (pessoal, comunitário ou internacional) de proteção à cidadania.1 Essa epígrafe diz muito sobre o que conhecemos: formas violentas de lidar com crianças e adolescentes. Apesar dessa obviedade (há os que recusarão o termo violência, preferindo "disciplina", "ordem", "regras", "impor autoridade"), também se fala da importância da participação na área da infância e juventude, a partir das diretrizes internacionais. Muito se fala, mas pouco se escuta. É importante definir que nomeamos de infância a construção social, historicamente variável, sobre as idades da vida e criança "o sujeito empírico concreto que vivencia suas experiências na sociedade"2. Assim, na infância o direito à participação deve ser exercido de modo lúdico e ocorrerá a depender do ciclo de vida em que aquela criança está para que, depois, na adolescência, a participação ganhe inventividade e postura crítica.  A questão é que participar sem nunca ter sido realmente escutado é quase uma tarefa impossível. A ausência de escuta adequada pode afetar os processos identitários e gerar diversos prejuízos ao pleno desenvolvimentos', já que ausentes as oportunidades de participação e expressão. Ao contrário, em linhas gerais, a escuta ativa possibilita um diálogo efetivo, com vistas a ver aquele que fala em toda sua complexidade, ofertando segurança. Conduzimos, nós, os adultos, os supostos maduros da relação, os caminhos ao direito de participação para que, por este meio, crianças e adolescentes encontrem a vida adulta e possam dela participar plenamente. Não podemos fazer isso se ofertamos uma escuta precária como se crianças e adolescentes não fossem sujeitos de direitos, mas objetos de tutela. Essa responsabilidade em conduzi-los para a vida adulta deveria ser o que mobiliza a implementação do princípio da condição peculiar de desenvolvimento. A questão é que se conduzimos com nossas violências, conscientes ou não, pouco enxergamos se estão adequados os caminhos que ofertamos. E quando não encontramos as respostas que buscamos não entendemos qual é o problema. Queremos transformar a infância, alegar ser ela o lugar privilegiado do futuro, mas sem pensar no presente, nas ofertas de uma série de ações violentas como caminhos para encontrar "boas" respostas. A violência não nasce com a infância, ela é algo que se aprende e se reproduz. E se aprende na relação com uma pessoa adulta responsável, seja na família ou em vínculos ampliados, no braço do Estado que atende ou presta um serviço público e na comunidade que os cercam. Em março essa coluna já apontou a importância de ações que visem o fortalecimento do plano Nacional da convivência familiar e comunitária, alertando sobre um potencial retrocesso legislativo em torno do tema: Além da articulação entre governo e sociedade civil, é marcante nesse Plano Nacional a definição de família como processo social, histórico, transgeracional e interindividual; a aplicação da doutrina da proteção integral e que crianças e adolescentes são titulares de direitos; o reconhecimento da multiplicidade de vínculos familiares no país; e, o reconhecimento da importância da comunidade no desenvolvimento de crianças e adolescentes3. Conduzir esses caminhos inclui ofertar apoios para que o desenvolvimento aconteça, não de modo autoritário, "eu sei o que é melhor", mas a partir do que as pessoas necessitam. Ouvir essas necessidades é o primeiro passo. Práticas contrárias ao que prescreve a legislação, em nome da suposta paz social, podem levar à uma reprodução e ampliação de abismos sociais. Normalizamos esses abismos e queremos respostas universais que não os levam em consideração, perpetuando ciclos de violências. Há um mundo de possibilidades na escuta. Ao invés de dar as respostas, formular boas perguntas, como ensina Paulo Freire, abre um universo de possibilidades, tão vastas quanto a história brasileira, sua diversidade e injustiças sociais que precisam ser denunciadas. Com perguntas possibilitamos a emergência de outras histórias. Histórias talvez mais justas do que as que deixamos nascer quando interrompemos as escutas do que não queremos ouvir. Não vim aqui, disse eu, para fazer um discurso, mas para conversar. Farei perguntas, vocês também. As nossas respostas darão sentido ao tempo que passaremos juntos aqui4. Mas, porque falar de escuta? Há dois procedimentos em uso atualmente - a escuta especializada e o depoimento especial que provocam essas questões, mesmo que os operadores do direito não as percebam ou as problematizem. Há outros espaços que ainda não existem legalmente - como nas questões relacionadas à adoção ou entrega de crianças -, mas nos quais se faz necessário e urgente pensarmos em como realizar uma escuta que seja protegida, uma escuta que cuide das necessidades das pessoas para podermos fazer bom uso da proteção ao invés de mantermos as práticas filantrópicas, tutelares e menoristas5, em nossa sociedade. São espaços, em tese privilegiados, criados pela legislação para escutar crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas (lei 13.431/17) por meio da escuta especializada ou depoimento especial. O art. 7º prescreve que a "escuta especializada é o procedimento de entrevista sobre situação de violência com criança ou adolescente perante órgão da rede de proteção, limitado o relato estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade".  Já no Art. 8º define que "depoimento especial é o procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária". Tais procedimentos unem a defesa da infância e juventude e as questões relacionadas à saúde mental em sentido amplo, já que se propõe um espaço de fala preparado, a fim de ofertar os cuidados adequados evitando qualquer processo de revitimização ou tratamento que as "use" como objeto de prova, estritamente com a finalidade de identificar e apurar essas situações de violências vivenciadas. Ser ouvido, nesses casos, deve incluir o direito de silenciar e a ser escutado na medida da sua idade, com as interpretações adequadas ao seu universo de linguagem. Mas, há uma limitação porque operadores do direito não são ensinados a escutar. O Direito precisa olhar para o saber da psicologia para além do modo instrumental - "produza quesitos, por gentileza!" - e caminhar com ele de mãos dadas para atingir o ideal legislativo. Nessa legislação o art. 4º, inciso IV, enuncia: "violência institucional, entendida como a praticada por instituição pública ou conveniada, inclusive quando gerar revitimização". A legislação está preocupada em como os adultos conduzem, mas no Direito sabemos dar respostas e não escutar. Esse é um desafio que essa lei coloca e, por isso, há mais a ser explorado e aprofundado neste tema, na união dos saberes, em nome dos direitos das crianças e adolescentes Espaços de escuta podem proporcionar o encontro com as respostas que precisamos para atender as necessidades dessa parcela da população e, ofertar, legitimamente participação. Participar é também proporcionar sair da invisibilidade, das injustiças e dos processos de assujeitamento e, portanto, deve ser algo diferente da punição. Participar e escutar não são práticas separadas, suponho quando sua finalidade é possibilitar o exercício da alteridade. Para isso, é fundamental o preparo de quem escuta, especialmente no que diz respeito aos valores e visões de mundo. Não é possível escutar se há presente o desejo, por aquele que escuta, de encaixar o que recebe em determinado padrão. O que não se entende, porque não, novamente, perguntar? A criatividade e flexibilidade, o desejo de apoiar e incluir, devem estar presentes, especialmente quando aquele que escutamos são crianças ou adolescentes. Muito já se avançou em termos legais, mas ainda há muito por fazer, para que possamos devolver liberdade e vida ao invés de violências, ausência de direitos, estigmatizações e punição. Proponho essas reflexões como uma forma de ampliarmos o debate sobre esse tema, sem qualquer pretensão de ponto final. _____ 1 SEDA, Edson. A criança e o fiel da balança - a solução de conflitos segundo o ECA. Rio de Janeiro: versão digital. Acesso em https://crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/publi/edson_seda/crianca_fiel.pdf  p. 10. 2 SANTOS, Benedito R. Por uma escuta de crianças e adolescentes culturalmente contextualizada. In: Escuta Protegida de crianças e de adolescentes vítimas ou testemunhas de violências: aspectos teóricos e metodológicos. Brasília, DF : Universidade Católica de Brasília ; [São Paulo, SP] : Childhood Brasil, 2020, p29.  3 Disponível aqui. 4 FREIRE, Paulo. Por uma pedagogia da pergunta. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2021, p. 69. 5 Práticas vinculadas à Doutrina da Situação Irregular ao invés da Doutrina da Proteção Integral. 6 Conselho Federal de Psicologia A escuta de crianças e adolescentes envolvidos em situação de violência e a rede de proteção / Conselho Federal de Psicologia. - Brasília: CFP, 2010. 7 Escuta protegida de crianças e de adolescentes vítimas ou testemunhas de violências [recurso eletrônico] : aspectos teóricos e metodológicos : guia de referência para capacitação em escuta especializada e depoimento especial / organizadores, Benedito Rodrigues dos Santos, Itamar Batista Gonçalves. - Brasília/DF: Universidade Católica de Brasília ; [São Paulo, SP] : Childhood Brasil, 2020.  8 FREIRE, Paulo. Por uma pedagogia da pergunta. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2021. 9 SEDA, Edson. A criança e o fiel da balança - a solução de conflitos segundo o ECA. Rio de Janeiro: versão digital. Acesso aqui.
Em 18 de maio de 1978 a pequena Araceli Crespo foi brutalmente assassinada, após ter sido sequestrada e violentada. Vinte e dois anos depois, a data foi consagrada como o Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, através da lei 9.970/2000, como forma de incentivar a realização de ações que alertem a sociedade sobre o tema. Infelizmente até hoje o tema é de certa maneira invisibilizado. Dados apresentados pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, referentes aos anos de 2018 e 2019 mostram que o Disque 100 recebeu por volta de 17.000 denúncias de violência sexual praticadas contra crianças e adolescentes. Esse tipo de violência em sua maioria ocorre na casa da vítima ou do suspeito; pais e padrastos representam 40% dos suspeitos informados e 82% das vítimas são do sexo feminino, ou seja, grande parte do abuso sexual contra essa parte da população ocorre dentro de casa e tem como algoz alguém com relação de proximidade com a vítima. Nos casos de abuso sexual de crianças e adolescentes perpetrado por um dos genitores é comum que o fato seja apurado na seara penal e tenha repercussões no direto de família, na discussão de guarda, além das medidas protetivas urgência no bojo da Lei Maria da Penha que podem ser concedidas para a proteção da criança ou adolescente. Infelizmente essa diversidade de processos expõe a criança ou adolescente a um processo de revitimização. A doutrina diferencia a vitimização em três níveis:  (i) vitimização primária, no qual a vítima é o sujeito diretamente afetado pela prática do ato delituoso; (ii) vitimização secundária, quando essa vítima primária sofre as consequências de sua relação com o Estado em razão do delito, como por exemplo a burocracia do sistema, que expõe às vítimas à várias oitivas (revitimização) e (iii) vitimização terciária, no qual o sujeito envolvido no ato delituoso é exposto a sofrimento excessivo, além daquele determinado pela lei1. No que tange a proteção de crianças e adolescentes em relação aos processos de vitimização, a lei 13.431/2017 estabelece um sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, tendo em vista o reconhecimento da condição peculiar de crianças e adolescentes como pessoas em desenvolvimento, a proteção integral a eles destinada e a absoluta prioridade, conforme art. 227 da Constituição Federal. A referida lei reconhece a violência institucional e a possibilidade de vitimização secundária (4º, IV) como forma de violência na qual crianças e adolescentes estão expostos e ressalta, ao tratar da escuta e do depoimento especial, a não admissão de tomada de novo depoimento, salvo quando demonstrada sua imprescindibilidade e houver a concordância da vítima, da testemunha ou de seu representante legal (art. 11, §2º), a fim de evitar a revitimização. Apesar das considerações acima expostas, observa-se que a proteção de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual intrafamiliar ainda tem falhas, seja na demora na oitiva das vítimas, bem como na determinação de repetição de oitivas em contextos diferentes como em perícia, estudo psicológico e na coleta de depoimento especial. Uma das ferramentas processuais a ser utilizadas nesses casos é a prova emprestada, prevista no art. 372 do Código de Processo Civil. Em que pese a regra geral, na qual as provas devem ser produzidas no próprio processo, a admissão de uma prova emprestada nos casos aqui discutidos pode ser justificada pela necessidade de se evitar a revitimização de crianças e adolescentes, além dos benefícios de otimização, racionalidade e eficiência, atendendo a garantia constitucional da duração razoável do processo. Além da prova emprestada, outra medida importante se evitar a revitimização é priorizar a oitiva especial da criança ou adolescente. Nos casos concretos, observa-se uma demora na requisição dessa oitiva no âmbito penal, que só ocorre meses após os fatos. Se há ainda demanda cível no caso de guarda e visitas, não raro ter a determinação de estudo psicossocial com a criança e família. A título exemplificativo, em um caso concreto de possível abuso de uma criança perpetrado por seu genitor, ocorrido em 2019, a oitiva em estudo psicossocial se realizou antes da oitiva especial de âmbito penal, isso apenas no ano de 2021. Nesse meio tempo a criança foi exposta a visitas do genitor que, ainda que de forma monitorada, lhe causaram diversos traumas. Felizmente, na Ação Cautelar que buscava a produção de prova antecipada por meio de depoimento especial, a Juíza responsável avaliou que o estudo psicológico realizado na ação de guarda trazia a narração dos fatos ocorridos com precisão de detalhes e que foi constatado intensos e variados sentimentos, sendo que uma nova oitiva poderia agravar a situação emocional da vítima. Assim, a magistrada oficiante no caso considerou que nova oitiva causaria a revitimização ou vitimização secundária, concretizada na prática com a ação dos responsáveis pelo processo de resolução de conflito sem a devida consideração e proteção em relação às expectativas e ao sofrimento da criança. Interessante que a criança, durante o estudo psicológico da ação de guarda, expressou não querer mais falar dos fatos pois já falou sobre o assunto "um milhão de vezes". Essa criança foi exposta à revitimização e sua fala expressa de forma inequívoca o seu sofrimento. Os processos que deveriam protegê-la acabam por machucá-la. São casos como este que ocorrem na prática forense e que lutamos para evitar, pois constata-se que apesar da iniciativa da lei 13.431/2017, não há efetividade na proteção de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual se não houver maior agilidade em suas oitivas no âmbito penal, que deverão ser aproveitadas em outros âmbitos como no direito de família, por meio de prova emprestada (art. 372 do CPC). Também é salutar que psicólogos e médicos envolvidos nos processos estejam alertas à questão, para que se lance mão de ferramentas para evitar mais sofrimento a essas vítimas. __________ 1 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 6ª Edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, pp. 54-55.
Segundo a lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), a adoção constitui uma das formas de colocação da criança ou do adolescente em família substituta (art. 28). Ainda segundo o mesmo diploma, por ser medida excepcional e irrevogável, a opção pela adoção somente deve ser considerada após o esgotamento de recursos de manutenção da criança ou adolescente na família natural ou extensa (arts. 19 e 39, §1º), o que denota, inegavelmente, predileção aos laços primitivos. Independentemente da colocação em família substituta, são asseguradas a todas as crianças e adolescentes as oportunidades e facilidades a fim de lhes proporcionar, dentre outros, o desenvolvimento mental e social, sem discriminação de nascimento ou situação familiar. Além disso, é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, exemplificadamente, a efetivação dos direitos referentes à dignidade, livrando-lhes de qualquer tratamento vexatório ou constrangedor, e ao respeito, preservando-lhes a identidade psíquica e moral, além da imagem e identidade. Ainda de forma preambular, frisa-se que a adoção pode ser bilateral ou conjunta, quando o novo vínculo de filiação estabelece-se com ambos os pais adotivos, com rompimento de todos os vínculos biológicos; ou unilateral, quando o novo vínculo de filiação estabelece-se com apenas um dos pais, mantendo-se o vínculo biológico com o outro. Verifica-se este último caso nas hipóteses em que inexiste pai registral (mãe solo) ou que, embora presentes ambos os pais registrais, um deles perde o poder familiar. Já quanto à repercussão registral da adoção, importante destacar que, hodiernamente, ela se constitui exclusivamente por vias judiciais, não sendo mais admitido qualquer forma ou ato extrajudicial de constituição de vínculo adotivo. Uma vez concedida, a sentença de adoção, transitada em julgado, será inscrita no registro civil, cabendo ao oficial a análise e qualificação exclusivamente formal do título apresentado (mandado, sentença com força de mandado ou carta de sentença), sem qualquer consideração quanto aos aspectos e requisitos endoprocessuais. O art. 47, §2º do ECA, por sua vez, determina que, uma vez inscrita a adoção, deverá ser cancelado o registro de nascimento original do adotado. No que diz respeito à adoção bilateral, parece-nos que a medida é correta e de rigor, vez que os vínculos biológicos são integralmente apagados da biografia do adotado, substituídos pela nova relação civil estabelecida. Entretanto, no que toca à adoção unilateral, não nos parece, salvo melhor juízo, ser esta a melhor opção diante do primado do melhor interesse do menor que deve balizar todas as suas relações. Vejamos. De início, salutar diferenciar os atos praticados pelo oficial de registro civil das pessoas naturais, quais sejam, o registro/inscrição, a averbação e a anotação. O registro refere-se ao ato principal, lavrado em livro próprio, que documenta ato ou fato verdadeiro que diga respeito à pessoa natural. Já a averbação é ato secundário, cuja função é modificar, corrigir ou incluir informação ao ato principal (registro). Por fim, a anotação é ato secundário de remissão no ato anterior sobre novo registro ou averbação da mesma pessoa. A lei 6.015, de 31/12/73 (Lei de Registros Públicos) trata dos aspectos registrais dos atos e fatos jurídicos a ela submetidos, como é o caso da adoção. Por ostentar o status de lei especial, seus preceitos se sobrepõem à lei geral e devem harmonizar-se quando confrontadas com legislação igualmente especial, como é o caso do ECA, em verdadeiro diálogo entre as fontes. Nesse aspecto, os arts. 29, §1º, inciso "e" e 102, item 3º da LRP, que preveem atos averbatórios de adoção, em compasso com o art. 10, inciso II da lei 10.406/02 (Código Civil), devem ser aplicados no caso de adoção unilateral de menor, com a preservação assento de nascimento original, haja vista a mantença de vínculo com um dos pais biológicos, tal como ocorre, aliás, com o ato de reconhecimento de filiação biológica ou socioafetiva. Não se descura, no entanto, que o tema não é pacífico. Inúmeras são as corregedorias de tribunais que são silentes quanto à matéria, talvez por já entenderem suficiente a legislação para a melhor interpretação. Todavia, algumas corregedorias de justiça, como por exemplo a de São Paulo e de Minas Gerais, de forma expressa, preveem em seus códigos de normas que a adoção unilateral deve se dar por ato de averbação, com preservação do assento de nascimento primitivo (item 122.4 do Cap. XVII das Normas Extrajudiciais da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo e art. 510, §2º do Código de Normas Extrajudiciais de Minas Gerais). O tema também não se mostra pacífico na doutrina, o que, inclusive, ensejou a elaboração do enunciado 273 da IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal com o seguinte teor: "Tanto na adoção bilateral quanto na unilateral, quando não se preserva o vínculo com qualquer dos genitores originários, deverá ser averbado o cancelamento do registro originário de nascimento do adotado, lavrando-se novo registro. Sendo unilateral a adoção, e sempre que se preserve o vínculo originário com um dos genitores, deverá ser averbada a substituição do nome do pai ou mãe naturais pelo nome do pai ou mãe adotivos." Sob a perspectiva da instrumentalidade, a alternativa pelo não cancelamento do assento primitivo também se mostra mais eficiente e seguro. Isto, pois, quando o juízo processante determina o cancelamento e a confecção de novo registro, valendo-se de dois mandados distintos, destinados a serventias diferentes, corre-se o risco de cumprimento da ordem de novo registro sem que o anterior tenha sido cancelado, o que culmina no convívio ativo de dois registros de nascimento, gerando inúmeros transtornos ao adotado e ao sistema como um todo. De outra banda, a expedição de mandado único de averbação de adoção unilateral ao cartório detentor do assento de nascimento espanca referida insegurança ao manter sua unicidade. Outra atecnia que se verifica nos mandados que determinam a lavratura de novo registro nos casos de adoção unilateral (e na bilateral também) é a omissão quanto ao aproveitamento dos elementos registrais fáticos do anterior registro, como por exemplo, local de nascimento, hora do nascimento, naturalidade, etc, cingindo-se a indicar os nomes do adotado, pais adotivos e avós, além dos dados do processo. Referida prática pode levar a um assentamento sem as informações "históricas" do adotado, o que não corre quando a adoção unilateral consubstancia-se por meio de averbação. Ademais, independentemente de ser a adoção bilateral ou unilateral, referida informação sempre será protegida pelo manto do sigilo, o que implica não só restrição quanto à publicidade registral irrestrita, como no controle de legitimidade do interessado na informação. Ou seja, a manutenção do assento primitivo com a averbação da adoção unilateral em nada mitiga esta situação. Por estas razões, o cancelamento do assento de nascimento primitivo do adotado menor deve cingir-se aos casos em que os laços com o passado sejam totalmente apagados. Por outro lado, a mantença do assento primitivo na adoção unilateral, com todas as características que lhe são próprias, resguarda a memória biográfica do menor, protege-o de futuros dissabores decorrentes de uma "novação registral" desnecessária, ao passo que permite uma saudável reconstrução de sua realidade.
Raros foram os momentos em que foi possível afirmar que a economia brasileira alcançou um patamar agradável de estabilidade, na verdade, muito mais comum é a noção de uma constante crise e o desequilíbrio entre os preços e o salário. Por essa razão, muitas vezes o brasileiro se vê obrigado a buscar trabalhos alternativos para complementar a renda da sua família. Com a revolução tecnológica e a extrema popularização das plataformas de mídia social, como YouTube, Instagram, Facebook e, mais recentemente, o TikTok, o brasileiro notou que a atividade de criação de conteúdos tem o potencial de complementar a fonte de renda da família, e mais, até mesmo de se tornar sua principal fonte de renda, graças ao que é conhecido como monetização. Mas... e quando o criador de conteúdo é uma criança ou um adolescente? Os influencers mirins atendem uma demanda de consumo de um público bastante expressivo nas plataformas de mídia sociali: o público infantil. Vale ressaltar que, após a adoção do ensino à distância como medida de contenção da pandemia de covid-19, a busca por conteúdos destinados ao público infantil aumentou em proporções sem precedentesii. A atuação de crianças e adolescentes nas plataformas de mídia social levanta discussões que podem ser conduzidas a partir de diversos pontos de vista, desde o tratamento de seus dados, conforme o art. 14 e §§ da LGPD, até riscos sobre a exposição da imagem e sua violação, conforme o art. 5°, X, da CF/88 e art. 21 do CC. Porém, uma abordagem que apenas recentemente está tomando forma é a da exploração do trabalho infantil e dos possíveis danos psicológicos que a atividade de criador de conteúdo pode causar às crianças e aos adolescentes. A exploração do trabalho infantil dos influencers mirins parte exatamente daqueles que mais deveriam zelar pelo seu desenvolvimento saudável e bem-estar, seus pais ou responsáveis. Como o público infantil monopoliza grande parcela das plataformas de mídia social, o conteúdo produzido para este público preenche muito mais rápido os requisitos de engajamento e número de visualizações para conseguir a monetização. Dessa forma, muitos pais têm incentivado - para não dizer obrigado - seus filhos a produzir conteúdo para as mídias sociais, instrumentalizando crianças e adolescentes, por meio do que é conhecido como sharenting, visando a alcançar um público maior e assim obter maiores remunerações de monetização, sendo que existem casos em que o sucesso do influencer mirim é grande o suficiente para que ele se torne o arrimo da família. Quais os possíveis danos que a atividade de influencer pode causar a uma criança ou adolescente? Por mais que exista o clamor de que ela não passa de uma atividade de lazer, os números relacionados à monetização apontam para uma realidade diferente, ou seja, trata-se de uma forma de trabalho bastante rentável, um novo empreendedorismo envolto em um pretexto artístico. Em primeiro lugar, a atuação da criança e do adolescente como influencer mirim ou criador de conteúdo não é adequada por ocorrer, majoritariamente, em ambiente doméstico, sendo que a noção de intimidade e vida privada pode ser afetada, além de prejudicar a compreensão do lar como um local de convívio familiar, descanso, aprendizado, segurança e afeto. Também é relevante considerar o tempo da jornada de trabalho do influencer mirim, na medida em que, ao ser realizada em casa, dificulta a identificação do início e do fim do seu horário de trabalho, sendo necessário destacar que o conteúdo final que é postado nas plataformas de mídia social representa apenas uma parcela do tempo gasto para a sua produção. Há, por consequência, um aumento significativo do tempo gasto pela criança ou adolescente em frente às telas de smartphones e computadores. Nesse sentido, especialistas têm alertado para o fato de que uma exposição prolongada nas telas e no ambiente virtual diminui a capacidade de atenção de crianças e adolescentes, especialmente quando o conteúdo criado e consumido são vídeos curtos (entre 15 e 20 segundos), que se popularizaram com o TikTokiii, o que, inclusive, prejudica a capacidade de manter a atenção no ambiente escolar. A monetização também tensiona de forma negativa as relações familiares, pois, quando são os próprios pais a explorar os filhos enquanto criadores de conteúdo, a relação deixa de ser regida pelo afeto e passa a se assemelhar mais com uma relação de emprego, pautada na subordinação dos filhos às metas que os pais impõem. Assim, cria-se um ambiente permeado pelo risco da exposição, que possibilita a prática de comentários negativos, interações de ódio e discriminação, manipulação e cyberbullying, situações que podem causar ansiedade, depressão e até mesmo o suicídio de crianças e adolescentes. Além disso, a falta de segurança e controle sobre o conteúdo postado nas plataformas pode facilitar sua distorção e a ocorrência de crimes como a pedofilia e a pornografia. Por fim, o conteúdo postado nas plataformas pode produzir dados cuja utilização desrespeite o melhor interesse da criança e do adolescente. Por mais que a LGPD possua previsões para a proteção desses dados e por mais que a ANDP os tenha classificado como de alto riscoiv, ainda não existe clareza sobre as medidas que serão tomadas para efetivar estes direitos. Assim, por mais que as plataformas exijam o acompanhamento dos pais dos influencers mirins, isso não resolve o problema quando os próprios pais exploram o trabalho dos filhos. Esta breve exposição apenas arranha a superfície dos danos que a atuação de crianças e adolescentes como criadores de conteúdo pode causar ao seu desenvolvimento psicológico e emocional. É, portanto, uma forma de trabalho que, se não for protegida e limitada pelo Direito, torna-se inadequada e prejudicial ao desenvolvimento humano. Em 2020, a França publicou uma lei na tentativa de combater este problema. Trata-se da Lei 2020-1266v, que, dentre outras coisas, reconheceu a atividade dos influencers mirins como trabalho, diferenciando-a de uma atividade de lazer. A norma também definiu que os rendimentos auferidos pelo influencer mirim deveriam ser depositados em uma espécie de poupança, além de ter previsto maior fiscalização estatal sobre o desempenho da criança e do adolescente no ambiente on-line. Entretanto, pela complexidade do problema, é possível questionar se a solução francesa de fato representa uma regulamentação suficiente para a situação. Aproximando a solução proposta pela França à realidade brasileira, uma alternativa seria enquadrar a atividade do influencer mirim como trabalho infantil artístico, nos moldes do art. 149 do ECA. Ainda assim, mais medidas jurídicas precisam ser desenvolvidas para o enfrentamento desta realidade. Para que uma futura regulamentação do tema seja efetiva e atenda aos direitos da criança e do adolescente, garantindo sua proteção integral e priorizando seu desenvolvimento saudável e sua educação, é necessária uma compreensão muito mais profunda dos danos que esta atividade pode causar. Estudiosos do Direito ainda estão se debruçando sobre a temática, sendo que o momento, na esfera jurídica, ainda é muito precoce para sugerir uma solução que de fato seja efetiva. Em linhas gerais, para uma visão clara dos riscos desta atividade, é necessário recordar que a criança e o adolescente estão em condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, são vulneráveis e necessitam de proteção especial. Além disso, suas prioridades nem sempre serão as mesmas que a de seus pais. Portanto, na infância e juventude, é preciso brincar e estudar, com a garantia de pleno reconhecimento de sua posição como sujeitos de direitos. ________________ i Disponível aqui. ii Disponível aqui iii Disponívwl aqui iv Disponível aqui v Disponível aqui  
Em meio a pandemia, que já está em seu terceiro ano, os atores governamentais e não governamentais parecem não ter percebido a publicação do Decreto 10.570, de 09 de dezembro de 2020, que "Institui a Estratégia Nacional de Fortalecimento dos Vínculos Familiares e o seu Comitê Interministerial"1. O objeto desse decreto se relaciona com um tema mais amplo que é o direito da criança e do adolescente à convivência familiar e comunitária, regulada pelo art. 227 da Constituição, no art. 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente e no art. 20 da Convenção sobre Direitos da Criança (Decreto n. 99.710/1990). As previsões constitucional e legal serviram de base para que a partir de 2004 o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) e o Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) iniciassem um debate sobre políticas públicas sobre o direito da criança e do adolescente ao direito à convivência familiar e comunitária. As discussões foram realizadas pelas esferas federativas e entre elas e a sociedade civil e resultaram na publicação do "Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária"2 no final de 2016. Além da articulação entre governo e sociedade civil, é marcante nesse Plano Nacional a definição de família como processo social, histórico, transgeracional e interindividual; a aplicação da doutrina da proteção integral e que crianças e adolescentes são titulares de direitos; o reconhecimento da multiplicidade de vínculos familiares no país; e, o reconhecimento da importância da comunidade no desenvolvimento de crianças e adolescentes. O decreto governamental de 2020 rompe com a articulação que é prevista na Constituição e no Estatuto ao tratar de infância e adolescência e impõe, "de cima para baixo", a revisão de uma parcela da política pública sobre convivência familiar. Enquanto entre 2004 a 2006, os Conselhos de Direitos foram os protagonistas e organizadores dos debates, o Governo atribui a alguns dos Ministérios a formulação de uma nova agenda pública sobre convivência familiar. De acordo com o decreto, farão parte do Comitê para discutir a política de fortalecimento de vínculos familiar apenas o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, a Casa Civil, Ministério da Educação, Ministério da Cidadania e Ministério da Saúde. As diretrizes entre o Plano Nacional e o decreto são igualmente significativas: o Plano estabelece como parâmetros a centralidade da família nas políticas públicas, primazia da responsabilidade do Estado no fomento de políticas integradas de apoio á família, reconhecimento das competências da família na sua organização interna e na superação de suas dificuldades, espeito à diversidade étnico-cultural, à identidade e orientação sexuais, à equidade de gênero e às particularidades das condições físicas, sensoriais e mentais, fortalecimento da autonomia da criança, do adolescente e do jovem adulto na elaboração do seu projeto de vida, garantia dos princípios de excepcionalidade e provisoriedade dos Programas de Famílias Acolhedoras e de Acolhimento Institucional de crianças e de adolescentes, reordenamento dos programas de Acolhimento Institucional e adoção centrada no interesse da criança e do adolescente. O decreto, por sua vez, estabelece como diretrizes a valorização das funções sociais da família, baseada em relações de reciprocidade, responsabilidade e solidariedade entre os seus membros, o reconhecimento e o apoio às funções desempenhadas pela família, o fortalecimento do valor da maternidade e da paternidade responsáveis e do cuidado e da convivência familiar e comunitária, a promoção do equilíbrio entre o trabalho e a família, o esforço para que as ações governamentais respeitem o projeto familiar no que se refere ao acesso ao trabalho, ao planejamento familiar, à maternidade e à paternidade, inclusive por adoção, à parentalidade e à proteção de pessoas idosas e de pessoas com deficiência, a promoção de uma cultura de valorização da infância e da adolescência como fases peculiares do desenvolvimento, de reconhecimento e de apoio do papel dos pais ou responsáveis em relação às necessidades e aos direitos da criança e do adolescente, a fim de fortalecer o papel parental e a centralidade da família, o reconhecimento do valor social do trabalho doméstico e de cuidado como essenciais para o desenvolvimento da família e da sociedade, o fortalecimento das redes de apoio às famílias e dos vínculos comunitários e a valorização das iniciativas da sociedade civil na promoção da qualidade dos vínculos familiares e comunitários, a disseminação das informações e a capacitação dos agentes públicos acerca da formulação e da avaliação de políticas públicas na perspectiva do fortalecimento dos vínculos familiares, e o reconhecimento e o respeito aos usos e costumes dos povos e comunidades tradicionais e de outras realidades socioculturais, observados o princípio da dignidade da pessoa humana e os seus direitos fundamentais. Em cumprimento ao decreto, o Comitê Interministerial publicou em 30 de dezembro de 2021 a Resolução n. 013, que aprova o Plano de Ações da Estratégia Nacional de Fortalecimento de Vínculos Familiares, com 40 metas que não se comunicam com o Plano Nacional e revelam uma clara retirada do Estado do seu papel de formulador e executor de políticas em favor da infância e a entrega ao âmbito privado da família dessa função. E isso sem nenhuma articulação com as esferas estaduais e municipais e com entidades privadas. Essa mudança pode parecer uma forma de valorizar o papel da família, mas precisamos ter cuidado no impacto socioeconômico que o decreto representa, pois isso também irá significar em médio e longo prazo na diminuição da esfera de proteção das famílias e de seus membros pela assistência e saúde públicas. Um segundo risco nas diretrizes elencadas no decreto pode ser o aumento da violação de direitos da criança, incluindo situações de violência física, psicológica, emocional e sexual, uma vez que a intenção é a redução das políticas e equipamentos de acompanhamento de famílias em situação de risco. Tome-se, como exemplo, as metas 09 e 16. A primeira pretende incluir a "temática do equilíbrio trabalho-família no Plano Nacional de Ação sobre Empresas e Direitos Humanos", sem a participação do Ministério do Trabalho nessa ação pública e indicando que a produtividade no emprego formal é tão importante quanto a observância da legislação trabalhista. Dizendo de outra forma, a métrica da produção ganha mais relevância do que a proteção à infância e ao trabalhador, duas áreas em que a vulnerabilidade são mais intensas e onde a proteção às pessoas deveria ser prioritária. A meta 16 trata de "estratégia de fortalecimento das famílias como ambiente de prevenção e apoio para pessoas vitimadas" (sic). Vitimadas pelo quê? Por fatores externos ou internos? E se a violência foi intrafamiliar, como sujeitar a criança e o adolescente a manter-se na família que deu causa à violência? Com certeza um tema que merece ser acompanhado para compreender de que forma a nova política federal irá impactar nos direitos de crianças e adolescentes. __________ 1 https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-10.570-de-9-de-dezembro-de-2020-293224898 2 https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Cadernos/Plano_Defesa_CriancasAdolescentes%20.pdf 3 https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-n-1-de-30-de-dezembro-de-2021-371529589
Queria eu que o tema já estivesse pacificado, que todas as crianças estivessem vacinadas contra a Covid-19 (e também com as demais vacinas do calendário), que todas as doses tivessem sido bem aproveitadas e que não houvesse óbitos infantis em decorrência do vírus1. Queria também que não existissem fake news ou, se existissem, que as pessoas logo percebessem que são notícias falsas2 e não repassassem, não perpetuando a obscuridade. Queria ainda, que as crianças fossem verdadeiros sujeitos de direitos e tivessem seus melhores interesses sempre protegidos, com prioridade absoluta, não só no papel3, mas na vida real. Queria, com isso, que pudéssemos nos orgulhar de ser um país que acolhe, cuida e protege seu futuro. Mas não, o tema está novamente em pauta: Crianças de 5 a 11 anos: Os pais são obrigados a vaciná-las contra a covid-19?. Isso mesmo, um tema que abordei nessa mesma coluna ("Migalhas Infância e Juventude"), há 7 meses4. Pois é, o assunto esfria e esquenta... esfria e esquenta... e, assim, vem sendo requentado desde que foram concedidas as autorizações pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária5 ("ANVISA", com atribuição para registro e aprovação de imunizantes no Brasil) para a vacinação de adolescentes de 12 a 17 anos, e da faixa etária de 5 a 11 anos, em Junho e Dezembro de 2021, respectivamente. Como conclusão - um tanto quanto óbvia - será novamente requentado em breve, logo que a ANVISA autorizar menores de 5 anos de idade a receberem imunização. O termo é esse, e não poderia ser mais adequado: R E Q U E N T A D O !  Requentar significa "aquecer novamente, esquentar mais uma vez, acalorar de novo". E a questão envolvendo o direito de crianças de serem vacinadas (e, via reflexa, o dever de os pais submeterem seus filhos à vacinação) se apresenta exatamente assim, requentada de tempos em tempos.  Antes que as pedras sejam lançadas, não ignoro que um bom debate envolve tese, antítese e síntese, beneficiando-se das diversas considerações sobre um mesmo tema. Todavia, infelizmente não é a lógica que está regendo as principais discussões envolvendo os aspectos jurídicos das vacinas contra a Covid-19 em crianças no Brasil.  E aqui já delimito o recorte metodológico da abordagem, para focar no aspecto puramente jurídico, único que posso me manifestar, eis que não tenho formação médica, epidemiológica, sanitarista, de engenheira ou de farmácia. Nesse ponto, é preciso constatar que, embora a liberdade de expressão seja um pilar fundamental de nossa estrutura democrática, ela tem sido interpretada como uma carta branca para a arquiteta falar sobre hermenêutica jurídica, o musicista postar sobre cepas de vírus, o padeiro palestrar sobre imunização em rebanho e a astrônoma debater sobre interesses ocultos da indústria farmacêutica.  Restringindo-me, assim, à análise jurídica sobre o dever de os pais de vacinarem seus filhos menores de idade, reitero que, embora pareça um assunto novo, a questão já foi apreciada pelo Supremo Tribunal Federal ("STF"), em sede vinculante, portanto, reduzindo o espaço para discussões  -  embora elas insistam em se proliferar requentadas e sem maiores fundamentos.  Para não ser injusta com os opositores sérios, destaco que alguns poucos estudiosos chegaram ao único argumento que, em tese, consideraria apto a viabilizar uma conclusão no sentido da não obrigatoriedade, já ressaltando que houve certa indução a erro pelo Ministério da Saúde que, injustificadamente, deixou a vacina para a faixa etária de 5 a 11 anos fora do Programa Nacional de Imunização ("PNI"). Neste particular, não custa lembrar que o chefe do executivo por diversas vezes se manifestou publicamente contra à vacinação e à adoção de outras medidas seguras - como o uso de máscaras, tendo apoiado tratamentos precoces e kits comprovadamente ineficazes à Covid-19. Clique aqui e veja a íntegra do texto. __________ 1 Covid-19 já matou mais de 1.400 crianças de zero a 11 anos no Brasil e deixou outras milhares com sequelas. Disponível aqui. Acesso, 08 de fev 2022.  2 Disponível aqui. Acesso em 09 de fev, 2022. 3 Art. 227, CF "É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão". 4 Disponível aqui. Acesso, 10 de fev 2022. 5 Criada pela Lei 9.782/99, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária é uma autarquia sob regime especial que tem por finalidade institucional promover a proteção da saúde da população, por intermédio do controle sanitário da produção e consumo de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos ambientes, dos processos, dos insumos e das tecnologias a eles relacionados, bem como o controle de portos, aeroportos, fronteiras e recintos alfandegados. Disponível aqui. Acesso, 06 de fev 2022. 
Quando o desejo de adotar uma criança ou adolescente desperta no íntimo de uma pessoa ou casal, logo surgem questionamentos sobre as dificuldades, ou burocracia, para adotar uma criança ou adolescente em nosso país, de forma legal. Primeiramente, o que é a adoção legal? Trata-se da adoção realizada em observância às normas do Estatuto da Criança e do Adolescente, principalmente aquela realizada pelos cruzamentos dos perfis de habilitados para adoção com o de crianças e adolescentes, em condições de serem adotados, que integram a base de dados do SNA - Sistema Nacional de Adoção, instituído pela resolução 289/19, do CNJ1. Logo, o primeiro passo não é procurar instituições de acolhimento, ou mesmo alguém que queira entregar seu filho para adoção, este último caso mais grave, pois pode até mesmo resultar em crime, se envolver vantagens ou registro de filho de outra pessoa como se fosse seu, conforme art. 238 do Estatuto da Criança e do Adolescente e art. 242 do CP, respectivamente. O SNA engloba todos os cadastros, inclusive internacional, de forma que o primeiro passo para quem quer se habilitar para adoção é realizar o pré-cadastro no SNA2 por meio de formulário eletrônico, que deve preferencialmente ser acessado pelo navegador Google Chrome, o qual devidamente preenchido, gerará um protocolo que deverá ser mantido em poder do interessado. O pré-cadastro não é obrigatório, até mesmo porque a pessoa interessada pode ter dificuldade de acesso à internet ou mesmo dúvidas a respeito de seu preenchimento, o que poderia implicar em desestímulo para deflagrar o início de todos os procedimentos necessários para concretização da adoção almejada. Importante destacar que o pré-cadastramento não exaure as etapas para se habilitar para adoção, pois o interessado deve entrar em contato com a unidade judiciária, com competência para Infância e Juventude de seu local de residência, ou mesmo contratar um advogado ou defensor público, para dar entrada na Ação de Habilitação para Adoção, que deve ser instruída com os documentos de que trata o art. 197-A do ECA. Observe-se que já nesse início do processo a pessoa ou casal pretendente deverá ser cadastrado no SNA pelos servidores da unidade judiciária, conquanto apenas com a sentença transitada em julgado, que decide pela sua habilitação ou não, é que será finalizado o processo de cadastramento no Sistema e o pretendente se tornará apto para adotar, passando a ocupar um lugar na lista, de acordo com o perfil escolhido para o adotando. A ação de habilitação de adoção deve ter o prazo de duração de no máximo 120 dias, podendo ser prorrogado por igual período mediante fundamentação da autoridade judiciária. No início da pandemia houve uma celeuma em todo o Poder Judiciário com o impulsionamento das habilitações para adoção, mas rapidamente o Sistema de Justiça se adequou e as fases processuais foram sendo realizadas de forma virtual ou semipresencial, conforme normativas de regência, facilitando muito o acesso e a agilidade no trâmite da habilitação. Durante esse processo, será analisada a documentação apresentada, bem assim realizadas outras duas etapas importantes, quais sejam a realização do estudo técnico pela equipe interprofissional do juízo, bem assim a participação da pessoa ou casal postulante em programa oferecido pela Justiça da Infância e da Juventude, que incluirá, sempre que possível e recomendável, contato com crianças e adolescentes em regime de acolhimento familiar ou institucional. Destaque-se a importância da interlocução do Sistema de Justiça com os Grupos de Apoio à Adoção, os quais potencializam a formação e a informação para concretização desse itinerário de forma segura e eficaz. Após o cumprimento dessas três etapas no processo de habilitação para adoção - documentação, estudo psicossocial e participação no programa/curso de adoção -, o MP emite parecer e em seguida a autoridade judiciária prolata a sentença, deferindo ou não a habilitação. Deferida a habilitação, a pessoa ou casal é inserida no Sistema Nacional de Adoção e pode acompanhar algumas informações neste link3, dentre elas sua posição na fila, devendo, acima de tudo, garantir a atualização de seus dados pessoais e meios de contato. O prazo de validade da habilitação é de três anos, sendo de responsabilidade do pretendente solicitar nos autos do processo, com antecedência de 120 dias do vencimento, a reavaliação da habilitação, para que permaneça ativo no Sistema, consoante o art. 7° do anexo II da resolução 289/19 do CNJ. Passados os trinta dias subsequentes à data de término da validade e não havendo a renovação da habilitação, os pretendentes são automaticamente inativados e deixam de constar na lista de busca de crianças e adolescentes. Com o cruzamento de dados no SNA, compatibilizando-se o perfil da(s) criança(s) e/ou do(a)(s) adolescente(s) apto(a)(s) para adoção com o pretendente, ocorrerá a vinculação eletrônica automática, de acordo com a ordem de classificação, a qual obedece a data da sentença de habilitação, o que deverá ser comunicado pelo juízo, a fim de que o pretendente manifeste interesse em conhecer a criança/adolescente, avaliando-se se eventual recusa é por motivo justificável ou não. Importante assinalar que haverá reavaliação da habilitação concedida após três recusas de aproximação pelo habilitado, sem motivo justificável, para crianças/adolescentes estritamente dentro do perfil escolhido (art. 197-E, §4°, do ECA). Manifestado o interesse em adotar, abre-se a possibilidade de ajuizamento da ação de adoção pelo pretendente, oportunidade na qual se poderá deferir a guarda provisória para se avaliar o estágio de convivência. Trata-se de um procedimento também relativamente simples, em que se apura o atendimento do melhor interesse do adotando nesse período, cujo prazo máximo é de 90 dias, prorrogáveis por igual período, mediante decisão fundamentada (art. 46 do ECA), o que será objeto de estudo pela equipe interprofissional do juízo, sem prejuízo da avaliação da necessidade de se produzirem outras provas conforme o caso. Após o parecer do Ministério Público, a autoridade judiciária prolata a sentença e, deferida a adoção, é atribuída a condição de filho ao adotado, conforme art. 41 do ECA. Logo, na prática, não existe em si uma burocracia para se habilitar para adoção, o que não significa dizer que não há um tempo de espera que pode ser longo a depender de diversos fatores. Segundo o diagnóstico do SNA4 (2020):  "O tempo médio entre a data do pedido de habilitação e a data da sentença de adoção dos pretendentes que adotaram alguma criança ou adolescente é de 4 anos e 3 meses, variando de 1 ano e 7 meses em Roraima e de 5 anos e 3 meses no Rio Grande do Sul (p. 38)." Os relatórios do SNA5 apontam que no Brasil existem por volta de 3.961 crianças e adolescentes em condições de serem adotados, havendo aproximadamente 32.925 pretendentes para adoção. Obviamente, não basta realizar uma conta matemática e "zerar" a fila para crianças e adolescentes, uma vez que a esmagadora maioria das crianças e adolescentes aptos para adoção no SNA são crianças com deficiência, com doenças crônicas ou incuráveis, crianças mais velhas, adolescentes e grupos de irmãos. Esse fato de maneira alguma é uma crítica à escolha do perfil pelos habilitados, pois existe também a necessidade da estruturação das varas com competência em Infância e Juventude pelo país, à luz do provimento 36/14, da Corregedoria Nacional de Justiça, bem assim a conscientização para a entrega protegida para adoção a respeito da qual já falamos em conjunto com Viviane Rodrigues Ferreira em outra oportunidade6, o que tenderia a diminuir adoções irregulares, sobretudo com intermediação de terceiros, e tornaria mais célere a adoção de crianças na primeiríssima infância. Acredito ainda que advogados devem se especializar cada vez mais para patrocinar pessoas que se interessam em adotar, garantindo orientação e atuação nos processos de adoção e habilitação para adoção, sobretudo em situações mais delicadas que exija o aprofundamento em questões jurídicas mais sofisticadas. Destarte, surgem mecanismos de "busca ativa" de que trata o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária7, a partir dos quais inúmeros programas encampados principalmente por Tribunais de Justiça pelo país potencializam a divulgação - aberta ou limitada a habilitados para adoção - de crianças e adolescentes que não tiveram o perfil compatibilizado com pretendentes no SNA, com o intuito de concretizar seu direito à convivência familiar e comunitária. Para tanto, devem ser obedecidos diversos critérios para se garantir outros direitos, dentre os quais o da intimidade, imagem e honra, os quais a Associação Brasileira de Magistrados da Infância e Juventude compilou em diretrizes de busca ativa8 para garantir o melhor interesse do público infanto adolescente. Assim, o caminho para adotar não é difícil, mas também exige a preparação daquele que deseja adotar em universo com muitas informações e desenvolvimento de competências necessárias para garantir, ao fim e ao cabo, o direito fundamental à convivência familiar e comunitária de crianças e adolescentes em condições de serem adotados. ____ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 Disponível aqui. 6 Disponível aqui. 7 Disponível aqui. 8 Disponível aqui.
"A paz não pode ser mantida à força. Somente pode ser atingida pelo entendimento." Albert Einstein O atual governo brasileiro promove uma cultura de paz. É o que afirma uma carta elaborada pelo Ministério da Família, Mulher e Direitos Humanos e pelo Ministério da Justiça em resposta a uma denúncia feita por relatores da ONU diante das 28 mortes registradas em ação da polícia na favela do Jacarezinho, na zona norte do Rio de Janeiro, no início de 2021. O documento garante que o Brasil vem buscando incluir treinamento em direitos humanos e promover a cultura da paz entre policiais no combate ao crime. Pelo evidente contraste da afirmação com a realidade vista em todo o país, a declaração gerou revolta nas entidades defensoras de direitos humanos.1 Não trataremos aqui do evento que ficou conhecido como a Chacina do Jacarezinho. Entretanto, é inevitável falar de sistema de justiça e política criminal sem tangenciar eventos lamentáveis como esse que refletem a verdadeira cultura na qual estamos submersos: violência estrutural, racismo institucional, desigualdade, punitivismo e medo. Pretendemos abordar o tratamento conferido ao adolescente envolvido no cometimento de ato infracional e a abordagem restaurativa como alternativa para uma mudança de mentalidade coletiva. No Brasil, a despeito do que afirma o senso comum, é sabido que o tratamento dado aos adolescentes etiquetados como infratores é similar ao do sistema prisional. O perfil também é o mesmo: a maioria é composta por pessoas negras, do sexo masculino, de classe socioeconômica menos favorecida, em péssimas condições de assistência familiar, com pouca ou nenhuma perspectiva de futuro promissor, com baixa escolaridade e apreendidos na prática de atos infracionais correspondentes a crimes contra o patrimônio e tráfico de drogas. Percebe-se que o estigma do "delinquente" delimita o público-alvo, facilitando a atuação Estatal nas condutas selecionadas. Neste contexto, aumenta o clamor popular e político pela repressão mais severa, por parte do Estado, das condutas dos adolescentes em conflito com a lei. Tal recrudescimento parece ser a saída mais enfatizada pelos adeptos da tolerância zero. Contudo, essa não tem se mostrado a saída mais adequada, visto que o sistema penal não tem resolvido o problema do aumento da criminalidade. Pelo contrário, há alguns anos, o modelo restaurador, não-retributivo, já tem se mostrado mais eficaz na reinserção do adolescente à sociedade e na prevenção da reincidência.2 Propõe-se, portanto, uma "troca de lentes" na abordagem do assunto, superando a justiça retributiva e caminhando rumo aos ideais da justiça restaurativa. A Convenção sobre os Direitos da Criança, no artigo 40, exige que os Estados promovam "o estabelecimento de leis, procedimentos, autoridades e instituições especificamente aplicáveis a crianças, que alegadamente teriam infringido a legislação penal ou que sejam acusadas ou declaradas culpadas de ter infringido a legislação penal". Em 2007, quando o Comitê dos Direitos da Criança ofereceu orientação específica sobre os direitos da criança referentes à justiça juvenil, recomendou que os Estados usassem medidas alternativas, como suspensão do processo e justiça restaurativa para responder às "crianças" em conflito com a lei de forma eficaz que atenda não apenas ao melhor interesse das crianças, mas também aos interesses de curto e longo prazo da sociedade em geral. O Comitê, baseado no princípio da primazia do interesse superior da criança, concluiu que os objetivos tradicionais da justiça criminal, como repressão/retribuição, devem dar lugar aos objetivos de reabilitação e justiça restaurativa no tratamento de crianças e adolescentes ditos infratores. Um dos marcos da promoção da justiça restaurativa no Brasil foi a edição da Resolução 225/2016 do Conselho Nacional de Justiça que trata da implementação da Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário. Desde então, tem-se observado que um dos contextos mais propícios para o desenvolvimento das práticas restaurativas é o infantojuvenil, isso porque o Estatuto da Criança e do Adolescente permite a abertura para outras possibilidades de respostas do sistema de justiça frente a prática de atos infracionais. São exemplos ilustrativos os artigos 112, inciso II, 116 e 126. Outrossim, as práticas restaurativas são preconizadas pela Lei 12.594/2012 - SINASE, artigo 35, especialmente nos incisos II e III, e na Resolução 2002/2012 do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, que trata sobre os "Princípios básicos para utilização de programas de justiça restaurativa em matéria criminal". A aplicação das práticas restaurativas no atendimento ao adolescente autor de ato infracional busca a sua reinserção social e familiar e o encaminhamento a programas de aprendizagem profissional ou de inserção profissional. Visa-se a reconstrução de vínculos familiares e comunitários e a pacificação social por meio de um diálogo baseado no respeito, na responsabilidade e na cooperação. Trata-se de um novo paradigma no trato de conflitos e situações de violência cuja abordagem observa as necessidades dos envolvidos e a reparação dos danos. Questiona-se a efetividade das respostas penais no tratamento do adolescente em conflito com a lei, pois o tratamento repressivo não resolve os conflitos em todas as suas dimensões. Como dito, o modelo de justiça restaurativa trabalha prioritariamente com as necessidades dos envolvidos. No que tange à vítima, existe a necessidade primária de fazer justiça, de exigir respostas às suas perguntas diante do acontecido. Por outro lado, no que se refere ao infrator, trabalha-se de forma a identificar o motivo de sua infração e a saber o que levou a cometê-la. Para Juan Carlos Vezzulla3, psicólogo e mediador, quando fala sobre si mesmo e sobre sua situação, e é escutado atentamente, o adolescente sente-se valorizado e respeitado, o que leva a procurar verbalizar suas necessidades e o motivo de ter cometido o ato infracional. Para além do paradigma jurídico-penal, a questão merece ser percebida por uma ótica psicossocial para que a partir disso, se encontrem soluções eficazes para o fenômeno. Howard Zehr4, estudioso no campo de práticas restaurativas, destaca que o sistema penal é construído historicamente em cima da culpabilidade do infrator, e a vítima, a parte desprezada, não tem poder de expressão, uma vez que o crime é cometido contra o Estado. Isso posto, tem-se um quadro de insatisfação da vítima e de não ressocialização do infrator. De acordo com o autor acima referido, destacam-se cinco pressupostos teóricos do modelo restaurativo: I. Deve-se considerar o crime / ato infracional como uma ofensa contra as pessoas, e não contra o Estado; II. A intervenção judicial deve mudar o foco. Em lugar de focalizar a culpabilidade do autor, deve-se inicialmente considerar as necessidades das pessoas envolvidas (autor, vítima e comunidade); III. O delito não deve mais ser considerado como monopólio do Estado e dos profissionais do Direito, deve-se associar aos cidadãos e à comunidade a construção da resposta penal; IV. É necessário mudar a concepção da sanção: em vez de considerar a sanção como passado, é preciso vê-la como preparação do futuro. Deve-se substituir os ritos de exclusão judicial pelos ritos de inclusão fundados sobre o respeito à pessoa e o engajamento da comunidade à qual o agressor pertence; V. É necessário trazer aos atores a responsabilidade de seu conflito: deve-se reconhecer o sofrimento da vítima e responsabilizar o autor da infração, numa ação cooperativa, comunicacional, com a participação direta dos envolvidos. O autor identifica três modelos de práticas habitualmente utilizadas: a mediação vítima-infrator, as conferências familiares e os círculos restaurativos. A mediação vítima-infrator é uma abordagem voltada para a singularidade das pessoas envolvidas, que são auxiliadas por um mediador na resolução do conflito. Normalmente, são casos encaminhados via delegacia de polícia, Poder Judiciário ou estabelecimentos educacionais. Destaca-se como um dos modelos mais utilizados nas práticas de justiça restaurativa. As conferências familiares, modelo originário da Nova Zelândia, são dirigidas aos jovens, e a participação da família é de fundamental importância. Envolvem um grupo maior: o jovem infrator e seus familiares, a vítima e seus familiares, a polícia, um advogado e um representante da Justiça, que normalmente faz o papel de facilitador. O terceiro modelo é o nominado círculos restaurativos, originário do Canadá, do qual participam a comunidade e as pessoas envolvidas no conflito. A justiça restaurativa é uma abordagem flexível, inclusiva e colaborativa. Requer voluntariedade de todos os envolvidos. Pode ser adaptada, complementar os sistemas de justiça e ser aplicada em todas as fases do processo, convergindo com ele ou funcionando independente dele. A adolescência por ser uma fase turbulenta em que o indivíduo está em processo de peculiar desenvolvimento, requer especial atenção não só da família ou do Estado, em seu papel socioeducacional, mas também de toda a sociedade. A responsabilidade pela criminalidade, frise-se, é de toda a sociedade. O viés restaurativo pressupõe responsabilização da comunidade que não pode eximir-se de sua parcela de contribuição somente exigindo respostas severas das instituições e autoridades. Essa conscientização parece ser um ponto de partida para a construção de uma cultura de paz. 1 Em carta à ONU sobre Jacarezinho, governo diz que promove "cultura da paz". Acesso em 16/11/21. 2 Inglaterra aumenta investimento em Justiça Restaurativa. Acesso em 16/11/21. 3 VEZZULLA, Juan Carlos. A mediação de conflitos com adolescentes autores de ato infracional. Florianópolis: Habitus, 2006. 4 ZEHR, Howard. Changing lenses. Anews focus crime and justice. Sscottdale, P.A: Herald Press,1990.  
Em nossa última coluna, Elisa Cruz terminou seu artigo com uma provocação a respeito como direitos e políticas públicas devem, hoje, ser disponibilizadas para a infância e adolescência considerando tecnologias atuais e temas que superam questões clássicas da área envolvendo pobreza e vulnerabilidade. É justamente com ela que iniciamos este texto, buscando tecer uma correlação entre o olhar crítico ao ECA proposto por Elisa atualmente e os casos de pensão alimentícia no Direito de Família que estão sub judice no Judiciário sem nos olvidar da pobreza e da vulnerabilidade com que precisamos analisar a questão. De fato, o ECA precisa ser pensado e aplicado para além dos temas clássicos e da pobreza e vulnerabilidade, entendendo que a realidade de muitas crianças envolve temas vinculados a outros campos do Direito, tais como regime de convivência com pais residentes em países diferentes, influenciadores digitais mirins, entre outros temas afetos à Infância e Juventude nos dias de hoje, consoante indicado no texto referenciado acima. Todavia, ainda que o tema dos alimentos esteja mais inserido no âmbito do Direito de Família e da Lei dos Alimentos (lei 5.478/1968), um "clássico" também, é justamente o ECA que vai nortear a aplicação de alguns princípios básicos em Infância e Adolescente durante o trâmite do processo, em especial o da proteção integral e da prioridade absoluta. Segundo o relatório Justiça em Números, do CNJ (2021), o tema "alimentos" (Direito de Família) está entre os assuntos mais demandados no Judiciário. Ele ocupa a terceira posição dentro da Justiça Estadual, e isso sem dúvida nos demanda maior atenção dentro do Sistema de Justiça. Aponta o IBGE que aproximadamente 37% dos domicílios brasileiros são chefiados por mulheres, sejam elas as responsáveis pelo lar quando há coabitação por outro(a) cônjuge ou quando assumem tal papel sozinhas e, mesmo nos casos de divórcio com filhos, cf. levantamento do mesmo órgão em 2019, 62,4% das mulheres acabaram ficando com a responsabilidade unilateral e legal de cuidar dos filhos comuns, enquanto os homens representaram 4,1%. Com base em tais dados pode-se ter a expectativa de que, na maior parte dos processos de alimentos que estão pendentes de julgamento no Judiciário, são crianças e adolescentes representadas por suas mães que ocupam o polo ativo na demanda, como os casos paradigmas abaixo, encontrando-se não só em evidente descaso material por parte dos genitores, como também quiçá emocional. Tal sobrecarga impacta não só o orçamento doméstico a partir do não recebimento da pensão ou do baixo valor atribuído a ela - além das discussões sobre a tributação da pensão para quem a recebe -, como também, lá na frente em outros campos da vida privada, vai impactar a entrada das mulheres no ambiente de trabalho de forma igualitária e, certamente, reforça padrões de gênero que precisam ser repensados à luz da proteção das minorias e avanços sociais. E é sobre isso que queremos falar nessa coluna. Muito se fala sobre o "mito" da pensão dos 30% no âmbito acadêmico, discussão protagonizada especialmente por juristas olhando para a lei seca e advogados que defendem a aplicação do binômio necessidade-possibilidade em favor de seus clientes. Nos é claro o senso comum de que não é apenas 30% dos rendimentos líquidos do devedor de alimentos ou do salário-mínimo que a pensão vai incidir, deve ser observado o caso a caso, atendidas às necessidades da criança com proporcionalidade e razoabilidade. Todavia, será que assim ocorre no campo prático? Em fase de cognição sumária, em casos mais habituais em que as partes se encontram em situação de maior vulnerabilidade, normalmente o patamar que se fixa é o de 30% em cima do salário líquido, em caso de registro, e entre 30 a 40% em cima do salário-mínimo, caso desempregado ou informal. Ao se fixar neste patamar, durante a fase instrutória, é quase instintivo dizer que o ônus de provar que precisa de mais passa a ser da criança ou do adolescente, não havendo qualquer presunção de necessidade ou coisa do tipo. Isto porque "se até agora viveu com tal valor, porque pretender mais agora, passados tantos meses?", foi o que um colega advogado escreveu em alegações finais certa vez. A título exemplificativo, veja-se o processo 1001393-86.2021.8.26.0266, publicado no banco de sentenças do E. TJSP, julgado recentemente em julho de 2021. O filho pretendia o recebimento de pensão alimentícia em 01 salário-mínimo (R$ 1.100,00). Os provisórios foram fixados em 30% dos rendimentos líquidos do pai e em 40% do salário-mínimo em caso de desemprego. Isto é, estando o pai desempregado, a criança passaria a receber apenas R$ 440,00, somente incidindo a partir da citação. Em sua defesa, o pai registral não só questionou a paternidade - sem nunca, aparentemente, ter se voltado contra isso na Justiça, apenas quando demandado a pagar alimentos - e disse não poder pagar alimentos no importe pretendido porque sustenta a esposa, possivelmente adulta, e dois "enteados". Se negou a prestar assistência material ao filho de forma violenta psicológica e moralmente, tendo coragem de pedir arbitramento da pensão em menos de 15% do salário-mínimo. Na sentença, mesmo o Magistrado sendo claro no sentido de que o devedor não havia feito prova suficiente sobre seus parcos rendimentos, ou seja, não logrando êxito em demonstrar que não poderia arcar com o quanto pretendido pelo filho (1 SM), foi arbitrada a pensão em 30% dos rendimentos líquidos e, em caso de desemprego, em 25% do salário-mínimo. Disse o Magistrado à mãe e ao menino: R$ 275,00 são suficientes para custear ao menos 50% dos direitos básicos da criança. Nada mais. Teria o juiz, naquele momento, pensado em como menos de R$ 300,00 seriam suficientes? Não se sabe o que teria constado no parecer do Ministério Público, mas já se pode imaginar, à vista de outro caso também em trâmite o E. TJSP (1029984-11.2020.8.26.0002, também publicado no banco de sentenças), no qual o MP foi contrário ao pedido de pensão da criança (processo no qual os provisórios foram fixados em 50% do salário-mínimo, em caso de desemprego, e em 30% dos rendimentos líquidos, se contratado formalmente). É evidente que decisões que ignoram a realidade social do nosso país, arbitrando automaticamente 30% de pensão, ignorando ônus da prova ou mesmo a necessidade presumida por parte de crianças e adolescentes de receber apoio material de seus pais, lhes confere o retorno do título de "menor", porque não é possível imaginar, em pleno 2021, que R$ 330,00 ou R$ 660,00 sejam suficientes para arcar com todos os direitos básicos e fundamentais trazidos pela Constituição Federal, os quais passam a ganhar especial relevância a crianças e adolescentes em razão da prioridade absoluta do Art. 227. E não é esquecer que a crise financeira assola nosso país e certamente prejudica o poder de colaboração de pais e mães no sustento de seus filhos. Contudo, entendendo que crianças e adolescentes possuem especial proteção legislativa, não podemos aceitar que o "padrão 30%" vigore, ainda mais por parte de um Judiciário completamente desconectado com a realidade do país em que a cesta básica consome, por si só, 65% do salário-mínimo, em que o botijão de gás custa quase R$ 100,00 e que os preços de água e luz são igualmente elevados, o que já demonstra extrema desproporção entre o que se tem arbitrado e o que é realmente necessário para deixar uma criança feliz, saudável, sem fome, estudando e com todos seus direitos garantidos. Voltando à provocação de Elisa Cruz, não é só na pobreza e na vulnerabilidade que precisamos repensar e aplicar o ECA. O mesmo percentual de 30% se mantém em casos de devedores com alta possibilidade de contribuição, ignorando, também, as necessidades da criança e a real condição financeira do genitor não residente que passa a ter menores responsabilidades a partir do momento em que sua contribuição se esvazia com o pagamento de uma pensão fixa e de pequenas "visitas". Assim, esta coluna busca chamar os operadores do Sistema de Justiça para um debate crítico para além do modelo padrão de "30%", que, haja vista a situação do país e da falta de políticas públicas assistenciais adequadas, mostra-se ainda mais ultrapassado e não condizente com a realidade, devendo o Poder Judiciário estar atento às vulnerabilidades expostas e escancaradas nas mazelas do litígio. É preciso pensar o que há para além de processos postos em cima de nossas mesas de trabalho!  
Quando pensamos em direito da criança e do adolescente, invocam-se como temas o acolhimento institucional, adoção, competência das varas da infância, atos infracionais, conselho tutelar e assistência social. De alguma forma, existe uma correlação direta no campo jurídico entre direito da criança e do adolescente e pessoas em situação de vulnerabilidade. Uma das justificativas possíveis para que essa associação de temas ainda ocorra seja porque não conseguimos superar totalmente as teorias que influenciaram os Códigos de Menores de 1927 e 1979. A manutenção do uso corrente da palavra "menor" em decisões judiciais e outras atividades dos profissionais jurídicos serve como principal exemplo dessa perspectiva negativa sobre a infância pobre e nos faz acreditar que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) tenha sido elaborado e que deva ser aplicado apenas em situações de extrema vulnerabilidade social. Esse é um erro que precisa ser superado, tanto porque o ECA serve para a proteção de interesses e direitos de toda e qualquer criança ou adolescente como porque manter essa lei com aplicação restrita à situações de vulnerabilidade não irá nos ajudar a solucionar os desafios atuais e futuros na área da infância. Gostaria de destacar alguns desses desafios e como o ECA pode ajudar a encontrar respostas: o art. 19 do ECA é um dos principais artigos sobre a convivência familiar e comunitária e estabelece que é direito da criança ou adolescente conviver com os pais e a família extensa. Em 1990, data de publicação do ECA, o uso de equipamentos de informática era muito baixo, talvez inexistente, e a taxa de divórcios e recasamentos não tinha o mesmo volume que atualmente. Podemos dizer, assim, que a convivência familiar e comunitária pensada no ECA refere-se à presença física da criança com seus pais e demais parentes. Hoje, além das novas configurações familiares, com destaque para as famílias recompostas ou mosaico, precisamos considerar os fluxos migratórios interno e externo, que fazem com que pais não residam na mesma cidade (quiçá no mesmo Estado) um dos outros. Outro elemento que deve ser incluído no debate é a organização do trabalho dos pais, uma vez que tem sido percebido o aumento de trabalhadores autônomos e no setor de serviços, onde o horário de trabalho pode ter maior flexibilidade e o regime de convivência apenas em finais de semana não seja adequado. O que precisamos nos perguntar é: em decisões sobre a convivência entre pais e filhos, essas questões não deveriam ser consideradas? E tecnologias podem ser utilizadas para reforçar ou suprir os obstáculos a essa convivência? Um segundo tema que tem sido profundamente impactado pela tecnologia e pelas sociais é o trabalho infantil. Já são inúmeras as crianças e adolescentes que possuem perfis em redes sociais e que buscam tornar-se influencers com maior alcance nos seus nichos de mercado. Se tomarmos a conceituação de trabalho infantil como toda a produção de valor, industrial, em bem material ou digital, é obrigatório reconhecermos que a atividade de influencer deve ser categorizada como trabalho infantil. Mas ao fazermos isso precisamos decidir se esse trabalho é lícito, pois a Constituição proíbe o trabalho de crianças e adolescentes com menos de 14 anos de idade, salvo na área da cultura e diversão, mas que, de outro lado, exige autorização judicial. Seriam essas restrições aplicáveis ao trabalho digital infantil? E quais seriam as responsabilidades dos pais e das plataformas de redes sociais? A França deu início a esse debate ao editar lei regulamentando o trabalho de influencers infantis. A lei não proíbe o trabalho infantil, mas obriga que os pais de adolescentes com menos de 16 anos devem pedir uma autorização legal para o trabalho de seus filhos e parcela das remunerações ficam depositadas em conta para serem resgatada pela criança ou adolescente quando completar 18 anos de idade. Aliás, a falta de debate sobre a regulamentação do trabalho digital infantil diante dos termos da Constituição (que permite a aprendizagem a partir dos 14 anos) é igualmente revelador da discriminação de classe social, pois a aprendizagem foi pensada para a inclusão no trabalho de jovens em vulnerabilidade. O último ponto de destaque é o uso de tecnologias na educação. A pandemia bem demonstrou que classes mais altas puderam, de alguma forma, manter com regularidade o ensino dos filhos, enquanto populações de menor renda enfrentaram problemas de transporte (quando as escolas reabriram), falta de acesso à internet, falta de equipamentos adequados para assistir as aulas e falta de alimentação adequada. Antonio Gois, colunista do jornal O Globo, ao longo de suas colunas tem provocado reflexões sobre como essas desigualdades na pandemia vão impactar em desigualdades futuras de renda e pobreza, bem como quais métodos e instrumentos precisam ser pensados para reduzir ao máximo a diferença entre classes. O art. 53 do ECA assegurar como direito da criança a "igualdade de condições para o acesso e permanência na escola", de modo que deveríamos estar discutindo com maior seriedade quais recursos mínimos deveriam ser disponibilizados nas instituições públicas do país de modo a assegurar a efetividade dessa norma jurídica e, na realidade prática, o acesso mais igualitário. Em síntese, falar sobre criança e adolescente hoje não pode ser apenas o retorno a temas clássicos de infância, os quais devem sim ser enfrentados e resolvidos por políticas públicas adequadas, mas é também quais direitos e políticas públicas devem ser disponibilizadas para a infância e adolescência.
A coluna de hoje traz uma abordagem empírica, realizada no bojo de um trabalho de conclusão de curso, por uma servidora pública do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, lotada na Vara da Infância e Juventude da Comarca de Mauá/SP.  A partir de minha atuação, do que dispõe o Estatuto da Criança e do Adolescente e demais normas aplicáveis, atenta ao Princípio da Convivência Familiar, compreendi que crianças e adolescentes possuem o direito a serem criados e educados no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, em qualquer caso, assegurado o direito fundamental da convivência familiar e comunitária, tendo por finalidade o desenvolvimento destes sujeitos de direitos, que estão em formação física, psíquica, intelectual e moral.  Encantada pelo tema, iniciei pesquisas nas guias de acolhimento e desligamento no site do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento - SNA e conclui que, para entender os reais motivos pelos quais existem crianças que são adotadas rapidamente e outras que aguardam por anos (e, muitas vezes, atingem a maioridade sem realizarem o sonho de ter uma família), seria interessante, além dos dados das guias, pesquisar também sobre os pretendentes à adoção e suas preferências. Assim, inicialmente analisei os dados do Conselho Nacional de Justiça para entender o atual cenário nacional das adoções no Brasil, constatando que, atualmente, há 42.786 pretendentes à adoção e 3.789 crianças e adolescentes, demonstrando nítida discrepância entre os números de pretendentes e infantes disponíveis. Numa análise da Vara da Infância e Juventude da Comarca de Mauá/SP (após prévia e expressa autorização de acesso pelo juiz titular, Dr. Marco Mattos Sestini), visualizei que a realidade local não difere de outras regiões do país, existindo um número maior de pretendentes à adoção do que crianças e adolescentes aptos, revelando preconceito acerca do tema adoção, ainda mais quando se trata de adoção de crianças mais velhas. Na coleta de dados foram analisadas guias de acolhimento e desligamento entre os anos de 2017 a 2020, tendo sido geradas 96 guias de acolhimento e 64 guias de desligamento na comarca, sendo que foram encontradas 8 guias de acolhimento cujo acolhido havia entrado mais de uma vez no sistema, desta forma, encontramos 88 crianças e adolescentes efetivamente acolhidos. As crianças e adolescentes com perfis disponíveis para adoção no período supramencionado eram predominantemente do sexo feminino, pardas, de diversas faixas etárias, sendo a grande maioria acima de 9 anos.  No tocante ao gênero, 53% dos pretendentes manifestaram não ter preferências, seguido de 34% que preferiam crianças do sexo feminino e 13% preferiam crianças do sexo masculino. Em que pese a grande maioria dos pretendentes no estudo em questão não manifestarem preferências em relação ao gênero, nota-se que muitos outros pretendentes manifestaram preferência por crianças do sexo feminino. Com relação à etnia das crianças pretendidas, 62% dos pretendentes também não manifestaram preferência pela etnia, 24% preferiam crianças brancas ou pardas, 8% preferiam crianças brancas, 4% preferiam crianças pretas ou pardas e somente 2% preferiam crianças pardas. Contudo, se os fatores gênero e etnia não faziam diferenças à maioria dos pretendentes, o fator idade se revelou determinante: 25% dos pretendentes manifestaram interesse em adotar crianças entre 0 a 3 anos de idade, seguidos de 19% que preferiam entre 0 a 2 anos, 13% que desejavam entre 0 e 1 ano e apenas 9% que aceitariam a faixa etária entre 0 a 6 anos. Assim, manifestações de pretendentes a adotar crianças maiores (de 0 a 7 anos, 0 a 8 anos, 5 a 10 anos ou 6 a 17 anos, por exemplo), correspondem a 1% cada, corroborando as informações encontradas no cenário nacional da adoção, de que os pretendentes preferem adoção de crianças mais novas. Quanto às deficiências físicas ou mentais, 80% dos pretendentes manifestaram o desejo de não adotar crianças com deficiências, sendo que somente 20% aceitavam crianças com alguma deficiência.  Constatei, assim, que o perfil que os pretendentes aptos para adoção na comarca de Mauá/SP é de crianças de 0 a 3 anos, embora sem preferência por gênero e/ou etnia e, preferencialmente, sem deficiências físicas e/ou mentais.  Infelizmente, o perfil dos acolhidos em instituições na referida comarca é diferente, composto por crianças maiores de 3 anos e, muitas vezes, por grupos de irmãos (que devem ser preferencialmente adotados em conjunto, para a manutenção dos vínculos), dificultando a concretização de adoções. Em suma, a realidade na Comarca de Mauá não difere de outras regiões do país, existindo um número maior de pretendentes do que crianças e adolescentes aptos para adoção. A triste conclusão do trabalho é de que, a despeito disso, grande parte das crianças e adolescentes que se encontram nas instituições de acolhimento permanecerão acolhidos até a maioridade, por não preencherem os requisitos exigidos por quem deseja adotar, principalmente no tocante à idade, visto que, é bastante comum, que a tenra idade seja um requisito importante para adoção destas, como demonstrou a análise do presente estudo.
Há um ano (em outubro de 2020) inaugurávamos essa coluna (Migalhas Infância e Juventude) sem imaginar a dimensão que ela teria. Hoje festejamos seu primeiro aniversário mais próximos uns dos outros, com amigos de militância e referências acadêmicas importantes para nossa própria educação sobre o tema da Infância e Juventude nos acompanhando por aqui - alguns deles tivemos o prazer de receber e ler como convidados na coluna -, profissionais de "fora do Direito", que passaram a adotar este espaço como fonte a fim de compreender alguns pontos fundamentais dos direitos de crianças e adolescentes e membros da sociedade civil que também nos visitaram buscando informação. Sociedade, Estado e Família, a tríplice fundamental da proteção infanto-juvenil contemplada no alcance desta coluna: Não poderíamos estar mais felizes!!! A ideia inicial, quando concebemos essa coluna, era que pudéssemos compartilhar visões diferentes sobre o ECA e demais normas aplicáveis, a partir das nossas vivências e atuações profissionais, vez que ocupamos lugares distintos dentro do Sistema de Justiça, e assim fizemos neste primeiro ano. Por mais de uma vez surgiram "dobradinhas" ocasionais porque, dentro de um mesmo tema, tínhamos visões diferentes, por vezes até destoantes, mas sempre complementares, de modo que passamos a compreender de forma mais clara que no campo da infância e da juventude não experenciamos um sistema adversarial, mas sim cooperativo, uno e complexo (ref. Fredie Didier Jr.). Nesse primeiro ano da coluna não raras vezes revisitamos nossa própria história, ao escrever sobre primeira infância, educação, crianças e adolescentes com deficiência, trabalho infantil, adoção e acolhimento, saúde mental e drogadição na adolescência, casamento infantil e violência contra crianças e adolescentes. Nessa tarefa, não ignoramos a triste crise sanitária que vivemos em razão da Covid-19, analisando, também, este cenário dentro da perspectiva do direito fundamental à vida e à saúde de crianças e adolescentes. Comemoramos juntos os 31 anos do ECA, escrevemos sobre avanços e estagnações de políticas públicas na proteção da infância, e propusemos reflexões sobre retrocessos que surgiram  por meio de decretos presidenciais, orientações administrativas, interpretações jurisprudenciais e mudanças legislativas, tais como o retorno de escolas e salas especiais para crianças e adolescentes com deficiência, a vedação à educação domiciliar, a importância da  equipe interprofissional nos casos de privação de liberdade de pessoas responsáveis por infantes com deficiência, a violação de direitos de adolescentes que fazem uso de drogas a partir do acolhimento em comunidades terapêuticas, entre outros. Todavia, nosso espaço amostral ainda é muito reduzido perto da magnitude e complexidade das discussões sobre direitos de crianças e adolescentes, o que nos estimula a continuar com a coluna ativa. E, dentro desse objetivo, partimos da compreensão do ECA enquanto núcleo duro do sistema protetivo infanto-juvenil, entendido como o microssistema que conjuga as principais normas de direitos e garantias. Não à toa ele está no centro do debate e deve ser compreendido como um diploma que direciona e impõe a todos os atores da rede (dentro ou fora do sistema de justiça) uma atuação colaborativa e não adversarial, eis que a todos interessa fundamentalmente assegurar a proteção de crianças e adolescentes. Destaque-se que, desde sua promulgação, o ECA foi alterado inúmeras vezes, verificando-se mudanças nos anos de 1991, 1997, 2000, 2003, 2005, 2008, 2009, 2011, 2012 e, desde 2014, em todos os anos até 2019, sendo que a última modificação se deu agora em 2021, por meio da lei 14.154, que aperfeiçoa o Programa Nacional de Triagem Neonatal, mas ainda não está em vigor. Em ao menos 15 anos (de seus 31), portanto, houve ao menos alguma inserção legislativa no texto geral do ECA, afora alterações em outras leis esparsas e a superveniência de outras sobre o tema infância e juventude. Aliás, tomando por base apenas indexações como "crianças", "adolescentes", "infância" e "juventude", tem-se 61 proposições no Senado Federal e 804 na Câmara dos Deputados. Desde 1999, em todos os anos houve algum projeto de lei em tramitação pretendendo alteração no texto do ECA, nem sempre com melhora ou aprimoramento nos interesses e garantias do público infanto-juvenil. Sem prejuízo dessas incontáveis normas, é longa e quase sempre tortuosa a caminhada para a efetivação de direitos de crianças e adolescentes, mesmo para aqueles já positivados em normas nacionais e internacionais ratificadas pelo Brasil, apesar da absoluta prioridade determinada pelo Art. 227 da Constituição Federal. Infelizmente violações aos direitos de crianças e adolescentes no Brasil ainda são muito frequentes, o que se comprova através dos noticiários, levantamentos de dados e estudos acadêmicos, ainda que o foco seja em direitos básicos como alimentação, integridade física, saúde e educação, especialmente após os reflexos da pandemia do Covid-19. Tal agravamento fica evidenciado, por exemplo, no alerta realizado pelo UNICEF no final de 2020, sobre a insegurança alimentar infanto-juvenil durante os últimos anos no país, que afeta diretamente a saúde deste público vulnerável em desenvolvimento físico e psíquico. Segundo o órgão da ONU, cerca de 5,5 milhões de crianças e adolescentes brasileiros "deixaram de comer porque não havia mais dinheiro para comprar comida". Sabedores de que parte considerável das crianças e adolescentes chegam às escolas sem comer, relembrando aqui o notório caso do menino de 8 anos que desmaiou de fome em uma escola do Distrito Federal, o fechamento das instituições de ensino durante o período de isolamento social agravou a situação alimentar e a crise nutricional instaurada no país há anos. Além disso, como aponta relatório apresentado pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), versado para o português por Raquel de Oliveira e revisado por Teresa Pontual e Cláudia Costin (FGV EBAPE CEIPE), "as necessárias medidas de isolamento social causarão uma disrupção na educação escolar por vários meses, na maioria dos países do mundo", causando graves perdas de aprendizado para os alunos e impondo verdadeira estratégia educacional para mitigar tais danos. Ou seja, é certo o impacto negativo deste período pandêmico também na educação de crianças e adolescentes. Com muito pesar é preciso admitir que tampouco a integridade física, sexual e psicológica de crianças e adolescente está sendo preservada em âmbito nacional, como mostram dados levantados em uma das colunas publicada este ano, nem mesmo dentro dos ambientes de proteção, como a residência. O ECA está e continuará, portanto, no centro de debate desta Coluna do Portal Migalhas e não podemos deixar que ele vire letra morta, ineficaz e inoperante perante seus destinatários, especialmente a parcela mais vulnerável. Nossa função pública, social e política de fomentar o debate plural sobre os temas, principalmente entre os membros do Sistema de Justiça, nos faz pensar que juntos, superando as amarras do modelo adversarial tradicional, podemos suprir algumas omissões e carências na prestação jurisdicional e tornar a justiça mais acessível, rápida e eficiente (ref. Maria Tereza Sadek), prioritariamente para crianças e adolescentes, a partir do pensamento crítico e da compreensão sistêmica sobre a Infância e Juventude. Isto porque, como se vê, apesar de robusta normativa nacional e internacional protetiva, ainda são constantes as denúncias, as notícias e os processos, legislativos e judiciais, que revelam a insuficiência da proteção desse público no Brasil e a falta de cultura nacional protetiva, exigindo-se uma visão cooperativa e reiteradas investidas sobre o tema, sempre com a finalidade de torna-lo mais acessível, palatável e conhecido, ampliando seu alcance. Assim, como fizemos na primeira coluna, reiteramos: o público-alvo é abrangente, e alcança toda e qualquer pessoa que se proponha a pensar e repensar o sistema de proteção, dentro e fora do sistema de justiça, afinal somos todos responsáveis por nossas crianças. Você é nosso convidado rumo ao 2º aniversário!!!
A pandemia da Covid-19 evidenciou a importância da escola como espaço essencial para crianças e adolescentes, não só para o desenvolvimento da educação formal, mas como estratégia comunitária de socialização, saúde e proteção social. Estar matriculado e ir para a escola permite que uma rede de direitos fundamentais sejam garantidos e reforçados, especialmente para aqueles em situação de maior vulnerabilidade, como meninas negras, crianças e adolescentes de baixa renda, com baixos níveis de acesso a direitos sociais e crianças e adolescentes com deficiência, por meio da educação inclusiva. Assim, falar sobre educação, saúde, proteção contra violência e assistência social no Brasil implica falar sobre a escola e o fortalecimento dessa instituição e de seus profissionais. Causa grande estranhamento, portanto, que a única prioridade do atual governo brasileiro e de alguns parlamentares para a educação neste momento seja o ensino domiciliar, um tema que já foi tratado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do recurso extraordinário 888.815, que estabeleceu a tese de repercussão geral segundo a qual não existe direito público subjetivo do aluno ou de sua família ao ensino domiciliar, inexistente na legislação brasileira.  Contrariando o Supremo e  a competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional (Art. 22, XXIV, da Constituição Federal), um movimento inconstitucional se iniciou para a regulamentação da prática pelo Ministério da Educação e por leis estaduais ou municipais, como no Distrito Federal, nos estados do Rio Grande do Sul, Paraná e São Paulo; e nos municípios de Vitória (ES), Cascavel (PR), Sorocaba (SP), por exemplo.   Como natural consequência, a constitucionalidade dessas leis infraconstitucionais, quando não acertadamente vetadas pelos governadores como no caso do Rio Grande do Sul, tem sido questionada nos Tribunais estaduais, é o exemplo da ADI 0035496-33.2019.8.08.0000, do Tribunal de Justiça do Espírito Santo, que declarou inconstitucional a legislação sobre o tema no município de Vitória e da ADI nº 0752639-84.2020.8.07.0000 que tramita no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, à qual o Instituto Alana e a Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down requereram ingresso como amicus curiae.  Espera-se que esta patente incompatibilidade entre o ensino domiciliar e a prioridade absoluta dos direitos de crianças e adolescentes seja devidamente reconhecida pelos Tribunais, impedindo que o direito da criança à escola seja ameaçado e para que prevaleçam os deveres constitucionais estabelecido no Artigo 227, e o modelo educacional estabelecido nos Artigos 205 e 206, da Constituição Federal e no Artigo 1º, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação. A moldura constitucional é categórica ao definir que o Estado e a família devem atuar em colaboração entre si. Neste sentido, não há preponderância do papel de uma instituição ou de outra, mas sim complementaridade com a finalidade de garantir, em primeiro lugar, o melhor interesse da criança, mesmo que em contraposição à vontade individual de pais, mães ou responsáveis. O poder familiar é sempre limitado pelo melhor interesse da criança, pois crianças não são objetos das famílias, mas sim sujeitos de direitos fundamentais, como o direito de convivência comunitária e o direito à matrícula escolar em instituição regular de ensino. A educação escolar é única e insubstituível no cumprimento de padrões mínimos de qualidade e princípios do ensino presentes no Artigo 206 da Constituição Federal. Para garantir a educação de qualidade a que crianças e adolescente têm direito, é preciso do espaço de interação, convivência e construção relacional do saber (com os pares e com adultos com relações diversas da parental), de um currículo estruturado, de profissionais com formação adequada, de materiais didáticos adequados e de espaços organizados com finalidade pedagógica, que só as escolas, em toda sua diversidade de formas de organização e possibilidades, podem garantir. A escola também é imprescindível como parte do Sistema de Garantia dos Direitos de Crianças e Adolescentes e integrante ativa da rede de proteção. Em conjunto a outros órgãos e políticas públicas, a escola possui um papel protetivo e preventivo fundamental contra violência física, psicológica e/ou sexual, reconhecendo e encaminhando eventuais casos de violações. A não obrigatoriedade de frequência à escola inviabiliza a identificação e o encaminhamento de casos, além de ampliar as possibilidades de violência doméstica e sexual. Nesse sentido, de acordo com o Disque 100, em 2019, das 17.029 denúncias de violência sexual registradas contra crianças e adolescentes, 52% ocorreram na casa da vítima e 40% delas foram cometidas pelo pai ou padrasto1. Ainda, o afastamento da sala de aula pode estimular a evasão escolar e o trabalho infantil, considerando as desigualdades sociais: de acordo com a Pnad Contínua 2019, o principal motivo da evasão escolar é a necessidade de trabalhar, contemplando um total de 39,1% dos casos2. Ademais, em se tratando de uma prerrogativa excludente, o ensino domiciliar coloca novamente em xeque a educação inclusiva que prevê como um direito das crianças e adolescentes com deficiência, os quais historicamente estiveram entre os grupos privados da garantia do direito à educação, a frequência às escolas regulares. A educação escolar comum é fundamental para aumentar o desempenho acadêmico e socioemocional de todos os estudantes, além de solidificar uma cultura inclusiva e de respeito à diversidade na sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa e seu preparo para o exercício da cidadania. Relevante citar as experiências de homeschooling em outros países, como os Estados Unidos, que longe de serem exemplos, escondem violências várias, nos quais adultos que passaram pelo ensino domiciliar hoje se autodenominam de sobreviventes. Sobrevieram à falta de proteção contra violações graves, como o confinamento predominante de meninas, as quais deveriam ser educadas em casa apenas para realização de tarefas domésticas, conforme aponta Elizabeth Bartholet, professora da Harvard Law School e diretora do Child Advocacy Program (CAP)3, em diversos artigos sobre o homeschooling nos Estados Unidos. A partir dessas evidências, retomemos a discussão inicial deste artigo. Os projetos de lei e os ilegais incentivos de ensino domiciliar do atual governo em discussão neste momento além de inconstitucionais confrontam o nosso papel, enquanto sociedade, e o dever da família e do estado de efetivarem a educação escolar, fortalecendo a escola como espaço diverso e insubstituível para o desenvolvimento integral de todas as crianças e adolescentes. *Letícia Carvalho é assistente jurídica do Instituto Alana. Graduada pela Faculdade de Direito da USP, onde coordena a Clínica de Direitos da Criança e do Adolescente.  **Pedro Hartung é advogado e Diretor de Política e Direitos da Criança do Instituto Alana. Doutor em Direito do Estado pela USP e doutorado sanduíche na Harvard Law School. __________ 1 BRASIL. Disque Direitos Humanos: Balanço anual do Disque 100 - ano 2019. Disponível aqui. Acesso em: 21/05/2021. 2 IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua. Educação. 2019. Disponível aqui.  Acesso em 08/07/2021. 3 BARTHOLET, Elizabeth. Homeschooling: Parent Rights Absolutism vs. Child Rights to Education & Protection. Arizona Law Review. Volume 62, Issue 1 p. 9. Disponível aqui. Acesso em: 21/05/2021.