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Migalhas Infância e Juventude

Temas vinculados ao Direito da Criança e do Adolescente, por meio do exame de diplomas internacionais, CF, ECA, legislações e normas esparsas.

Angélica Ramos de Frias Sigollo, Elisa Cruz, Hugo Gomes Zaher e Marília Golfieri Angella
A proteção integral à criança e ao adolescente encontra guarida no artigo 227 da Constituição Federal desde 1988. Trata-se de paradigma que considera a criança e o adolescente pessoa em condição especial de desenvolvimento e titular de direitos. No mesmo período constituinte, a saúde foi elevada a direito social, dever do Estado e direito de todos os brasileiros e brasileiras. No campo da saúde mental, lutava-se pela implementação de um novo modelo de cuidado, centrado no usuário, elevando à condição de cidadania todas aquelas pessoas com transtorno mental. No entanto, esses movimentos não se cruzaram até os anos 2000. A saúde mental de crianças e adolescentes não foram pauta daqueles que escreveram o Estatuto da Criança e do Adolescente e dos que brigaram pela implantação do Sistema Único de Saúde. O uso de álcool e outras drogas ainda não era um tema de preocupação midiática e as políticas de assistência social ainda se consolidavam como um novo marco de direitos de solidariedade. Porém, se o Estado não se ocupou, um grande campo se abriu para a iniciativa privada. Pouco a pouco, instituições religiosas e psiquiátricas passaram a se dedicar ao atendimento em saúde mental para pessoas usuárias de álcool e outras drogas. A visibilidade nos meios de comunicação das vulnerabilidades de crianças e adolescentes alavancaram uma forma de atendimento que não considerava os avanços civilizatórios ocorridos nas políticas públicas psicossociais e infantojuvenis - nem se garantia o cuidado em liberdade e tampouco se respeitava a condição de sujeitos de direitos. Nesse contexto, proliferaram comunidades terapêuticas confessionais em todo o Brasil, criadas sem qualquer regulamentação estatal ou fundamentos científicos. O cuidado por pares passou a significar que pessoas que passavam por tratamento nesses espaços, após determinado período, começassem a se responsabilizar por outras pessoas. O trabalho obrigatório e a religiosidade forçada são as características que identificam esse tipo de atendimento e que são ofertados cotidianamente a famílias, com características mais simples ou com instalações de aparência mais luxuosa. Além do financiamento público, muitas vezes por mais de um ente federado, as internações são custeadas pelas famílias, em alguns casos com contratos que preveem multas em caso de interrupção do tratamento. Falta de critérios clínicos, uso de medicação como forma de controle dos corpos, uso de trancas, ausência de profissionais habilitados, castigos físicos, trabalhos forçados e participação em cultos religiosos, são apontamentos feitos na Inspeção Nacional de Comunidades Terapêuticas. Rotinas em comunidades terapêuticas em todo o Brasil que, apesar de toda a contradição com os princípios e direitos dos usuários insculpidos na Lei nº 10.216, passam a fazer parte da Rede de Atenção Psicossocial desde 2011, focada na atenção residencial a adultos. Em 2016, o Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas regulamenta essa forma de atendimento, diferenciando-a de internações psiquiátricas e direcionando-se, mais uma vez, ao público maior de 18 anos. Há, porém, uma indicação de que é possível a regulamentação das comunidades terapêuticas para adolescentes, a partir de diálogos com o Conselho Nacional de Direitos das Crianças e do Adolescente (CONANDA). Embora já contando com financiamento federal crescente até 2016, as comunidades terapêuticas vão ganhando força e espaço no cenário político instalado a partir de então, ainda que drenando recursos do SUS e desfinanciando a Rede de Atenção Psicossocial. Insta observar que a implantação da RAPS representa, de fato, a possibilidade de atendimento, de maneira organizada e sustentada, a pessoas em situação de abuso de álcool e outras drogas, inclusive crianças e adolescentes. E chegamos em 2020, quando, sem nenhum diálogo, o Governo Federal edita uma nova resolução com a previsão de acolhimento de adolescentes em comunidades terapêuticas, a partir de julho de 2021. A resolução repete, em linhas gerais, as previsões feitas para acolhimento de adultos, sem qualquer referência às exigências do Estatuto da Criança e do Adolescente e ao Sistema de Garantia de Direitos. Nenhuma tentativa de diálogo é frutífera nos meses seguinte, apesar de diversas tentativas pelo CONANDA, pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e pelo Conselho Nacional de Saúde, assim como pelos Conselho Federal de Psicologia e Conselho Federal de Serviço Social. Ao lado dessas tentativas, as Defensorias Públicas da União e de diversos Estados e a Procuradoria Federal de Direitos do Cidadão da Procuradoria Geral da República também se manifestam contrariamente à resolução, pelo desrespeito às diversas normas de proteção de direitos de crianças e dos adolescentes. A desconsideração dos marcos reguladores de direitos humanos significa também a desconsideração dos serviços já existentes para atendimento a crianças e adolescentes. Toda uma regulamentação de acolhimentos de crianças e adolescentes e de fiscalização de entidades de atendimento é completamente ignorada pela Resolução 03/2020 do CONAD, retirando o papel dos juízes da infância e da juventude, dos Conselhos Tutelares e dos Conselhos de Direitos das Crianças e do Adolescente. A política para a infância e juventude goza de estatuto legal e conta com mecanismos de controle e de participação sociais já consolidados e que não podem ser afastados por uma simples resolução, por mais bem intencionada que seja. O convívio familiar e comunitário e a educação são dois direitos das crianças e dos adolescentes que são ignorados pela resolução, por considerar a frequência nas escolas um fator de risco. No entanto, ignora-se, ao mesmo tempo, os impactos no desenvolvimento psicossocial e humano de crianças e adolescentes que sejam afastados de suas famílias, do convívio em comunidade e da instrução e educação, sendo a escola um dos principais espaços de socialização no mundo contemporâneo. Por fim, a voluntariedade para o acolhimento em comunidades terapêuticas, que é um dos princípios que orienta esse modelo na sua incorporação à Rede de Atenção Psicossocial, não foi coadunada com os direitos das crianças e dos adolescentes. Aproxima-se, aqui, a uma forma de acolhimento involuntário por determinação de familiares, sem o devido controle do Ministério Público e da Defensoria Pública previsto na lei 10.216 e na Lei de Drogas, desrespeitando-se tanto as determinações legais como o paradigma da proteção integral, insculpido na Constituição Federal de 1988 e na Convenção de Direitos das Crianças da Organização das Nações Unidas. Esse cenário ensejou a Defensoria Pública da União, em conjunto com diversas Defensorias Públicas estaduais, a ajuizar ação civil pública, na Justiça Federal de Pernambuco contra a Resolução CONAD 03/2020, pela ausência de competência regulamentar do CONAD e pela violação ao Estatuto da Criança e do Adolescente, à Lei de Drogas e à lei 10.216/2001. Em decisão professoral, a magistrada concedeu a medida liminar para suspender os efeitos da Resolução até o julgamento do mérito da ação, assim como determinar o desacolhimento de 500 adolescentes que estavam internados em comunidades terapêuticas com financiamento federal antes mesmo da vigência da resolução. Em conjunto com o Ministério Público Federal e Ministérios Públicos Estaduais, as Defensorias apresentaram um plano articulado de acompanhamento e desinstitucionalização desses adolescentes, de modo a garantir seu cuidado em saúde em local adequado e a sua imediata reintegração familiar, em consonância com a legislação em vigor. No entanto, mediante intensa pressão do Governo Federal e de comunidades terapêuticas, a medida liminar foi suspensa pelo Tribunal Regional Federal, com base no antigo argumento de não intervenção do Poder Judiciário em políticas públicas. Em seguida, o Secretário Nacional responsável pelos financiamentos, após essa decisão, anunciou publicamente que já existem mais de 4 mil adolescentes internados em comunidades terapêuticas em todo o Brasil - com seus direitos violados e suas dignidades ameaçadas. Entretanto, cuidar de crianças e adolescentes não pode perpassar organizações e entidades que tenham a restrição de liberdade como seu mote, afastando-os de suas famílias, das escolas e das comunidades. Cuidado e proteção integral se articulam em redes de assistência que dialogam, que respeitam direitos e que possibilitam o cuidado em liberdade, no SUS e na sociedade. *Marcelo Dayrell Vivas é defensor público do Estado em SP e mestre em Direitos Humanos pela USP.
terça-feira, 17 de agosto de 2021

Os filhos da violência - Chega de invisibilidade

A Lei Maria da Penha acaba de completar 15 anos. Foi apenas no ano de 2006, após condenação do Brasil pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA por não dispor de mecanismos suficientes e eficientes para proibir a prática de violência doméstica contra a mulher, que foi sancionada a lei 11.340/2006. Como resposta ao reconhecimento internacional de negligência, omissão e tolerância à violência de gênero, a lei criou importantes mecanismos para prevenir e coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher no país. Observa-se, assim, que a visibilidade dada ao fenômeno é fato bastante recente da nossa história, assim como o repúdio e a não aceitação da violência contra a mulher no Brasil. É verdade que os números nacionais ainda mostram dados alarmantes da violência, agravada na pandemia. A superação da histórica naturalização e tolerância da violência doméstica e familiar ainda configura imenso desafio, mas temos alcançado, mais fortemente nos último cinco anos, resultados consideráveis. A violência contra a mulher hoje está em todas as mídias, há ampla informação circulando e o repúdio social só cresce. Mas combater a violência contra a mulher não basta. Os filhos da violência precisam ser enxergados, os impactos da violência a que são expostos conhecidos, os cuidados terapêuticos providos e o ciclo finalmente quebrado. Números Conforme Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021, apesar do aumento da subnotificação na pandemia, 230.160 mulheres denunciaram um caso de violência doméstica em 26 estados brasileiros, o que significa 630 denúncias por dia (p. 93). No tocante aos chamados às Polícias Militares no 190, foram feitas ao menos 694.131 ligações relativas à violência doméstica, ou seja, a cada minuto de 2020, "1,3 chamados foram de vítimas ou de terceiros pedindo ajuda em função de um episódio de violência doméstica" (p. 94). Enquanto observamos, alarmados, os números da violência, sabedores de que ainda são subnotificados, de rigor voltarmos os olhos a um recorte inédito da pesquisa que demonstra que ao menos 60% das mulheres que foram vítimas de violência doméstica na pandemia tem filhos, como demonstra o gráfico de número 69, na página 224 do anuário1. A título de exemplo, 79,9% das mulheres que sofreram violência doméstica por esfaqueamento ou tiro, 74,3% das que sofreram espancamento ou tentativa de estrangulamento, 70,9% das que sofreram ameaça com arma de fogo ou faca e 65,2% das que sofreram batida, empurrão ou chute, tinham filhos. Estamos falando de um número bastante expressivo de crianças e adolescentes expostos a ambientes de grande tensão e violência doméstica nos domicílios no ano de 20202. E crianças e adolescentes não são testemunhas passivas do barulho, tensão e violência na casa. Crianças e adolescentes expostos à violência doméstica são dominadas por sentimentos tão intensos, que sequer deveriam ser chamados de "testemunhas", terminologia que pressupõe maior passividade. Durante incidentes violentos, as crianças podem tentar arbitrar, proteger a mãe e distrair o agressor, o que as coloca em situação de extremo risco pessoal. Outras ainda se escondem, tapam os ouvidos, cuidam de irmãos mais novos ou procuram ajuda externa. São intensos os sentimentos de medo, angústia, ansiedade, culpa, raiva, tristeza, confusão, frustração, preocupação, constrangimento e esperança de resgate. Dada a situação de risco em que se compreendem, conexões cerebrais positivas são substituídas por negativas, e a resposta fisiológica ao risco para fins de sobrevivência, ativada frequentemente, torna-se tóxica, podendo provocar impactos significativos no processo de aprendizagem e na saúde mental de crianças e adolescentes ao longo de toda a vida. Estudos3 mostram significativas alterações comportamentais em bebês, com problemas de sono, excesso de choro, irritabilidade. Já em fase escolar, os prejuízos alcançam a capacidade de concentração, foco e aprendizagem. Ao longo dos anos, crianças e adolescentes de lares violentos tem maior pré-disposição a desenvolverem enurese noturna, depressão, ideação suicida, uso abusivo de alcool e drogas, gravidez na adolescência e comportamentos ilícitos. Alguns estudos chegam a atestar que até mesmo o desenvolvimento social pode restar prejudicado, com incapacidade de desenvolvimento da empatia, maior tendência  de comportamentos agressivos, sensação de deslocamento, solidão e dificuldade de estabelecer relacionamentos. E os prejuízos ao desenvolvimento integral dos pequenos agravam-se ainda mais quando consideramos o impacto da violência contra a mulher na saúde mental dela. As mulheres que vivem com parceiros abusivos enfrentam enormes desafios em serem as melhores mães que podem ser. Com a saúde mental abalada, mulheres podem tornar-se apáticas e menos responsivas às necessidades dos filhos, adotar válvulas de escape como saídas prolongadas de casa, uso abusivo de drogas e álcool, com prejuízos à sua capacidade protetiva e de provimento de cuidados. Ainda, podem tornar-se agressivas, tornando o lar cada vez mais hostil. Ao serem mantidos isolados de fontes potenciais de apoio, crianças e adolescentes aprendem a ver o mundo como assustador e inseguro.4 Mas não é só. Pesquisas apontam que a exposição à violência doméstica aumenta sensivelmente as chances de perpetuação da violência doméstica e familiar ao longo das gerações. Além de inúmeros estudos internacionais, um estudo brasileiro indica que que o mecanismo de transmissão intergeracional da violência doméstica (TIVD) postula que a violência doméstica será maior em lares onde a mulher, seu parceiro ou ambos viveram em um lar com violência doméstica (PCSVDF Relatório Executivo III - 2016, p. 9). É verdade que cada criança é única. Mesmo as crianças da mesma família são afetadas de maneiras diferentes, dependendo de fatores como idade, sexo, relação com o abusador, papel na família e resiliência. Nem todas caem na armadilha de se tornarem vítimas ou agressores. Mas a correlação está documentada, a indicar a imprescindibilidade de enxergarmos as crianças e quebrarmos o ciclo, como estratégia fundamental de combate à violência doméstica e familiar. O artigo 227 da nossa Constituição Federal estabelece, desde 1988, o direito de crianças e adolescentes de viverem sem violência, impondo às famílias, ao Estado e a toda a sociedade o dever de garantir esse direito, em caráter universal, com absoluta prioridade. E qualquer conduta que exponha a criança ou o adolescente, direta ou indiretamente, a crime violento contra membro de sua família ou de sua rede de apoio, independentemente do ambiente em que cometido, configura violência psicológica, nos exatos termos do artigo 4º, II, "c", da lei 13.431/2017. Nesse contexto, crianças e adolescentes que vivem em ambiente com violência doméstica e familiar são também vítimas diretas da violência, ainda que na modalidade psicológica, portanto, titulares dos direitos específicos à condição que ostentam, conforme expressa previsão legal da lei acima referida. Com a lei 13.431/17 e seu decreto regulamentador nº 9.603/18 deu-se concretude ao direito de crianças e adolescentes de viverem sem violência, inaugurou-se uma nova organização do sistema de garantia de direitos - SGD, com mecanismos de prevenção e de enfrentamento transversal da violência, sempre com foco na acolhida e na não revitimização. Merece destaque ainda o rol de finalidades a nortear toda e qualquer intervenção do SGD, conforme artigo 3º do decreto, e a garantia de efetiva participação de crianças e adolescentes, tanto no âmbito de feitos judicias quanto no âmbito do provimento de cuidados pela rede protetiva, com escuta por profissionais capacitados e aptos a acolher e escutar, de modo a evitar a violência institucional. As crianças expostas à violência doméstica e familiar existem e são muitas. Elas precisam ser vistas e suas necessidades atendidas. As crianças cuidadas no presente serão o futuro desta nação, oxalá sem mais violência. Renata Lúcia Mota Lima de Oliveira Rivitti é promotora de Justiça no MP/SP. Assessora do Centro de Apoio Operacional da Infância e Juventude do MP/SP. Mestre em Direito Internacional, com foco na infância, pela Loyola University Chicago. Coautora do Guia Operacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes do MPSP e Instituto Alana, e idealizadora do Projeto de Implementação desse guia no Estado de SP. __________ 1 Disponível aqui. 2 O primeiro estudo feito para estimar o número de crianças expostas a violência doméstica no mundo foi feito no ano de 2006 pela UNICEF ("Behind Closed Doors"). Na ocasião, reconhecendo o alcance limitado do estudo, dada a falta de dados e sua subnotificação, uma estimativa conservadora apontou para pelo menos 275 milhões de crianças expostas a violência doméstica no mundo na época. Esse mesmo estudo ressaltou a correlação direta entre violência doméstica e a violência de todas as formas contra crianças e adolescentes: 40% das crianças que sofreram violência viviam num lar violento. Ainda, crianças expostas à violência doméstica tinham até 15 vezes mais chances de sofrerem violência física ou sexual do que a médica nacional nos Estados Unidos, o que foi confirmado em estudos em diferentes partes do mundo. 3 "Behind Closed Doors" - UNICEF - 2006. 4 Little Eyes Little Ears, Canadá.
A nossa última coluna foi publicada no exato dia em que o ECA completava 31 anos. Com maestria, o Hugo Gomes Zaher trouxe a experiência exitosa das audiências concentradas no cotidiano das Varas a Infância e Juventude e faz uma alusão metafórica a um relógio que deve ser disparado quando uma ordem de acolhimento é exarada pelo Poder Judiciário. Infelizmente este relógio está quebrado para parte considerável das crianças e adolescentes acolhidas no Brasil, principalmente quando olhamos para o Estado de São Paulo e para as modalidades de acolhimento utilizadas. Do universo de 30 mil crianças e adolescentes acolhidos no Brasil, como apontou Hugo, somente o Estado de São Paulo reúne em torno de 9.000, o que representa aproximadamente 27% do total, destacando-se frente aos demais Estados. Desse novo recorte territorial feito, utilizando-se como base os números apresentados pelo próprio CNJ, seguramente 3.000 estão acolhidas por prazo acima do quanto estabelecido no Artigo 19, § 2º, ECA, que estabelece tempo máximo de acolhimento por até 18 meses, "salvo comprovada necessidade que atenda ao seu superior interesse, devidamente fundamentada pela autoridade judiciária". E não há como se afirmar com exatidão tal número, pois os critérios de indexação do CNJ não são adequados à literalidade do ECA no tocante ao tempo de duração do processo, o que dificulta sobremaneira o dimensionamento do montante de crianças e adolescentes nesta condição e, certamente, o desenvolvimento de políticas públicas adequadas para proteção de seus direitos. Onde estaria o relógio para estas 3.000 crianças e adolescentes? Infelizmente atuações exemplares como a de Hugo Gomes Zaher, Magistrado no Estado da Paraíba, não é a constante das Varas Especializadas pelo Brasil e seu olhar atento à intrínseca vulnerabilidade de crianças e adolescentes também não é refletido nas decisões dos Poderes Judiciário, Legislativo e Executivo, pois não só perante a atuação do Sistema de Justiça que falhamos na aplicação do ECA. O problema vem das escolhas e tomadas de decisão anteriores! As políticas públicas, que deveriam ser fortalecidas em uma atuação articulada entre os Entes Federativos na constante prevenção de ameaças e violações a direitos infanto-juvenis (ECA, Art. 70-A), andam em descompasso com a proteção integral e absoluta definida na nossa Constituição Federal. Vejamos a questão do acolhimento de crianças e adolescentes. O Art. 34, § 1º, do ECA estabelece que "a inclusão da criança ou adolescente em programas de acolhimento familiar terá preferência a seu acolhimento institucional, observado, em qualquer caso, o caráter temporário e excepcional da medida, nos termos desta Lei" (grifou-se). Voltando-se aos números de São Paulo, apesar da preferência expressa quanto à modalidade de acolhimento - a qual não deixa dúvidas pela leitura literal do comando legal -, o CNJ aponta que este Estado possui registro de apenas 83 serviços de acolhimento familiar, enquanto há 776 serviços de acolhimento institucional. Mais de 90% das crianças estão em abrigos, em que pese o ECA determine exatamente o contrário desde 2009, quando elevada à preferencial a política pública de acolhimento familiar! A Cidade de São Paulo, por sua vez, segundo dados do ano de 2019 fornecidos pela Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS), reúne 127 serviços de acolhimento institucional, o que leva à estimativa de que sejam mais de 2.540 crianças acolhidas, representando quase 30% do total. Mostra-se, portanto, que o Estado de São Paulo e sua Capital possuem um alto índice de institucionalização de crianças e adolescentes retirados do seio de sua família natural em decorrência de situação de risco vivenciada. Os efeitos negativos da institucionalização de crianças e adolescentes ao desenvolvimento neurológico destes, principalmente nos abrigamentos de longos períodos, é altamente estudado e apresenta "risco de distúrbios psicológicos, redução da capacidade linguística, dificuldade de criação de vínculos afetivos, crescimento físico atrofiado, entre inúmeros outros sérios problemas, alguns deles irreversíveis", como nos lembra o caso dos órfãos da Romênia. Conforme explicado por Jéssica Almeida Marques Ferreira, em pesquisa do Instituto de Psicologia da USP, a multiplicidade de fatores e eventos estressantes na vida de uma criança institucionalizada tem reflexo em suas dificuldades acadêmicas, assim como a história pregressa, marcada por violências e condições socioeconômicas adversas,  apontam para a prejudicialidade de seu nível intelectual. Onde estão as políticas públicas para garantia de um acolhimento excepcional e, quando necessário, familiar? Voltamos então à atuação do Poder Judiciário e o potencial de mudança neste cenário a partir da judicialização da política, ressalvadas aqui as discussões existentes nos ensinamentos de Neil Komesar sobre as escolhas imperfeitas das Instituições, bem explicada por Arthur Badin em sua pesquisa. Ao tratar sobre a efetividade das decisões judiciais, Carlos Alberto de Salles, Professor da Faculdade de Direito da USP, aponta que esta deverá ser avaliada através de argumentos de qualidade para saber se determinada tutela jurisdicional atingiu efetivamente sua finalidade, com a "recomposição das relações sociais envolvidas e à promoção de valores ou objetivos específicos", os quais podem ser novos desenhos de políticas públicas existentes, considerando as repercussões finais da decisão na própria sociedade (SALLES, Carlos Alberto de. Execução judicial em matéria ambiental. São Paulo: RT, 1998. p. 40). Ainda que se admita que os direitos sociais não possam ser gozados por todos os membros da sociedade de forma plena em razão da inviabilidade econômico e financeira e sobrecarga do Estado - famoso "cobertor curto" -, os direitos sociais de crianças e adolescentes devem ser rigorosamente garantidos pelo Poder Público em sua integralidade, notadamente pelo caráter prioritário conferido a estes como grupo vulnerável (CF, Art. 227). Assim, a partir do momento em que refletimos, enquanto sociedade e atores do Sistema de Justiça, sobre o exato comando do ECA quanto à excepcionalidade do acolhimento e, quando necessário para a proteção eficaz dos direitos infanto-juvenis, pela preferência do acolhimento familiar, as ordens de acolhimento, a garantia da convivência familiar e a importância das audiências concentradas, destacadas por Hugo Zaher no texto referenciado, passam a ocupar importante papel na proteção absoluta dos direitos de crianças e adolescentes presentes na CF e no ECA e de verdadeira transformação em prol do desenvolvimento de políticas públicas neste cenário. Há 12 anos aguardamos políticas públicas preferenciais para o acolhimento familiar e não institucional: o que mais é necessário para que crianças e adolescentes acolhidos passem a ter seus direitos respeitados?
O Estatuto da Criança e do Adolescente comemora 31 anos na data de hoje, e uma experiência que tem se afigurado bastante exitosa para a proteção integral de crianças e adolescentes em situação de acolhimento familiar e institucional é a realização das intituladas 'audiências concentradas'.  No Brasil, estima-se que aproximadamente 30.000 crianças e adolescentes estão inseridos em programas de acolhimento familiar e institucional, medida de proteção prevista no art. 101, VIII e IX, do Estatuto e que devem ser aplicadas de forma excepcional e temporária.  O art. 19, §1°, do Estatuto aponta que a situação de crianças e adolescentes acolhidos odeve ser reavaliada no máximo a cada três meses pela autoridade judiciária, que deverá decidir de forma fundamentada, com base em relatório elaborado pela equipe interprofissional ou multidisciplinar, a respeito da possibilidade de reintegração familiar ou colocação em família substituta.  Durante o Curso de Formação Inicial para a Magistratura, a amiga, colega e professora Maria dos Remédios Pordeus Pedrosa disse a mim e a outros colegas de concurso que tomaram posse há exatos 9 anos, que a partir do momento no qual uma ordem de acolhimento é exarada pelo/a magistrado/a, é disparado um relógio, como numa contagem regressiva, para o desligamento do/a acolhido/a do programa de acolhimento familiar e institucional.  Nunca me esqueci disso e essa imagem de certa forma representa a urgência de que à criança e ao adolescente seja garantido o direito à convivência familiar, previsto no art. 227 da Constituição Federal, evitando-se que a permanência em programa de acolhimento institucional se prolongue além de dezoito meses (art. 19, §2°, do Estatuto).  Na linha da Doutrina da Proteção Integral encampada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, é imprescindível para a garantia da convivência familiar e comunitária a articulação e a integração operacional dos órgãos que figuram no Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente, conforme art. 88, VI, do Estatuto e a resolução 113/06 do CONANDA. Esse diálogo intersetorial pode hoje ser erigido a um direito da criança e adolescente, na perspectiva do art. 14 da lei 13.431/17 e do art. 208, XI, do Estatuto.  Ademais, para que o núcleo essencial desse direito fundamental seja devidamente atendido, é importante garantir envolver as crianças e adolescentes nessa decisão, à luz do direito à participação previsto no art. 12 da Convenção sobre o Direito das Crianças, em cujo âmbito de proteção também são incluídas as crianças na primeira infância, observada a especificidade da idade e a interlocução por meio de profissionais qualificados em processos de escuta, conforme o Marco Legal da Primeira Infância.  Impende destacar que também a família deve participar da tomada da decisão, até mesmo porque é garantidora fundante dos direitos desse grupo populacional, na esteira do art. 227 da Constituição e, se afastada do convívio da criança e do adolescente a respeito do qual exerce a responsabilidade, tem acesso ao contraditório e à ampla defesa (art. 101, §2°, do Estatuto). No X FONAJUP realizado em 16 de junho passado, foi aprovado o Enunciado 25 que assim dispõe: Nos processos de medida de proteção ou similar, de caráter litigioso (art.101, incs. VII,VIII e IX, do ECA), os detentores do poder familiar e outros responsáveis legais serão obrigatoriamente chamados a integrar a ação.  Com efeito, as audiências concentradas qualificam a reavaliação trimestral que deve ser realizada pela autoridade judiciária, reunindo para tanto os integrantes da Rede de Proteção, as crianças e adolescentes acolhidos e também a família, contando com a construção coletiva da decisão que propugne encaminhamentos para o desligamento do programa de acolhimento familiar ou institucional, seja por meio da reintegração à família de origem, seja na colocação em família substituta.  Esses eventos são importantes também para deliberação acerca de necessidades e vulnerabilidades específicas que podem ser atendidas em prol dos/as acolhidos/as e da própria família de origem, como a inserção em programas de apadrinhamento (art. 19-B do Estatuto), programas de 'guarda subsidiada', mecanismos de 'busca ativa' para adoção, dentre outras articulações. No tocante a intervenção possível nos integrantes do núcleo familiar, identificam-se deliberações voltadas à inserção em programas de transferência de renda, serviços de fortalecimento de vínculos, acompanhamentos e tratamentos para as questões de saúde mental e dependência química etc.  O Provimento 118, de 29 de junho de 2021, do Conselho Nacional de Justiça, atualmente é o ato normativo que regulamenta as audiências concentradas protetivas e que, por sua vez, revogou o Provimento 32, de 24 de junho de 2013, que dispunha até então a respeito desse evento.  Segundo o Provimento 118/21, a audiência concentrada deve ser realizada sempre que possível nas dependências das entidades e serviços de acolhimento, em periodicidade semestral, preferencialmente nos meses de "abril e outubro" ou "maio e novembro". Nos trimestres em que tais eventos não ocorrem, a reavaliação é realizada pelo/a próprio/a magistrado/a, à luz dos documentos técnicos das equipes multidisciplinares do juízo e dos serviços que atuam junto às famílias e instituições de acolhimento.  Na Vara da Infância e Juventude de Campina Grande, juntamente com o amigo e colega Perilo Rodrigues de Lucena, realizamos trimestralmente as audiências concentradas, o que viabiliza um acompanhamento mais assíduo das situações de acolhimento institucional no Município, bem assim o monitoramento dos encaminhamentos realizados em momentos anteriores.  Neste período de pandemia as concentradas vêm sendo realizadas excepcionalmente por videoconferência, permitindo a reavaliação tempestiva das medidas protetivas aplicadas, o que está expressamente previsto no Provimento em referência.  Observa-se que a autoridade judiciária responsável pela realização da audiência concentrada é aquela que aplica a medida de proteção, mesmo que a criança ou o adolescente venha a ser acolhida em outra Comarca, a qual fica encarregada apenas da fiscalização da execução da medida aplicada.  Por ocasião das audiências concentradas, tal normativo recomenda que seja realizada fiscalização presencial, pelo/a magistrado/a, das entidades e serviços de acolhimento, na linha do art. 95 do Estatuto, sendo imperioso ter em vista os parâmetros das Orientações Técnicas dos Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes de 2009, do Ministério do Desenvolvimento Social, para aferição de aspectos físicos, recursos humanos, infraestrutura dentre outros.  Outro aspecto importante tratado pelo Provimento é a fiscalização daqueles/as que estão há mais de 6 meses acolhidos/as sem processo de destituição do poder familiar dos pais biológicos, abrindo-se vista ao Ministério Público para se posicionar a respeito, na esteira do art. 101, §10, do Estatuto, podendo os autos serem remetidos ao Procurador-Geral de Justiça caso se identifique uma indefinição da situação, tomando-se por analogia o art. 28 do Código de Processo Penal.  As audiências concentradas também vêm sendo realizadas em outros momentos processuais de acordo com experiências de colegas no país, antes de eventual determinação de acolhimento institucional ou familiar, à luz de medida judicial movida pelo Ministério Público, ou logo após a concretização da medida protetiva, sobretudo quando realizada de forma emergencial pelo Conselho Tutelar, conforme art. 93 do Estatuto, garantindo-se a intervenção precoce e a consideração da excepcionalidade do acolhimento.  Por fim, importante destacar dois aspectos que podem tornar mais efetivos os resultados das audiências concentradas.  Primeiramente, garantir que seja atribuída maior relevância em aspectos de produtividade na realização de audiências concentradas, tendo o Fórum Nacional da Infância e Juventude do Conselho Nacional de Justiça (FONINJ/CNJ), a partir da provocação do FONAJUP e da ABRAMINJ, aprovado parecer para encaminhar essa demanda para análise no procedimento que tramita no âmbito do CNJ, destinado à atualização da Resolução 106/10 do CNJ.  Em segundo lugar, o atendimento de toda unidade judiciária com competência da infância e juventude com equipe interprofissional (profissionais da Psicologia, Assistência Social e Pedagogia) e quantitativo suficiente de profissionais, observando-se o art. 1°, III, do Provimento 36/14 e o art. 2°, IV, da Recomendação 97/21, ambos do Conselho Nacional de Justiça, uma vez que a intervenção desses profissionais é imprescindível para embasar e qualificar a decisão judicial em face das possibilidades fáticas e jurídicas voltadas ao desacolhimento e à prevenção do afastamento do seio familiar.  Assim, observa-se nesses 31 anos do Estatuto que a experiência das audiências concentradas potencializa um caráter acessível, sensível e amigável do Sistema de Justiça a crianças e adolescentes em situação de acolhimento familiar e institucional, proporcionando em seu favor a mobilização da Rede de Proteção para identificação de soluções e meios para a garantia do direito fundamental à convivência familiar e comunitária.
O último texto publicado nessa coluna, de autoria de Angélica Ramos de Frias Sigollo, analisou o dever de pais e/ou mães de vacinarem seus filhos e filhas. A autora usou o recente debate sobre vacinação para Covid-19 como ponto de partida da discussão e explicou que a vacinação é sim obrigatória porque as liberdades individuais encontram limites no respeito às liberdades de outras pessoas, mas, apesar da obrigatoriedade, não se está diante de caso de vacinação forçada mediante o uso, por exemplo, de busca e apreensão de crianças e adolescentes para a aplicação de vacinas. Angélica também chamou a atenção para a possibilidade de aplicação de medidas de proteção contra os pais e/ou mães como multa, restrição ao exercício de atividades, impedimento de frequentar lugares, proibição de matrícula em escolas, dentre outras previstas em lei se houver situação de risco, pois prevalece o interesse de crianças e adolescentes e a necessidade de se observar a sua proteção integral, na forma do art. 227 da Constituição da República. O mesmo tema, vacinação, dá origem a um outro debate: é obrigatório o consentimento parental para a vacinação de crianças e adolescentes? Ou, ainda, crianças e adolescentes têm direito próprio à vacinação, ainda que seus pais e/ou mães se oponham? Em relação à Covid-19 esse debate ainda não surgiu porque a quantidade de vacinas disponíveis mundialmente ainda não atende a todas as pessoas, mas com a autorização da ANVISA para aplicação da vacina Pfizer a partir dos 12 anos de idade e a iminência da decisão europeia para autorizar ou não a Moderna entre os 12 e 17 anos de idade esse tema poderá ser levantado. O ponto central para o debate sobre a escolha de adolescentes e crianças em temas de saúde está na proteção integral. Esse princípio foi incluído no art. 227 da Constituição da República e sua conceituação costuma ser feita referindo-se à condição da criança ou do adolescente como pessoa em desenvolvimento e titular de direitos (sujeito de direitos) a serem assegurados pela família, pela sociedade e pelo Estado. Em complemento a ele, o princípio do melhor interesse determina que as decisões que envolvam interesses de crianças e adolescentes devem ser orientados pelos seus melhores interesses. Esse conceito, repetido à exaustão na doutrina e jurisprudência brasileiras, não consegue, contudo, esclarecer como ocorre a efetivação desses princípios, verificando-se que a proteção e o melhor interesse são definidos ou determinados pela visão da pessoa adulta que irá tomar a decisão. No caso de pais e/ou mães, porque se pressupõem que eles e/ou elas sabem o que melhor para seus filhos e filhas, ou, no caso do Poder Judiciário ou de órgãos da rede de assistência infantojuvenil, porque estão mais capacitados para essa finalidade. Infelizmente no país ainda é baixa a compreensão e aplicação do art. 12 da Convenção sobre Direitos da Criança, que exige que os Estados Partes criem instrumentos que assegurem "à criança que é capaz de formular seus próprios pontos de vista o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados a ela, e tais opiniões devem ser consideradas, em função da idade e da maturidade da criança". A escuta ou oitiva a que se refere o art. 12 da Convenção e que se relaciona com o art. 227 da Constituição e com o art. 3o do ECA não significa uma oitiva desorganizada nem desimportante. Ela é um procedimento de incentiva o acolhimento da criança e do adolescente e a sua inclusão em processos decisórios sobre si, em que as pessoas adultas têm o dever de ouvir e de entender os medos, ansiedades e escolhas manifestadas pela criança ou adolescente e tomarem a decisão levando essas informações em consideração. Ao lado do direito de escuta da criança e do adolescente, há também que desmistificar a extensão da autoridade parental, que não torna corpos de crianças como propriedade de seus pais e/ou mães. Veja-se: a transformação do pátrio poder em poder familiar e, em seguida, autoridade parental, não fez com se desenvolvesse uma teoria crítica sobre a extensão do poder-dever de pais. Apesar de nessa transformação ter ocorrido uma funcionalização desse encargo para atender os interesses da criança, a doutrina, tanto em direito civil como em infância, não perceberem que crianças não podem ser consideradas nem posse nem propriedade dos pais e/ou mães, de modo que a possibilidade jurídica de interferência de pais e/ou mães sobre o corpo, a autonomia existencial e, também, sobre aspectos de saúde dos filhos e filhas é, hoje, limitada. Dito de outra forma, a autoridade parental permaneceu vinculada ao papel tutelar e protetivo, enquanto o paradigma constitucional passou a reconhecer que crianças e adolescentes são, simultaneamente, titulares de direito e destinatários de proteção. O debate entre o exercício de liberdades civis por adolescente e a autoridade parental já foi objeto de debate na Inglaterra e País de Gales e criou um importante precedente que pode nos servir para responder à proposta desse artigo. O caso foi julgado em 1986 e é conhecido como Gillick vs West Norfolk and Wisbech Area Health Authority. No caso, Victoria Gillick ajuizou ação questionando orientação do departamento de saúde que autorizava a prescrição de métodos contraceptivos para pessoas com menos de 16 anos de idade sem a autorização dos pais. O recurso foi decidido pela House of Lords que tomou uma decisão a partir da capacidade da criança ou adolescente fornecer consentimento, o que pressupõe a sua escuta. De acordo com a decisão, o consentimento da criança ou do adolescente irá prevalecer sobre a decisão dos pais e/ou mães quando se verificar que (a) a criança ou adolescente apresente maturidade e capacidade mental; (b) entenda as vantagens, desvantagens e potencial de impactos no longo prazo; (c) entenda os riscos, implicações e consequências que podem surgir com a decisão; (d) a forma como a criança ou adolescente entende as informações e aconselhamento oferecidos, bem como as alternativas existentes; (e) a sua capacidade de explicar racionalmente sua decisão. O Parecer 25/2013 do CFM orienta-se nesse sentido, reconhecendo o direito ao atendimento de adolescentes entre 12 e 18 anos de idade, aqui chamados de "adolescentes maduros",assim como o Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem, ambos reconhecendo a prevalência da decisão do adolescente. Como conclusão, retorno à pergunta inicial já para respondê-la: sim, crianças e adolescentes têm o direito de se vacinarem, se essa for a sua decisão e ainda que não seja o desejo de seus pais e/ou mães, e quando essa decisão for possível de ser realizada pelas diretrizes das autoridades em vigilância sanitária. Cuida-se de efetivação da proteção integral e do direito de escuta, temas que estão exigindo uma reformulação teórica para que se reconheça a real posição jurídica de adolescentes enquanto sujeitos de direito.
Com o avanço da vacinação contra a covid-19 no mundo, alguns países já iniciaram a imunização no público infanto-juvenil, com destaque aos Estados Unidos, que já vacinaram mais de 2,5 milhões de pessoas entre 12 e 15 anos. Surpreende a notícia vinda do Oriente, de que as autoridades chinesas aprovaram o uso emergencial da Coronavac - vacina contra a Covid-19 - em crianças menores a partir de 3 anos de idade, eis que os ensaios revelaram que a aplicação nessa faixa etária é tão segura e eficiente quanto nos adultos. Assim, a vacinação de menores de 18 anos passou a ser assunto recorrente entre autoridades e farmacêuticas ao redor do mundo, especialmente nos países em que a maior parte da população adulta já está imunizada. A proposta é ampliar e finalizar os testes e, assim, efetivamente iniciar a imunização. No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária - Anvisa autorizou o uso da vacina da Pfizer contra a Covid-19 para adolescentes de 12 anos a 15 anos no último dia 11, sendo que a farmacêutica afirma estar testando o imunizante em crianças ainda mais jovens, entre 5 e 11 anos. Diante desse cenário, invariavelmente, em breve surgirão questionamentos como o proposto nesse texto: Os pais são obrigados a vacinar seus filhos menores de idade contra a covid-19? Embora o debate possa parecer novo, a verdade é que a questão já foi apreciada pelo Supremo Tribunal Federal - STF numa perspectiva mais ampla, restringindo o espaço para discussões. Na decisão proferida pelo Plenário, no julgamento conjunto das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 6586 e 6587 (que tratam unicamente de vacinação contra a Covid-19) e do Recurso Extraordinário com Agravo 1267879 (em que se discute o direito à recusa à imunização de filhos por convicções filosóficas ou religiosas) o STF apreciou os temas e definiu as seguintes teses: Tese de repercussão geral fixada no ARE 1267879: "É constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, tenha sido incluída no plano nacional de imunizações; ou tenha sua aplicação obrigatória decretada em lei; ou seja objeto de determinação da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios com base em consenso médico-científico. Em tais casos, não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar". Tese das ADIs 6586 e 6587: "(i) A vacinação compulsória não significa vacinação forçada, facultada a recusa do usuário, podendo, contudo, ser implementada por meio de medidas indiretas, as quais compreendem, dentre outras, a restrição ao exercício de certas atividades ou à frequência de determinados lugares, desde que previstas em lei, ou dela decorrentes, e tenham como base evidências científicas e análises estratégicas pertinentes, venham acompanhadas de ampla informação sobre a eficácia, segurança e contraindicações dos imunizantes, respeitem a dignidade humana e os direitos fundamentais das pessoas; atendam aos critérios de razoabilidade e proporcionalidade; e sejam as vacinas distribuídas universal e gratuitamente"; e "(ii) Tais medidas, com as limitações expostas, podem ser implementadas tanto pela União como pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios, respeitadas as respectivas esferas de competência". Como se vê, o Plenário decidiu, de um lado, sobre o dever de os pais vacinarem seus filhos em relação a qualquer doença (como sarampo, poliomielite, difteria, caxumba, tipos de meningite, coqueluche entre outras doenças passíveis de imunização). E, de outro lado, sobre a possibilidade de o Estado exigir dos cidadãos que se submetam, compulsoriamente, à vacinação contra a covid-19 prevista na lei 13.979/2020. Dito de outro modo, e a partir de uma leitura conjunta e sistemática das teses, os pais são sim obrigados a vacinar seus filhos menores de idade contra a Covid-19 (assim como o são para qualquer outra doença) se (i) o imunizante já estiver devidamente registrado pela ANVISA, (ii) estiver incluído no Plano Nacional de Imunização - PNI e (iii) tenha sua obrigatoriedade incluída em lei ou sua aplicação determinada pela autoridade competente. Antes que algum pai ou mãe questione se pode ser constrangido a submeter seus filhos à vacinação, destaco que a obrigatoriedade mencionada pelo Supremo não importa em vacinação forçada, ou seja, não haverá busca e apreensão das crianças e adolescentes para tal fim. Todavia, se no caso concreto for constatada situação de risco (Art 98 do ECA) capaz de justificar intervenção da rede protetiva, especialmente pelo descumprimento dos deveres próprios do Poder Familiar (artigos 22 do ECA e 1634 do Código Civil) será possível, além da aplicação de medidas protetivas (artigos 101 e 129 ECA), a imposição de sanções (medidas indiretas) como multa, restrição ao exercício de atividades, impedimento de frequentar lugares, proibição de matrícula em escolas, dentre outras previstas em lei ou que sejam dela decorrentes. No referido julgado, os ministros concordaram que a liberdade de crença filosófica e religiosa dos pais não pode ser imposta às crianças, pois o Poder Familiar não existe como direito ilimitado para dirigir a vida dos filhos, ao revés, justifica-se para protegê-los contra riscos decorrentes da vulnerabilidade em que se encontram durante a infância e a adolescência. Neste particular, existe dever expresso imposto aos pais no artigo 14, §1º do ECA. Da mesma forma, não olvidaram que, embora a Constituição Federal proteja o direito de cada cidadão manter suas convicções filosóficas, religiosas, morais e existenciais, os direitos da sociedade prevalecem sobre os direitos individuais, numa verdadeira compreensão transindividual dos direitos. Por isso, aliás, o Estado pode/deve, em situações excepcionais, proteger as pessoas, mesmo contra sua vontade - como, por exemplo, obrigar à vacinação - sob pena de sofrer medidas restritivas previstas em lei.  O Ministro Barroso deu destaque a esse viés em seu voto afirmando que "não são legítimas as escolhas individuais que atentem contra os direitos de terceiros", valorizando-se a vacinação em massa a fim de atingir a chamada imunidade de rebanho. Nesse ponto, o Ministro Alexandre de Moraes arrematou "a imunidade coletiva é um bem público coletivo". Interessante verificar que os ministros da Corte promoveram uma análise ponderada entre fundamentos sustentados nas 3 ações judiciais e os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal, orientando que eventuais restrições às liberdades individuais decorrentes da aplicação das medidas legais aos que recusarem a vacina são imposições do próprio complexo constitucional de direitos, que exige medidas efetivas para a proteção à saúde e à vida de toda a coletividade. Neste ponto, a síntese mostra-se bem representada em trecho do voto da Ministra Rosa Weber ao afirmar que "Diante de uma grave e real ameaça à vida do povo, não há outro caminho a ser trilhado, à luz da Constituição, senão aquele que assegura o emprego dos meios necessários, adequados e proporcionais para a preservação da vida humana". Como promotora de Justiça com atuação na proteção dos direitos da criança e do adolescente, professora da disciplina e mãe, acompanho os fundamentos dos ministros e confio na ciência. Assusta-me que a relutância/recusa à vacinação seja a 8ª maior ameaça à saúde global segundo a Organização Mundial da Saúde - OMS, notadamente em um contexto pandêmico como o que vivemos atualmente. Lembro que a imunização através de vacinas é uma das medidas mais efetivas na prevenção de doenças infectocontagiosas e os pais devem estar atentos a isso, zelando pelo direito de saúde de seus filhos. E, caso você ainda tenha alguma dúvida ou receio, procure informações apenas com profissionais de saúde, sem deixar que posições políticas e enviesadas impactem em sua decisão, especialmente se ela coloca em risco a manutenção da vida de seus filhos.
Em comemoração ao Dia Nacional da Adoção (25/5), o texto de hoje na nossa coluna Migalhas Infância e Juventude vem como um informativo aos filhos por adoção que buscam saber sua origem biológica e às famílias, que já adotaram ou que pretendem adotar, como forma de preparação a um momento importantíssimo na relação de confiança da criança e os pais adotivos: a verdade sobre suas origens. De início, apontamos que cada família, criança, adolescente, pai e mãe, ou seja, cada pessoa em sua singularidade, possui uma história diferente dentro do espectro da adoção e é preciso que haja respeito acima de tudo. Respeito em suas múltiplas facetas, tal como à individualidade de cada ser humano, aos direitos das crianças e adolescentes, das famílias biológicas e das famílias por adoção, mas principalmente respeito à verdade, fundamental em qualquer relação de parentesco, inclusive. O direito à identidade biológica vem sendo admitido em nosso país como sendo um direito fundamental da pessoa, justamente por compor os chamados direitos de personalidade. É, portanto, um direito indisponível garantido a todo e qualquer indivíduo, especialmente garantido às crianças a partir da leitura do Artigo 30 da Convenção Relativa à Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria de Adoção Internacional, concluída em Haia, em 29 de maio de 1993. (...) Caracteriza violação ao princípio da dignidade da pessoa humana cercear o direito de conhecimento da origem genética, respeitando-se, por conseguinte, a necessidade psicológica de se conhecer a verdade biológica. (...) (STJ, REsp n. 833.712/RS, Rel. Des. Nancy Andrighi, j. 17/05/2007). Dentro da adoção, é preciso entender outra premissa para que tal direito seja analisado de forma pormenorizada, que é a ligação jurídica e social do filho com os pais adotivos. Atualmente, entendemos que o estado de filiação não tem ligação com a verdade genética, relativizando-se o papel fundador da origem biológica, mas sim tendo origem socioafetiva a partir da convivência familiar (Maria Berenice Dias, Manual de Direito das Famílias, 14ª ed. Jus Podivm, p. 219). Dentro deste recorte, além da filiação advinda da adoção, a paternidade e a maternidade socioafetivas são também reconhecidas em nosso país, passando-se a diferenciar as figuras de genitor e genitora das verdadeiras figuras de pai e mãe, vinculados pelo AMOR e pelo AFETO. Assim, ser "filho de sangue" nada significa. Ou melhor, é uma expressão que pode significar nada além do caráter biológico que ela nos induz, porque filho mesmo é aquele amado dentro de um convívio familiar afetuoso. Quando falamos de filhos por adoção, embora o vínculo formado a partir de um processo seguro e lícito seja irrevogável, mesmo no caso de falecimento dos pais por adoção, por exemplo, à criança e ao adolescente é reservado o direito à verdade biológica, sendo-lhe garantida a informação sobre suas origens (ECA, Art. 48). Aí sim, portanto, uma verdade "sanguínea", de certa forma diferente dos vínculos de filiação criados de forma socioafetiva. O filho por adoção tem o direito de requerer informações no Fórum sobre suas origens ou a partir dos 18 anos ou antes, caso haja acompanhamento psicológico e jurídico e, dentro do afeto e do amor, cabe aos pais por adoção garantirem o direito à verdade biológica da criança, em qualquer momento de sua vida, quando esta estiver preparada e buscar essa informação. Não se tem como estimar o momento certo para esta revelação, mas ele certamente emite sinais de fácil percepção, de modo que é preciso estar atento, informado e preparado para que o filho por adoção receba a informação que busca de forma clara, objetiva e transparente, respeitando-se o desenvolvimento intelectual e emocional da criança, a partir de uma convivência familiar respeitosa e afetiva. Assim como para os pais podemos falar em "dever" de informação sobre as origens biológicas do filho por adoção, o mesmo incide para o Estado, no sentido de que devem ser preservados os autos da ação de acolhimento e adoção para caso a criança ou o adolescente queiram averiguar e entender sua origem biológica, a qualquer momento, sendo um direito imprescritível. No âmbito dessa discussão, temos que ter em mente sempre o melhor e superior interesse da criança e do adolescente como norte das relações de parentalidade, sendo que a ação declaratória de ascendência genética não gerará efeitos registrais automaticamente, tendo em vista que a adoção é um instituto irrevogável e irretratável. Ela, portanto, busca apenas aclarar o direito à verdade biológica da pessoa, sem que haja qualquer afronta, mácula ou enfraquecimento da filiação garantida pela adoção. Dessa forma, necessário esclarecer que a busca da verdade biológica por parte do filho por adoção não pressupõe a multiparentalidade entre pais adotivos e biológicos, pois a adoção é medida excepcional que enseja a ruptura dos vínculos da criança ou do adolescente com a família biológica. Assim, deve ser garantida uma adoção segura e para sempre, sendo possível sua revogabilidade apenas em situações muito excepcionais em atenção aos direitos e interesses da criança, como, por exemplo, a perda do vínculo afetivo no caso de adoção unilateral (quando um cônjuge adota o filho do outro). Ante o exposto, uma relação entre pais e filhos por adoção deve necessariamente ser guiada pela transparência, que é uma forma potente de demonstrar amor, cabendo aos pais o dever de contar a verdade sobre as origens do filho e ao Estado garantir os meios para tanto. Um vínculo construído com amor não se desfaz pela simples revelação, muito pelo contrário, se fortalece e se torna inquebrável pela segurança que traz a todos os envolvidos.
Neste mês de maio, no qual comemoramos o Dia da Adoção (25/5), a temática atinente à Entrega Voluntária de recém-nascido para adoção se faz imprescindível para a coluna. A entrega legal deve ser analisada como um direito matizado pela proteção integral, absoluta e prioritária da criança, notadamente no tocante à efetivação de seu direito fundamental de convivência familiar. O art. 227 da Constituição Federal Brasileira de 1988 definiu como dever da família, do Estado e da sociedade assegurar, com absoluta prioridade, a convivência familiar da criança e do adolescente, núcleo normativo esse reproduzido pelo art. 4° da lei 8.609/90 - Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Por sua vez, o art. 5° da lei 13.250/2016 - Marco Legal da Primeira Infância (MLPI), prevê a necessidade de o Poder Público estabelecer políticas públicas para a faixa do 0 aos 6 anos de idade, tendo por um dos postulados prioritários o direito à convivência familiar, no atendimento com absoluta prioridade ao melhor interesse da criança. Estudos ligados à neurociência apontam que dos três últimos meses da gravidez aos primeiros anos de vida há janelas de oportunidades em que as conexões neurais são muito mais intensas do que em qualquer outra fase da vida do ser humano, de maneira que as experiências positivas vividas pela criança na primeira infância têm impactos que perduram por toda a sua trajetória. Tal adução prende-se ao fato de que as respostas aos estímulos, interações e incentivos são mais rápidos, haja vista a sensibilidade decorrente da plasticidade cerebral existente nesse período em que a formação neurológica é mais intensa. Considerando estes aspectos da formação humana, compreende-se que no momento em que a mãe, ainda gestante ou após o parto, considera a possibilidade de entregar o filho para adoção, demonstra a preocupação com o bem-estar da criança, em detrimento de atitudes como abandoná-la em qualquer lugar, sem avaliar as consequências desse abandono, que pode vir a por em risco a vida ou a integridade do bebê. Neste sentido, entende-se que uma postura omissa ou inadequada ao atendimento da mãe biológica, que manifeste o interesse na entrega voluntária, pode potencializar o estresse tóxico desde a gravidez, em virtude de posicionamentos subjetivistas que busquem questionar e dissuadir inadvertida e sistematicamente sua decisão, ou mesmo dar informações equivocadas sobre o destino da criança entregue para adoção, com consequências danosas e graves tanto para a mãe, quanto para a criança, como gerar sentimento de culpa, abandono e demais inseguranças. Além disso, a conduta de profissional da Saúde que intente dissuadir a mãe de sua decisão constitui infração administrativa, passível de aplicação de multa, nos termos do art. 258-B do Estatuto da Criança e do Adolescente. Para que seja garantida a proteção integral da criança, nas situações de entrega voluntária e protegida, um dos principais desafios é a atuação adequada e qualificada dos demais profissionais da Rede de Proteção dos Direitos de Crianças e Adolescentes, no sentido de prestarem à gestante/mãe o acolhimento à sua decisão, sem juízo de valor, para que seja orientada e apoiada, de forma sensível e humanizada na sua escolha. Por meio da intervenção especializada destes profissionais, a mulher poderá encontrar auxílio material, especialmente nas situações de privação de alimentos, orientação para um planejamento familiar responsável e seguro, prevenção a agravos à saúde, como o tratamento para o uso abusivo de substâncias psicoativas, assim como para outras demandas. A decisão de entrega voluntária geralmente é baseada na ausência de condições materiais/estruturais ou subjetivas/emocionais da mãe em garantir ao filho a proteção integral e o acesso aos seus direitos fundamentais. Além destes motivos, pode se dar pela ausência do desejo de maternar. Portanto, julgamentos açodados não somente no âmbito familiar, mas também por meio de profissionais do Sistema de Garantia de Direitos (SGD) não capacitados para efetivar o fluxo de encaminhamento adequado, fragilizam a mulher e vulneram seu direito a decidir sobre sua própria vida e a do seu filho. Ademais, a manifestação de crenças limitantes, calcadas no "mito do amor materno", podem estigmatizar e prejudicar o atendimento às gestantes que se encontram em situação de drogadição, desnutrição, carência de pré-natal ou em outras condições de vulnerabilidade, e comprometer todo o desenvolvimento da criança, notadamente no tocante às suas funções executivas (controle inibitório, flexibilidade cognitiva e memória de trabalho). Ainda, não é raro os veículos de imprensa noticiarem fatos em que genitoras abandonam recém-nascidos em situação de risco, comprometendo a própria vida da criança ou, ainda, entregam a terceiros de forma irregular, podendo tal conduta incorrer na lei penal, como na hipótese dos crimes previstos no art. 242 do Código Penal e 238 do ECA. Garantir o devido andamento da entrega legal protege as crianças de serem expostas a riscos como a colocação em famílias não habilitadas para adoção, que podem submetê-las a diversas vulnerabilidades, como a exploração de trabalho infantil ou sexual. A entrega legal também previne o tráfico de crianças, para diversos fins, pois garante que elas sejam inseridas em famílias que passaram pelo processo legal de habilitação no Sistema Nacional de Adoção (SNA), as quais foram avaliadas e demonstraram capacidade de promover o desenvolvimento integral do adotando. Com efeito, segundo o art. 13, §1° e art. 19-A, ambos do ECA, a entrega protegida se operacionaliza com o encaminhamento da gestante, ou mãe biológica do recém-nascido, à Vara da Infância e Juventude de onde reside, pelo SGD local, especialmente pelos profissionais das áreas de Saúde e Assistência Social, dentre outras portas de entrada. Entrementes, será acolhida e orientada pela equipe multiprofissional do Juízo sobre as implicações dessa decisão e os cuidados com a gestação, em sendo o caso, podendo encaminhá-la, caso haja expressa concordância, à Rede pública de Saúde e Assistência Social para atendimento especializado (art. 19-A, §1°, do ECA). Também serão realizados esclarecimentos e orientações sobre a irrevogabilidade da medida (art. 166, §2°, do ECA). A equipe, por sua vez, apresentará relatório à autoridade judicial, considerando inclusive os eventuais efeitos do estado gestacional e puerperal. Após estes procedimentos, realiza-se audiência para manifestação da decisão da mãe, que pode solicitar o sigilo a respeito da identificação do genitor, tendo ainda um prazo de 10 dias para repensar a decisão de entrega, podendo desistir e permanecer com o filho, sendo acompanhada pela equipe multiprofissional por um período de 180 dias. A Entrega Legal garante à mulher o direito de refletir sobre sua decisão, com o devido apoio de profissionais especializados, protege o melhor interesse da criança, prevenindo qualquer forma de negligência e garante à família, que poderá recebê-la pelo instituto da adoção, a segurança jurídica necessária no reconhecimento legal e irreversível dessa filiação. *Hugo Gomes Zaher é juiz de Direito na Paraíba. Mestre em Direito. Presidente do Fórum Nacional da Justiça Protetiva. **Viviane Rodrigues Ferreira é assistente social da Vara da Infância e Juventude da Comarca de Campina Grande. Especialista em Assistência SociojurÍdica e Segurança Pública (UniFacex/RN). Mestre em Ciências Sociais.
Em 08 de março de 2021, a UNICEF emitiu informação de que 10 milhões a mais de casamentos infantis - entenda-se por casamento não apenas as celebrações oficiais como as uniões de fato, não formalizadas - podem ocorrer antes do final da década, ameaçando anos de progresso na redução desse fenômeno. A situação no Brasil já era grave e colocava o país em 4º lugar no mundo dentre os países com maior quantidade de casamentos infantis: dados de Instituto Promundo, Plan Internacional Brasil e Universidade Federal do Pará (UFPA) o Brasil contavam 1,3 milhão de mulheres até 18 anos de idade casadas ou em uniões estáveis (informais) em 2015, sendo 877 mil com até 15 anos de idade e em relatório publicado em junho de 2020, o Fundo de População das Nações Unidas (UFNPA) apontava que cerca de 1 em cada 4 mulheres se casa ou constitui união estável antes dos 18 anos de idade no Brasil, numa taxa percentual de 26% de conjugalidade quando a média mundial é de (ainda altos) 20%. As pesquisas elencam cinco causas principais do casamento infantil: (1) o desejo de um membro da família, em função de uma gravidez indesejada, de proteger a reputação da menina ou da família e para assegurar a responsabilidade do homem de "assumir" ou cuidar da menina e do bebê potencial; (2) o desejo de controlar a sexualidade das meninas e limitar comportamentos percebidos como "de risco", associados à vida de solteira, tais como relações sexuais sem parceiros fixos e exposição à rua; (3) o desejo das meninas e/ou membros da família de ter segurança financeira; (4) uma expressão da autonomia das meninas e um desejo de sair da casa de seus pais, pautado em uma expectativa de liberdade, ainda que dentro de um contexto limitado de oportunidades educacionais e laborais, bem como de experiências de abuso ou controle sobre a mobilidade das meninas em suas famílias de origem; (5) o desejo dos futuros maridos de se casarem com meninas mais jovens (consideradas mais atraentes e de mais fácil controle do que as mulheres adultas) e o seu poder decisório desproporcional em decisões maritais. Com a pandemia e o encerramento das relações sociais aos núcleos mais privados, associado ao agravamento das condições de subsistência e emprego e também ao menor acesso aos serviços de educação, saúde e assistência, o impacto na vida de crianças e adolescente mulheres, majoritariamente pobres, tende a se agravar. As principais consequências para a infância serão maior taxa de evasão escolar, riscos de transtornos mentais, violência de gênero, exclusão social e gravidez precoce com riscos à saúde da gestante, ao nascituro e ao recém-nascido. A origem das altas taxas de casamento infantil no Brasil decorre, em primeiro lugar, da redação do art. 1.517 do Código Civil de 2002, que, seguindo o Código de 1916, permitia o casamento de pessoas com menos de 16 anos, sem instituir nenhum patamar mínimo. Esse cenário foi alterado com a lei 13.811/2019, que passou a proibir o casamento de crianças e adolescentes com menos de 16 anos de idade. Ainda assim, ainda permanece a possibilidade de casamento entre 16 e 18 anos, ao contrário do que ONU, UNICEF e outros organismos internacionais defendem nem enfrenta a possibilidade da existência de uniões estáveis entre crianças e adolescentes e quais as formas de proteção. A permissividade legal do casamento infantil descumpre as bases fundantes do direito da infância tal como previsto no art. 227 da Constituição da República e no art. 3º do Estatuto da Criança e do Adolescente porque não atende ao princípio do melhor interessa. Veja-se, crianças e adolescentes são pessoas ainda em desenvolvimento físico, psíquico e social e a conjugalidade precoce tem potencial concreto de interferir negativamente nesse desenvolvimento, com impactos sobre fertilidade, natalidade, mortalidade infantil, desigualdade social, econômica e laborativa e pobreza. Sob a perspectiva coletiva, o Banco Mundial estima que a proibição da conjugalidade infantil até 2030 poderia gerar 500 bilhões em benefícios mundiais e redução de custos de 100 bilhões por mortes infantis e má nutrição. Mas, é importante destacar que a conjugalidade infantil não afeta de forma igual todas as crianças, havendo marcadores distintivos de gênero e classe. Quanto ao gênero, a conjugalidade infantil afeta muito mais mulheres do que homens no Brasil. Proporcionalmemente, a taxa de casamentos formais em 2018 pelo IBGE é de 0,056% de homens do total de mulheres. Dentro desse cenário, a edição da lei 13.811/2019 atende em parte à proteção integral e ao princípio do melhor interesse da criança, pois proíbe a realização de casamento de crianças e adolescentes com menos de 16 anos de idade. O avanço na  proteção de direitos infantojuvenis é apenas parcial, porque adolescentes entre 16 e 18 anos de idade tem capacidade para o casamento, desde que haja autorização dos representantes legais ou suprimento judicial da autorização. Um segundo problema não abordado pela lei é a falta de previsão sobre a consequência do casamento de pessoas com menos de 16 anos de idade realizado após o início da vigência da lei. Seria esse ato jurídico nulo ou anulável? Não há debate no Direito Civil nem no Direito da Infância, permanecendo em aberta a solução jurídica. Ou seja, a lei 13.811/2019 deve ser tomada como um ponto de mudança jurídica na compreensão da conjugalidade infantil e servir na adoção mais concreta de políticas públicas para sua redução, o que envolve medidas de assistência social, moradia e de gênero. A vedação de casamento e de união estável em que criança ou adolescente com menos de 16 anos de idade constitui uma etapa desse avanço, pois demonstra o compromisso jurídico com a efetiva proteção integral de crianças e adolescentes. A proibição legal é, contudo, insuficiente para, isoladamente, alterar o cenário atual em que o Brasil é o quarto país no mundo com maiores índices de conjugalidade infantil. A lei 13.811/2019 estabelece um marco de proteção, ao qual deve ser conjugado esforços socioassistenciais e que favoreçam esse grupo em vulnerabilidade, especialmente as mulheres, que são o gênero que se submetem a essa conjugalidade e suas prejudiciais consequências.
terça-feira, 13 de abril de 2021

Henry: um rosto entre muitos outros esquecidos

Tomou conta dos noticiários nos últimos dias o assassinato do menino Henry Borel, chocando o Brasil com as atrocidades a cada nova prova conhecida pela mídia. Mas por que nós falamos mais de violência contra crianças e adolescentes quando elas viram estatísticas de homicídios do que de modos de prevenção e denúncia? Enquanto sociedade brasileira, que tem a infância e juventude como a segunda causa que mais recebe doações, segundo o IDIS, nos impactamos com seus rostinhos, felizes, estampados nos jornais com a notícia de seu falecimento, mas nos esquecemos de cenas como a vista em Campinas, com um menino de 11 anos acorrentado dentro de um barril ou do menino, ou mesmo com o outro, de 6 anos, em Brasília, chicoteado pelo pai e preso em uma jaula. Henry é, portanto, um rosto entre muitos outros esquecidos quando falamos de violência doméstica praticada contra crianças e adolescentes. Embora o art. 227 da CF e o art. 5º do ECA garantam que "nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão", devendo a família, a sociedade e o Estado, com absoluta prioridade, mantê-los a salvo destas violações, de acordo com o relatório anual de 2019 do "Disque 100", conhecido como "Disque Direitos Humanos", plataforma de denúncia do Governo Federal, crianças e adolescentes integram o grupo mais vulnerável, tendo em vista que 55% das denúncias que são feitas possuem este público como vítima. Ainda, em que pese a violência contra a criança ser praticada majoritariamente em ambientes domésticos, como aponta o mesmo relatório público, quando há notória subnotificação desses crimes à Polícia e ao Judiciário, não é raro vermos nos noticiários casos de violência, tortura e abusos - físicos, psicológicos e sexuais -, contra crianças e adolescentes, sendo praticados dentro de casa e por parentes próximos. Estão aí Lucélia, Isabela Nardoni, Bernardo, Rafael Winques, Victor da Cruz, Samuel, Ísis Helena, e, mais recentemente, Henry Borel. Para que as estatísticas mudem, precisamos agir na prevenção, discutindo tais dados coletiva e abertamente para, entendendo a dinâmica da violência doméstica infanto-juvenil, trabalharmos em seu combate, fomentando a denúncia e cobrando uma postura enérgica do Poder Público para seu enfrentamento, proteção da infância e persecução criminal dos agressores. Afora a implementação de meios de conscientização das famílias sobre violências em geral, inclusive psicológicas e morais, formas de correção física, como a Lei do menino Bernardo (Lei da palmada), tendo em vista que pais e familiares próximos são os principais agressores, outro ambiente que precisa ser trabalhado é a escola. Embora ela também conste na lista dos locais de agressão, é lá que, por muitas vezes, o primeiro local de proteção e acesso das crianças vítimas de violência, sendo inclusive necessário um treinamento adequado dos Professores, pedagogos, psicológicos, educadores e funcionários para a colheita do primeiro depoimento, que chamamos de comumente de "revelação". Ou seja, quando a criança fala sobre a agressão que sofreu, não temos mais uma simples suspeita da violência praticada, mas sim a primeira prova produzida, que precisa ser zelada e protegida, com uma escuta ativa, cuidadosa e técnica da criança, como regulamenta a Lei do Depoimento sem Dano, a fim de que consigamos conduzir a investigação criminal e a futura ação penal a contento. Punindo, assim, quem agride e mata. Sobre o ambiente escolar, veja-se que no último dia 09 de março de 2021 foi promulgada uma norma no Estado de São Paulo (lei 17.337/2021) que dispõe sobre a capacitação escolar para crianças e adolescentes a fim de possibilitar a identificação e prevenção de situações de violência intrafamiliar e abuso sexual. A Lei, de apenas 03 artigos, fala em treinamento das crianças e adolescentes por "profissionais capacitados, podendo ser professores, psicólogos, psicopedagogos ou assistentes sociais", mas aqui chamamos atenção ao fato de que, em muitos casos, falta capacitação para quem deveria capacitar. Ocorre que, em pesquisa no site da EFAPE (Escola de Formação e Aperfeiçoamento dos Profissionais da Educação "Paulo Renato Costa Souza"), instituição indicada na referida Lei para formação complementar da rede, não encontramos um curso de formação sequer que trate de "violência" ou "abuso". Chama atenção, portanto, que embora tenhamos uma lei específica para capacitação de crianças e jovens sobre o tema da violência, falta efetiva regulamentação para sua premente implementação. Outros recortes são necessários, tal como o racial e o de gênero. A maioria das crianças e adolescentes violentados é parda e do gênero feminino. O documentário "Um crime entre nós", produzido pela Maria Farinha Filmes, traz dados chocantes sobre abuso, pornografia e exploração sexual de crianças e adolescentes, especialmente meninas, no Brasil. Figuramos como o segundo país no ranking mundial de casos de exploração sexual infantil, sabendo-se que "existe um mercado no qual se troca infância por qualquer coisa menos valiosa" e é sobre isso que precisamos falar e por isso que precisamos agir. Assim, o melhor tratamento para combatermos a violência doméstica praticada contra crianças e adolescentes passa pelo acesso à informação de famílias e da sociedade em geral, pois somente com ela poderemos ficar atentos para as denúncias necessárias, trabalhando nosso olhar atento àqueles que nos cercam, bem como para cobrarmos do Poder Público a proteção, com prioridade absoluta, da VIDA de crianças e jovens brasileiros através de políticas públicas efetivas. A coluna desta semana é uma provocação para que ajamos na prevenção, entendendo um pouco melhor o contexto silencioso da violência intrafamiliar praticada contra crianças e adolescentes no Brasil. Não podemos deixar a infância ser dizimada, alimentando um país maculado pela violência. Basta!
As discussões em torno desta coluna Migalhas Infância e Juventude sempre me deixam inquieta ao escrever. O último texto, publicado pelo Hugo Zaher, havia me despertado interesse de continuar a discussão sobre técnicas adequadas de solução de conflito na infância e juventude, muito por conta das discussões que travei com a Elisa Cruz sobre a voz da criança no processo. Entretanto, recentemente, recebi a seguinte mensagem: "estamos apenas com 6 orientadores na casa, está bem complicado porque os que estão afastados, estão com suspeita". Era uma das técnicas de um serviço de acolhimento institucional de crianças e adolescentes (SAICA) aqui da Cidade de São Paulo nos relatando as dificuldades nesta Fase Emergencial. Eu não podia deixar essa mensagem passar em branco e é com ela que começo a discussão da nossa coluna esta semana, pincelando novas informações sobre o que escrevi com a Angélica Sigollo ano passado. De início, destaco que, no momento da publicação deste texto, há em torno de 30.988 crianças e adolescentes acolhidos no Brasil, segundo estatísticas publicadas pelo CNJ a respeito do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), sendo essa é a população estimada de aproximadamente  79% dos Municípios brasileiros. Quando pensamos dessa forma, que várias cidades do Brasil poderiam ser habitadas apenas e tão somente por crianças e adolescentes em situação de acolhimento, o número assusta e demanda um olhar cuidadoso do Poder Público e de toda a sociedade, considerando a responsabilidade que a própria CF nos impõe em seu art. 227. Ao observarmos, então, esta enorme população de crianças e adolescentes em serviços de acolhimento e pensarmos na dinâmica que a pandemia do Covid-19 nos impôs, podemos imaginar boa parte dos impactos negativos que o isolamento social provocou nos abrigos sob vários vieses, principalmente no tocante à saúde física e mental, educação e convivência familiar e comunitária, ainda mais considerando os apontamentos técnicos publicados pela FIOCRUZ de que a situação da saúde infanto-juvenil no Brasil por conta da pandemia é pior do que em outros países (Min. Saúde, 2020). Segundo o "Levantamento Nacional dos Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes em tempos de Covid-19", elaborado pelo NECA, FICE Brasil e Movimento Nacional Pró-Convivência Familiar e Comunitária, com base em dados coletados entre maio e julho de 2020, dos 1.327 serviços participantes da pesquisa, 268, equivalente a 20,2% do total, registraram a ocorrência de algum caso de Covid-19. Parece pouco, mas, no mesmo período (julho/2020), uma pesquisa publicada pelo Estadão revelava que o país tinha 1% da população infectada pelo vírus. As altas porcentagens iniciais, assim, já evidenciavam a necessidade de que houvesse maior controle e atenção em relação à saúde dos acolhidos e funcionários dos serviços de acolhimento, pois o vírus estava circulando com facilidade nos serviços de acolhimento. Na cidade de São Paulo, o Ministério Público Estadual, igualmente no mesmo período da pesquisa acima (junho/2020), publicou um relatório sobre a situação dos SAICA's durante a pandemia. Além de indicar que, dos serviços consultados, 13,58% do total havia "registrado ter algum acolhido e/ou funcionário com sintomas ou diagnóstico de COVID-19", também retratou outros desafios tais como (i) o aumento de ansiedade nos acolhidos e funcionários; (ii) a desorganização da vida escolar das crianças; e (iii) a verba insuficiente destinada aos serviços para manejo e atendimento das necessidades extraordinárias. Ademais, segundo o mesmo relatório ministerial, os SAICA's sem convênio com a Prefeitura da Cidade de São Paulo enfrentavam também um distanciamento da rede pública de saúde, ficando isolados nos cuidados com a pandemia, o que pode ter prejudicado demasiadamente a proteção integral e prioritária da saúde das crianças e adolescentes inseridos nestes serviços. Os dados, contudo, tanto na esfera nacional quanto estadual, ao que se tem conhecimento, pararam de serem produzidos ou ao menos publicados, não havendo levantamentos disponíveis sobre a realidade até o fim de 2020. Diante de um cenário desanimador quanto ao número de infectados e à situação geral dos abrigos, quando analisamos tais dados olhando para os direitos básicos das crianças e adolescentes acolhidos - aqui deixado de citar os graves efeitos nos trabalhadores, também - igualmente o sentimento que vem é de revolta e tristeza, mormente porque são crianças em risco que merecem nossa especial atenção. O citado relatório do NECA aponta que a extensa maioria dos acolhidos que foram infectados (91%) permaneceram em isolamento nos próprios serviços (p. 93) e, sendo conhecidas as dificuldades enfrentadas, tal como a precariedade das estruturas físicas, a falta de espaço, de renda e de base de apoio, este isolamento possivelmente trouxe dificuldades ímpares na organização da rotina da casa. Sobre este ponto, veja-se que a partir do dado produzido pelo NECA de que, quando houve novo acolhimento infanto-juvenil, "a maioria dos serviços respondentes não informou se realizou ou não a quarentena (61%), embora a recomendação fosse para se realizar o isolamento preventivo por 14 dias" (p. 109). Ora, se uma criança ou adolescente vindo de fora, sem qualquer laço afetivo com os demais moradores do abrigo e funcionários, não foi devidamente isolado, imagine um que já está integrado ao grupo, com afinidades e rotinas conjuntas etc.? Além da saúde, vejamos o direito à convivência familiar e comunitária. Durante o período de isolamento social, a maior parte dos pais e familiares que estavam realizando visitas periódicas aos SAICA's e/ou pegando os infantes para finais de semana prolongados, passaram a não poder mais frequentar os abrigos em razão das políticas de contingenciamento do vírus (17,8%; NECA, p. 132), de modo que os contatos passaram a ser majoritariamente feitos de forma remota (59,7%). Lembramos que, no início da pandemia, havia sido editada a Recomendação Conjunta 01/2020 pelo Conselho Nacional de Justiça, Conselho Nacional do Ministério Público e Ministérios da Cidadania e da Mulher, Família e dos Direitos Humanos (RC 01/2020), inclusive com a orientação de que esta reintegração familiar definitiva fosse priorizada, mas não se tem conhecimento se foram produzidos dados sobre a efetividade desta medida. Ainda, o relatório aponta que os outros 9% dos infectados foram ou inseridos em isolamento domiciliar com a família nuclear ou extensa, ou em residências de funcionários dos serviços, como orientava a RC 01/2020 sobre a figura do "cuidador residente" (um funcionário que passasse a residir no SAICA, o que também não se tem conhecimento de uma prática exitosa) ou a possibilidade da permanência das crianças na residência dos funcionários. Sobre este último item, aponta o NECA que os funcionários, famílias acolhedoras ou padrinhos afetivos "não tiveram qualquer pagamento adicional, a não ser a oferta de auxílio para as despesas gerais de alimentação e cuidados de higiene para com as crianças e adolescentes acolhidos" (p. 94) e não foram considerados os impactos desta medida na saúde mental das crianças, vez que a retomada à "normalidade" com o retorno das crianças aos SAICA's, poderá gerar novos rompimentos de vínculos afetivos, fundamentais ao seu desenvolvimento pleno, podendo deixar sequelas psicológicas. É inevitável, assim, não olharmos para a invisibilidade que acomete as crianças e adolescentes que estão morando em abrigos de forma temporária - seja os que estão aguardando a possibilidade de retorno à família biológica, seja os que estão já em processo de destituição do poder familiar e adoção -, e tal invisibilidade, que já era extremamente negativa em condições "normais", inclusive no tocante à preservação de direitos básicos fundamentais destas crianças, se agrava durante a pandemia como mostram os dados empíricos produzidos até o momento, principalmente quando olhamos para saúde, física e mental, educação e convivência familiar e comunitária. São reflexões que geram outras reflexões, especialmente porque crianças e adolescentes em serviços de acolhimento, em especial os institucionalizados, deveriam ser alvo de políticas públicas prioritárias e efetivas em razão de sua situação de risco e da menoridade, mas são aqueles que sofrem os mais severos e profundos impactos da desorganização social do país neste momento delicado que vivemos. A pandemia escancara problemas antigos, fere direitos fundamentais básicos de crianças e adolescentes e fomenta novas percepções necessárias para a constante redução da institucionalização no Brasil, como determina o próprio ECA há mais de 30 anos. A invisibilidade "tá on", infelizmente.
O Marco Legal da Primeira Infância (MLPI) completa neste mês cinco anos. Em 8 de março de 2016, foi promulgada a lei 13.257, que estabelece regras e princípios para proteção integral qualificada de crianças nos primeiros anos de vida, no período que abrange os seis anos completos. Portanto, esse Diploma Legal ainda está na "primeira infância" e, na mesma linha da faixa populacional a que se destinam seus postulados, também demanda toda sorte de estímulos para o seu desenvolvimento integral e efetivo cumprimento. O texto dessa legislação reforça a ambivalência da criança na primeira infância. Mais do que o adolescente, jovem ou adulto do futuro, esse sujeito de direitos deve ser considerado hoje. A atmosfera de responsividade exige ações imediatas para proteção e promoção específica dessa faixa etária, o que invariavelmente refletirá efeitos positivos ao longo da vida. Isso porque, diante da plasticidade cerebral na primeira infância, é nesse período sensível que as funções executivas (memória de trabalho, controle inibitório e flexibilidade cognitiva) são desenvolvidas, o que serve de alicerce para o desenvolvimento de habilidades mais complexas em um momento futuro. Os impactos da adversidade experimentada no contexto da primeira infância, por sua vez, redundam no chamado 'estresse tóxico', dificultando a aquisição das referidas habilidades básicas, o que pode resvalar inclusive em situações de vulnerabilidade que exijam a aplicação de medidas protetivas (artigo 98 do Estatuto da Criança e do Adolescente - lei 8.069/90). O artigo 5° do MLPI aponta que se constituem áreas prioritárias para políticas públicas em prol da primeira infância "a saúde, a alimentação e a nutrição, a educação infantil, a convivência familiar e comunitária, a assistência social à família da criança, a cultura, o brincar e o lazer, o espaço e o meio ambiente, bem como a proteção contra toda forma de violência e de pressão consumista, a prevenção de acidentes e a adoção de medidas que evitem a exposição precoce à comunicação mercadológica".  Tais áreas se inserem no âmbito de proteção dos direitos fundamentais previstos no artigo 227 da Constituição Federal e sua plena efetivação é dever absolutamente prioritário da família, do Estado e da sociedade. Não precisamos ir a fundo para verificar que embora muitas sejam as conquistas alcançadas após a lei 8.069/90 e a Convenção sobre os Direitos da Criança, diversos obstáculos para o desenvolvimento integral ainda são latentes, sobretudo para as estimadas 19 milhões de crianças na primeira infância, sendo certo que o MLPI impactou enormemente no texto do Estatuto com diversas alterações legislativas empreendidas. O Plano Nacional da Primeira Infância destaca alguns desafios a serem suplantados, tais como a pobreza, a desigualdade, a falta de implementação de políticas públicas para a primeira infância, a taxa de mortalidade ainda preocupante em algumas regiões do país, a gravidez na adolescência, a desnutrição, a obesidade infantil, a incipiente cultura do aleitamento infantil, a universalização da educação infantil e a violência. E os desafios se tornam mais complexos no contexto da pandemia vivenciada, com impactos negativos nas crianças, em sua convivência familiar, na educação e em diversos outros direitos fundamentais, tornando premente a garantia do pleno desenvolvimento à luz das limitações impostas pelo distanciamento social. Destarte, o Sistema de Justiça se insere como importante ator para a garantia dos direitos fundamentais das crianças na primeira fase da vida, cuja exploração iniciamos em outro texto desta coluna a respeito de seu protagonismo na proteção da primeira infância. Com efeito, o Pacto Nacional pela Primeira Infância capitaneado pelo Conselho Nacional de Justiça tem garantido desde 2019 uma abertura não só do Poder Judiciário, mas de todo o Sistema de Justiça, para que todos os seguimentos e, não só aquele ligado à competência infanto-juvenil, possam nortear suas ações para que os direitos fundamentais das crianças na primeira infância sejam implementados em sua máxima potência. Assim, para celebrarmos os cinco anos do Marco Legal, 5 medidas podem ser apontadas para estabelecer um Sistema de Justiça mais sensível, acessível e amigável para crianças na primeira infância. O primeiro deles, é a importância da participação efetiva do Sistema de Justiça nas discussões junto à Rede de Proteção local, conforme estabelece o artigo 88, VI, do Estatuto e artigo 14 da lei 13.431/2017. Não se perde de vista o espectro regional e nacional, mas em cada cidade e/ou comarca, já existe um gigantesco campo de atuação para se trabalhar a construção de fluxos e pontes intersetoriais. Nesse diapasão e com foco específico no Poder Judiciário, há necessidade de se reconhecer por parte dos Tribunais como atividade inerente à sua função a atividade intersetorial, para fins de produtividade, o que certamente despertaria inúmeras vocações de profissionais, os quais em sua grande maioria cumulam suas atividades com outros segmentos, notadamente em unidades de competência mista ou mesmo única. O artigo 3° da resolução 299/2019, do Conselho Nacional de Justiça, sinaliza nesse sentido no tocante ao Sistema de Garantia de Direitos de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência. A valorização de equipes multiprofissionais também é premente para aparelhar tecnicamente os posicionamentos dos atores no palco jurisdicional, e também na atuação junto à Rede de Proteção, garantindo-se formação continuada, número adequado de servidores à demanda apresentada e especialização à luz do segmento de atuação. O aprofundamento em técnicas adequadas de solução de conflito é necessário para se conformar a proteção integral de crianças na primeira infância, sobretudo diante de questões de alta indagação que exigem o protagonismo das pessoas direta ou indiretamente envolvidas, sendo possível citar a Política Nacional da Justiça Restaurativa estabelecida pelo Conselho Nacional de Justiça. A formação inicial e continuada das carreiras também é imprescindível para o aprofundamento na temática relativa à proteção e promoção da primeira infância e na qualificação da atuação dos integrantes do Sistema de Justiça, merecendo destaque que estão abertas as inscrições até o dia 31 de março o curso Marco Legal da Primeira Infância e suas implicações jurídicas, promovido pelo Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Servidores do Poder Judiciário - CEAJud/CNJ e a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados - ENFAM, tendo por público alvo Magistrados, Promotores de Justiça, Defensores Públicos, Advogados, Delegados de Polícia, Policiais Civis e servidores públicos que atuam nas equipes psicossociais do Sistema de Justiça e Segurança Pública. Uma ideia extra que pode ser lançada aos atores do Sistema de Justiça: mostra-se importante a participação em movimentos, associações e fóruns nacionais, que também são fontes inesgotáveis de discussões, aprofundamentos e boas práticas a serem replicadas por advogados, juízes, promotores e defensores públicos em sua rede local, a exemplo do FONAJUP, FONAJUV, ABRAMINJ, CONDEGE, PROINFANCIA, IBDCRIA/ABMP, dentre outros. Assim, para que a cultura do cuidado à primeira infância continue se fortalecendo e os obstáculos colocados para o desenvolvimento hígido nessa fase da vida sejam superados, é necessária a integração do Sistema de Justiça na efetivação, com prioridade absoluta, dos direitos fundamentais das crianças dos 0 aos 6 anos de idade, sobretudo com a aquisição de competências dos profissionais do direito na atividade intersetorial, que é finalística nessa seara.
terça-feira, 2 de março de 2021

Uma outra análise do caso #ficavivi

No âmbito do Direito da Infância, a hashtag #ficavivi tem dominado as publicações em redes sociais e as opiniões de algumas dezenas de pessoas. Em resumo, o caso envolve a criança Vivi, que foi colocada em família substituta em decisão liminar e, depois de 06 anos, o Poder Judiciário acolheu pedido da avó biológica para determinar seu retorno à família biológica, sob cuidados da avó. Durante esse período, Vivi estava sob os cuidados de um casal que pretendia a sua adoção. É uma situação difícil, mas o que funcionou como diretriz do Poder Judiciário nessa decisão? A Constituição da República de 1988 adotou, nos arts. 226 e 227, a doutrina da proteção integral e o princípio do melhor interesse da criança. A doutrina da proteção integral determina que as crianças e adolescentes tenham os mesmos direitos que pessoas adultas (ou as demais pessoas, para ser exata), enquanto o princípio do melhor interesse diz que as decisões que envolvam crianças ou adolescente devem considerar o melhor para eles. Na doutrina brasileira existe pouco debate sobre o significado de melhor interesse. Em geral, entende-se que é a decisão que privilegia o que é melhor para a criança ou adolescente, muito embora não haja nenhum parâmetro mais concreto sob o que significa esse princípio. Na doutrina inglesa, autores como Geraldine Van Bueren, Michal Freedman e John Eekelar, argumentam que o melhor interesse significa o respeito aos direitos ou interesses imediatos da criança ou adolescente, como também o respeito à opção futura e autônoma por eles, quando, adultos, possam fazer as suas próprias escolhas. Esse é o sentido que tem sido usado na União Europeia, quando se analisa, por exemplo, a norma sobre proibição de cirurgia de crianças intersexo, salvo urgências para a funcionalidade corporal. Nesse caso, a orientação é proibir a escolha imediata do gênero ou do sexo, deixando em aberta a possibilidade de escolha futura do gênero e/ou sexo pela própria criança ou adolescente, seja quando ela já tiver maior discernimento ou quanto já tiver alcançado a vida adulta. Esse sentido de melhor interesse não está presente na doutrina nem na jurisprudência brasileiras, que acaba se pautando por critérios mais subjetivos do julgador na efetivação desse princípio. Ao tratarmos de adoção e convivência familiar em sentido mais amplo, a efetividade do melhor interesse é realizada pelo art. 19 do ECA, segundo o qual "é direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral". A regra é, nos termos do art. 19 do ECA, que a criança permaneça com a família biológica - isto é, pais e/ou mães - ou com a família extensa - entendida essa como aquela que se estende além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com quem a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade (art. 25 do ECA). A necessidade de respeitar a permanência da criança ou do adolescente na família natural ou extensa ou ampliada é reforçada no § 1º do art. 39 do ECA, que diz: "a adoção é medida excepcional e irrevogável, a qual se deve recorrer apenas quando esgotados os recursos de manutenção da criança ou adolescente na família natural ou extensa, na forma do parágrafo único do art. 25 desta lei". O que aconteceu no caso Vivi para que hoje chegássemos a essa movimentação emocional nas redes sociais? Uma das possibilidades é que não foi adotada a orientação do ECA de prevalência da família extensa, o que fica mais claro quando se lê as notícias que falam das decisões judiciais determinando o retorno da criança para o convívio da avó biológica. Infelizmente, por estarmos em direito da infância, o processo é sigiloso, de modo que não conseguimos saber exatamente o que está sendo discutido nele e quais são as provas que estão nos autos do processo. Por isso, precisamos confiar nas informações transmitidas pela imprensa. Pelas notícias divulgadas, percebemos que a avó paterna pediu judicialmente a guarda da neta, porque o pai da criança está preso e a mãe não teria condições de cuidar de Vivi. Após dois pedidos judiciais negados, ela recorreu, mas o casal que estava com a guarda provisória de Vivi há 06 anos recorreu. Analisando o caso à luz do ECA, a avó tem razão e a responsabilidade para que a confusão tenha se instaurado é do CNJ, que há anos permite a suspensão cautelar do poder familiar e a inclusão provisória de crianças no sistema nacional de adoção. O ECA exige o trânsito em julgado para a colocação de crianças ou adolescentes em adoção, o que significa que foram tentadas a reintegração da criança com a família natural ou com a família extensa, mas ela não se mostrou possível ou inadequada porque a violação a direitos da criança permanece. Daí, ocorre a destituição do poder familiar. Apesar de o ECA exigir o trânsito em julgado (art. 39, § 1º), o CNJ, desde a Resolução 54/2008, substituída pela resolução 289/2019, autoriza a suspensão provisória do poder familiar e a inclusão da criança ou adolescente em disponibilidade para adoção. Ainda que não tenham se esgotados as tentativas de reintegração com a família natural ou extensa. Ou seja, a história de Vivi e as dificuldades atuais são o resultado de descumprimentos da lei: a falta de tentativa de reintegração com a avó antes da ação judicial e a decisão judicial de colocação em família substituta antes do término da ação de destituição do poder familiar. Nem a avó nem os pais adotivos são responsáveis pela confusão, que surgiu apenas pela não observância da lei. E, Vivi, como cuidamos dela? Arriscando uma opinião sem ler o processo e os estudos sociais e psicológicos que devem estar ali, eu acharia melhor manter Vivi com a família adotiva mas preservar a convivência com a avó. É preciso reconhecer que depois de 6 anos, ela formou vínculo de afeto com a família afetiva, mas, com a experiência que os meus 10 anos de defensoria pública me tem ensinado, um dia ela vai querer "saber de onde veio" e por essa razão, e para permitir que ela escolha que no futuro ela mantenha ou não os vínculos com as famílias materna e paterna, o melhor seria manter a adoção mas preservar a convivência constante com as famílias biológica. Mas essa é a opinião de quem analisa como observadora externa, mais olhando para o Direito do que para os fatos que estão acontecendo.
Embora muito se fale sobre a garantia constitucional da prioridade absoluta nos manuais, nas decisões judiciais e nas salas de aula, ainda é escasso o aprofundamento sobre o tema. Aliás, a baixa compreensão da dimensão deôntica das cláusulas abertas, dos conceitos jurídicos indeterminados e dos princípios jurídicos é transversal ao microssistema de promoção, proteção e defesa dos direitos da criança e do adolescente, de modo que um (mínimo) aprofundamento teórico se faz premente. Sustentar a necessidade de um aprofundamento teórico, por outro lado, não significa vindicar um apego excessivo ao dogmatismo lógico-formal e abstrato, muitas vezes fundado em uma racionalidade alienante e legitimadora de injustiças e desigualdades. Busca-se, ao revés, apresentar uma nova racionalidade e uma nova epistemologia emancipadoras e atreladas à práxis, capazes de promover a efetiva alteração da realidade, libertando o sujeito subalterno e a sociedade vitimados pela colonialidade1. Para tanto, identificar contradições e revelar ideologias ocultadas deve ser a tarefa primeira do intérprete crítico. Uma das principais consequências da falta de clareza sobre o conteúdo normativo dos princípios ou cláusulas gerais constantes do microssistema de proteção e promoção dos direitos da criança e do adolescente é a enorme confusão entre seus princípios estruturantes, como a proteção integral, prioridade absoluta e melhor ou superior interesse da criança. Essa confusão gera não apenas incerteza sobre as respectivas hipóteses normativas mas, principalmente, um déficit de eficácia e aplicabilidade, esvaziando seu verdadeiro potencial transformador, qual seja, a superação de um passado de violência, desigualdade e discriminação contra as pessoas em desenvolvimento. Apenas como exemplo, lembremos do princípio do superior (ou melhor) interesse da criança, cuja interpretação/aplicação tem ensejado soluções em inúmeros sentidos, muitos das quais antagônicos entre si (como prorrogação ou manutenção de medidas socioeducativas como se se tratassem de uma benesse ao adolescente em conflito com a lei). Daí porque, no contexto da crise de interpretação do ECA2 foi chamado de verdadeiro "cavalo de troia" do menorismo3. Fala-se em uma verdadeira resistência menorista à consolidação da doutrina da proteção integral ou em um menorismo sem fim4, consubstanciados na persistência de práticas outrora legitimadas pelos extintos Códigos de Menores a partir de interpretações com pouco rigor técnico e metodológico daquelas normas de baixa densidade normativa. Mantêm-se as práticas, mudam-se os discursos5. Especificamente em relação ao princípio da prioridade absoluta a problematização é bem apontada por Ana Paula Motta Costa: A aplicação de princípios como prioridade absoluta segue vários caminhos, resultado em decisões diversas. Essa constatação leva à conclusão de que, salvo exceções, o conteúdo doutrinário não tem sido aprofundado, e a utilização dos preceitos legais tem sido feita como forma de justificação da posição do julgador sobre o que entende, ele próprio, ser a prioridade a ser estabelecida, considerando a situação da criança e do adolescente em questão. Em síntese, a doutrina menciona que crianças e adolescentes, por estarem na "peculiar condição de pessoas em desenvolvimento" necessitam de respostas tempestivas e preventivas às suas necessidades, além de facilitação política e institucional para o exercício de seus direitos fundamentais. Desse modo, como enfatiza, Andréa Rodrigues Amin, "seja no campo judicial, extrajudicial, administrativo, social ou familiar, o interesse infantojuvenil deve preponderar. Não comporta indagações ou ponderações sobre o interesse a tutela em primeiro lugar, já que a escolha foi realizada pela nação por meio do legislador constituinte6". A mesma falta de clareza é encontrada na jurisprudência das Cortes Superiores7 que, em geral, se referem genericamente à cláusula constitucional da prioridade absoluta para afastar teses como a Reserva do Possível, a impossibilidade de ingerência do Poder Judiciário no âmbito da discricionariedade administrativa e a violação ao princípio da Separação de Poderes. A análise da doutrina e da jurisprudência, todavia, demonstra que embora a prioridade absoluta seja utilizada de forma mais ou menos coerente para garantir direitos sociais básicos a crianças e adolescentes, como prestações de saúde e acesso à educação básica (em relação aos quais já há um certo consenso social), o mesmo não se verifica em relação a temas mais controversos. Em relação ao direito à convivência familiar e comunitária, por exemplo, vê-se na prática muitas vezes a facilitação de adoções prematuras em detrimento da manutenção de crianças e adolescentes com suas famílias de origem, mormente quando imersas em contextos de alta e grave vulnerabilidade socioeconômica e cultural. Fala-se, então, em prioridade absoluta, mas para violar direitos fundamentais de crianças e adolescentes. Desse modo, considerando-se as limitações da presente coluna, pretende-se apenas introduzir, de forma articulada, algumas ideias iniciais que possam despertar maiores reflexões por parte daqueles e daquelas que atuam na área da infância e juventude, a serem aprofundadas tanto no âmbito da academia quanto no exercício da prática forense. Podemos, pois, defender que: A norma constitucional que impõe prioridade absoluta à promoção, proteção e defesa dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes não consubstancia apenas uma recomendação política destinada à Administração Pública ou aos órgãos legiferantes. Trata-se verdadeiramente de norma jurídica, possuindo estrutura de princípio e, portanto, de mandamento de otimização8. Sua aplicação não se restringe aos direitos fundamentais sociais cuja concretização depende, em regra, da outorga de prestações materiais por parte dos Poderes constituídos (criação e efetivação de políticas públicas, dotação orçamentária suficiente para estruturação de programas e serviços etc), mas possui também plena incidência em relação aos direitos civis e políticos (como a garantia de atendimento prioritário, a garantia de não intervenção em sua intimidade e privacidade, a proteção de seus dados pessoais etc). O princípio da prioridade absoluta faz parte do sistema de garantias voltado ao público infantojuvenil. De acordo com Luigi Ferrajoli, garantias são técnicas criadas pelo ordenamento jurídico para reduzir a divergência estrutural entre normatividade e efetividade e, portanto, para realizar a máxima efetividade dos direitos fundamentais, em coerência com a sua estruturação constitucional.9 Embora tal prioridade constitucional seja qualificada como "absoluta", sua adequada compreensão deve guardar correspondência com a hermenêutica constitucional e, em especial, com o critério da concordância prática e da unidade da Constituição, que inadmitem, em regra, a hierarquização entre normas definidoras de direitos fundamentais e a existência de normas absolutas, já que tais normas - salvo raríssimas exceções10 - são passíveis de restrições, quer diante da previsão de reservas legais na Constituição, quer diante da colisão com outros direitos fundamentais em situações concretas As normas constitucionais que definem direitos fundamentais, diante da força normativa da Constituição, possuem aplicabilidade imediata (art. 5º, §1º, CF/88) e exigência de máxima eficácia. Por essa razão, afirmar que o princípio da prioridade absoluta apenas impõe a máxima eficácia das normas que definem os direitos fundamentais de crianças e adolescentes pode configurar redundância, esvaziando seu sentido normativo. Pode-se, então, sustentar que o princípio da prioridade absoluta deve atuar em duas frentes: (a) na aferição da constitucionalidade ou inconstitucionalidade de um ato ou de uma omissão do Poder Executivo, do Poder Legislativo ou do Poder Judiciário; (b) diretamente na solução de casos concretos que envolvam colisão de princípios constitucionais. Em ambos os casos, a prioridade absoluta qualificará o exame de proporcionalidade11 das medidas que restrinjam direitos de crianças e adolescentes (vedação de excesso) ou de omissões que descumpram deveres estatais de proteção (vedação de proteção insuficiente) nas análises da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito. Como se sabe, na análise da necessidade12 deve o/a intérprete proceder à comparação entre o meio restritivo (ou a justificativa utilizada para a omissão estatal) e outros meios alternativos que, simultaneamente, sejam menos gravosos para o titular do direito (no caso, para crianças e adolescentes) e tenham eficácia igual ou semelhante ao meio escolhido pela autoridade estatal. Em regra, o ônus de demonstrar a existência de medidas alternativas é do próprio titular do direito afetado pela medida. No entanto, ao se qualificar o exame da necessidade a partir da exigência de absoluta prioridade em relação a crianças e adolescentes, estabelece-se uma presunção de inconstitucionalidade das medidas que afetem seus direitos fundamentais ou deixem de garanti-los, invertendo o ônus da prova e impondo à autoridade estatal o ônus de demonstrar a absoluta inexistência de outras medidas alternativas13. A inversão do ônus da prova é justificada tanto pela força normativa do princípio da prioridade absoluta (que deve ser sempre otimizado), como também pela história de persistentes e sistemáticas violações dos direitos de crianças e adolescentes no Brasil. Aliás, em se tratando de intervenções nos direitos de crianças e adolescentes pobres, ainda maior deve ser a suspeita da inconstitucionalidade, porquanto maior deve ser o grau de otimização do princípio para a consolidação do paradigma da proteção integral. 9. Já na análise da proporcionalidade em sentido estrito14 (fórmula de peso), incumbe ao/à intérprete examinar se a importância da realização da finalidade almejada justifica a intensidade da intervenção em direitos fundamentais15. Para tanto, busca-se aferir o peso concreto dos princípios colidentes a partir de uma ponderação entre ambos, que culminará na prevalência, em dada situação concreta, daquele que apresentar maior urgência ou importância. Tal ponderação é feita por meio de uma análise comparativa entre o grau de intensidade na realização de um princípio e o grau de intensidade da restrição em ouro princípio. Pois bem. Se os graus de intensidade puderem ser classificados como de baixa, média ou alta intensidade (como o faz Robert Alexy), o princípio da prioridade absoluta indicará a desproporcionalidade de intervenções ou omissões quando o grau de realização do princípio colidente for apenas de baixa ou média intensidade, ou se o grau de intervenção no direito de crianças e adolescentes for de alta intensidade. É dizer, por força do princípio da prioridade absoluta, apenas intervenções justificadas pela realização em alta intensidade de princípios colidentes e que, ao mesmo tempo, não imponham restrição de alta intensidade nos direitos de crianças e adolescentes podem ser admitidas. Assim, ilustrativamente, temos que, se por um lado pode ser justificada a ampliação de vagas para idosos uma Unidade de Tratamento Intensivo (alto grau de intensidade na realização do direito à vida e à saúde da população idosa) em detrimento, por exemplo, da criação de novas vagas em creche (baixo grau de intensidade da intervenção no direito à educação de crianças de 0 a 3 anos) em virtude do aumento exponencial do número de mortes pelo novo coronavírus durante a pandemia, por outro será desproporcional, no mesmo contexto, a redução  parcial de equipes que realizam acompanhamento pré-natal nas Unidades Básicas de Saúde (médio ou alto grau de intensidade na realização do direito à saúde do nascituro e da gestante) para justificar o aumento da frota de guardas civis metropolitanos (baixo ou médio grau de intensidade no cumprimento do dever constitucional de segurança, mais especificamente de segurança do patrimônio municipal) 10. Por fim, não basta a identificação de violação da prioridade absoluta, mas também a correta identificação da consequência jurídica decorrente do reconhecimento da violação, já que não é possível a aplicação do princípio da prioridade absoluta dissociada dos elementos de casos concretos e do contexto em que a decisão irá produzir seus efeitos. Afinal de contas, qualquer intérprete do direito precisa estar inserido na comunidade, conhecer sua história, suas prioridades e sua forma de organização.16 Em suma, pretendeu-se nessas breves linhas buscar novas formas de interpretação do princípio da prioridade absoluta que não estejam presas a idealizações formalistas, abstratas e dogmatismos, mas pautadas por pressupostos epistemológicos consistentes que partam das condições históricas materiais e levem em consideração as inúmeras contradições de nossa condição periférica e colonial no contexto do capitalismo global. Trata-se, ao fim e ao cabo, de levar a sério não só os direitos materiais de crianças e adolescentes, mas também do direito da criança e do adolescente como campo específico do conhecimento. *Peter Gabriel Molinari Schweikert é defensor público do Estado de São Paulo, assistente da Escola da Defensoria Pública (EDEPE). Membro e ex-coordenador auxiliar do Núcleo Especializado da Infância e Juventude da DPESP. Especialista em Direitos Fundamentais (IBCCRIM-FDUC) e em Psicossociologia da Juventude e Políticas Públicas (FESPSP). Mestrando em Direito Constitucional (PUC-SP) __________ 1 WOLKMER, Antônio Carlos. "Introdução ao pensamento jurídico crítico", 9ª ed, São Paulo: Saraiva, 2015. 2 MENDEZ, Emílio Garcia. "Adolescentes e responsabilidade penal: um debate latinoamericano". Buenos Aires, 2000. Disponível aqui. Acesso em 08.02.20 3 SARAIVA, João Batista Costa. "A Quebra do Paradigma da Incapacidade e o Princípio do Superior Interesse da Criança - O "Cavalo de Tróia do Menorismo". In: Revista Juizado da Infância e Juventude, ano 2, n. 3 e 4, Porto Alegre: TJRS, 2003, p. 27. 4 SCHWAN, Ana Carolina Golvim; SCHWEIKERT, Peter Gabriel Molinari. "O direito de defesa como pilar da Proteção Integral: expressão de um ato revolucionário". In: ECA e a proteção integral de crianças e adolescentes. Eunice Teresinha Fávero e outras (org). São Paulo: Cortez, 2020. 5 No campo mais amplo da Teoria do Direito, Lenio Streck, há anos, vem denunciando a prática do chamado pamprincipiologismo, fenômeno por meio do qual o Direito passa a ser inundado por uma produção de standars valorativos, álibis teóricos (e retóricos), pelos quais "se pode dizer qualquer coisa sobre a interpretação da lei". De acordo com o doutrinador, "um princípio - sem qualquer densidade deontológica - tem a 'força' de derrotar o Direito posto, sem que o intérprete lance mãe da justificação constitucional". E acrescenta: "os limites do sentido e o sentido dos limites do aplicador já não estão na Constituição, enquanto 'programa normativo-vinculante', mas, sim, em um conjunto de enunciados criados ad hoc. Tal abertura interpretativa enseja um amplo ativismo e voluntarismo judicial, justificando decisões verdadeiramente discricionárias. A multiplicação de princípios e a construção de argumentos e decisões desconexas da dogmática constitucional apenas reforçam a errônea compreensão da tese de que "os princípios proporcionariam uma abertura interpretativa, quando, em verdade, sua função é de fechamento interpretativo" (Cf. STRECK, Lenio Luiz. "Dicionário de hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito", 2ª ed, Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020, p. 253/256). 6 AMIN, Andreá Rodrigues, "Princípios orientadores do direito da criança e do adolescente". In: Curso de direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e práticos, Kátia Gerina Ferreira Lobo Andrade Maciel (Coord). São Paulo: Saraiva Jur, 2019, p. 68/69. 7 Como bem observa Ana Paula Motta Costa, "entre as decisões individuais e coletivas do Supremo Tribunal Federal que tratam da matéria dos Direitos da Criança e do Adolescentes, em várias delas há a referência ao princípio da prioridade absoluta. No entanto, raras vezes observa-se na fundamentação utilizada a referência a um significado doutrinário adotado, ou mesmo uma justificação do significado atribuído pelo julgador" (Cf. COSTA, Ana Paula Motta. "Os adolescentes e seus direitos fundamentais". Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 148). 8 ALEXY, Robert. "Teoria dos direitos fundamentais", 2ª ed, São Paulo: Malheiros, 2011, p. 90. 9 COSTA, Ana Paula Motta. "Os adolescentes e seus direitos fundamentais". Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 146. 10 Fala-se, por exemplo, que a vedação constitucional à tortura e a outras formas de tratamento desumano ou degradante possuiria caráter absoluto. Todavia, não há consenso na doutrina sobre o tema. 11 Sobre o uso do critério da proporcionalidade como método para justificação de intervenções em direitos fundamentais e para solução de suas colisões cf. DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. "Teoria geral dos direitos fundamentais", 7ª ed. São Paulo: RT, 2020. 12 Como explicam Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins, "entre todos os meios que permitam alcançar os propósitos lícitos, somente o que gravar o direito fundamental com menor intensidade será o necessário". Do ponto de vista cognitivo-metodológico, "a aferição da necessidade segue as regras do ônus argumentativo. Essas regras ordenam a argumentação, de cujo sucesso depende a conformidade da medida estatal com o direito fundamental atingido. A argumentação se baseia na premissa segundo a qual o Estado pode intervir na liberdade individual somente quando a intervenção for necessária para o alcance de um propósito lícito, ao mesmo tempo que a 'posição mínima' do indivíduo reste protegida" (DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. "Teoria geral dos direitos fundamentais", 7ª ed. São Paulo: RT, 2020, p. 259). 13 Como bem destacam Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins, uma lista completa dos possíveis meios que possibilitem alcançar o propósito almejado pela intervenção ou que justifiquem a omissão estatal deve ser construída a partir das "experiências jurídicas do passado, soluções adotadas em outros países, assim como pesquisas empíricas e materiais colhidas no debate entre especialistas sobre a questão (juristas ou não) para que seja possível a realização da comparação" (DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. "Teoria geral dos direitos fundamentais", 7ª ed. São Paulo: RT, 2020, p. 262). 14 Nas palavras de Virgílio Afonso da Silva, a proporcionalidade em sentido estrito tem como função principal "evitar que medidas estatais, embora adequadas e necessárias, restrinjam direitos fundamentais além daquilo que a realização do objetivo perseguido seja capaz de justificar" (SILVA, Virgílio Afonso. "Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia", 2ª ed, São Paulo: Malheiros, 2017). 15  Ou se as razões para a omissão ou descumprimento dos deveres estatais de proteção justificam a não-realização do direito fundamental prestacional. 16 COSTA, Ana Paula Motta. "Os adolescentes e seus direitos fundamentais". Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 151.
A adoção de crianças e adolescentes no Brasil é regida essencialmente pelo ECA e é um processo que, em um primeiro momento1, não exige a participação de advogados, em que pese seja um processo judicial frente à Vara da Infância e Juventude. Tendo a certeza da adoção e querendo dar entrada no processo, basta que a pessoa ou o casal - tratados, aqui, unicamente como "família" - vá até o Fórum mais próximo de sua residência e inicie o processo de habilitação. Este é o primeiro passo para a inscrição da família no Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), que foi criado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2019 com a intenção de unificar os números dos cadastros de adoção e acolhimento no Brasil (Resolução n. 289/19 CNJ). De um lado, pensando pela ótica do acesso à justiça, a inexigibilidade de advogado constituído pode até ser positiva, principalmente aliada à justiça gratuita nestes casos e considerando que há certa facilidade na tramitação do pedido. Todavia, de outro, a participação de advogados nos processos de habilitação e, posteriormente, de adoção, garante à família a observância das normas processuais. É justamente sobre isso que falaremos nesta semana na coluna "Migalhas Infância e Juventude". Fazendo aqui uma brincadeira com o famoso meme, traçamos as perguntas "o que é, onde vive e do que se alimenta?" justamente para explicar, de forma objetiva e acessível, o fenômeno da adoção "administrativa", com a finalidade de ajudar famílias que estejam pensando em iniciar a adoção para formação de sua família ou que já estejam com processos iniciados. Na prática, chamamos de adoção administrativa aquela na qual não há a participação de advogados. Ou seja, processos que são iniciados diretamente pela família na Vara da Infância e Juventude mais próxima de sua residência, como explicamos acima. Nesses casos, a família se manifesta diretamente no processo, principalmente através das entrevistas com o setor técnico, que abrange as áreas de assistência social e psicologia, as quais são fundamentais em processos desta natureza, inclusive. Assim, durante o processo, todas as vezes que a família precisa se manifestar, a intimação parte do Fórum e pode ocorrer por telefone ou e-mail, aí residindo a importância de os cadastros serem mantidos atualizados. Nesta etapa, será também necessária a presença física ou virtual dos postulantes no Fórum durante a elaboração dos laudos técnicos, audiências etc. Isso é, em síntese, a adoção administrativa. Por sua vez, a presença de advogados facilita, como falamos, a observância das normas vigentes no ECA e, portanto, garante direitos da família e também da criança, em observância ao seu melhor interesse, assim como a regularidade dos atos ocorridos durante a tramitação no processo. Inclusive, é importante destacar que é direito das partes serem assistidas por advogados em todas as fases do processo, caso assim desejarem. A título exemplificativo, podemos citar algumas vantagens da participação técnica jurídica no processo de adoção: o advogado auxilia com a elaboração das peças processuais, faz o controle dos prazos processuais2, consegue dar andamento ao feito com maior facilidade - o qual, hoje, ao menos no Estado de São Paulo, é integralmente eletrônico -, assim como estar atento a outros direitos que podem ser garantidos à família, como orientações sobre licença maternidade e paternidade, uso de nome afetivo da criança ou adolescente adotado, entre outros. Além disso, o advogado consegue ajudar e posicionar a família sobre o estágio do processo em si, uma vez que sabemos que o processo de adoção gera, por si só, muita expectativa e ansiedade. Assim, entendemos que o advogado é peça chave nos processos de adoção, fazendo parte também da equipe multidisciplinar que atua junto à família e à criança ou adolescente durante o trâmite da ação judicial. Finalizando com a sequência das perguntas que propusemos inicialmente, nos é claro que a adoção "administrativa" se alimenta da falta de informação de que as famílias podem ser assistidas por advogado durante o processo de adoção, desde a habilitação até a decisão definitiva, servindo o texto da nossa coluna essa semana para informar as famílias sobre este direito que, certas vezes, lhes é tolhido ou ocultado. É importante ressaltar que a ação de adoção de crianças e adolescentes é sempre judicial, somente diferenciando-se os processos em que há participação de um advogado ou não, como explicado acima. #FICAVIVI3 Nota final: para maiores informações sobre processos de habilitação e adoção, procure a ajuda de um advogado regularmente inscrito nos quadros da OAB ou da Vara da Infância e Juventude mais próxima da sua residência. __________ 1 Diz-se em um primeiro momento, pois, em casos que há destituição do Poder Familiar e/ou seja necessário apresentar algum recurso, a participação de advogado ou defensor público é obrigatória. 2 O processo de adoção, por exemplo, tem prazo máximo de duração de 120 dias, prorrogável uma única vez por igual período, somente mediante decisão fundamentada do Juiz do caso, nos termos do Art. 47 do ECA. 3 "Justiça determina que criança de 8 anos, adotada há seis, seja devolvida à avó em Minas". Disponível aqui.
Período de férias, mesmo na situação de pandemia vivenciada atualmente, resulta na procura do Poder Judiciário para a emissão de autorização de viagem para crianças e adolescentes que precisam transitar pelo país e fora, de maneira que profissionais do Direito e aqueles que atuam na rede de proteção buscam informações a respeito dos casos que exigem ou não intervenção do Poder Judiciário. No capítulo relativo à Prevenção Especial do Estatuto da Criança e do Adolescente está prevista a regulamentação da autorização para viajar, mais especificamente nos artigos 83 e 85, consubstanciando uma restrição legítima ao seu direito de ir e vir (art. 16, I, do Estatuto) para garantia de sua proteção integral. A expedição de autorização judicial para viagens dentro do território nacional só ocorre em último caso, da mesma forma que ocorre com as viagens internacionais regulamentadas pela resolução 131/2011 do CNJ, hipóteses nas quais a criança ou o adolescente brasileiro que viaja ao exterior desacompanhado, acompanhado por um dos genitores ou responsáveis ou, ainda, acompanhado de terceiros adultos e capazes, deve apresentar apenas autorização de viagem com firma reconhecida em duas vias. A redação original do artigo 83 do Estatuto da Criança e do Adolescente destacava que nenhuma criança poderia viajar para fora da comarca onde reside, desacompanhada dos pais ou responsável, sem expressa autorização judicial. Logo, adolescentes poderiam viajar independentemente de autorização judicial. Com a lei 13.812, de 16 de março de 2019, que instituiu a Política Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas, estabeleceu-se que também adolescentes menores de dezesseis anos naquelas circunstâncias dependeriam de autorização judicial para viajar, podendo os jovens a partir dessa idade realizar viagens nacionais sozinhos, desacompanhados de quaisquer dos pais ou responsável (art. 83 da lei 8.069/1990). Ainda, crianças e adolescentes até 16 anos de idade incompletos podem viajar independentemente de autorização, acompanhadas dos pais ou responsável (tutor, guardião, curador) ou dos avós, ou parentes maiores de 18 anos, até terceiro grau (irmãos e tios), comprovando-se o parentesco ou vínculo (artigo 83, §1º, 'b', 1, do Estatuto). Tratando-se de comarca contígua à da residência da criança ou do adolescente menor de 16 anos, se na mesma unidade da Federação, ou incluída na mesma região metropolitana, é dispensável autorização, conforme art. 83 §1°, 'a', do Estatuto. Ocorre que aproximadamente seis meses após a alteração legislativa, considerando o vertiginoso aumento de procura por autorizações judiciais para viagem no território nacional, a resolução 295, de 13 de setembro de 2019 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) promoveu uma sensível modificação na regulamentação estatutária, caminhando para a extrajudicialização da autorização de viagem de crianças e adolescentes e tornando a intervenção do Poder Judiciário excepcional. Com efeito, crianças e adolescentes até 16 anos que viajem  desacompanhadas ou acompanhadas de terceiros maiores de 18 anos, podem ser autorizadas pelo pai, mãe ou responsável, por meio de escritura pública ou documento particular com firma reconhecida em cartório, com base na referida Resolução, cujo prazo será discriminado no documento, entendendo-se, no silêncio, que a autorização é válida por dois anos (arts. 2°, III e 3° da Res. 295/2019 do CNJ). Embora o reconhecimento de firma na autorização seja dispensado pela Lei da Desburocratização (lei 13.726/2018) se os pais estiverem presentes no momento do embarque (art. 3°, VI), é prudente que se observe a exigência da Resolução 295/2019 do CNJ, mesmo porque em hipóteses de voos com escala ou no retorno da viagem, em que os pais não estarão presentes, poderá impedir o transporte e deflagrar transtornos diversos. Importante frisar que o provimento 103/2020 do CNJ instituiu a Autorização Eletrônica de Viagem (AEV), cuja emissão será realizada por intermédio do Sistema de Atos Notariais Eletrônicos (e-Notariado), a partir de módulo específico para a emissão desse documento acessível pelo link www.e-notariado.org.br, que aguarda desenvolvimento pelo Colégio Notarial do Brasil. Ainda, se a criança ou adolescente tiver passaporte válido, com autorização expressa para viajar ao exterior desacompanhado(a), é viável sua circulação em território nacional (art. 2°, IV, da Res 295/2019 do CNJ). Registre-se, por derradeiro, que para a viagem nacional é exigido a partir dos 12 anos de idade completos documento de identificação com foto, com base no art. 3º da resolução ANTT nº 4.308/2014 e art. 16, caput e §3°, da resolução ANAC 400/2016. Nesse caso, a autorização a princípio não é hábil para suprir a ausência da documentação, por ausência de previsão normativa para tanto, a não ser que haja demonstração concreta de que a restrição desses normativos da ANTT e da ANAC possam vulnerar o conteúdo essencial do direito fundamental à liberdade (ir e vir). Na situação em que a criança viaja com o pai e/ou a mãe adolescente(s), entende-se que estão desacompanhados, sendo necessária autorização judicial ou de pessoa capaz que os represente, consoante entendimento do Conselho Nacional de Justiça exarado na Consulta n° 000214-20.2020.2.00.0000. Nesse caso, "a autorização para que o adolescente viaje não supre a necessidade de autorização para que seu filho, menor de idade (sic), também viaje".  Dessa forma, caso a emissão de autorização de viagem pelos pais ou responsáveis não seja possível por algum motivo ponderoso, somente assim será necessária a autorização judicial de viagem, o que reflete a excepcionalidade atual da expedição desse documento pelo Poder Judiciário. Se de um lado a lei 13.812/2019 elasteceu demasiadamente a exigência de autorização judicial para a viagem nacional, de outro a Resolução n° 295/2019 do CNJ conformou a situação à res. 131/2011 do mesmo órgão, que trata da viagem internacional e não estabelece requisitos tão rígidos. Interessante que a legislação que deflagrou as sucessivas alterações normativas procura prevenir o desaparecimento de pessoas, fenômeno que envolve o tráfico humano, o que é repudiado pela Convenção sobre os Direitos da Criança (art. 35) e objeto da Lei da Busca Imediata (lei 11.259/2005), que inseriu no Estatuto da Criança e do Adolescente o dever de as autoridades realizarem a investigação incontinenti em havendo desaparecimento de crianças e adolescentes (art. 208, §2°, do Estatuto). Ora, o que pensar, contudo, de situações como adoções ilegais, sobretudo na perspectiva criminosa do art. 238 da lei 8.069/1990, em que há entrega do filho mediante paga ou recompensa? Seria possível cogitar a autorização da mãe e/ou do pai para que o filho recém-nascido viajasse com terceiros que pretendessem adotá-lo? Não há dúvidas que situações anômalas podem ocorrer, conquanto não se possa presumir a má-fé que, caso seja subjacente, deve ser combatida por outros meios, não devendo se prescindir, por outro lado, da perspectiva preventiva. O próprio Conselho Nacional de Justiça pode aproveitar a janela de oportunidades criada pelo Pacto Nacional da Primeira Infância e pelo recém instituído 'Prêmio Prioridade Absoluta' (res. 355/2020), para difundir boas práticas voltadas à promoção dos direitos da criança e do adolescente no âmbito do Sistema de Justiça, inclusive no tocante a mecanismos de prevenção ao desaparecimento do público infantoadolescente.  O Plano Nacional da Primeira Infância é propositivo na redução a zero do tráfico de crianças e de adoções ilegais, o que pode ser aferido no trânsito desse público no território nacional pelas autoridades e empresas de transporte, sem prejuízo a necessária articulação intersetorial prévia para prevenir situações irregulares. A responsabilidade compartilhada pela proteção integral das crianças e dos adolescentes pela família, sociedade e Estado exige organização, devendo-se inserir na 'bagagem' não só a documentação devida para a concretização da viagem, mas também o cuidado necessário para que todos os seus direitos fundamentais sejam garantidos.
Em 28 de dezembro de 2010 eu tomava posse como defensora pública no Rio de Janeiro e até 2014 eu trabalhei em diferentes órgãos de atuação no Estado do Rio de Janeiro, de cidades de juízo único a municípios da Baixada Fluminense, de Angra dos Reis a São Francisco do Itabapoana, passando por Resende e pela Serra fluminense. Entre 2015 e 2016 eu assumi a subcoordenação da CDEDICA, órgão da DPRJ especializado em infância. Mais especificamente, coordenei ações institucionais na área cível/protetiva da Infância. Depois de dois anos, deixei a CDEDICA para assumir uma das funções de assessoria do Defensor Público Geral, onde estive até outubro de 2020 quando retornei a minha titularidade. Já não seria fácil retornar à atuação de defensora em área cível em Angra dos Reis depois de tantos anos dedicada à atividade administrativa, mas o recomeço foi particularmente interessante porque em dezembro me vi diante da exigência de acumular um órgão de atuação de Família, Infância e Juventude logo em dezembro, por necessidade do serviço. Após três anos e nove meses, era meu retorno à Infância e isso me causava ansiedade. O primeiro processo que abri para ler justificava a minha ansiedade: era uma medida de acolhimento de um bebê cuja mãe tinha nove anos de idade, ou seja, estupro de vulnerável. Para piorar, havia notícia de que a mãe havia sido morta em conflito de tráfico, mas a família ainda não conseguira localizar o corpo. Triste. O processo tinha sido encaminhado para a DPRJ porque o tio do bebê estava visitando na unidade de acolhimento e íamos ajuizar ação de guarda. Salvo esse caso, mais nenhum outro de infância e juventude foi encaminhado para mim em dezembro, e pude me dedicar aos processos cíveis e de família. Mas, ainda teria dois dias de audiência sobre atos infracionais, todas por meio da plataforma cisco-webex. A CDEDICA havia impetrado HC coletivo objetivando impedir a realização de audiências virtuais por atos infracionais. O principal argumento é a impossibilidade de realização de audiência de apresentação a distância pela inaplicabilidade da videoconferência regulada pelo CPP e a falta de participação do representante legal junto ao adolescente internado. Distribuído ao STJ com o n. 588.902-RJ, a 6ª Turma denegou o writ considerando analogicamente aplicável o sistema do processo penal. Essa decisão já era esperada, uma vez que o CNJ já havia autorizado a virtualização do ato com a resolução 330, de 26/08/2020. Havia duas audiências marcadas para o primeiro dia. Nenhum dos adolescentes acessou o ambiente virtual, nem seus representantes legais. Ambos os casos eram de adolescentes sem medida cautelar. Ao buscarmos contato, os celulares sequer completavam a ligação. No segundo dia, mais duas audiências: a primeira de um adolescente sem medida cautelar. A família composta pelo adolescente, irmão e esposa e a mãe deles. O irmão conseguiu acessar o link da audiência, mas nos conta que estava na maternidade porque seu filho havia nascido; assim, o adolescente que respondia pelo ato infracional estava sem acesso à internet. Instaura-se uma discussão sobre adiar ou não a audiência de apresentação que acaba durando cerca de uma hora, quando o adolescente consegue um segundo celular e uma conexão instável de internet que só permite a realização do ato sem o vídeo. Consigo fazer a entrevista prévia com dificuldade, porque a cada mudança de "sala virtual" as conexões se perdiam e era necessário recomeçar. Resumo: quase duas horas depois conseguimos finalizar o ato. Passamos então para a segunda audiência, em que o adolescente estava provisoriamente internado. A audiência começa difícil porque eu questiono a unicidade do ato (apresentação e continuação), contrário à súmula 342 do STJ. Além disso, a unidade de internação não consegue fazer áudio e vídeo funcionarem ao mesmo tempo. Mais 40 minutos esperando solução e começamos a audiência. Ouvimos o adolescente e um dos policiais. O outro policial não havia comparecido. Buscamos contato, ele estava designado para transporte de adolescentes e 20 minutos depois retorna com uma ligação de dentro do automóvel. Tempo total dessa audiência: 2 horas e 30 minutos. Demarcar o tempo de cada audiência não é para reclamar: ele serve como parâmetro de avaliação dos serviços envolvidos. O serviço de tecnologia e rede (do Tribunal, da contratada de TI e da concessionária de telefonia) péssimo, pois não fornece estabilidade e rapidez adequadas para a virtualização do sistema de justiça. Aliás, sem segurança posterior porque ao final do mês fui intimada de sentenças de procedência em processos infracionais em que eu pretendia recorrer, mas as audiências já não estavam mais disponíveis na rede... Mais importante do que a crítica à qualidade do serviço e ao despreparo de uma justiça que se pretende se virtualizar, as cenas que tentei descrever demonstram o abismo da desigualdade social. Enquanto eu, juiz e promotora de Justiça conseguimos realizar as audiências em lugares seguros, confortáveis e com equipamento minimamente adequados, os adolescentes são obrigados a usar serviços que nunca antes foram de fato acessíveis a eles. Ao processo de criminalização da justiça infracional se sobrepõe ainda a punição por não ter acesso a um computador (ou a ter apenas um celular para todo o núcleo familiar), a não ter acesso a uma rede de telefonia de qualidade e que possa ser paga sem comprometer a sobrevivência da família e a expor os espaços domésticos que não garantem (em regra) privacidade. A realização de audiências infracionais revela o elitismo do sistema de justiça, que ao argumento de buscar o "melhor interesse" ou o "superior interesse" do adolescente, busca apenas e simplesmente, punir. Fosse a preocupação cuidar do adolescente, a resolução 330 trataria de outros temas além do processo de apuração e acompanhamento de atos infracionais, assim como, haveria a previsão de participação da equipe técnica do juízo e/ou da unidade socioeducativa em uma busca de alternativas para o desenvolvimento do adolescente. Mais: a resolução não acompanha a preocupação do ECA com a interdisciplinariedade e multidisciplinariedade típica do sistema de justiça da infância, porque não há nada na regulamentação que se preocupe com o atendimento técnico ao adolescente. Ao final, a resolução viola o princípio que ela diz que busca assegurar, na medida em que não traz disposições sobre aspectos socioassistenciais da juventude. Embora eu seja entusiasta da virtualização da Justiça, é inegável que (1) esse modelo não vai atingir todas as etapas processuais. Virtualizar o protocolo, distribuição, expedições de mandados e cartas é diferente da virtualização de sentenças/despachos/decisões e a realização de audiências; talvez, as intensidades de aplicação de novas tecnologias tenham que ser diferentes. Além disso, (2) considerando que a política de atendimento na infância pressupõe a integração operacional entre atores públicos e privados (art. 88, V e VI, ECA), a inexistência de atos presenciais associado à falta de participação das equipes técnicas (pelo menos) aproxima a instância infracional de uma punitividade-produtiva, em que os números e a movimentação do processo até a sentença são os objetivos em si que devem ser buscados, o que, claramente, não é compatível com a doutrina da proteção integral nem com o princípio do melhor interesse. Perceba-se, ainda, que (3) a resolução 330 não disciplina procedimentos cíveis da infância e juventude, apenas processos infracionais, confirmando portanto a lógica punitiva do Judiciário. De certa forma, o que vemos agora com a pandemia é a faceta mais evidente do capitalismo aplicado aos corpos pretos e pobres dos adolescentes brasileiros: são apenas números, a carne mais barata da sociedade.
Tenho na memória alguns momentos da minha infância e muitos deles acabam ressurgindo por elementos sensoriais e emocionais ao longo da minha história. Fato é que a maioria foram eventos triviais e ocorreram no relacionamento ordinário com minha família (pais e irmão, avós, tios e primos). Dentre as memórias, e para o que importa aqui, lembro-me de fazer visitas regulares a um determinado abrigo1, para brincar com as crianças e levar brinquedos e doces, especialmente em datas comemorativas, como o Natal. Pela influência natalina, tal memória me veio arrebatadora nos últimos dias. Agora já adulta e, por vezes, atuando como Promotora de Justiça na proteção da infância e juventude, dei-me conta que os antigos abrigos são os atuais serviços de acolhimento, e que as visitas, outrora admitidas sem qualquer burocracia (bastava chegar e entrar), agora dependem de autorização judicial. Percebi, também, que isso reduziu, drasticamente, o contato da sociedade com a realidade das crianças e adolescentes institucionalizados. Com esse pano de fundo, eu me autodeterminei a pensar (e assim publicar nessa coluna) formas de preservar as memórias afetivas dessas crianças e adolescentes, garantindo-lhes meios de convivência familiar, por intermédio da sociedade civil, ou seja, pela participação direta de pessoas, como eu, você e qualquer outra que conheçamos, na vida de crianças e adolescentes que vivem em serviços de acolhimento institucional. Enquanto sociedade muitos não sabem que a convivência familiar constitui direito essencial a todas crianças e adolescentes, previsto em diversos diplomas normativos, notadamente na Constituição Federal (art. 227, CF), no Estatuto da Criança e do Adolescente - lei 8.069/90 (arts. 4º e 16, V, ECA) e na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança - Dec. 99.770/90 (art. 9º, I). De fato, a família guarda papel fundamental na proteção das crianças e adolescentes enquanto pessoas em situação peculiar de desenvolvimento, porque é no bojo desse agrupamento humano que eles passam a se reconhecer como sujeitos de direitos e destinatários da doutrina da proteção integral, sendo a família condição para uma formação saudável, criação de identidade, fortalecimento da cidadania e construção de memórias afetivas. Por isso, o legislador previu como decorrentes do papel da família o "princípio da responsabilidade parental" e o "princípio da prevalência da família" (art. 100, IX e X, ECA). Aquele admite a intervenção estatal e a aplicação de medidas protetivas sempre que os pais violarem deveres para com seus filhos; já este, impõe que tal intervenção deva ser excepcional e priorizar a manutenção dos infantes junto à sua família (natural ou extensa), com o fortalecimento dos vínculos e eventuais direcionamentos psicoemocionais a seus membros2. Os conceitos de família natural e extensa, acima mencionado, estão previstos no art. 25, caput e parágrafo único, ECA, respectivamente, sendo a) "família natural" aquela compreendida pelos pais e seus filhos ou qualquer deles e sua prole, sendo natural por decorrer do vínculo de sangue entre pais (genitores) e filhos; e, b) "família extensa" aquela que se estende para além da unidade dos pais e filhos, ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais os infantes convivam e mantenham vínculos de afinidade e afetividade. Ao lado destes conceitos, de natureza biológica, o legislador estatutário previu também a "família substituta", decorrente da transferência do vínculo de parentalidade ou poder familiar, formando-se, exclusivamente, por laços de afeto e aperfeiçoando-se por meio da decisão judicial de adoção (art. 28, ECA). Enquanto sociedade, poucos sabem que, além da adoção, a configuração de uma "família substituta" pode se consubstanciar, também, em formato provisório e sem a transferência destes vínculos, através de guarda ou tutela judiciais. E isso costuma se dar com a finalidade de viabilizar cuidados em caráter transitório e excepcional, efetivando-se perante membros da família extensa (sempre preferível) ou terceiros cadastrados, ao que se convencionou chamar de "família acolhedora", perdurando somente até a reintegração do infante à sua família ou pela comprovada impossibilidade de fazê-lo. Da mesma forma, enquanto sociedade tendemos a esquecer que crianças e adolescentes devem ser mantidos no bojo de uma família, seja a sua própria família (natural ou extensa), seja uma família substituta (adotiva ou acolhedora). Isso é fundamental! Assim, a inserção e manutenção em serviços de acolhimento (antigos abrigos) devem ser situações absolutamente residuais e excepcionais, e jamais podemos nos esquecer disso. Ocorre que, na prática, muitas crianças e adolescentes estão acolhidos (segundo dados do SNA, hoje são 30.511), sem qualquer referência de família, passando longos e importantes períodos de sua vida institucionalizados, ou seja, crescendo e forjando sua personalidade, caráter e memórias através de convivências e relacionamentos interpessoais exclusivos com outros acolhidos e com prestadores de serviços (cuidadores, psicólogos, assistentes sociais). A despeito da importância destes vínculos estabelecidos dentro dos serviços de acolhimento, a verdade é que nenhum deles substitui o vínculo familiar, de modo que tais crianças e adolescentes podem passar uma vida inteira sem tal referencial, com consequências psicológicas e afetivas irreversíveis. O que nos faz concluir que, de nada adianta ter previsão constitucional expressa (que é dever da "família", "sociedade" e "Estado" assegurar, dentre outros, o direito à convivência familiar), se nenhum destes agentes, isolada ou conjuntamente, promovem a concretização de tal direito. Diante do exposto, e amarrando com a proposta da presente reflexão, como a sociedade, representada por qualquer pessoa, pode fazer diferença na vida de crianças e adolescentes que vivem em serviços de acolhimento? Destacarei 2 dos principais mecanismos a viabilizar que qualquer pessoa (como eu e você) seja capaz de marcar, positivamente, a vida de crianças e adolescentes institucionalizados, permitindo que tenham uma experiência (ainda que mínima) de convivência familiar: ACOLHIMENTO FAMILIAR: É previsto em lei (art. 34 e 260, §2º, ECA) como alternativa à institucionalização de crianças e adolescentes afastados de seu núcleo familiar. Nesse caso, ao invés de irem para o serviço de acolhimento, vão para a residência de uma "família voluntária" (pessoas previamente selecionadas, capacitadas e cadastradas no programa público), cuja função é vincular-se afetivamente3 e garantir-lhes os cuidados individualizados em ambiente familiar, sendo remunerada pela Prefeitura para tal fim. Tal acolhimento se formaliza por meio de guarda judicial temporária, que vigerá, provisoriamente, até que o(s) infante(s) possa(m) retornar ao convívio de seus familiares ou ser(em) adotado(s), quando a reintegração à família se mostrar inviável. APADRINHAMENTO AFETIVO: Previsto no art. 19-B, ECA, é um mecanismo de aproximação de crianças e adolescentes acolhidos com pessoas da comunidade. Nessa modalidade, padrinhos e madrinhas afetivos (pessoas previamente selecionadas, capacitadas e cadastradas no programa, que pode ser público ou privado) assumem o compromisso de proporcionar uma vivência fora do ambiente institucional, com o objetivo de estabelecer vínculos afetivos individualizados e duradouros, bem como proporcionar convivências familiar e comunitária. Tal programa foca, prioritariamente, em acolhidos com previsão de longa institucionalização (normalmente, já com destituição do poder familiar, mas sem perspectiva de adoção). Formaliza-se por meio autorizações internas do próprio serviço de acolhimento, exclusivas para visitas e passeios com o/a afilhado/a. Como se vê, os programas acima indicados estão previstos em lei e deveriam ser fomentados pelo Poder Público como ferramentas de oportunização de convivência familiar para crianças e adolescentes institucionalizados, por meio da mobilização e efetiva participação da sociedade. No caso das famílias acolhedoras, os programas devem ser criados, mantidos e subsidiados pelo Poder Público, por meio de assistência jurídica, incentivos fiscais e subsídios, como verdadeira política pública de proteção a crianças e adolescentes afastados de suas famílias. Infelizmente, contudo, muitos municípios não possuem o programa4 (mesmo após 11 anos de sua inserção no ECA) e os que possuem não promovem a adequada sensibilização da comunidade local, sendo poucos os exemplos de sucesso no país5. Não por acaso muitas pessoas nunca ouviram falar sobre acolhimento familiar e, por isso mesmo, não se tornaram uma família acolhedora, embora tenham perfil. Já quanto aos programas de apadrinhamento afetivo, podem ser executados por órgãos públicos ou organizações da sociedade civil6. Infelizmente, o incentivo público também tem se revelado insuficiente no fomento e implementação de tais programas, sendo que os poucos que existem dependem de financiamento privado e/ou de institutos e organizações relacionadas à causa infanto-juvenil. Embora estes programas não sejam remunerados (diferentemente das famílias acolhedoras, que recebem recursos para manutenção da criança acolhida, os padrinhos afetivos não auferem qualquer auxílio dessa natureza), exigem subsídio financeiro contínuo para capacitação e acompanhamento dos padrinhos e da equipe técnica responsável pela intermediação destes com a criança/adolescente, de modo que todos sejam treinados emocionalmente a estabelecerem vínculos somente quando tiverem condições de sustentá-lo, pois o impacto de um rompimento repentino de vínculos nesses infantes tende a ser mais prejudicial do que a própria ausência de vínculos. A par das considerações críticas sobre a falta de empenho público na criação, implementação e manutenção desses programas, parece restar claro que qualquer pessoa, enquanto membro da sociedade, pode participar ativamente da vida de crianças e adolescentes que vivem em serviços de acolhimento, sendo os dois mecanismos indicados formas de tentar suprir a convivência familiar que lhes é ceifada desde tão cedo (muitas vezes, desde sempre). *IMPORTANTE:Para maiores informações sobre os programas e sobre como se tornar "família acolhedora" (lembrando que qualquer pessoa, ainda que solteira ou em formatos familiares não convencionais pode se cadastrar) ou "madrinha/padrinho afetivos", procure a Vara da Infância e Juventude da sua cidade ou do bairro mais próximo (ou pesquise em sites de buscas por mais informações: Só não vale ficarmos parado quando somos inspirados a ajudar!). Angélica Ramos de Frias Sigollo é promotora de Justiça em São Paulo. Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da USP. Integrante do Proinfancia - Fórum Nacional dos membros do Ministério Público da Infância e Adolescência. Instagram: @angelicapjsp __________ 1 Antiga nomenclatura utilizada para os atuais serviços de acolhimento institucional. Interessante notar que o substantivo "abrigo" se relacionava à função destes serviços no passado, consistente em abrigar a criança/adolescente, ou seja, fornecer-lhe um local para que pudessem permanecer fisicamente após afastamento de seu núcleo familiar. Fortuitamente, e em decorrência de conquistas internacionais, o sistema nacional migrou para o modelo de acolhimento, em que o infante será acolhido e suprido em todas as suas necessidades básicas, e não somente abrigado. 2 A lei 13.257/16 aperfeiçoou o §3º do art. 19, ECA, enfatizando que a manutenção ou reintegração da criança/adolescente à sua família terá preferência em relação a qualquer outra providência, valendo-se, se o caso, de serviços e programas de proteção, apoio e promoção, nos termos dos arts. 23, §1º, 101, I e IV e 129, I a IV, todos do ECA. 3 CONANDA - Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes. Orientações técnicas aos serviços de atendimento às crianças e adolescentes deixam claro que a principal função do acolhimento familiar é fornecer convivência familiar e estabelecer vínculos saudáveis e duradouros. 4 Por exemplo, em São Paulo (maior cidade do país) o Programa de Acolhimento Familiar está previsto e regulamentado na Lei Municipal 16.691/17, contudo, sem implementação até a presente data. Disponível aqui. Acesso: 14 jul., 2020. Por sua vez, Osasco (cidade contígua à capital) possui o programa, que se chama "Família Canguru". Disponível aqui. Acesso: 12 dez., 2020. 5 Referência bem sucedida dessa modalidade de acolhimento é a cidade de Cascavel/PR, que sequer possui de acolhimento institucional, de modo que a totalidade de crianças e adolescentes afastados da família originária estão em acolhimento familiar. Disponível aqui. Acesso: 13 dez., 2020. 6 Art 19-B, §5º ECA.
Você já ouviu falar da Unidade Experimental de Saúde? Só o nome nos remete a uma possível realidade distópica onde são realizados experimentos ligados à saúde humana, não é? Pois bem. Este artigo tem por objetivo endereçar um convite àqueles que se preocupam em como se desenvolve a cidadania plena no Brasil, mormente com a proteção da população vulnerável.  Há diversos diplomas que dispõem sobre os direitos das crianças e adolescentes, a começar pela Constituição Federal (CF, Artigos 6º e 227) e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que recentemente fez 30 anos. Com base no que se reproduz na mídia em geral e até levando em consideração a empatia quase universal pela causa da infância e juventude, é conhecido e notório o dever da sociedade, da família e do Estado de proporcionar a este público o que chamamos, de Doutrina da Proteção Integral. Uma premissa é necessária para entendermos o contexto da criação da Unidade Experimental de Saúde (UES), em 2008, vinculada à Fundação Casa: o Governo Brasileiro historicamente não investe em políticas públicas efetivas para a infância e juventude! Com efeito, o Relatório Avaliativo do aniversário de 25 anos do ECA (2016) revela que, em 2013 - último dado disponibilizado pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) na época -, dos 10,6 milhões de jovens de 15 a 17 anos, mais de 1 milhão não estava formalmente estudando ou trabalhando. Ou seja, parcela significativa da população jovem estava à margem do conceito de cidadania social. Não coincidentemente, é a mesma população encontrada na Fundação Casa. Em 2018 o Ministério dos Direitos Humanos publicou o Relatório Anual do SINASE, baseando-se em dados oficiais de 2016, o qual mostrou que 70% dos jovens cumprem medida socioeducativa na modalidade internação, representando um total de 18.567 (mais da metade localizados no Estado de São Paulo - 9.572). Segundo o MDH, o perfil dos adolescentes em restrição e privação de liberdade pela prática de ato infracional era de 96% de jovens do sexo masculino, sendo a maior faixa concentrada entre 16 e 17 anos (57%), justamente aquela na qual o índice educacional era baixo, e 59,08% de origem preta ou parda. Mas, não nos cabendo, aqui, a análise detida dos aspectos de políticas criminais, voltemos à proteção integral da juventude pela ótica social e civil. Evoluindo a questão, desnecessário tratar de forma minuciosa do direito à saúde, mas é para a luta antimanicomial que lançamos destaque. Justamente entre estes dois mundos - da criminalidade juvenil e da precária situação da saúde mental no Brasil -, é que encontramos a UES. A Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei n. 10.216/01) entrou em vigor somente em 2001. Destaca-se que esta norma aponta em seu Artigo 3º que "é responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política de saúde mental, a assistência e a promoção de ações de saúde aos portadores de transtornos mentais, com a devida participação da sociedade e da família, a qual será prestada em estabelecimento de saúde mental, assim entendidas as instituições ou unidades que ofereçam assistência em saúde aos portadores de transtornos mentais". Aponta, outrossim, que a internação é a última modalidade de tratamento a ser escolhida e só será indicada se todos os demais recursos não hospitalares se mostrarem insuficientes, devendo sempre ser observada a possibilidade de reinserção social do paciente (Art. 4º). Em que pese a UES carregue "saúde" em seu nome, a Instituição flerta mais com o Sistema Penitenciário. Localizada na Vila Maria ao lado de um estabelecimento prisional, a casa foi criada pelo Poder Executivo (Portaria Administrativa FEBEM n. 1.219/2006), mantida de forma irregular por dois anos até a edição do Decreto n. 53.427/2008 pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, a qual já indicava em seu texto o público-alvo pré-definido de forma unilateral e exclusiva pelo Poder Judiciário: jovens adultos egressos da Fundação Casa1. Chama-se atenção ao fato de que os processos judiciais envolvendo a UES dos quais se tem acesso pela consulta pública do sítio eletrônico do Tribunal de Justiça de São Paulo são todos movidos pelo Ministério Público, embora os pretensos interditados estejam ainda internados na Fundação Casa e possuam famílias, legitimados ativos do Art. 747 do CPC. Ou seja, os jovens são encaminhados a um estabelecimento criminal em virtude de julgamento - em cognição sumária e/ou exauriente - de ação de interdição civil movida pelo Ministério Público, sendo este o órgão também responsável por tutelar direitos destes mesmos jovens incapazes. Conflituoso, não? Vale dizer, ainda, que no caso de doença mental grave, como se discute, a atuação do Ministério Público só poderia ocorrer na omissão dos familiares ou do representante da entidade onde o interditando esteja internado (CPC, Art. 748, inc. I). Ocorre que, interpretando tal omissão de forma desfavorável ao próprio jovem em situação de vulnerabilidade social e desafiando a legítima intenção do instituto da interdição civil, que é a proteção da pessoa que se busca interditar, o Ministério Público ajuíza ação de interdição civil às vésperas da libertação do jovem. Esta ação tem objetivo claro: a internação perpétua de jovens adultos egressos da Fundação Casa que apresentam questões de saúde mental, sem nem ao menos aferir de forma legítima qual suporte estatal e familiar este jovem teria e precisaria para sua devida reinserção no mercado de trabalho, familiar e comunitária. Assim, baseados no medo de que tais jovens sejam reincidentes na prática delitiva, por "transtorno de personalidade antissocial e apresenta dificuldade em seguir regras sociais"2, o Judiciário viola direitos humanos, tal como a vida e a liberdade destas pessoas, que já cumpriram a medida socioeducativa que a lei lhes prescreve, e reforça estereótipos estigmatizantes de casos de saúde mental. O Estado, pois, não tutela direitos destes jovens antes do cometimento da prática delituosa, durante a internação e nem mesmo depois de sua possível soltura! Vale dizer que em documento oficial, em 2011, a ONU pediu o fechamento da UES, assim como a Procuradoria da República, entidades de direitos humanos e o Conselho de Psicologia de São Paulo através de ação civil pública3. Todavia, mesmo com todas estas manifestações, nada foi feito, o que nos gera um questionamento: por que a UES ainda se mantém? A resposta, quiçá, está em questões já aventadas pela mídia sobre a rica alocação orçamentária para sua manutenção! É evidente que o Sistema de Justiça não poderia ser protagonista na prática de violação de direitos humanos, mormente em se tratando de jovens, ainda em início da vida adulta, que necessitam de apoio familiar, comunitário e estatal para garantia de seus direitos. Todavia, a partir desta omissão, perpetua-se verdadeira política pública às avessas que reforça a exclusão social de jovens em situação de vulnerabilidade social. Fica, portanto, o convite para esta reflexão a fim de que possamos resolver problemas sociais de forma efetiva, evitando iniciativas que possuem objetivo claro de dizimar a juventude vulnerável em nosso país. _____________ 1 É justamente o que diz o Artigo 2º de tal norma: cabe à UES "cumprir, exclusivamente, as determinações do Poder Judiciário de tratamento psiquiátrico em regime de contenção, para atendimento de adolescentes e jovens adultos com diagnóstico de distúrbio de personalidade, de alta periculosidade (...) egressos da Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente - Fundação CASA - SP, que cometeram graves atos infracionais" e "que forem interditados pelas Varas de Família e Sucessões". 2 TJ/SP, AI 2117122-44.2016.8.26.0000, Rel. Christine Santini, j. 10/05/2017. 3 Ainda sobre a situação dos hospitais psiquiátricos: "Hospitais-Prisão", da Pastoral Carcerária.
Os primeiros seis anos de vida recebem do nosso ordenamento jurídico especial atenção, com vistas a garantir o desenvolvimento integral da pessoa nesse período sensível conhecido como primeira infância, diante dos estudos que demonstram que as habilidades desenvolvidas dos zero aos seis anos são o alicerce para o desenvolvimento de habilidades mais complexas no futuro. O Marco Legal da Primeira Infância (MLPI) - Lei 13.257/16 - reforça a proteção de crianças nessa faixa etária, na esteira do artigo 227 da Constituição Federal, do Estatuto da Criança e do Adolescente e da Convenção sobre os Direitos da Criança, implicando a família, a sociedade e o Estado na responsabilidade pela promoção dos direitos fundamentais na tenra idade. Essa 'janela de oportunidade' para influxos positivos na vida da pessoa deve ser encarada com zelo e o Sistema de Justiça tem um papel importante nessa promoção de direitos. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) coordena desde 2019 o Pacto Nacional pela Primeira Infância, proporcionando diversas ações para engajar advogados, defensores públicos, delegados de polícia, magistrados, promotores e outros profissionais nessa luta pela construção de uma Justiça mais sensível, acessível e amigável a crianças e adolescentes. Mais recentemente, o Plano Nacional pela Primeira Infância (PNPI) lançado em 2010 pela Rede Nacional Primeira Infância (RNPI), aprovado pelo CONANDA naquele ano, teve sua atualização publicada há algumas semanas, estendendo sua vigência até 2030 - coincidindo assim com a agenda dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU -, franqueando a participação do Sistema de Justiça na revisão desse importantíssimo documento, prevendo, ainda, capítulo específico sobre o 'Sistema de Justiça e a Criança'. Essa visibilidade dada pela RNPI e o conjunto de ações coordenado pelo CNJ chamam a atenção da comunidade jurídica de como o Sistema de Justiça tem se voltado à melhoria de sua infraestrutura na promoção dos interesses específicos dessa faixa etária, permitindo inferir pelo menos ONZE pontos a respeito desse protagonismo que precisam se manter em evidência. 1. DIREITO À PARTICIPAÇÃO. O artigo 12 da Convenção sobre os Direitos da Criança assegura a toda criança o direito à participação efetiva no Sistema de Justiça, como expressão máxima da Doutrina da Proteção Integral, observadas as especificidades da idade. Essa proteção é reforçada no Marco Legal da Primeira Infância ao tratar em diversas passagens de seu art. 4° no que toca à cidadania que deve ser deferida à criança, realizando-se a escuta por meio de profissional qualificado. 2. FOCO NA INTERSETORIALIDADE. O Sistema de Justiça tem papel importante na articulação intersetorial com os demais órgãos que integram o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente, com base no art. 88, V, VI e IX, do Estatuto. O MLPI reforça a necessidade da atuação intersetorial e permite extrair de seu art. 6° essa missão precípua do Poder Judiciário, da Defensoria, do Ministério Público, da Advocacia e de outros segmentos. 3. ENTREGA PROTEGIDA PARA ADOÇÃO. O MLPI inseriu no Estatuto (art. 13, §1°) a exigência de que gestantes e mães de recém-nascidos que tenham interesse na realização da entrega voluntária para adoção sejam encaminhadas ao Poder Judiciário, sem constrangimento, o que reclama estrutura adequada das Unidades Judiciárias com essa competência para o atendimento humanizado dessas mulheres, e a articulação entre os demais órgãos para a proteção dos interesses da criança. 4. IMPACTOS DO ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL. O acolhimento institucional (art. 101, VII e §§, do Estatuto) deve ser definitivamente encarado como medida excepcional e temporária, considerando os impactos negativos da institucionalização, em especial na primeira infância, exigindo acima de tudo o engajamento por meio de audiências concentradas de reavaliação (art. 19, §1°, do Estatuto) para desenvolvimento das metas inseridas no Plano Individual de Atendimento da pessoa acolhida, seja para reintegração familiar ou, em último caso, para encaminhamentos voltados à colocação na família adotiva. 5. FOMENTO AO ACOLHIMENTO FAMILIAR. O Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária, que está em fase de reavaliação, aponta a necessidade do fomento às famílias acolhedoras no País, destacando o art. 34, §1°, do Estatuto sua preferência em relação ao acolhimento institucional, acaso necessário o afastamento da família de origem. Isso porque a família acolhedora tem potencialidades para promover interações afetivas e individualizadas necessárias para o desenvolvimento integral da criança, notadamente dos zero aos seis anos de idade, devendo o Sistema de Justiça levar ao palco intersetorial a sensibilização da rede de proteção a respeito das vantagens desse instituto, para fins de implementação. 6. DEPOIMENTO ESPECIAL. Diversos segmentos da Justiça, a exemplo de Varas com competência criminal, infantoadolescente, de família e de violência doméstica, devem se aparelhar estruturalmente para realização do depoimento especial de crianças e adolescentes (Lei 13.431/17), e também construir meios de cooperação interna para compartilhamento de provas (art. 6° da Res. 299/2019 do CNJ. Nessa linha, aquela exigência se estende tanto às salas de depoimento especial, quanto à capacitação de entrevistadores forenses, devendo ser também os profissionais do direito capacitados no contexto do Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense, a fim de afastar qualquer margem de revitimização. 7. ALIENAÇÃO PARENTAL. A lei 12.318/10, que dispõe sobre alienação parental, visa coibir a conduta de genitores ou responsáveis voltadas ao prejuízo das relações com outro ente familiar, o que pode resvalar na objetificação da criança. Com efeito, verifica-se acima de tudo a necessidade de se aparelharem as unidades judiciárias com competência de família com equipes multiprofissionais, para subsidiar o operadores na identificação de eventual interferência negativa na formação psicológica da criança ou do adolescente. 8. COMBATE AO SUBREGISTRO. Outro eixo apontado no PNPI diz respeito às ações voltadas à diminuição dos índices do subregistro, uma vez que o registro civil é o documento básico que adjudica à pessoa o exercício de diversos direitos fundamentais. Ressalte-se a ação promovida intersetorialmente na Paraíba pelo Poder Judiciário, Ministério Público, Segurança Pública dentre outras instituições, intitulada 'Cidadania de Primeira', cujo objetivo foi o fomento na obtenção da identidade civil já na primeira infância, reforçando a proteção integral da criança no exercício primário da cidadania e também a erradicação do subregistro. 9. CRIANÇAS COM DEFICIÊNCIA. As crianças com deficiência na primeira infância se enquadram no conceito de pessoa especialmente vulnerável, conforme o art. 5°, parágrafo único, da lei 13.146/15, devendo o Sistema de Justiça garantir meios para a superação de barreiras para acesso aos direitos fundamentais. Destaque-se a prioridade no Sistema Nacional de Adoção para que sejam inseridas em família adotiva, conforme art. 50, §15, do Estatuto incluído pela lei 13.509/17, caso estejam aptas para adoção, podendo se valer de programas de busca ativa para  busca de pessoas interessadas na adoção. 10. JUSTIÇA RESTAURATIVA. A troca de lentes a que se refere Howard Zehr no contraponto entre a Justiça Tradicional e a Justiça Restaurativa também pode desnudar o necessário fomento intersetorial do Sistema de Justiça na perspectiva da res. 225/16 do CNJ, no tocante a práticas restaurativas já na primeira infância, sobretudo nas iniciativas de desenvolvimento no âmbito escolar, proporcionando desde a tenra idade o itinerário e o desenvolvimento da pessoa à luz da Cultura de Paz na contextualização e transformação de conflitos/relações. 11. PRISÃO DOMICILIAR. Os integrantes do Sistema de Justiça não podem perder de vista a questão de fundo ligada ao direito fundamental à convivência familiar e comunitária da criança com os pais e mães que são alvos da pretensão persecutória estatal, o que foi reforçado pelo MLPI (art. 41) ao garantir o direito à substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliar da gestante, da mulher com filho de até doze anos de idade incompletos e do homem, nesta mesma circunstância, caso seja o único responsável pelos cuidados do filho (art. 318, IV, V e VI, do CPP). Os HCs Coletivos 143.461/SP e 165.704/DF estabelecem a obrigatoriedade da conversão da custódia nessas hipóteses, observadas as exceções previstas no art. 318-A do CPP. Dessa forma, interessante observar como no PNPI o Sistema de Justiça dialoga com os diversos objetivos insculpidos no documento, dentre eles o mais sensível dos capítulos, que trata do direito à beleza (pg. 205 e ss.).  Dostoiéviski é referenciado no documento com a célebre frase 'a beleza salvará o mundo', devendo o Sistema de Justiça fazer parte dessa construção para se transformar e, assim, humanizar o acesso à justiça para a criança na primeira infância, proporcionando conexões que propugnem seu desenvolvimento integral.
Estamos em novembro de 2020. Faltam cinco anos para que o Brasil cumpra a diretriz 8.7 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU e adote "medidas imediatas e eficazes para erradicar o trabalho forçado, acabar com a escravidão moderna e o tráfico de pessoas, e assegurar a proibição e eliminação das piores formas de trabalho infantil, incluindo recrutamento e utilização de crianças-soldado, e até 2025, acabar com o trabalho infantil em todas as suas formas". 5 anos. Para acabar com o trabalho infantil. Em todas as suas formas. Como estamos até agora? O texto dessa coluna foi pensado a partir da notícia veiculada no Informativo 994 do STF, em que um dos julgamentos virtuais concluídos pelo Plenário da Corte tem o título "CF, art. 7º, XXXIII: EC 20/1998 e idade mínima para o trabalho". Em pesquisa sobre o julgamento, podemos saber que se trata da ADI 2096/DF, ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria (CNTI) contra o aumento da idade mínima para o trabalho de 14 para 16 anos de idade, promovida pela EC 20/1998, que modificou a redação do art. 7º, inciso XXXIII, da Constituição da República de 1988. Da leitura da petição inicial, um trecho se destaca dentre os fundamentos do pedido de inconstitucionalidade do texto da emenda constitucional: "Menores vadios. Menores desocupados. Menores carentes. Menores delinquentes. Este é o drama da sociedade brasileira, que, está a exigir normas protetoras do menor, mas de tal forma que não venha a impeli-los a uma situação desastrosa sob qualquer enfoque que se lhe dê". De modo a que não haja dúvidas, o que esse trecho da petição inicial da ADI 2096/DF traduz é a defesa da possibilidade do trabalho infantil a partir dos 14 (catorze) anos de idade de modo a "proteger" a infância carente, vadia ou delinquente. Para responder à pergunta acima proposta, 2 outras perguntas nos parecem ser respondias previamente. A primeira, envolve os argumentos da ADI 2096/DF e os erros que envolve. A segunda pergunta, vai responder mais especificamente o porquê deve se erradicar o trabalho infantil e, então, a situação brasileira nesse momento. Afigura-se "tentador" afirmar que o trabalho pode ser uma ressignificação para a infância, de modo a ocupar "espaços vazios" ou lacunas criadas pelas ausências de políticas públicas de educação, lazer, esportes e cultura. A frase comumente falada no Rio de Janeiro que poderia resumir essa ideia seria: "mente vazia, oficina do diabo". Não sei as origens, e os limites dessa coluna me impedem de melhor compreender essa frase. Ainda assim, ela está usualmente associada à ideia de que é preferível que crianças e adolescentes trabalhem do que fiquem sem ocupação e façam "coisas erradas". Apostando que essa frase popular tem origem antes de 1988, o erro da frase e da ideia que ela sintetiza está no fato de que a infância foi profundamente modificada no Brasil desde 1988. A origem dessa mudança, internamente, é a Constituição da República de 1988 (arts. 226 e 227), que adotou a doutrina da proteção integral e o princípio do melhor interesse da criança; internacionalmente, a mudança está justificada nas discussões na ONU, realizadas desde 1977, e que culminaram na aprovação em 1989 da Convenção sobre Direitos da Criança, que adota os mesmos princípios constitucionais de 1988. O processo constituinte brasileiro que ocorreu entre 1985 e 1988 valeu-se profundamente das discussões travadas na ONU e incorporou no texto constitucional a ideia de que crianças e adolescentes são a) sujeitos de direito ou pessoas com integralidade de direitos; b) possuem características especiais em razão do grau de desenvolvimento que exigem proteção especial; c) devem ter prioridade nas decisões públicas ou privadas que interferem nos seus interesses. Essa etapa, que culmina com a aprovação do ECA em 1990, representa a viragem da doutrina da irregularidade de menores e o caráter tutelar da infância para a doutrina da proteção integral, segundo a qual haveria a possibilidade de a criança ser sujeito-cidadã ou, nas palavras de Josiane Rosi Petry Veronese, que crianças e adolescentes passassem da "condição de menores, de semicidadãos, para a de cidadãos", construindo o "paradigma de sujeitos, em oposição à ideologia e de toda uma práxis que coisificava a infância". A adoção da doutrina da proteção integral e do princípio do melhor interesse pela Constituição de 1988 e pelo ECA demonstra o erro jurídico na argumentação da ADI 2096/DF, uma vez que nos fundamentos da petição inicial a criança é instrumentalizada como ponto de apoio para a superação do estado de pobreza da família. A leitura da peça judicial revela que não há preocupação com a infância em si considerada, tampouco com os direitos da criança-trabalhadora, senão em como essa criança poderia servir de etapa ou mecanismo para a sobrevivência familiar. Dito de outra forma, não se preocupa com a melhoria das condições de vida da criança, mas no uso mercadológico e de geração de (baixíssima) renda ela pode ter em relação à família. Por isso, e na medida em que conflita com o texto constitucional do art. 227 da Constituição da República de 1988 ao tornar a criança um instrumento de benefício alheio, a ADI mereceria ser improvida. Embora a mudança do modelo tutelar para a doutrina da proteção integral tenha ocorrida entre 1988/1990 no Brasil, em 1973 a Organização Internacional do Trabalho (OIT), órgão vinculado a ONU, aprovou a Convenção n. 138, que definiu como idade mínima para o trabalho a idade da escolarização compulsória, de no mínimo 15 anos de idade, e que seria progressivamente aumentada pelos países signatários. O Brasil aprovou a Convenção em 2001, a ratificou em 2001 e a promulgou com vigência nacional em 2002, o que significa dizer que em 1998, o país já caminhava em direção da norma internacional, mesmo sem a sua internalização. Paralelamente a essa norma, foi incorporada ao direito brasileiro a Convenção n. 182 da OIT, sobre as piores formas de trabalho infantil. Esse tratado detinha maior urgência na sua implementação, tanto que passou a vigorar a partir de 2001, e objetivava implementar medidas internacionais para a extinção de formas de trabalho extremamente danosas à criança e ao adolescente, dentre elas a escravidão e as práticas análogas à escravidão, trabalho forçado e compulsório, utilização de crianças para fins de prostituição e pornografia, produção e tráfico de entorpecentes e atividades com prejuízo à saúde, segurança e moral da criança. Nesse contexto de combate às piores formas de trabalho infantil, é importante destacar a aprovação da lei 12.015/2009, que aumentou a escala penal do crime de corrupção de menores no art. 244-B do ECA. As razões porquê o trabalho infantil deve ser proibido podem ser resumidas em 3 grupos, de acordo com o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI): a) físicas: o trabalho infantil causa fadiga excessiva, problemas respiratórios, doenças causadas por agrotóxicos, lesões e deformidades na coluna, alergias, distúrbios do sono, irritabilidade; b) psicológicas: abusos físicos, sexuais e emocionais são os principais fatores de adoecimento das crianças e adolescentes trabalhadores, fobia social, isolamento, perda de afetividade, baixa autoestima e depressão; c) educacionais: baixo rendimento escolar, distorção idade-serie, abandono da escola e não conclusão da Educação Básica, aumento potencial de menores seu salários na fase adulta e manutenção dos ciclos de pobreza e exclusão social. Segundo relatório da ONG Repórter Brasil, especializada em direitos trabalhistas, houve avanços na redução do trabalho infantil no Brasil, fruto de medidas conjuntas do poder público, da sociedade civil e de organizações não-governamentais, mas persiste uma cultura residual de aceitação do trabalho infantil em que as políticas até então efetivas não conseguem penetrar. Mencionada no relatório da Repórter Brasil, a secretária-executiva do FNPETI destaca que crianças e adolescentes em idade escolarização deveriam "cumprir a jornada escolar, ser pontual, realizar atividades, fazer as tarefas e estudar (...) em condições que favorecem a formação do caráter". Na forma como expressam Michael Freedman e John Eekelar, isso significaria afirmar que crianças e adolescentes têm direito a ter o futuro em aberto e a construírem os seus futuros, no que o trabalho infantil constitui obstáculo. De uma forma precisa, de acordo com estudo da Fundabrinq, o Brasil contava entre 2015 e 2016 com cerca de 5% da população entre 05 (cinco) a 17 (dezessete) anos em ocupações de trabalho, que variam do trabalho doméstico, ao trabalho agrícola e não agrícola. Se você chegou até esse ponto do texto com a imagem do trabalho infantil em fábricas, tal como nas revoluções industriais inglesas, esqueça! Ele é bem mais sutil no mundo de hoje e se mostra nas crianças que precisam assumir responsabilidades domésticas, as que trabalham, por exemplo, enrolando fumo, ou em comércios ilegais pelo Brasil, incluindo o tráfico. Pode parecer pouco 5%, mas isso representava aproximadamente 2 milhões de crianças. É muito. Parafraseando uma fala feminista de movimentos argentinos, "nem uma a menos", porque nem uma criança merece ter o seu futuro interrompido porque o Estado e a sociedade não foi capaz de oferecer a ela os direitos que ela têm e a dizer que "não, deixa eu cuidar de você, e nunca mais durante a sua infância você terá que trabalhar".
"(...) a segregação em face do diferenteimpede o colorido da vivência cotidiana,privando a todos da capacidade de reconhecer o outro"(Edson Fachin, ADI 5357, STF) Desde a publicação do decreto Federal 10.502, de 30 de setembro de 2020 (assinado pelo Presidente da República, Jair Bolsonaro), reformulando a Política Nacional de Educação Especial - PNEE, especialistas, entidades e órgãos estão expondo publicamente contrariedade ao seu texto1. Além das diversas manifestações em redes sociais, veículos de imprensa e eventos (notadamente por meios remotos, como lives e webinars) a norma também está sendo atacada por dois projetos de decreto legislativo que tramitam no Congresso Nacional, com a finalidade de sustá-la (PDL 437/20 o Senado Federal e PDL 433/20 na Câmara dos Deputados), bem como por uma Ação Direta de Descumprimento de Preceito Fundamental, ajuizada perante o Supremo Tribunal Federal (ADPF 751). Os argumentos são uníssonos, o decreto presidencial viola o direito fundamental de educação inclusiva, os Princípios da Igualdade, Não Discriminação e de Vedação ao Retrocesso. Inicialmente, e para alguns menos afetos ao tema, pode parecer injustificada a indignação com o decreto, seja pelo nome bonito que o presidente lhe atribuiu: "Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida", seja pelo marketing na cerimônia de lançamento (com direito à primeira-dama, Michelle Bolsonaro, reproduzindo o pronunciamento em Libras), seja, por fim, pela falsa sensação de liberdade conferida aos pais/responsáveis, legitimados a escolher se querem os filhos na rede regular ou na denominada rede especializada. Em breve síntese, a PNEE foi divulgada pelo governo federal, em evento no Palácio do Planalto, com um discurso de inclusão, em tese, com a finalidade de garantir o atendimento aos estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação. Para tanto, dentre outras coisas, o decreto conceituou alguns termos em seu art. 3º, dentre eles educação especial, escolas especializadas e classes especializadas. Destaco tais termos porque, embora tenha havido reprodução do conteúdo constitucional relativo à educação especial, como modalidade de educação escolar especializada oferecida, preferencialmente, na rede regular de ensino (art. 208, III CF), o decreto, simultânea e sorrateiramente, reintroduziu as terríveis figuras das escolas e classes especializadas2 como opções a serem consideradas na implementação da política de educação no País, readmitindo a possibilidade de segregação dos alunos com deficiência em ambientes distintos daqueles destinados aos alunos sem deficiência. Consente-se, assim, que alunos com deficiência estudem fora da rede regular/comum. Numa leitura rápida e superficial do decreto, pode passar despercebida a discriminação havida no retorno desses termos à política educacional brasileira, bem como os perigosos desdobramentos no mundo fático, podendo até suscitar conclusões precipitadas de que a existência de escolas especiais e/ou classes especializadas são boas soluções, absolutamente inofensivas. Isso é compreensível, especialmente porque são sedutoras as promessas do decreto, no sentido de que tais unidades contarão com acessibilidade, equipamento, mobiliário, projeto pedagógico, material didático e profissionais especializados no atendimento do público-alvo (definido no art. 5º). Não bastasse, é curioso que, tratando-se de um decreto imposto, sem prévia e suficiente oitiva dos interessados e da sociedade civil destinatária3, forja, ardilosamente, um viés democrático (que, na verdade não existe), ao dispor que o aluno e sua família participarão do processo de decisão quanto à alternativa educacional mais adequada (regular ou especializada), com apoio de equipe multidisciplinar, conduzindo à uma ficta impressão de liberdade de escolha4. Especialistas e interessados em educação, em direitos infanto-juvenis, direitos humanos e direitos das pessoas definidas como público-alvo (com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação), reconhecem que o decreto representa um retrocesso em relação à política educacional anterior, instituída em 20085, cuja principal conquista foi eliminar a segregação total ou parcial desses alunos. A política até então vigente concebia uma proposta pedagógica inclusiva dentro da escola regular/comum, sendo que eventuais necessidades específicas dos alunos deveriam se viabilizar dentro (e não fora) desse ambiente. Por ela a inclusão pressupunha, necessariamente, um processo de reforma sistêmica, incorporando aprimoramentos e modificações em conteúdo, métodos de ensino, abordagens, estruturas e estratégias de educação para superar barreiras, oferecendo a todos os estudantes (com ou sem deficiência) condições igualitárias de aprendizado e socialização (funções típicas da escola). Essa perspectiva inclusiva foi resultado da forte influência exercida pela Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência CIDPD, aprovada pelo decreto legislativo 186/08 e promulgada pelo decreto 6.949/09, primeira norma internacional recepcionada com status de emenda constitucional no Brasil, por força do no §3º art. 5º da CF. Antes disso, outras normas importantes já sustentavam o direito fundamental à educação especializada, com foco inclusivo, como a Constituição Federal (arts. 205, 206 e 208, III), o Estatuto da Criança e do Adolescente - lei 8.069/90 (art. 54, III), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação - lei 9.394/96 e a resolução 2/01, do Conselho Nacional de Educação, o que não impedia, infelizmente, a segregação dos estudantes, cuja escolarização costumava ser oferecida em ambientes separados, em escolas especiais, isolados de alunos sem deficiência. Esse arcabouço normativo foi costurado a partir das evidências sobre a eficácia do sistema educacional inclusivo que, diferentemente do que pode parecer num primeiro momento, não traz vantagens só aos alunos com deficiência, mas a todos que com eles convivam. Somente a convivência com o diferente, sobretudo entre crianças e adolescentes, é capaz de combater a estigmatização e a discriminação, com o desenvolvimento natural de capacidades e habilidades para lidar com o novo. Assim, se por um lado, o aluno com deficiência progride pelo ambiente misto de aprendizado desafiador, conquistando seu espaço e autonomia, por outro lado, os demais alunos e os profissionais da educação superam preconceitos e desenvolvem/aprimoram ferramentas e habilidades emocionais, como a empatia. Sem dúvida, a educação inclusiva é socialmente importante por oferecer uma plataforma estável de conexão entre diferentes, com a percepção da diversidade como um valor, tarefa determinante para a constituição de uma sociedade livre, plural, justa e solidária, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e outras formas de discriminação6. Como resultado da política inclusiva, hoje cerca de 90% dos estudantes com algum tipo de deficiência estão matriculados em escolas comuns e, embora a quase totalidade esteja apenas integrada (inserida no sistema regular de ensino, mas com atendimento em salas exclusivas e atividades específicas), já se verifica um avanço em relação ao contexto que a antecedeu. São esses os motivos da justificada repercussão negativa, na medida em que a PNEE, ao invés de fomentar medidas capazes de migrar da fase de integração para a efetiva inclusão, acabou ressuscitando as salas e escolas especiais, readmitindo a abolida segregação, em nada compatível com uma política dita inclusiva. Deste modo, além de anacrônica, diverge substancialmente dos documentos e leis que tratam do direito à educação às pessoas com deficiência vigentes no ordenamento jurídico brasileiro, que impedem práticas discriminatórias e estimulam a plena e efetiva participação e inclusão na sociedade, começando pelo acesso à escola (razão pela qual, inclusive, está sendo questionada no legislativo e impugnada judicialmente). Ora, nesse momento da história o Governo Federal deveria eliminar as dificuldades encontradas nas escolas regulares e não criar novas barreiras, com um efeito cliquet na proteção do direito fundamental à educação inclusiva. Ao contemplar investimentos para escolas especiais opta, retrógrada e voluntariamente, por drenar recursos que deveriam se destinar ao aprimoramento de instalações físicas, treinamento de professores e outras medidas necessárias à consecução da política de inclusão. Como consequência do acima exposto, o decreto coloca um peso sobre os pais/responsáveis que, supostamente, podem indicar onde matricular seu filho: podem "optar" entre segregar (escolas especializadas, em tese e pela promessa, beneficiadas com mais investimentos) ou incluir (escolas regulares, cuja estrutura é naturalmente deficitária). Isso aperta o coração, além de revelar covardia, porque não implica em direito de escolha, mas sim na falta de escolha. Parece cristalino, assim, o porquê não podemos aceitar escolas especiais para crianças e adolescentes. __________ 1 Dentre os diversos atores que se mobilizam contra o decreto, os Ministérios Públicos Estaduais de todo o país lançaram campanha conjunta pedindo sua revogação, como órgão defensor da ordem jurídica e do regime democrático de direito, reafirmando para toda a sociedade a luta, pelos promotores de justiça, em favor da educação das pessoas com deficiência, sem segregação e sem discriminação #SegregaçãoNãoÉEducação #SegregarNãoÉIncluir. 2 Art. 3º, VI e VII, respectivamente, "Instituições de ensino planejadas para o atendimento educacional aos educandos da educação especial que não se beneficiam, em seu desenvolvimento, quando incluídos em escolas regulares inclusivas e que apresentam demanda por apoios múltiplos e contínuos)" e "aquelas organizadas em escolas regulares inclusivas, com acessibilidade de arquitetura, equipamentos, mobiliário, projeto pedagógico e material didático, planejados com vistas ao atendimento das especificidades do público ao qual são destinadas, e que devem ser regidas por profissionais qualificados para o cumprimento de sua finalidade". 3 Desde 2018 se cogitava a alteração na PNEE, contudo, a atualização se deu em meio à Pandemia, em contexto absolutamente desfavorável e não prioritário e, consequentemente, sem a discussão necessária com a sociedade e interessados. Segundo a professora da Faculdade de Educação da USP, Carla Biancha Angelucci as reuniões foram realizadas com algumas entidades escolhidas pelo governo e não houve um debate amplo. Disponível aqui . Acesso em 17 out, 2020. 4 A mera previsão de escolas e classes especiais no decreto acaba por estimular os setores da educação a recusarem alunos com deficiência nas escolas regulares/comuns. Lembre-se, dentre outros lamentáveis episódios, que a Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino questionou a constitucionalidade do Estatuto das Pessoas com Deficiência e o dever de inclusão, alegando, ainda, medidas de alto custo para as escolas privadas (ADI 5357, julgada improcedente). Ademais, o legislador penal foi obrigado a criar tipo próprio para criminalizar a conduta de escolas públicas ou particulares que neguem a matrícula a aluno com deficiência (art. 8º da lei 7.853/89). Em outras palavras, a liberdade dos pais/responsáveis passará por uma (ligeira e sutil) coação em prol do ensino segregado, e muitos sequer perceberão. 5 Disponível aqui. Acesso em 18 out, 2020. 6 Disponível aqui. Acesso em 19 out, 2020.  O estudo nomeado "Os benefícios da educação inclusiva para estudantes com e sem deficiência", foi coordenado pelo professor Thomas Hehir, da Escola de Educação de Harvard, lançado em 2016 pelo Instituto Alana e ABT Associates. A análise compila resultados de mais de 89 estudos, selecionados num universo de 280 artigos publicados em 25 países, realizados por meio de diversas metodologias e com diferentes populações de estudantes.
"Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara"(José Saramago)  Iniciado o mês de outubro no Brasil é quase consenso que pessoas que tenham contato com alguma criança ou afinidade com a causa da proteção infanto-juvenil já comecem a se programar para o dia 12, o "Dia das Crianças". Da mesma forma, o comércio e os prestadores voltados a esse público se organizam para oferta de seus produtos e serviços, via de regra, com preços inflados totalmente absorvidos pela demanda explosiva e insana em razão da comemoração da data. Assim também se dá com a mídia, em larga escala, entupindo nossas redes sociais de publicidade relacionada a presentes especiais para o dia das crianças, bem como tornando a abordagem recorrente em novelas, programas e publicidades televisivas. Enfim, nem que se queira é possível ignorar, outubro é mesmo o mês das crianças. Essa data, porém, não é unanimidade no mundo, você sabia? No Brasil, o dia das crianças foi instituído pelo decreto 4.867/1924, mas apenas entre as décadas de 1950 e 1960 passou a ser comemorado, após campanhas publicitárias da indústria de brinquedos. Já em Portugal, Angola e Moçambique a data é comemorada dia 1º de junho, na Argentina no 2º domingo de agosto, no México em 30 de abril e assim, cada canto do mundo tem sua própria data comemorativa. A ONU - Organização das Nações Unidas, por sua vez, elegeu 20 de novembro como Dia Mundial da Criança, por corresponder à data em que o UNICEF - Fundo das Nações Unidas para a Infância promulgou a Declaração dos Direitos da Criança, cujo maior mérito foi reconhecê-la como sujeito de direito. Tal diploma foi ratificado por quase 200 países, incluindo o Brasil, contudo, nosso país veio a oficializar a diretriz internacional apenas em 24 de setembro de 1990, ou seja, mais de 30 anos após a edição do documento, ano em que também foi publicado o Estatuto da Criança e do Adolescente - lei 8.069, de 13 de julho de 1990 ("ECA"). Esses marcos são relevantes para compreender a importância conferida ao tema no Brasil, já que, passados outros 30 anos, ainda nos questionamos sobre a efetividade da proteção integral e da absoluta prioridade dos direitos das crianças e adolescentes no país, pilares insculpidos naqueles diplomas, bem como na norma fundamental extraída do artigo 227 da Constituição Federal, que se irradia e confere unidade axiológica a todo sistema normativo brasileiro. Mas, afinal, o que isso tem a ver com o Dia das Crianças? Ora, parece-nos que tudo a ver. Nesse mês de outubro, em que quase todos celebram a data, devemos nos perguntar o que, de fato, há a se comemorar? Se é dever da família, da sociedade e do poder público assegurar os direitos das crianças, por que muitas delas não recebem atenção destes atores? Por que são sujeitadas a situações que implicam violação de seus direitos básicos, como ausência de saúde, moradia, educação e alimentação? Por que são obrigadas a abandonar ou simplesmente desmotivadas a frequentar escola, ingressando em situação de trabalho infantil para garantir seu sustento e/ou de seu núcleo familiar?  Por que encontram desafios, senão intransponíveis, ilegais (portanto, injustos) para serem cidadãs respeitadas em sua individualidade, enquanto seres especiais em desenvolvimento? Por que tais crianças são invisíveis ao longo de dias, semanas e meses? Por que, embora possamos olhar, não conseguimos ver essas crianças nos outros 11 meses de cada ano; e, quando as vemos, não reparamos? É isso, parece que, como num passe de mágica, apenas em outubro essas crianças invisíveis voltam a aparecer, passam efetivamente a existir. Não estamos aqui querendo tirar o encanto da data ou julgar o comportamento coletivo social, senão lançar luzes à problemática que nos é tão cara. Isto porque, apesar de robusta normativa nacional e internacional protetiva, ainda são constantes as denúncias, as notícias e os processos, legislativos e judiciais, que revelam a insuficiência da proteção das crianças e adolescentes no Brasil, bem como a falta de cultura nacional protetiva a esses sujeitos de direito. O título dessa coluna é tão lúdico quanto provocativo, e representa a leitura que fazemos sobre a invisibilidade de milhares de crianças espalhadas no território nacional que, aparentemente, deixa de existir em outubro, mês em que crianças despercebidas durante os outros 11 meses passam a ter a oportunidade de se tornarem "visíveis". Infelizmente, outras nem isso, permanecerão imperceptíveis até que se tornem adolescentes e/ou adultas, sem nunca terem recebido o legítimo "presente" a elas prometido desde sua concepção, qual seja, um "enorme pacote" de direitos e garantias, lamentavelmente, assegurados apenas no papel. No mês das crianças, em que tudo é bastante lúdico, também o tema dessa coluna procurou sê-lo. Afinal, existe mágica ou não por detrás deste fenômeno, da suspensão momentânea da invisibilidade de nossas crianças, em outubro de cada ano? Vemos com alegria a feliz coincidência de, também no mês de outubro, o Migalhas abrir suas portas à uma coluna quinzenal, batizada de Migalhas Infância e Juventude, voltada ao estudo de temas vinculados ao Direito da Criança e do Adolescente, o que permitirá continuar nas reflexões ora iniciadas, especialmente por meio do exame de diplomas internacionais (convenções e declarações), da Constituição Federal, do ECA, e demais legislações e normas esparsas. A ideia da coluna, para a qual o convidamos a conhecer e acompanhar quinzenalmente, é promover análises críticas sobre omissões e falhas do Estado (legislação, políticas públicas e sistema de justiça), da sociedade e da família. Assim, além de divulgar este importante ramo do Direito, através de revisões bibliográficas e estudo de normas, o objetivo é fomentar debates dentro do sistema de justiça (Advocacia, Defensoria Pública, Magistratura e Ministério Público), destacando-se a atividade desempenhada pelos colunistas fixos inicialmente convidados, a saber, uma advogada1, uma defensora pública2, um juiz3 e uma promotora de justiça4, atuantes e apaixonados pela área da infância e juventude. Igualmente, a coluna pretende dar espaço aos diversos atores participantes da rede protetiva, como o conselho tutelar, serviços de acolhimento, setores técnicos (psicólogos, assistentes sociais, pedagogos etc), da saúde, da educação e outros, por entender que somente assim é possível obter diagnósticos e endereçar propostas de superação aos desafios eventualmente encontrados, sempre com vistas à adoção de medidas efetivas (não meramente formais) para garantir os direitos infanto-juvenis em sua integralidade e com absoluta prioridade, como determina o texto constitucional. Apesar da suposta tecnicidade, o público-alvo da coluna Migalhas Infância e Juventude é abrangente, e alcança toda e qualquer pessoa que se proponha a pensar e repensar (e repensar de novo, e quantas vezes forem necessárias) o Sistema de Proteção, dentro e fora do sistema jurídico, afinal somos todos responsáveis por nossas crianças. Agende aí, a próxima reflexão será aqui, no dia 20 de outubro. Você é nosso convidado. __________ 1 Marília Golfieri Angella. Advogada. Mestranda em Processo Civil pela Faculdade de Direito da USP. Vice-Presidente da Comissão de Direito à Adoção da OAB/SP. 2 Elisa Cruz. Defensora Pública no RJ. Doutora em Direito Civil pela UERJ. Professora na FGV Direito Rio. 3 Hugo Zaher. Juiz de Direito na PB. Mestre em Direito (ITE, 2009). Coordenador Acadêmico de Ensino à Distância e Professor da Escola Superior da Magistratura da Paraíba. Integrante do Programa de Liderança Executiva em Desenvolvimento da Primeira Infância (Harvard/NCPI, 2018). Compõe a Diretoria da Associação Brasileira de Magistrados da Infância e Juventude e o Fórum Nacional da Justiça Protetiva. 4 Angélica Ramos de Frias Sigollo. Promotora de Justiça em SP. Mestre em Direito, pela Faculdade de Direito da USP. Pós-Graduação em Direito, pela GVLaw. Graduação pela Universidade São Judas Tadeu. Integrante do Proinfancia - Fórum Nacional dos membros do Ministério Público da Infância e Adolescência.