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A responsabilidade civil do tabelião e a prática de atos eletrônicos

quarta-feira, 3 de março de 2021

Atualizado às 08:18

A Corregedoria Nacional de Justiça, no dia 26 de maio de 2020, editou o Provimento CNJ nº 100/2020, que dispõe sobre a prática de atos notariais eletrônicos, regulamentando a forma pela qual tabeliães de notas brasileiros poderão, de forma remota, reconhecer a identidade e a capacidade das partes e de quantos figurem no ato.

Pela nova regra administrativa, os interessados na lavratura de escrituras, procurações e testamentos públicos e outros serviços notariais, não precisarão mais se deslocar fisicamente ao Tabelionato de Notas, para subscreverem os documentos de forma autográfica. As assinaturas poderão ser colhidas por meio eletrônico, utilizando-se certificados digitais notarizados (fornecidos, gratuitamente, por tabeliães de todo o país) ou certificados digitais no padrão da Infraestrutura de Chaves Públicas brasileira (ICP-Brasil)1.

Além de colher a assinatura por meio de certificação digital, o tabelião promoverá sessão interativa de videoconferência notarial, para reforçar a adequada identificação e a clara manifestação de vontade das partes e de intervenientes.

O Provimento CNJ nº 100/2020 foi bem recebido pelos usuários dos serviços notariais e de registro por viabilizar a continuidade de serviços essenciais para o exercício da cidadania, para a circulação da propriedade, para a obtenção de crédito com garantia real, com a chancela da fé pública. Em aproximadamente um mês de vigência da norma, foram produzidos no Brasil mais de 3.500 atos assinados eletronicamente.

Vale ressaltar que o referido ato normativo tem prazo de vigência duradouro, diferentemente de regras temporárias sobre atividades notariais e registrais recém-editadas pelo mesmo CNJ, originadas da declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN), em decorrência da infecção humana pelo novo coronavírus (confiram-se: Provimentos nº 91, de 22 de março de 2020; nº 93, de 26 de março de 2020; nº 94, de 28 de março de 2020; nº 95, de 1º de abril de 2020; nº 97, de 27 de abril de 2020 e nº 98, de 27 de abril de 2020).

O Regulamento Brasileiro do Ato Notarial Eletrônico viabiliza o que se pode chamar de presencialidade mediada pela tecnologia. Ao prever a sessão interativa de videoconferência notarial (presidida pelo tabelião) com a adoção de tecnologia de certificação digital, viabiliza-se a adequada comprovação da autoria e da integridade dos documentos eletrônicos produzidos na confiável Plataforma e-Notariado, mantida pelo Conselho Federal do Colégio Notarial do Brasil.

Nada obstante a confiabilidade dos meios tecnológicos utilizados, eventualmente, poderá haver falhas pelo prestador de serviço na identificação de pessoas, tal como - de resto - pode ocorrer em atendimentos presenciais físicos. O presente texto, a partir de situação hipotética de geração de danos em decorrência de emissão de certificado digital lastreado em documento falso, abordará aspectos da responsabilidade civil dos tabeliães pela prática de atos eletrônicos.

Figuremos a seguinte cena: um suposto Cidadão C requer serviço de lavratura de procuração pública, para outorga de poderes de venda de um veículo. Para tanto, o interessado envia mensagem ao e-mail do Tabelião A, situado no município em que o requerente reside, esclarecendo que assinará eletronicamente a folha do livro. Informa, ainda, que possui certificado digital emitido pelo Tabelião B, localizado em município vizinho, no qual o outorgante possui sítio de férias, onde, recentemente, desfrutara período de isolamento social.

Suponhamos que o Tabelião B, nos termos do Provimento CNJ nº 100/2020, tenha emitido, gratuitamente, o certificado digital para o suposto Cidadão C, com base em documento falso, cuja sofisticada contrafação seja aferível apenas por peritos, expertos. Diante de tais circunstâncias, o estelionatário, que obteve a identidade digital em nome do Cidadão C, poderá apresentar credenciais digitais se passando pelo pretenso indivíduo C e potencializará a ofensa ao patrimônio e, eventualmente, à honra deste, em contratos eletrônicos diversos.

As questões que se buscam problematizar, nestas breves linhas, são as seguintes: caso o estelionatário consiga utilizar o certificado notarizado emitido pelo Tabelião B para outorgar procuração perante o Tabelião A, e daí advier prejuízo para o Cidadão C ou para eventual comprador do veículo, a quem será imputado o dever de ressarcir a(s) vítima(s)? Como evitar que, em caso de atribuição de certificado digital notarizado a um certo indivíduo estelionatário, o equívoco de identificação seja perpetuado pelos demais tabeliães participantes da rede de confiança constituída pela infraestrutura de Chaves Públicas mantida pelo Conselho Federal do Colégio Notarial do Brasil?

A responsabilidade civil de notários e registradores, por força do dispositivo contido no § 1º do art. 236 da Constituição Federal, é regulada por lei, a qual estabelece, como requisito para a configuração do dever de ressarcir, a conduta culposa ou dolosa de tabeliães, oficiais de registro ou de seus prepostos (lei 8.935/94, art. 22 com redação dada pela lei 13.286/2016).

A propósito desse tema, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, em sessão de julgamento do dia 27 de fevereiro de 2019, apreciando o Tema 777 da repercussão geral e tendo como leading case o RE 842.846/SC, negou provimento ao recurso extraordinário e fixou a tese de que: "O Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem danos a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa"2. De todo modo, o presente texto se circunscreverá à responsabilidade de notários, e não propriamente a do Estado por ato do tabelião.

Na hipótese acima descrita, em que houve sofisticada falsificação documental, os tribunais brasileiros tendem a afastar a responsabilidade do tabelião em decorrência do rompimento do nexo de causalidade por fato exclusivo de terceiro. O tabelião não é (nem necessita ser) perito grafoscópico. O notário que toma os cuidados que lhe são exigíveis para a prática do ato não responde por falha do serviço3. Nesses termos, tanto o Tabelião B (emissor do certificado digital notarizado) quanto o A (que lavrou a procuração), referidos na situação, não seriam responsabilizados pelo evento danoso.

Por outro lado, caso a falsificação seja grosseira, a negligência dos tabeliães estará configurada e lhes será imputada a responsabilidade pelos prejuízos. Mas, indaga-se, qual será a extensão do dever de ressarcir do Tabelião B, que - gratuitamente - emitiu a credencial eletrônica, viabilizando que o estelionatário se apresente como o Cidadão C em negócios eletrônicos?

Por força dos arts. 186 e 927 do Código Civil, máxime nas hipóteses em que a lei determina a análise da culpa ou dolo do agente ofensor, a imputação de responsabilidade civil supõe o nexo causal, que é requisito lógico-normativo da responsabilidade civil. É lógico, porque consiste num vínculo referencial entre a conduta do agente e o resultado danoso. E é normativo, porque tem contornos e limites impostos pelo sistema de direito, com influência direta na distribuição do prejuízo4.

Em situação de fraude documental em serviços notariais e registrais (cfr. REsp 1.198.829/MS, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, julgado em 05/10/2010), o STJ já teve a oportunidade de assentar, com base no art. 403 do Código Civil e no clássico precedente exarado pelo STF (no RE 130.764, 1ª Turma, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 07.08.92), que "vigora, no direito brasileiro, o princípio da causalidade adequada ou do dano direto e imediato"5.

Como exposto, havendo falsificação evidente, via de regra, responderá por perdas e danos o tabelião negligente, mesmo que tenha apenas emitido o certificado digital gratuitamente para o usuário do serviço, sem intermediar nenhum negócio jurídico específico para o titular do certificado digital.

Todavia, de volta ao tratamento da nova regra administrativa do CNJ, a sistemática do Provimento nº 100/2020 prevê, para a prática de atos eletrônicos pelos tabeliães brasileiros, além da assinatura com certificado digital (fato esse que gera, nos termos do art. 10 da MP nº 2.200-2/2001, o atributo do não repúdio ao documento), a obrigatoriedade da sessão de videoconferência interativa notarial.

Tal circunstância conduz a interessante situação de eventual interrupção da série causal iniciada pelo Tabelião B, em decorrência da videoconferência levada a efeito pelo Tabelião A, profissional este que teve a última oportunidade ou chance de evitar o dano. Com efeito, na sessão de videoconferência, o Tabelião A tem condição de reavaliar a identificação (por meio de documentos, dados biográficos e biométricos) da pessoa que se apresenta como o suposto Cidadão C.

Assim sendo, a despeito de o Tabelião B, emissor do certificado digital notarizado, ter agido de forma negligente ao analisar documentos falsificados apresentados por estelionatário, sua responsabilidade (i) será de menor envergadura (por conduta de baixa intromissão no evento danoso), ou (ii) será eventualmente afastada, em decorrência do rompimento do nexo causal perpetrado pelo Tabelião A.

O certo é que a Plataforma e-Notariado, instituída pelo Provimento CNJ nº 100/2020, administrada pelo Conselho Federal do Colégio Notarial do Brasil, a qual constitui o único meio para a prática de atos notariais eletrônicos por tabeliães brasileiros, se apresenta à população de forma segura e em boa hora. Tal sistema estrutura uma rede de confiança formada pelos Tabelionatos de Notas do país e viabiliza a integração do acervo de identificação de clientes notariais, valendo-se de bases biométricas e biográficas das próprias serventias e de órgãos públicos, de modo a evitar danos à população e garantir autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos produzidos eletronicamente.

*Hercules Alexandre da Costa Benício é doutor e mestre em Direito pela Universidade de Brasília. É tabelião titular do Cartório do 1º Ofício do Núcleo Bandeirante/DF; presidente do Colégio Notarial do Brasil - Seção do Distrito Federal e acadêmico ocupante da Cadeira nº 12 da Academia Notarial Brasileira. Foi Procurador da Fazenda Nacional com atuação no Distrito Federal.

__________

1 A respeito da segurança das credenciais para identificação das pessoas em seu relacionamento com os órgãos e entidades públicos, a Medida Provisória 983, de 16 de junho de 2020, em seu art. 2º, estabelece três espécies de assinaturas eletrônicas, quais seja: i) simples - aquela que permite identificar o seu signatário; e anexa ou associa dados a outros dados em formato eletrônico do signatário; ii) avançada - aquela que está associada ao signatário de maneira unívoca; utiliza dados para a criação de assinatura eletrônica cujo signatário pode, com elevado nível de confiança, operar sob o seu controle exclusivo; e está relacionada aos dados a ela associados de tal modo que qualquer modificação posterior é detectável; e iii) qualificada - aquela que utiliza certificado digital expedido no âmbito da Infraestrutura de Chaves Pública do Brasil (ICP-Brasil). Pode-se dizer que o certificado digital notarizado viabiliza assinatura eletrônica avançada.

2 No julgamento do RE 842.846/SC, formaram-se quatro distintos posicionamentos sobre a matéria concernente à responsabilidade civil do Estado decorrente das atividades notariais e de registro. (1) A maioria dos votos acompanhou o Min. Relator Luiz Fux, no sentido de que, em face de um modelo constitucional solidarista para proteger a vítima do dano, o Estado responde direta e objetivamente, tal como indicado na tese fixada no Tema 777 da repercussão geral. (2) Por outro lado, para o Min. Edson Fachin, abrindo a divergência, expressou entendimento de que o Estado deveria responder apenas subsidiariamente, enquanto os notários e registradores são responsáveis diretos e sob o critério objeto do risco administrativo e, por isso, em interpretação conforme ao §6º do art. 37  da Constituição, entendeu inconstitucional, incidentalmente, a expressão "dolo ou culpa" contida no art. 22 da lei 8.935/ 94, com a redação dada pela lei 13.286/2016. (3) Por seu turno, o Min. Luís Roberto Barroso, propondo evolução da jurisprudência do STF nessa matéria, votou no sentido de que a responsabilidade do Estado seria meramente subsidiária (a despeito de ser objetiva), ao passo que, à luz do que determinam o § 1º do art. 236 da Constituição e a lei 13.286/2016, notários e registradores respondem subjetivamente por seus atos. (4) Por fim, o quarto entendimento foi expresso pelo Min. Marco Aurélio, no sentido de que o Estado responde de forma meramente subsidiária e subjetiva, enquanto tabeliães e oficiais de registro respondem de forma direta e subjetiva.

3 Cfr. TJRS, Apelação Cível nº 70055155683 (nº CNJ: 0240195-82.2013.8.21.7000), da Comarca de Porto Alegre, Décima Câmara Cível, Relator: Des. Marcelo Cezar Muller, julgada em 29/08/2013, e TJSP, Apelação Cível nº 1037992-18.2013.8.26.0100, da Comarca de São Paulo, Décima Câmara de Direito Privado, Relator: Des. Ronnie Herbert Barros Soares, julgada em 20/09/2016.

4 Sobre a influência do nexo causal na distribuição do prejuízo, cfr. CRUZ, Gisela Sampaio da. O problema do nexo causal na responsabilidade civil. Rio de Janeiro, Renovar, 2005, pp. 313-344.

5 Tal entendimento não é imune a severas críticas de abalizada doutrina que, priorizando a situação da vítima, defende a imputação sem nexo de causalidade, por meio da análise da formação da circunstância danosa como elemento constitutivo da travessia da responsabilidade civil para responsabilidade por danos. A esse respeito, cfr. FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Responsabilidade por danos: imputação e nexo de causalidade. Curitiba, Juruá, 2014.