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Pandemia e crise econômica: por um contorno do dever de renegociar na recuperação de empresas

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Atualizado às 08:31

Texto de Autoria de Daniel Bucar, Caio Ribeiro Pires e Rodrigo da Mata

Após quase dois meses de drásticas restrições ao cotidiano em razão da pandemia de Covid-19, uma constatação, infelizmente, é certa e mostra seus impiedosos efeitos em escala crescente: a crise econômica.

Como consequência, o uso dos instrumentos oferecidos pelo ordenamento para superação da crise de sociedades empresárias tende a aumentar. A lei 11.101/05 (Lei de Recuperação Judicial e Falência) volta ao centro do debate. Em números, estima-se que, nos próximos quatorze meses, 2.100 a 2.500 empresas busquem o remédio da recuperação judicial1. Esta possível enxurrada é alvo de preocupação ante a limitação material do Poder Judiciário, o que faz despertar o interesse em soluções alternativas e consensuais para a reabilitação econômica2.

Neste cenário, parece ser bem-vinda a figura do procedimento da Negociação Preventiva prevista no PL 1397/2020, cujo texto - já aprovado pela Câmara dos Deputados - objetiva adaptar, sob determinados aspectos, a disciplina da recuperação judicial e da falência para o período de crise sanitário-econômica.

Por meio da Negociação Preventiva, possibilita-se ao devedor, que tenha sofrido redução de 30% ou mais na sua receita em relação ao trimestre anterior (art. 6°, §2°), requerer a instauração de um procedimento de jurisdição voluntária (art. 6°, caput). O feito se desenvolve a partir de rodadas de negociação com boa parte dos credores, durante o período máximo de noventa dias (art. 6°, incisos II).

No âmbito da Negociação Preventiva, parece haver mais espaço de autonomia para que as tratativas alcancem o que for mais conveniente aos envolvidos e, embora não submetida ao contencioso judicial, a supervisão do Poder Judiciário tende amenizar, de toda forma, a vulnerabilidade do devedor. Contudo, subsiste ao procedimento, de toda sorte, a faculdade de participação do credor (art. 6º, III), o que pode tornar frustrante a renegociação coletiva voltada à reabilitação da atividade empresarial.

Aliás, em sede de recuperação de empresas, a ideia de cuidar da matéria sem a preponderância de uma adjudicação não é nova. A própria lei 11.101/05 prevê a "Recuperação Extrajudicial" (arts. 161 a 167), a qual, embora haja casos de sucesso, mostrou-se de pouca aplicação quotidiana3. Apesar de a Negociação Preventiva avançar para solução de alguns impasses da Recuperação Extrajudicial, parece que o seu êxito suscita reflexão quanto ao dever de renegociar neste crítico ambiente. Em outras palavras, não seria, aqui, correto defender - até com mais vigor - a existência de um verdadeiro dever de renegociar, tão em voga nos tempos atuais, entre credores e devedor?

Primeiramente, deve-se ter em conta que o dever de renegociar, neste cenário, ganha contornos peculiares, pois o desequilíbrio patrimonial não afeta o objeto de um único contrato em si, mas de uma questão coletiva centralizada no déficit do devedor e, por isso, em regra, não se aplicam os instrumentos de revisão e resolução4.

Mesmo assim, não é adequado dizer que os contratos devem se manter intactos em face da crise da atividade empresária. Para a superação desta patologia, a lei 11.101/05 prevê medidas de mudança no objeto, tempo e forma do pagamento, dentre elas, o parcelamento das dívidas, postergação do adimplemento, além da dação e novação das obrigações (art. 50, incisos I e IX).

Porém, tal alteração nos programas negociais será (i) realizada de modo diverso se comparada à renegociação, revisão ou resolução de um único negócio desequilibrado e (ii) não irá encontrar respaldo no equivalente princípio do equilíbrio contratual. Diversamente, o impacto ocorre sobre todas as obrigações que pesam sobre o patrimônio do devedor. Nestes termos, a renegociação se funda justamente na aversão ao risco sistêmico advindo de sua quebra, o que se traduz no princípio da preservação da empresa (art. 47 da lei 11.101/055).

Diante de um quadro de crise patrimonial, não se revela adequado o tratamento individual para renegociação6. A patologia gira em torno de algo maior, isto é, do próprio patrimônio destinado ao exercício da atividade empresária. Portanto, as soluções para superação deste momento devem necessariamente ser coletivas e o processo de recuperação judicial é inspirado nesta amplitude7.

Todavia, a realidade cotidiana mostra que antes de optar pela renegociação tutelada pelo Judiciário, as sociedades empresárias (ou os empresários) buscam parte de seus credores fora do Poder Judiciário e tentam reprogramar pagamentos no limite do que a junção de suas reservas e o seu faturamento consegue satisfazer. O pedido de recuperação judicial só aparece como medida extremada, quando o devedor já se encontra com agravamento de seu passivo e com credores na iminência de executar (ou com a execução já iniciada) o débito8.

Assim, a construção de um dever de renegociar prévio à recuperação patrimonial será de grande utilidade prática e econômica. Sob esta perspectiva, além da própria boa-fé objetiva (art. 113, Código Civil) que o justifica, cinco outros elementos maximizam a potencialidade de se exigir a observância ao dever de renegociar:

1. O imperativo de estímulo à continuidade da empresa, com o abandono da ideia individualista do credor haver a liquidação do patrimônio endividado para "satisfação" de seu crédito, dando-se lugar à manutenção da empresa no mercado, enquanto estiver atendendo aos mais diversos centros de interesse e promovendo bem-estar social e o valor solidarista;

2. O dever de renegociação de um contrato individualmente tomado se baseia, entre outros fatores, nos custos da litigância e a incerteza dos resultados da intervenção discricionária do juiz no negócio jurídico. No que toca à recuperação judicial, os incentivos à renegociação, neste aspecto, ainda são mais acentuados. O processo é complexo, envolve novos e elevados custos em razão de toda a estrutura que o cerca (administrador judicial, relatórios, assembleia, etc.) e evitá-lo significa salvar recursos financeiros que poderiam ser destinados aos próprios credores;

3. Na recuperação judicial não se submetem credores munidos das chamadas "garantias fiduciárias" e em um âmbito de renegociação coletiva estes atores podem se tornar fundamentais para, inclusive, ver adimplido o fluxo de seus créditos, que é o interesse principal do financiador e/ou investidor e, não, o bem alienado fiduciariamente;

4. É importante notar que, se a recusa abusiva a um plano de recuperação já é, em si, sindicada pelo Poder Judiciário (cram down9 - art. 58 e art. 163 da Lei 11.101/2005), a rejeição a uma renegociação séria, para se obter o mesmo resultado no processo judicial, importa em um ato desfuncional e emulativo, decorrente de abuso da posição de credor; e

5. O limite de responsabilidade do devedor é seu patrimônio (art. 391, CC) e, diversamente da flexibilidade dos parâmetros de renegociação em situações singulares, esta também será a demarcação última do critério de renegociação.

Enfim, diante destes elementos, é possível visualizar que a recalcitrância de devedor e credores em torno de uma mesa de renegociação honesta pode configurar em ilícito civil a permitir a apuração da responsabilidade daquele que vier a causar danos à atividade empresária e, em última análise, a todos os interessados na recuperação daquele patrimônio em crise. Neste sentido, é relevante atentar-se para a conduta de credores relevantes e estratégicos, pois sua destacada posição requer, em igual medida, elevada participação voltada à possível preservação da empresa10. Talvez aqui resida, mais do que em contratos individualmente considerados submetidos a renegociações singulares, a coercitividade do dever de renegociação no âmbito da crise da empresa.

À conta destes argumentos, visualiza-se de modo ainda mais claro a possibilidade de estender o dever de renegociar às atividades empresárias em crise, com algumas adaptações imprescindíveis para determinar a conduta exigível das partes.

Uma crise sem precedentes e de proporções pandêmicas se avizinha e, diante deste cenário, interpretar corretamente os princípios e valores do ordenamento para extrair saídas céleres e eficazes voltadas às atividades empresárias em crise é fundamental. Afinal, tempos tão duros no campo econômico escancaram uma realidade e, por isso, deixam uma lição: solidariedade e colaboração para reabilitação são deveres que refletem o comando constitucional e também a ordem prática da economia, integrada e dependente de todos os seus atores. Portanto, há de se olhar com bons olhos, e com esforço hermenêutico de proteção11, o sacrifício coletivo dos credores para superação da crise da atividade empresária.

*Daniel Bucar é Professor de Direito Civil do IBMEC/RJ. Doutor e Mestre em Direito Civil (UERJ). Especialista em Direito Civil pela Universitá degli Studi di Camerino. Procurador do Município do Rio de Janeiro. Advogado.

**Caio Ribeiro Pires é Mestre em Direito Civil (UERJ). Advogado.

***Rodrigo da Mata é Mestrando em Direito Civil (UERJ). Administrador Judicial. Advogado.

__________

1 Recuperação judicial deve crescer no 2º semestre. Valor econômico Brasil, 06 mai 2020, disponível aqui, acesso em: 06/05/2020.

2 Neste sentido, a Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Estado do Rio de Janeiro, publicou nota oficial incentivando os advogados a utilizarem meios extrajudiciais de solução de conflito, inclusive no âmbito da recuperação judicial. Nos Tribunais de Justiça, o do Estado de São, por meio do Provimento n° 11/2020 da Corregedoria Geral, criou um projeto piloto de conciliação e mediação anterior ao ajuizamento de ação para disputas empresariais. Enquanto isso, o do Estado do Paraná instalará novos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSC) especializados em recuperação judicial. O Tribunal do Estado do Rio de Janeiro, por sua vez, estuda implementar uma estrutura semelhante àquela paranaense. Também sob esta perspectiva, Marco Aurélio Bezerra de Melo suscita a ideia de um dever de renegociar como condição essencial a ser cumprida pelos que postularem a revisão e a resolução contratual em decorrência dos efeitos da crise sanitário-econômica, a qual também poderia se utilizar na recuperação judicial (MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Por uma lei excepcional: Dever de renegociar como condição de procedibilidade da ação de revisão e resolução contratual em tempos de covid-19, Migalhas contratuais, 27 abr 2020, disponível aqui, acesso em: 13/05/2020).

3 Entre os motivos da pouca utilização, três podem ser apontados: (a) fragilidade do devedor sem o apoio do Poder Judiciário, o qual acaba (b) por postergar a renegociação dos seus débitos e (c) a ausência de credores trabalhistas e fiscais. Para críticas ao procedimento de recuperação extrajudicial, inclusive, com estudo de casos práticos, PAIVA, Luiz Fernando Valente. Recuperação extrajudicial: o instituto natimorto e uma proposta para sua reformulação. In: TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de, SATIRO, Francisco (org). Direito das Empresas em Crise: Problemas e Soluções, volume I. São Paulo: Editora Quartier Latin, p. 365-385, 2012.

4 Antes do momento atual, a advertência, no âmbito da revisão e renegociação, já existia em SCHREIBER, Anderson. Equilíbrio contratual e dever de renegociar. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 296 . Especificamente após o começo da pandemia, reafirmaram a diferença entre desequilíbrio contratual e desequilíbrio patrimonial: TEPEDINO, Gustavo; OLIVA, Milena Donato; DIAS, Antônio Pedro. Contratos, força maior, excessiva onerosidade e desequilíbrio patrimonial. Conjur, opinião, 20 abr 2020, disponível aqui, acesso em: 05/05/2020.

5 Sobre esta perspectiva de preservação da empresa CEREZETTI, Sheila Christina Neder. A recuperação judicial de sociedade por ações: o princípio da preservação da empresa na Lei de Recuperação e Falência. São Paulo: Malheiros Editora, 2012. p. 83-87.

6 Há situações que a concentração de créditos por um credor permite, todavia, uma renegociação pontual.

7 Para uma síntese dos objetivos da recuperação judicial neste sentido, permita-se remeter a SATIRO, Francisco. Autonomia dos credores na aprovação do plano de recuperação judicial. In: CASTRO, Rodrigo Rocha Monteiro de; WARDE, Walfrido Jorge Júnior; GUERREIRO, Carolina Dias Tavares Guerreiro (org.). Direito empresarial e outros estudos de direito em homenagem ao Professor José Alexandre Tavares Guerreiro. São Paulo: Editora Quartier Latin, p. 101-114, 2013. p. 102-104.

8 Recuperação judicial deve crescer no 2º semestre. Valor econômico Brasil, 06 mai 2020, disponível aqui, acesso em: 06/05/2020.

9 Veja o Enunciado 45 da I Jornada de Direito Comercial: "O magistrado pode desconsiderar o voto de credores ou a manifestação de vontade do devedor, em razão de abuso de direito". Quanto ao instituto do cram down seja permitido remeter ao cuidadoso estudo realizado em BUSCHINELLI, Gabriel Saad Kik. Abuso de direito de voto na assembleia geral dos credores. São Paulo: Quartier Latin, 2014.

10 Quanto à responsabilidade civil ante o inadimplemento do dever de renegociar, SCHREIBER, Anderson. Equilíbrio contratual e dever de renegociar. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 305-313.

11 A permitir, inclusive, a recuperação de patrimônios para além daqueles submetidos à atividade empresária, conforme BUCAR, Daniel. Quando a farinha é pouca: Pandemia, endividamento patrimonial crítico e pessoa humana. Migalhas contratuais, 5 mai 2020, disponível aqui, acesso em: 13/05/2020.