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A função social da propriedade e os bens comuns - Entre o mundo da pessoa e o mundo dos bens

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Atualizado às 07:45

A noção de propriedade não é imutável e a história mostra que ela tem sofrido mutações importantes ao longo do tempo.

No Direito Romano, a propriedade era ilimitada, assegurando ao seu titular poder egoístico e absoluto sobre a coisa. O dono do imóvel estendia os seus poderes usque ad sidera et usque ad inferos (até o céu e até as profundezas), o que bem revela a onipotência da propriedade.

Na idade média a propriedade se modifica e passa a ser objeto de domínio do senhor e de inúmeros outros sujeitos, abaixo dele, fruto de relações intrincadas e hierárquicas entre soberanos e vassalos. É um direito que não circula em estrutura piramidal. Surge a ideia de que a propriedade de todas as coisas pertencia a Deus, que a concedia ao homem para usar em favor de suas necessidades, sem poder abusar. Os filósofos de inspiração católica já entendiam que o homem tinha o direito de se apropriar das coisas, mas reconheciam o direito de todos ao uso do bem comum.

Foi a Revolução Francesa de 1789, antifeudal e laica, que liberou a propriedade desses vínculos, a unificou e a consignou ao homem. As leis do iluminismo e do jusnaturalismo colocam o homem no centro dos interesses, o que significa a centralidade do direito de propriedade. Há uma certa semelhança com a propriedade romana.

No início dos anos novecentos, passando pela Revolução Industrial, e deixando o homem de ser vinculado a terra tanto quanto foi (como meio de sustento), se chega à revolução socialista. É reconhecido um conceito de função econômico-social da propriedade, mas que se revela apenas em tímida limitação dos poderes do proprietário (ex. BGB de 1900 e o CC italiano de 1865).

A Constituição de Weimar de 1919, aprovada após o final da primeira grande guerra, que fundava a Nova República alemã, estabeleceu no seu art. 153 que a propriedade obriga e o seu uso, além do privado, deve ser dirigido ao bem comum. Seguiu a Constituição mexicana de 1917 e representa o ponto de transição entre o liberalismo do século XVIII, em crise, e o Estado Social do século XX.

A crise do liberalismo, que segundo Paolo Grossi é a crise da legalidade, trouxe a ideia de socialização do Direito, que incidiu sobre os dois pilares do Direito Privado: o contrato e a propriedade. A introdução dessa ideia socializante no interior da propriedade privada demoliu o direito subjetivo que representava a propriedade (pensamento de Duguit). Para Duguit a propriedade deixa de ser um direito subjetivo e passa a um direito objetivo, uma situação de ordem geral e permanente que implica um conjunto de imperativos. Só são legítimos a propriedade e os atos do proprietário quando praticados em direção a essa funcionalização.

Os anos novecentos iniciam com o entardecer do mundo da propriedade absoluta e ilimitada e a revisitação da propriedade a partir das ideias da socialização do direito. Se passa a pensar em vários estatutos proprietários a partir da diversidade dos bens objeto da propriedade e sua relevância social.

A intervenção sempre mais incisiva do Estado na economia e as consequências da segunda guerra, que agravaram a situação já deteriorada pelo primeiro conflito mundial, e a crise de 1929, impunham o superamento do horizonte cultural e jurídico próprio da codificação oitocentista francesa a respeito da propriedade para se produzir uma legislação especialmente orientada para o social. Se dá uma nova dimensão social ao abuso de direito e ao abuso dos bens.

A partir do último quarto do século passado, contudo, se verifica uma proeminência do aspecto proprietário - numa inclinação liberal - sobre aquele social.

É oportuno, neste momento, de aparente transição, fazer um balanço de tantos anos de defesa da funcionalização da propriedade, que a nossa Constituição de 1988 acolheu (art. 5º, XXIII), e essa retrospectiva não é positiva. Verifica-se que não temos no Brasil uma política urbanística adequada. A propriedade urbana continua a ser utilizada a fim de atender aos interesses egoísticos dos seus proprietários. São edificados prédios cada vez mais altos, com superadensamento de regiões, ineficiência do transporte público e pouca atenção ao meio ambiente. Se vê a crescente, e parece mesmo irrefreável, deterioração dos centros históricos. A costa brasileira foi seriamente prejudicada pela ocupação imobiliária desenfreada. Ocorrem desmatamentos descontrolados e a poluição de rios e do mar. Perdemos mananciais. Ao fim e ao cabo dessa experiência funcionalizadora, ao menos na letra da Constituição, constatamos que não conseguimos transformar a cidade e o mundo em lugar melhor para viver.

Os resultados obtidos depois de trinta e dois anos da Constituição social de 1988 são mínimos, porque o legislador e a jurisprudência não foram capazes de concretizar a funcionalização da propriedade mediante uma disciplina de fruição e disposição dos bens, e o grande desafio continua vivo e consiste em conciliar os interesses privatísticos do proprietário com a promoção dos interesses coletivos decorrentes do uso da propriedade dos bens em uma sociedade industrializada, tecnológica e de mercado. Não se pode assegurar a possibilidade de vencer esse desafio.

Como afirma Antonio Iannarelli, em extrema síntese, a crise financiária do Estado, o processo de globalização dos mercados, a hegemonia cultural do neoliberalismo, com o retorno da escola austríaca da economia e do pensamento de Heyeck, tem contribuído de modo importante para modificar a linha de leitura e atuação da função social da propriedade.1

O jurista italiano afirma que o pensamento liberal e neoliberal demoliu e neutralizou todos os ganhos do welfearismo, impondo uma releitura da função social em favor do funcionamento do livre mercado e não da finalidade redistributiva e da solução do desequilíbrio social. Iannarelli vê o Estado enfraquecido e a supremacia do mercado e do capitalismo. A propriedade voltou a ser um direito do homem, como em 1789, perdendo força o impulso de funcionalização do início do século passado.

Constata-se a utilização da propriedade privada com o fim de extrair dela o mais eficiente proveito, sem preocupação com algum efeito distributivo ou de relevância social. A prevalência do interesse fiscal do Estado leva à privatização de bens, inclusive imobiliários, sem qualquer relação com o interesse público.

Vivemos uma fase de desestruturação do compromisso social democrático no qual a propriedade torna a ser o direito fundamental do homem, que goza da máxima proteção e sofre a mínima limitação.

Contra esta redução da funcionalização social da propriedade surge um debate novo na Europa sobre os bens comuns. O tema ganhou interesse especialmente com a questão da privatização da água. Cuida-se, essencialmente, de garantir   a fruição de direitos fundamentais destinados à satisfação das necessidades das pessoas e de individualizar os interesses coletivos. Se muda a forma de ver a propriedade. Como sustenta Stefano Rodotà, se pode dizer que se passa de uma propriedade exclusiva a uma inclusiva. Essa situação pode ser descrita como o reconhecimento da legitimidade de sujeitos e interesses diversos sobre o mesmo bem. O discurso, segundo Rodotà, se modifica da exclusão para a acessibilidade.

Essa nova racionalidade da propriedade passa pelo reexame da sempre controversa função social, que foi entendida como instrumento para definir o conteúdo do direito e circunscrever as faculdades exercitáveis do proprietário. Rodotà sustenta, ainda, que configurada a propriedade como o poder de uma multiplicidade de sujeitos de participar das decisões a respeito de determinada categoria de bens, quando esses bens são o centro de uma constelação de interesses, se deve dar voz a quem representa esses interesses. Nasce um modelo participativo. A revisão da categoria proprietária importa também na revisão da categoria dos bens, com o ressurgimento dos bens comuns, que assume categoria irredutível ao modelo proprietário conhecido. A abstração proprietária se dissolve na concretude das necessidades que estão compreendidas na relação entre os direitos fundamentais  aos bens indispensáveis à respectiva satisfação.2

Resulta desta nova observação uma modificação profunda, segundo Rodotà, entre direitos fundamentais, acesso e bens comuns, desenhando uma trama a redefinir a relação entre o mundo da pessoa e o mundo dos bens. São Novos Horizontes do Direito Privado.

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1 Funzione sociale dela proprietà e disciplina dei beni. In"La funzione sociale nel diritto privado tra XX e XXI secolo". Coord. Francesco Macario e Marco Nicola Miletti. Roma : Roma Tre-Press, 2017.

2 Mondo dele persone, mondo dei beni. In "Il diritto di avere diritti". Roma : Editori Laterza, 2012.