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Olhares Interseccionais

Temas relevantes e atuais do Direito, com recorte crítico e acadêmico, destacadamente nas áreas das ciências criminais e dos direitos humanos.

Fabio Francisco Esteves, Aléssia Tuxá, Jonata Wiliam, Marco Adriano Ramos Fonsêca, Lívia Sant'anna Vaz, Charlene da Silva Borges, Saulo Mattos, Wanessa Mendes de Araújo, Vinícius Assumpção e Camila Garcez
Às vésperas do Dia Internacional da Mulher, comemorado no dia 8 de março, o Tribunal Regional do Trabalho da 3ª região, realizou um evento inédito, chamado "Com a palavra, as mulheres negras do TRT3", que contou com a participação de duas magistradas, uma estagiária, uma funcionária terceirizada e duas servidoras do tribunal, todas negras. Mesmo não acreditando em coincidências, não se pode deixar de reconhecer que iniciativas como essas nos mostram que se tem inaugurado uma nova era, em que todos nós necessitaremos encarar nossos preconceitos e construir uma nova perspectiva em relação as pessoas que, de algum modo, são vítimas de preconceito e discriminação, por isso compus aceitei compor a mesa como uma daquelas duas magistradas no evento. O racismo se encontra fortemente enraizado em nossa sociedade e seus reflexos são também sentidos no nosso Poder Judiciário. Os dados nacionais que constam do Diagnóstico Étnico-Racial no Poder Judiciário revelam que 83,9% de magistrados brancos e 14,5% de pretos e pardos; 68,3% de servidores brancos e 29,1% de servidores pretos e pardos. Se comparados aos dados do IBGE, em que a população brasileira é composta de 56% de negros, chegamos à conclusão de que o racismo estrutural não é apenas uma expressão utilizada aleatoriamente por ativistas negros, mas uma dura e cruel realidade que necessita urgentemente ser modificada. Para que as necessárias mudanças ocorram, o primeiro passo é que nós, como sociedade e como integrantes do Poder Judiciário, admitamos não apenas que o racismo existe no Brasil, abandonando de vez o mito da democracia racial, como também que vivemos em uma sociedade racialmente estruturada, em que pessoas negras, até os dias de hoje, são vistas como inferiores, na imagem persistente que anima o imaginário coletivo de que determinados lugares na sociedade devem ser naturalmente ocupados por pessoas brancas. Essa ideia resistente e persistente remonta à época da colonização e da escravização, em que por interesses econômicos, os europeus sequestraram e escravizaram milhares de africanos por quase 400 anos e justificaram a forma desumana com que implantaram a submissão violenta de seres humanos a partir de teorias e conceitos sobre raça, apropriados e mal adaptados da zoobotânica. Criou-se e propagou-se por séculos a teoria da inferioridade da raça negra, teoria essa que não encontra respaldo científico e que só se manteve como verdade até os dias de hoje, inicialmente por interesses puramente econômicos e, posteriormente, para também manter a estrutura de privilégios construída pela chamada branquitude. Se é bem verdade que ninguém nasce racista. Torna-se racista ao longo dos anos. Igualmente, ninguém nasce sabendo-se e sentindo-se negro, torna-se um ao longo da vida. Como mulher e negra, já fui vítima do machismo e do racismo ao longo da minha carreira de juíza em inúmeras oportunidades, desde a forma mais sutil até aquela mais evidente e agressiva, o que mostra que a ascensão social de uma pessoa negra não lhes blinda do racismo. Só me descobri "diferente" por volta dos 5 ou 6 anos, quando fui levada para alisar o cabelo pela primeira vez. Ali comecei a perceber que meu cabelo, de fato, era "feio", "duro" e "ruim", como tantas vezes ouvi na escola. Era preciso dar um jeito para que ele ficasse "liso", "sedoso" e "comportado", atendendo aos padrões vigentes. Antes disso, já sofria com os penteados que pretendiam domesticá-lo. O ritual era cansativo, sobretudo para uma criança. Horas no salão, queimaduras no couro cabeludo, secador de cabelo, bobes, toucas, cremes inadequados. E bastava agir como uma criança, suar ou entrar na piscina, para o efeito transformador desaparecer. Quando a televisão tornou-se companheira das tardes após a escola, tive a certeza absoluta de que ter a minha aparência, com traços da minha ancestralidade africana, não era algo bom, nem de que eu devesse me orgulhar. Novelas, programas infantis e propagandas reforçavam o fenótipo ideal doutrinado diariamente e durante anos, sempre o mais próximo da "raça" branca. As mocinhas das telenovelas, as crianças e apresentadores dos programas infantis, os apresentadores dos telejornais, os ricos e poderosos das novelas, todos eles eram invariavelmente brancos. Os negros ocupavam as posições inferiores e tinham por função apenas servir. A primeira novela que acompanhei foi "A Escrava Isaura". Uma protagonista branca escravizada, boa moça, que tocava piano e ganhou os corações de dois senhores de engenho. Nem mesmo a escravizada que teve um final feliz na novela era negra. Como não internalizar o sentimento de menor valor? O mundo ao redor parecia apontar-me o dedo gritando: "você é inferior porque é negra". Na escola, desde sempre, era evidente a discriminação e o tratamento negativamente diferenciado concedido aos alunos afrodescendentes. A invisibilidade era patente. Sem contar que ao longo da minha vida escolar foram poucas as professoras negras (me lembro de somente duas), sendo quase impossível ter como referência positiva alguém como eu e minha família. Em casa, o tema racismo não era abordado e a mensagem subliminar repassada era a de que a cor da pele definia o nosso destino: deveríamos ser simpáticos, agradáveis e gratos àqueles que nos aceitavam e nos davam oportunidades de crescimento. Indignação, revolta e questionamento sobre o estado das coisas não pareciam saídas possíveis até há bem pouco tempo. O trabalho de desvalorização, inferiorização e subalternidade, feito por séculos, foi muito bem-sucedido e levou anos para ser, por mim, uma mulher negra, percebido, questionado e contestado. Agarrei-me aos estudos com toda determinação. O conhecimento seria minha tábua de salvação. Por meio dele, ganhei confiança e alcancei um espaço um pouco mais visível. Se não era notada naturalmente, passei a sê-lo  por meu desempenho escolar. Sobrevivi, não sem cicatrizes e feridas que vez por outra se abrem. Só agora, passados tantos anos, pude compreender os meandros do racismo e suas consequências nefastas. Cheguei a acreditar durante muito tempo que a discriminação que eu sofria decorria de minha classe social, para mascarar a dor profunda causada pelo sentimento coletivo de que existem raças superiores e raças inferiores. Foi com muita resiliência e determinação que superei os percalços da vida e cheguei até aqui. O fato de ser afrodescendente e todas as suas implicações, tornou, sim, o meu caminho, muito mais longo e difícil. A intelectual e ativista negra Lélia Gonzalez, afirmou que os negros vão sofrendo um branqueamento ao ascenderem na vida. Segundo ela, quanto mais o negro ocupa espaços antes destinados exclusivamente aos brancos, mais solitário em termos raciais ele fica, sofrendo influência direta do universo da branquitude e deixando de lado suas raízes. Ela própria reconheceu que entrou em um ciclo de embranquecimento a partir do ingresso na faculdade, dele saindo apenas após ser chamada à realidade por um episódio grave de racismo. Como mulher negra, eu tenho que concordar com ela. E no meu caso, também, foi um episódio doloroso que permitiu o resgate das minhas origens e a vontade de lutar, para que outras meninas afrodescendentes de cabelos crespos não tenham que passar pelo que eu passei. A luta das mulheres negras no Poder Judiciário e em tantos ambientes não é uma luta baseada na vitimização, embora seja evidente que, sim, somos vítimas do sistema racialmente estruturado, mas é a luta altiva daquelas que reconhecem sua ancestralidade, dela tem orgulho e reivindicam o direito de ocupar todo e qualquer espaço. Sim, nós chegamos até aqui e viemos para ficar."
Em oportunidade anterior nesta coluna1, assentamos que a sociedade brasileira está imersa em um cenário onde, para além das negações coletivas do passado, as pessoas são encorajadas a agir como se não conhecessem o presente. No país onde é institucionalizado o racismo sem racistas, a existência é baseada em formas de crueldade, discriminação, repressão ou exclusão que são conhecidas, mas nunca reconhecidas abertamente, reforçando as hierarquias raciais socialmente arquitetadas. Assim, a discussão sobre as questões raciais no Brasil é sempre atravancada por um escudo social de ignorância, e pela crença em mitos instituídos de longa data supera a racionalidade e a experiência da realidade concreta. Prova disso é a vigência do conceito de democracia racial como ideologia amplamente defendida no Brasil. De acordo com Abdias do Nascimento, devemos compreender "democracia racial" como significando a metáfora perfeita para designar o racismo estilo brasileiro: não tão óbvio como o racismo dos Estados Unidos e nem legalizado qual o apartheid da África do Sul, mas institucionalizado de forma eficaz nos níveis oficiais de governo, assim como difuso e profundamente penetrante no tecido social, psicológico, econômico, político e cultural da sociedade do país.2 A consequência direta da institucionalização desse mito é a popularização de teses como a existência do "racismo reverso", ou de um "identitarismo radical", que promoveria uma "discriminação contra as maiorias"3. Os discursos alarmistas de que o debate sobre as questões raciais promoveria um separatismo e avivaria ressentimentos, impedindo uma pacificação social, é um subterfúgio para impedir o adequado enfrentamento dos problemas causados pelo racismo, em um país em que os crimes raciais seguem em ampla ascensão4. O combate ao racismo carece, portanto, de atenção máxima do poder público. Nesse contexto, a lei 14.532/2023 concretizou um grande avanço ao acrescer à lei 7.716/89 o artigo 20-C, que dispõe: Art. 20-C. Na interpretação desta Lei, o juiz deve considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência. O dispositivo vem em estrita consonância com o artigo 7º da Convenção Interamericana de Combate ao Racismo, ratificando o compromisso no Brasil de adotar legislação que defina e proíba expressamente o racismo, a discriminação racial e formas correlatas de intolerância, aplicável a todas as autoridades públicas, e a todos os indivíduos ou pessoas físicas e jurídicas, tanto no setor público como no privado. Leva também em consideração a obrigação por parte do Estado de adotar medidas especiais para proteger os direitos de indivíduos ou grupos que sejam vítimas da discriminação racial em qualquer esfera de atividade, seja pública ou privada, com vistas a promover condições equitativas para a igualdade de oportunidades, bem como combater a discriminação racial em todas as suas manifestações individuais, estruturais e institucionais. Assim sendo, esse dispositivo legislativo oferta ferramentas para a compreensão do fenômeno de discriminação racial, étnica, religiosa ou de procedência nacional, e constitui um grande avanço na luta antirracista. Contudo, posicionamentos contrários a este importante marco legislativo suscitam, inclusive, a inconstitucionalidade do artigo 20-C na lei 7716/89, entre eles, destacam: 1) violação à independência funcional do juiz; 2) violação à igualdade material (artigo 5º da Constituição); e 3) tratamento desigual e discriminatório entre grupos (artigo 1º, III, e artigo 3º, III e IV, da Constituição).5 Ora, tal posicionamento apresenta problemas em algumas dimensões, tanto por ignorar a distinção entre racismo, preconceito e discriminação, quanto pela escolha política de não enfrentar o conceito de igualdade material. A respeito da violação à independência funcional do juiz, o absurdo está posto na medida em que é compreensível no artigo 20-C, o alinhamento ao compromisso constitucional de combate ao racismo, também alicerce do exercício jurisdicional, e que prescreve um conteúdo normativo consonante a outros exemplos vigentes, como o artigo 4º da Lei Maria da Penha6, e o Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ. O referido Protocolo do CNJ, inclusive traz um capítulo específico para tratar da interpretação e aplicação do Direito nos conflitos de gênero, em que é possível inferir que a independência jurisdicional não se contrapõe ao reconhecimento de que conceitos, valores e princípios são, muitas vezes, definidos a partir da perspectiva daqueles que detêm o poder e, por serem alheios ao contexto no qual vivem pessoas subordinadas, acabam as excluindo de sua proteção ou perpetuando subordinações.7 No tangente a uma suposta violação do princípio de igualdade material pelo artigo 20-C aqui analisado, nunca é demais relembrar que segundo o STF, o Constituinte de 1988 estabeleceu precedência da igualdade material sobre a formal, permitindo ao Estado intervir para corrigir as distorções oriundas de aspectos históricos que desembocaram em diferenças de índole econômica, social e cultural entre os grupos8. Uma norma que visa corrigir a discriminação racial nacionalmente ser compreendida como atentatória à igualdade material, é, portanto, um contrassenso ululante. Igualmente estarrecedor é caracterizar uma medida de proteção aos sujeitos vulneráveis visando a equidade assegurada pela Constituição como sendo um tratamento discriminatório entre grupos. Coisas que a agnotologia pode explicar9. Indo além, rememoramos que a lei 7.716/89 visa coibir os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, de modo que é salutar a distinção entre racismo, preconceito e discriminação, que não são a mesma coisa, atingem diversos grupos sociais, mas são igualmente albergados na lei de combate ao racismo. Em um país onde vigora a política de negação das questões raciais, emaranhar conceitos distintos para deslegitimar um dispositivo legal que reconhece as consequências danosas do racismo, é um vilipêndio ao conceito de igualdade material, e um retrocesso na luta pela promoção de igualdade racial. Por todas essas razões, no Brasil a cruzada em defesa das maiorias é mais um moinho de vento na missão quixotesca que visa banalizar sérias discussões sobre questões raciais. Os profissionais do Direito interpretam as normas a partir de conteúdos cognitivos internalizados no processo de socialização, além dos interesses dos grupos sociais que eles representam, atuando assim, muitas vezes, com o intuito de reproduzir as relações de poder que estruturam a sociedade na qual vivem10. Daí a necessidade de estabelecermos e defendermos critérios de interpretação que considerem expressamente a existência de assimetria de tratamento entre os grupos minorizados e as ditas maiorias. É preciso atenção às escolhas e posicionamentos que contribuem para a manutenção das estruturas de poder e hierarquias raciais ainda existentes na sociedade. O reconhecimento das diferenças é primordial para a materialização da igualdade. __________ 1 WILIAM, Jonata. A neurose cultural brasileira e o julgamento do habeas corpus 208.240 no STF. Disponível aqui.  2 NASCIMENTO, Abdias. O Genocídio do Negro Brasileiro: Processo de um Racismo Mascarado. São Paulo (SP): Perspectivas, 2016, p.111. 3 DOUGLAS, William. Todo racismo é racismo: Lei 14.532, identitarismo radical e o 'racismo reverso'.  4 Registros de racismo crescem 68% no Brasil em 2022.  5 DOUGLAS, William. Todo racismo é racismo: Lei 14.532, identitarismo radical e o 'racismo reverso'.  6 Art. 4º, Lei 11.340/06 Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar. 7 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero, p.51. Disponível aqui. 8 BADIN, Luiz Armando; PROL, Flávio Marques. O princípio da igualdade na jurisprudência recente do Supremo Tribunal Federal. Revista do Advogado - AASP, São Paulo, ano XXXII, n. 17, p. 135-143, out. 2012, p. 140. 9 A agnotologia foi um termo cunhado, em 1995, por Robert Proctor, professor de História da Ciência da Universidade de Stanford, que define o estudo da produção política e cultural da ignorância. 10 MOREIRA. Adilson José. Pensando como um negro: ensaio de hermenêutica jurídica. São Paulo: Contracorrente, 2019, pp. 134-135.
Triste Bahia! ó quão dessemelhanteEstás e estou do nosso antigo estado!Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,Rica te vejo eu já, tu a mi abundante.  A ti tocou-te a máquina mercante,Que em tua larga barra tem entrado,A mim foi-me trocando, e tem trocado,Tanto negócio e tanto negociante.  Deste em dar tanto açúcar excelentePelas drogas inúteis, que abelhudaSimples aceitas do sagaz brichote.  Oh se quisera Deus que de repenteUm dia amanheceras tão sisudaQue fora de algodão o teu capote!  Triste Bahia - Gregório de Mattos  A folia momesca se aproxima, Salvador exala o perfume das festas de largo e as escadarias do Bonfim foram lavadas com água de cheiro. O tapete branco dos filhos de Gandhy desfila pelo Pelourinho, assim como o rufo dos tambores do Olodum. O Ilê Aiyê completou 50 anos de história e resistência e a deusa e as princesas do ébano dão o tom das cores e danças. O gigante faz o L, Veveta está no comando, mas quem está macetando, conforme a música candidata ao carnaval, é a Segurança Pública do Estado da Bahia. Ainda não temos previsão concreta sobre a implantação das câmeras no fardamento da Polícia Militar. Pela ordem, no carnaval, poderíamos ter algumas fardas de tom amarronzado filmando as operações, e não só corpos negros tombando na avenida.1 Na Bahia, os dados sobre mortes de civis em supostos confrontos com a polícia, são escandalosos, em 8 anos, tivemos o aumento de 313%. Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2022, as polícias civis e militares da Bahia fizeram 1.464 vítimas fatais durante confrontos e em operações. São negros os corpos que perfazem as estatísticas e são negros os corpos que poderão ter perpetuado mais uns anos de vida após a implantação e correto monitoramento das câmeras. Nos choca saber que a cada 23 minutos... (pode completar a frase), um jovem negro morre no Brasil. Não descansamos ao saber que a cada 100 mortos pela polícia na Bahia, 98 são negros.2 A tecnologia, objeto de estudo do Centro de Ciência aplicada à segurança pública da FGV, através do relatório de pesquisa "Avaliação do impacto do uso de câmeras corporais pela Polícia Militar do Estado de São Paulo"3, indica que o uso das câmeras cumpre um papel fundamental na queda do uso da força policial, em especial nos casos de homicídios decorrentes de oposição à intervenção policial, também conhecidos por auto de resistência. E falando em auto de resistência, alta é a resistência em supervisionar operações, na contramão do combate ao uso letal da força por parte das polícias. De acordo com a pesquisa, "essa tecnologia reduziu em 0,22 em média o número de mortes, [...] o que representa uma redução de 57% em relação à média do período pré-tratamento."4 Ou seja, verificamos que o uso e supervisionamento das câmeras, estimulam o trabalho do policial de acordo com os padrões éticos constitucionais. "A principal hipótese que justifica a redução do uso da força pelas câmeras corporais, portanto, diz respeito ao sistema de controle e supervisão da PMESP. De fato, há evidência qualitativa de que a introdução da tecnologia na corporação foi acompanhada de uma forte estruturação de supervisão e controle". Isto porque, as câmeras da Polícia de São Paulo não são acionadas manualmente pelo PM, além disso, gravam todo o turno do policial. Em contrapartida, no Rio de Janeiro, houve forte resistência por parte dos policiais que quase não acionaram as câmeras durante as operações.5 Percebam, de um lado, há o acionamento automático com significativa redução de mortes e do outro, o acionamento manual, que não impactou positivamente o uso da tecnologia. São questões que devem ser analisadas de forma séria e minuciosa, mas não podemos esperar infinitamente, navegando à própria sorte, enquanto o sangue de jovens negros jorra entre as ruas da Triste Bahia. "Máfia é máfia e o argumento é mandar grana, em pleno carnaval, fazer nevar em Copacabana. 1 por rancor, 2 por dinheiro, 3 por dinheiro, 4 por dinheiro, 5 por ódio, 6 por desespero,7 pra quebrar a tua cabeça num bueiro. Enquanto isso a elite aplaude seus heróis, Pacote de Seven Boys." Criolo - Boca de lobo. __________ *Referência ao Programa Olho Vivo, que introduziu as Câmeras Operacionais Portáteis (COP) no Estado de São Paulo. 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 Disponível aqui.
Nos caminhos por onde passo, com minhas filhas, gêmeas de dois anos, muitas vezes nos deparamos com circos, que despontam na paisagem pelas suas altas tendas e elas sempre, ao verem, sempre fazem esse comentário "-Mamãe, olha o circo" e completam, dizendo tudo o que já viram por lá: palhaças(os), mágicas(os) artistas, bichos etc. Outro dia, quando dirigia com elas, através dos vidros fechados, uma delas olha para fora e me diz "- Mamãe, olha o circo!". De pronto me veio a surpresa, afinal, o local era descampado, não havia circo algum. Olho pela janela e vejo, de fato, uma tenda, o tal circo. Que, na verdade, era a precaríssima habitação de um grupo em situação de rua. Na hora, não tive o que dizer e passados tantos dias, ainda me pego refletindo como explicar àquelas bebês que aquela tenda era uma casa, e não um circo. Ainda não consegui explicar. A paisagem urbana tem sido consumida, a cada dia, por essas imagens, com as quais convivemos com certa naturalidade. Às vezes, há quem se incomode, por motivos os mais variados, muitos deles por razões pouco dignificantes: porque tiram a beleza da cidade, outros porque acham que se tratam de pessoas que tem suas casas e ficam ali só para ganhar doações, porque são pessoas de outras localidades que vem custeadas pelos políticos da região para não administrar os problemas locais. Por sua vez, há, sim, as(os)que se compadecem, lamentam, mas outras paisagens e dilemas das suas próprias vidas surgem e logo a paisagem passa. Mas, há os que verdadeiramente, se engajam, que veem aquelas pessoas, porque isso é o que são, para além da aparência e as vê como humanas que são e oferecem ajuda, o que se intensifica com o período natalino. Entretanto, ainda assim a paisagem pouco se altera, ao contrário, a cada ano se amplia. Dados recentes do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, nos chocam ao apontar que o Distrito Federal tem o maior índice de pessoas em situação de rua do País, com 7.924 pessoas nessas condições  e que, Brasília, a capital federal, em termos proporcionais, é a quarta cidade com maior número de pessoas em condição de rua. Aqui, a cada 3 mil habitantes, uma pessoa encontra-se em situação de rua, sendo seguida pelas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. De acordo com os dados do Cadastro Único, de dezembro de 2022, o perfil da população em situação de rua é majoritariamente masculino (87%), adulto, na faixa de 30 a 49 anos (55%), e no critério raça/cor 68% dessas pessoas são negras, sendo 51% parda e 17% preta. Nada disso surpreende, a cor é a primeira que se destaca e, ao mesmo tempo, gera menos empatia. Os números mostram que 90% das pessoas em condições de rua sabe ler e escrever e 68% já teve emprego com carteira assinada. Nos estados da Bahia e Amazonas, 93% das pessoas em situação de rua são negras. A pesquisa também se debruçou sobre a condição da população indígena em situação de rua, a qual representa 0,2% no país, e é no Pará que o maior percentual é encontrado 0,9%. Em se tratando de pessoas com deficiência, identificou-se o percentual de 15%, sendo que 47% das pessoas em condição de rua tem deficiência física, 16% deficiência visual e 18% se relacionam a transtornos mentais1. A pesquisa destacou ainda três pontos que merecem destaque: o local de nascimento, a situação familiar e o trabalho. Em relação ao local de nascimento, 37% nasceram no município em que vivem em condição de rua, enquanto 59% provém de outras localidades e 4% são de outro país. A maioria das pessoas em situação de rua não vive com suas famílias na rua, o que soma 92%, aliás, 61% não vive com suas famílias ou quase nunca tem contato com familiares. Por derradeiro, sobre o trabalho, constatou-se que a principal forma de auferir renda é como catadora/catador. Os dados sobre o trabalho apontaram que 68% das pessoas em condição de rua já tiveram trabalho com carteira assinada, o que demonstra a ampla vulnerabilidade da condição das "pessoas que vivem do trabalho", no dizer de Ricardo Antunes, de que qualquer oscilação socioeconômica, da política empresarial com sua automação, as modificações legislativas que restringem direitos são um caminho que conduzem a vias com poucas saídas, duas delas se destacam: a marginalidade e a miserabilidade. A tenda do circo nos revela muitas realidades encobertas e nesse particular, não podemos deixar de considerar a importância do trabalho, mas não qualquer trabalho, do trabalho decente na vida de todas as pessoas. Neste contexto, convém resgatar um fato histórico de que o portão de entrada do edifício da Organização Internacional do Trabalho é composto de três chaves, pela simbologia que representa. As portas da Organização Internacional do Trabalho somente se abrem quando conectadas ao mesmo tempo três chaves: uma que representa o governo; a outra, o empresariado e a terceira, os trabalhadores. Essa conjunção revela que sem o empenho conjugado desses três pilares não é possível a promoção da justiça social, que não é, nem pode ser apenas uma mera declaração, pois os impactos na sociedade são visíveis na paisagem, pela quantidade de pessoas em condição de rua e miséria, bem como os excedentes da população carcerária, dois dos poucos caminhos àqueles a quem o trabalho decente não é uma possibilidade. Toda e qualquer política pública governamental, inclusive as judiciárias, não pode descurar que  trabalho decente retrata a ante sala que resguarda o ser humano da exploração, da miséria e da marginalidade, o que é ilustrado pela máxima trazida pelo Juiz do Trabalho Jonatas Andrade, de que o trabalho decente é uma porta comunicante e deve estar em interação com assuntos afetos à infância, à violência e ao cárcere, afinal, é o trabalho decente a ferramenta apta a reparar os inúmeros problemas sociais existentes, pois, sem ele não há direitos civis que lhe sustentem. É imperioso ter consciência da sabedoria constitucional que, em seus princípios destacou a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e a livre iniciativa como premissas interpretativas e programáticas para que se alcance a sociedade em que todos possam conviver em igualdade, em liberdade, com bem-estar, de forma fraterna, pluralista e sem preconceitos e fundamentalmente, em uma sociedade em que não precisemos desviar o olhar de um semelhante em condição de miserabilidade como mais uma paisagem da cena urbana. __________ 1 ORTIZ, Brenda. DF tem maior percentual de pessoas em situação de rua do Brasil, diz pesquisa do governo federal. Disponível aqui. Acesso em 15 dez.2023.
segunda-feira, 13 de novembro de 2023

Ode (ódio) à democracia!

"A persistência da Constituição é a sobrevivência da Democracia"  Ulysses Guimarães Nos últimos anos, temos testemunhado uma crescente contaminação de parte da sociedade brasileira pelo ódio. Essa epidemia, que talvez tenha no impeachment de Dilma Rousseff uma espécie de estopim, alastrou-se com os nefastos efeitos da Lava Jato e a vitória do bolsonarismo, culminando nos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023. Ali, em plena Praça dos Três Poderes, toda a inescrupulosa ira de falsos patriotas foi descarregada nos mais importantes símbolos da nossa República. Vivemos tempos de ódio à Democracia! Não se trata apenas de aversão direcionada a determinados grupos sociais historicamente vulnerabilizados - como mulheres, pessoas negras, quilombolas, indígenas, transexuais etc. -, mas de repulsa à própria Democracia e seus potenciais efeitos de inclusão pluriversal.  Apesar da inegável ascensão da extrema direita, o regime democrático ainda se apresenta como predominante em escala mundial. Todavia, ele pode produzir ameaças internas quando seus elementos constitutivos são erigidos a absolutos, escapando a limitações recíprocas. A simplificação que reduz o plural ao único (ou universal) abre caminhos para o descomedimento.1 Desse modo, a liberdade descomedida é capaz de subjugar o bem-estar da coletividade à tirania de indivíduos ou de grupos hegemônicos, resultando numa impregnação totalitária da própria Democracia.2 Igualdade e liberdade são princípios fundacionais cujo nível de efetividade indica maior ou menor concretude de um Estado Democrático de Direito. No entanto, em sociedades estruturalmente desiguais, a liberdade parece ser mais atrativa, sobretudo porque garantida apenas para poucos, que a desvirtuam, convertendo-a em liberdade para, em nome da Democracia, porém contra ela, subjugar, outrificar e, assim, manter seus privilégios. Daí resultam fenômenos como os atos de lesa pátria de 8 de janeiro, cujos atores usurpam o direito à liberdade, tornando-o arma contra a igualdade democrática. O que se almeja é, na verdade, a manutenção de uma mera Democracia de semelhantes.3 Por isso, um dos principais prismas de uma sociedade democrática consiste em delimitar os limites da tolerância aos intolerantes. Não existe liberdade para atacar a Democracia! Nos 35 anos de sua promulgação, não podemos esquecer que o espírito democrático é a própria essência da Constituição Federal de 1988, primeira na nossa história a consagrar a igualdade material, alicerce para a correção das desigualdades sociais. A construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a promoção do bem de todos sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação; a irmandade regional; o reconhecimento dos direitos sociais; a igualdade entre homens e mulheres em direitos e deveres; os direitos dos povos indígenas e quilombolas. Em que momento nos desviamos desses caminhos? Quando foi que perdemos a coragem constituinte? Se os perigos do ódio à Democracia seguem rondando os nossos son(h)os, precisamos ousar amá-la genuinamente, dedicando-lhe uma ode, a mais importante que temos: a nossa Constituição cidadã. É chegada a hora de promover uma re-orientação constitucional do Estado e da própria sociedade brasileira. Que tenhamos, então, a "audácia inovadora" da nossa "Constituição coragem", desta feita para concretizá-la sem subterfúgios ou distorções egóicas e individualistas. Que o "representativo e oxigenado sopro de gente, de rua, de praça, de favela"4, de trabalhadoras/es, de indígenas, de mulheres e de todo o povo brasileiro - tão presente na Constituinte - traga ventos democráticos, de uma Democracia pluriversal, de busca por igual liberdade para todas as pessoas e grupos sociais; onde todos/as se sintam e sejam parte da tão sonhada aquarela do Brasil! ____________ 1 TODOROV, Tzvetan. Os inimigos íntimos da democracia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. 2 Paulo Otero, A Democracia Totalitária, Editora Princípia, 2015. 3 MBEMBE, Achille. Políticas da Inimizade. N-1 Edições: São Paulo, 2023. 4 Trechos entre aspas retirados do discurso de Ulysses Guimarães, Presidente da Assembleia Nacional Constituinte, proferido na sessão de 5 de outubro de 1988
Com a aproximação do mês de novembro, em que se faz homenagens ao Dia Nacional da Consciência Negra e Dia de Zumbi dos Palmares, instituído pela lei 12.519/2011, apresentamos reflexões sobre as perspectivas das ações afirmativas no Poder Judiciário na implementação de uma política institucional de promoção da Equidade Racial. Preliminarmente, destacamos que conforme os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do IBGE em 2022 a composição da população brasileira é integrada em sua maioria por pessoas negras, totalizando 56,4%, sendo 9,2% de pretos e 47,2% de pardos. Aguarda-se a divulgação oficial dos dados de raça/cor do Censo Demográfico 2022 ainda para este mês de novembro/2023. O Censo identificou de forma inédita, ainda, que o Brasil tem 1,3 milhão de pessoas que se autodeclaram quilombolas, o que representa 0,65% da população do país, sendo Senhor do Bonfim (BA), Salvador (BA) e Alcântara (MA) as cidades com as maiores populações quilombolas. Destaque-se, ainda, o diagnóstico quanto a população indígena, que integraliza aproximadamente 1,7 milhões de pessoas, o que representa 0,83% da população total do país. Paralelamente a estes dados populacionais, no âmbito da composição do Poder Judiciário existe um cenário de manifesta desproporcionalidade e uma baixa representatividade dos negros ao se considerar o universo da população brasileira. Conforme a Pesquisa do Perfil Sociodemográfico dos Magistrados feita pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2018 apenas 18,1% dos magistrados brasileiros se declararam negros ou pardos. Quando se acrescenta o recorte de gênero, apenas 6% são magistradas negras. Tais dados são corroborados pelas pesquisas realizadas recentemente: o Diagnóstico Étnico Racial no Poder Judiciário realizado pelo CNJ no primeiro semestre de 2023, que identificou que 14,5% dos magistrados se declararam negros, sendo 1,7% pretos e 12,8% pardos; e o resultado parcial do Censo do Poder Judiciário, divulgado em 26/10/2023, em que 15% dos magistrados se declararam negros, sendo 1,4% pretos e 13,6% pardos. Diante desse paradigma, evidencia-se a necessidade de adoção de ações afirmativas visando concretizar a igualdade material e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, nos moldes preconizados no preâmbulo Constitucional. Acrescente-se que o Brasil é signatário da Convenção Interamericana contra o Racismo e a Discriminação Racial, incorporada com status de Emenda Constitucional, que em seus dispositivos consagra a adoção de ações afirmativas com o propósito de promover condições equitativas para a igualdade de oportunidades. Nessa toada, temos a resolução nº 203, de 23 de junho de 2015, que reserva aos negros o percentual mínimo de 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos do quadro de pessoal, inclusive de ingresso na Magistratura. No entanto, apenas a previsão de reserva de vagas mediante cotas raciais por si só não é suficiente para a efetiva implementação da equidade racial. Nesse sentido, observa-se um esforço das instituições públicas na elaboração de políticas públicas que promovam a equidade racial, merecendo destaque o Pacto Nacional do Judiciário pela Equidade Racial pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que completa este mês 01 ano de lançamento, e que já alcançou 100% de adesão pelos Tribunais Nacionais. O Pacto Nacional do Judiciário pela Equidade Racial consiste na adoção de programas, projetos e iniciativas a serem desenvolvidas em todos os segmentos da Justiça e em todos os graus de jurisdição, com o objetivo de combater e corrigir as desigualdades raciais, por meio de medidas afirmativas, compensatórias e reparatórias, para eliminação do racismo estrutural no âmbito do Poder Judiciário. Entre as medidas já implementadas no âmbito do Pacto Nacional do Judiciário pela Equidade Racial temos a criação do Fórum Nacional do Poder Judiciário para a Equidade Racial (FONAER) pela Resolução CNJ nº 490/2023, instalado em 31 de março de 2023, que realiza reuniões periódicas e audiências públicas para a construção da política judiciária nacional para equidade racial no Poder Judiciário. Destacamos, ainda, o aperfeiçoamento das ações afirmativas para ingresso na magistratura nacional pelo CNJ, mediante a aprovação das resoluções n. 457, de 27 de abril de 2022 e n. 516, de 22 de agosto de 2023, que estabeleceram a obrigatoriedade da instituição, pelos Tribunais, de comissões de heteroidentificação voltadas à confirmação e validação da autoidentificação dos candidatos negros e a vedaçaõ do estabelecimento de nota de corte classificatória (cláusula de barreira) para candidatos negros. Como demonstração de resultados concretos na promoção da equidade racial no sistema de Justiça destacamos os resultados das ações afirmativas no concurso público para ingresso na Magistratura do Maranhão, 3º tribunal mais antigo do Brasil e que completa 210 anos no dia 04 de novembro, que em agosto/2023 divulgou o resultado final do seu primeiro concurso de sua história com vagas reservadas para cotas raciais: 74 candidatos negros aprovados na etapa de heteroidentificação, de um total de 349 candidatos aprovados no certame; dos 14 candidatos nomeados e empossados em setembro/2023, 05 concorriam nas cotas raciais, sendo 03 convocados pelas cotas raciais, 01 candidata aprovada na ampla concorrência e 01 candidato aprovado na vaga de pessoa com deficiência. Registre-se, ainda, a efetividade da vedação da cláusula de barreira: apenas 25 candidatos negros seriam classificados na primeira etapa caso fosse exigida a nota de corte classificatória, e destes apenas 11 candidatos alcançaram aprovação no resultado final do concurso. Assim, esta ação afirmativa resultou no incremento de 63 candidatos negros aprovados no resultado final do concurso mediante a ação afirmativa da vedação de cláusula de barreira, ou seja, quase 06 vezes mais candidatos nas cotas raciais. Por fim, destacamos o pronunciamento do Ministro Luis Roberto Barroso, Presidente do STF e do CNJ, na sessão plenária do CNJ de 17 de outubro de 2023, ocasião em que anunciou a pretensão de implementar um programa de concessão de bolsas de estudos, com a duração de dois anos, a fim de apoiar a preparação de pessoas negras para participarem dos concursos públicos de ingresso na magistratura. Evidencia-se, portanto, sinalizações positivas para a efetividade da política judiciária de equidade racial.
segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Por que desembargadoras e desembargadores negros?

A recente aprovação de medida, pelo Conselho Nacional de Justiça, para a promoção da paridade de gênero no Poder Judiciário elevou o termômetro do significado da diversidade na composição do segundo grau de jurisdição. A resistente trajetória pela inclusão de mulheres no acesso aos tribunais está fundada, em primeiro momento, na correção da histórica desigualdade de oportunidades para a promoção de magistradas, seja por merecimento, seja por antiguidade, causadora de normalização de ausência não mais admitida. Em segundo, na busca pela representatividade necessária para legitimação democrática da instituição, até então conduzida por representantes de segmento social específico. Em terceiro, no devido processo legal, traduzido na qualidade da jurisdição prestada aos usuários do sistema de justiça. No que se refere à diversidade racial e as necessárias interseccionalidades nos tribunais de segundo grau, as citadas pretensões não se realizarão em horizontes próximos. Mulheres negras não seguirão no destino traçado pela nova política judicial afirmativa. Apesar de o primeiro grau de jurisdição contar com 12,3% de magistrados titulares e com 18,1% de substitutos, negros, o que já revela desproporcionalidade constrangedora em relação à população negra brasileira, os tribunais estaduais, trabalhistas e os federais, contam com apenas 8,8% de desembargadores e desembargadoras negros. Há vários tribunais no país que não contam com nenhuma desembargadora negra, segundo dados do CNJ. Segundo previsões elaboradas por aquele Conselho, em cenário que considera o crescimento moderado do número de magistrados, seguindo-se com a aplicação da ação afirmativa prevista na res. 203/2015, no ano de 2070 teríamos em torno de 22,8% de magistrados negros. No segundo grau, seriam, segundo a proporção atual, 15,18%. Claro que em projeções de longo prazo as variáveis são numerosas, mas sabidamente nenhuma transversalidade racial nos espera nos próximos anos. A normalização das ausências nestes espaços sugere a presença de determinada perspectiva do Estado em termos de iguais oportunidades para o acesso a estes cargos, como também ignora a adequada compreensão das demandas por proteção dos direitos das pessoas pertencentes aos grupos sociais subalternizados. Ambas são igualmente rechaçadas pelo caro direito fundamental à igualdade. Na realidade marcada pela secular exclusão estrutural imposta à população negra, a remoção dessa violência pela via judicial encontra verdadeira opacidade institucional. Hermeneuticamente tratando da questão, é fácil concluir que os horizontes históricos do racismo no Brasil estão fora da estrutura prévia necessária para a compreensão do fenômeno pelo Judiciário, composto por representantes de grupo sem a vivência do problema ou com outros interesses sobre ele, conjuntura necessária prejudicial para a concretização dos deveres constitucionais de construção da sociedade livre, justa e solidária. Preocupações similares estão sendo discutidas ao redor do mundo conforme revela o estudo de Anita Böcker e Leny de Groot-van Leeuwen (Ethnic minority representation in the judiciary: diversity among judges in old and new countries of immigration, 2004). Informa as autoras que na Inglaterra e no País de Gales, um dos argumentos em favor da diversidade é a legitimidade do processo judicial, a confiança do público no judiciário ficaria ameaçada se o judiciário não for representativo (p. 25). No Canadá, a questão ganhou imenso relevo após a sentença que condenou erroneamente indígena por homicídio. Uma das recomendações da comissão que investigou o caso foi de que membros desse grupo e de outras minorias deveriam ser nomeadas juízes (p. 26). Na Alemanha, a contribuição da experiência específica do imigrante no processo de tomada de decisão judicial também serviria os interesses dos 'citizen-oriented, contemporary and welfare state-based justice'. Na Holanda, para o Council for the Judiciary, o Judiciário deve refletir a diversidade da sociedade (p. 30). Barbara L. Graham (Toward an Understanding of Judicial Diversity in American Courts, 10 MICH. J. RACE & L. 153 (2004), analisa a distinção entre descriptive representation e substantive representation. Para autora, representação descritiva se move para além de mera representação nos tribunais. Consistiria numa massa crítica de juízes negros que, por sua vez, estariam mais dispostos a enunciar posições minoritárias enquanto estiverem atuando (p. 159). Talvez não seja por outra razão que o sistema internacional de proteção dos direitos humanos, ao especificar a pessoa negra como sujeito de direitos, conforme a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, garante a qualquer pessoa que estiver sob jurisdição dos Estados membros, proteção e recursos efetivos perante os tribunais nacionais e outros órgãos do Estado competentes, garante também o direito a um tratamento igual perante os tribunais ou qualquer outro órgão que administre justiça (art. V, a) e assegura contra quaisquer atos de discriminação racial que, contrariamente à presente Convenção, violarem seus direitos individuais e suas liberdades fundamentais, assim como o direito de pedir a esses tribunais uma satisfação ou reparação justa e adequada por qualquer dano de que foi vítima em decorrência de tal discriminação (art. VI). No plano regional, a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, incorporada pelo Congresso Nacional com status de emenda à Constituição Federal, garante às vítimas do racismo, discriminação racial e formas correlatas de intolerância um tratamento equitativo e não discriminatório, acesso igualitário ao sistema de justiça, processo ágeis e eficazes e reparação justa nos âmbitos civil e criminal, conforme pertinente (art. 10). Para garantir a concretização dessa jurisdição qualificada para o atendimento das demandas desses sujeitos específicos, só possível se existente a mencionada representação descritiva acima referida, prevê a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, no art. I, item 4, que não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, [...]. No mesmo sentido, a Convenção Intermericana compromete o Brasil a instituir ações afirmativas para promover condições equitativas para a igualdade de oportunidades, inclusão e progresso para essas pessoas ou grupos (art. 5) e para proporcionar tratamento equitativo e gerar igualdade de oportunidades para todas as pessoas, em conformidade com o alcance desta Convenção; entre elas políticas de caráter educacional, medidas trabalhistas ou sociais, ou qualquer outro tipo de política promocional (art. 6). Portanto, a alínea c, do inciso II, do art. 93, que dispõe que a aferição do merecimento conforme o desempenho e pelos critérios objetivos de produtividade [...], carece de regulamentação no sentido de sejam identificadas e estabelecidas as condições necessárias para que juízas e juízes negros tenham iguais oportunidades para a concorrer ao desembargo, para que o segundo grau de jurisdição tenha representatividade descritiva necessária para observar o devido processo legal na resolução de demandas raciais.
Na próxima terça-feira, dia 26/9/2023, prosseguirá o histórico julgamento do Ato Normativo n° 5605-48.2023.2.00.0000, de relatoria da Conselheira Salise Sanchotene perante o Conselho Nacional de Justiça, que decidirá o destino das ousadas mulheres que decidiram ser magistradas. O Ato Normativo em referência se propõe a corrigir as distorções de gênero, estruturais e estruturantes, existentes na magistratura brasileira. Em breve síntese, a proposição em destaque pretende promover alteração na Resolução CNJ nº 106 que dispõe sobre critérios de promoção por merecimento da Magistratura de modo a implementar a equidade de gênero nas promoções de magistradas(os) e no acesso aos tribunais, por meio do estabelecimento de ação afirmativa, de caráter temporário, que possibilite o acesso alternado aos cargos, a partir de duas listas de antiguidade (uma mista e uma composta exclusivamente por mulheres) até que seja alcançada a paridade nos tribunais, na proporção de 40% de mulheres e 60% de homens, observado a composição média  das(os) membras(os) do Poder Judiciário. A proposta de modificação normativa não é açodada. Muito pelo contrário. Surge depois de já passados mais de cinco anos da edição da Resolução n°255/2018 que instituiu a Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário, período durante o qual houve férteis estudos e discussões sobre como fomentar substancialmente a participação institucional feminina neste ramo do poder. Atualmente, de acordo com o Relatório de Participação Feminina no Poder Judiciário, as mulheres compõem 38% da magistratura nacional, enquanto os homens 62%, esses números sofrem algumas variações conforme o ramo judiciário. No quesito, equidade de gênero, nem mesmo a Justiça do Trabalho passa incólume. Apesar de apresentar maior percentual em termos de equidade de gênero, com 51% de magistradas no primeiro grau, observado o ano de 2022 como referência. A equidade de gênero encerra-se aqui neste patamar da escada. Nos Tribunais Regionais do Trabalho, as mulheres representam 40%, enquanto no Tribunal Superior do Trabalho apenas 22% das membras(os) são mulheres. No ramo trabalhista, vale o destaque de que no Tribunal Regional do Trabalho do Mato Grosso do Sul não há nenhuma mulher como desembargadora do trabalho. Adotando-se os dados relacionados aos demais ramos do Poder Judiciário, a participação das mulheres como ministras e desembargadoras alcança percentuais inferiores a 25%, em que pese, no primeiro grau de jurisdição, na Justiça Estadual, Federal e Militar, totalizarem, respectivamente: 40%, 32% e 39%. No âmbito da Justiça Estadual, nos Tribunais de Justiça de Rondônia e Amapá, no Tribunal Regional Federal da 5ª Região e nos Tribunais de Justiça Militar dos estados de São Paulo e Minas Gerais, tal como no TRT 24ª Região, não há nenhuma mulher como desembargadora. Quando se analisam os marcadores de gênero e raça, os números são ainda mais impactantes, adotando-se como base o recente Diagnóstico Étnico-Racial no Poder Judiciário, no país, há apenas 7,1% de ministras/conselheiras negras e apenas 11,2% de desembargadoras negras, enquanto no primeiro grau de jurisdição, as mulheres negras totalizam 13% dos cargos de juízas titulares e 14,2% de juízas substitutas, o que lhes coloca bem longe dos 38% das mulheres que compõe os quadros da magistratura feminina nacional. Para ser justa, o ato normativo em debate chega com atraso. Afinal, a Constituição, pedra angular, que deve reger todos os dispositivos infraconstitucionais, em várias de suas passagens, é explicita ao mencionar a expressão "mulher" e a finalidade do uso do termo   não é meramente retórica, destaca-o para que não sejam confundidos os direitos e as  peculiaridades das mulheres com os do homem, ser universal que serviu e, ainda, serve como medida a vários de nossos normativos. Esse equívoco interpretativo de pautar o homem, diga-se de passagem, branco, e seus direitos e interesses, como paradigma que reina por tantas décadas, ao arrepio dos preceitos constitucionais encontra-se enraizado também na organização de carreira no Poder Judiciário, desconsiderando-se como dito as diferenças que as (os) Legisladoras(es) Constituintes há 35 anos já constaram. A falta de equidade de gênero na composição dos cargos superiores não se trata de uma situação exclusiva da magistratura, ao contrário, diversas carreiras que compõe o sistema de Justiça igualmente padecem das mesmas mazelas de dificuldade de progressão na carreira e apresentam distorções semelhantes. Para tantas de nós, mulheres magistradas e tantas outras profissionais do Direito, seguir uma profissão no sistema de justiça é um caminho repleto de obstáculos, em grande maioria velados, que nos acompanham desde o ingresso na carreira, ante o enfrentamento face a face com o examinador na prova oral ou nas famigeradas entrevistas, etapa ainda prevista em alguns tribunais que se assemelha ao costume patriarcal de "querer saber quais nossas intenções" perante aquela unidade judiciária. Aprovadas nos difíceis concursos, seguem-se no ambiente institucional os percalços, muitos transvestidos, de um suposto cuidado, que, a rigor só revelam o machismo e a misoginia de um ambiente em que a pluralidade e a inclusão que tanto pregamos para outros foros ainda não se enraizaram e tentam sinalizar que a magistratura não é lugar de mulher, em especial a negra, que sequer teve a oportunidade de tomar assento no plenário do Supremo Tribunal Federal, na condição de ministra, ao longo dos duzentos e quinze anos de sua existência. O "tributo" do Professor Conrado Hübner Mendes, em seu artigo "Respeitem a aflição de José"1, o "quase-desembargador paulista que estava quase lá por antiguidade, merecimento e masculinidade", também expressa o sentimento de algumas poucas mulheres que sentem o peso de afastar-se do discurso que foram ensinadas a entoar de defesa da regra de ouro da magistratura: a antiguidade. Pois era essa até então sua arma defensiva, a única certeza de finalmente avançar na carreira contra possíveis favorecimentos face os obstáculos invisíveis que nos acompanham e podam nossas chances, desde sempre, ao longo do exercício da magistratura: na possibilidade de recusa para uma convocação, para uma fixação em uma unidade judiciária, de uma promoção e de uma remoção já na titularidade e de uma progressão ao segundo grau. Parafraseando-lhe a crônica, devemos também acalmar as "Marias", e mostrar-lhes que é hora de refletir sobre tudo o que vivemos e como sofremos, que o lema "no meu tempo era assim", tão presente para justificar a patriarcal "magistocracia" não mais faz parte do enredo. Que essa festa de violências de gênero veladas acaba quando mulheres ocupam os lugares e assentos que a Constituição, reconhecendo nossas peculiaridades, continua a nos assegurar. A necessária proposição do ato normativo 5605-48.2023.2.00.0000, acompanhada dos três votos favoráveis até então proferidos demonstram que há caminhos, que é chegada a hora de o Poder Judiciário fazer sua autocrítica, mexer em todas as estruturas, do contrário, ante a manutenção do status quo dos "Josés" e dos tantos "Luíz(s)es" não será possível enfrentar as múltiplas formas de violências diretas e indiretas de que padecem as magistradas. Por refletir obrigação constitucional, para introduzir a promoção da equidade de gênero no Poder Judiciário, como dito no voto do Ministro Luiz Philippe Vieria de Mello Filho é necessária ousadia, e adiciono: é preciso coragem. Mas, afinal, não é disso que são forjadas essas mulheres que ousaram ser magistradas? Avante Conselheira Salise Sanchotene e mulheres magistradas! __________ 1 MENDES, Conrado Hübner. Disponível aqui.
A história do Brasil nos mostra que o país passou por uma série de rupturas institucionais ao longo da sua formação, e que sistematicamente escolhe lidar com as cicatrizes abertas do passado através da conciliação, anistia e esquecimento. Isso se comprova pelo fato de que, ao longo do período republicano brasileiro, tivemos 48 anistias - a primeira em 1895 e a última em 1979 -, e muitas delas, para não dizer a totalidade, norteadas pela categoria conciliação.1 Nosso país tem, portanto, indubitavelmente, um problema de memória. E a respeito deste problema, apontamos que os direitos à memória, verdade, justiça e reparação são inerentes à Justiça de Transição2, que objetiva, conforme a doutrina: "processar os perpetradores, revelar a verdade sobre crimes passados, fornecer reparações às vítimas, reformar as instituições perpetradoras de abuso e promover a reconciliação".3 Embora reconheçamos certo avanço em matéria de justiça de transição em relação ao período autoritário entre 1964-1985 com a instauração da Comissão Nacional da Verdade (2011), que promoveu o acesso a dados mantidos em sigilo em relação ao período autoritário, o processamento e responsabilização de agentes envolvidos, além de uma série de outras medidas justransicionais, se voltarmos ainda mais no passado, temos um período de violação em massa de Direitos Humanos ainda mais carente de reparação, que é o período da escravidão. Vige no Brasil, desde a sua fundação e através dos séculos, um acordo implícito de um grupo privilegiado nos aspectos racial, econômico e político que visa a preservação das hierarquias raciais através de um pacto entre iguais, instrumentalizando para tanto, o esquecimento deliberado, a autoanistia e o silenciamento dos grupos subalternizados. Na modernidade, este pacto mantém a nação refém de cicatrizes históricas abertas, que impedem a efetivação do compromisso democrático assumido formalmente pelo Brasil com a promulgação da Constituição de 1988. A partir da consolidação do mito de que impera no país uma democracia racial, o imaginário coletivo foi capturado em prol de falsas ideias de harmonia e conciliação entre os diferentes povos que compõem a nação brasileira, dando seguimento a um projeto de etnocídio e de epistemicídio de saberes tradicionais, materializando um entrave aos debates necessários a uma (re)construção séria do Estado, além do óbice às políticas de verdade, justiça e reparação pelas violações sistemáticas de Direitos Humanos perpetradas através dos séculos após a proclamação da República Federativa do Brasil. Atualmente, a ilustração mais gráfica deste perene pacto de esquecimento e impunidade entre iguais é a Proposta de Emenda Constitucional nº 09/2023, que busca conceder anistia a partidos políticos que não cumpriram as cotas mínimas de destinação de recursos em razão de sexo ou raça nas eleições de 2022, além de propor uma cota mínima de 20% dos recursos dos fundos eleitoral e partidário para candidaturas de pessoas pretas e pardas, independentemente do sexo. Esta proposta é um ataque direto contra as já vigentes Emendas Constitucionais nºs 111 e 117, que determinam que os votos dados a candidatas e candidatos pretos e pardos nas eleições sejam contados em dobro para fins de distribuição dos recursos dos fundos entre os partidos políticos, e a aplicação de no mínimo 5% (cinco por cento) dos recursos do fundo partidário na criação e na manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, de acordo com os interesses intrapartidários, respectivamente4. Bem se vê que a ordem do dia, que une os espectros políticos de esquerda, direito e centro em uma coalizão partidária contra a população negra, é a continuidade do pacto que mitiga a cidadania dos povos negros no Brasil. Há, no entanto, no Brasil real, pleitos que não podem ser ignorados, e são eles: maior representatividade nos Poderes da República. Uma mulher negra Ministra do Supremo Tribunal Federal é uma urgência5; políticas públicas que efetivem o resgate da memória e da história da população negra, através da preservação de patrimônios culturais, tal qual o Cais do Valongo, que é parte da história e resiste aos diversos ataques e tentativas de apagamento6; o improvimento da PEC 09/2023 de anistia, que busca a manutenção dos privilégios da branquitude nas campanhas eleitorais e nas composições partidárias, dificultando ainda mais a viabilização das candidaturas negras; a materialização das propostas contidas no relatório da comissão de juristas negros e negras da Câmara dos Deputados para aperfeiçoar a legislação de combate ao racismo estrutural e institucional no país7, e; a promoção de medidas que garantam a efetivação da cidadania da população negra no Brasil, concretizando a promessa constitucional de igualdade material. Parece muita coisa, mas não é nada perto do que o Brasil ainda deve cumprir em termos de reparação por 388 (trezentos e oitenta e oito) anos de regime escravocrata. A realidade nos mostra que sem um acerto de contas e sem a cicatrização destas feridas abertas, não há futuro próspero para o Brasil. A implementação de políticas de preservação da Memória e da Verdade, e promoção de Justiça e Reparação para o povo negro nas mais diversas esferas sociais é necessária. E é tudo para ontem. __________ 1 CUNHA, Paulo Ribeiro da. Militares e a anistia no Brasil: um dueto desarmônico. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (orgs). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. Sao Paulo: Boitempo, 2010. 2 O esforço para a construção da paz sustentável após um período de conflito, violência em massa ou violação sistemática dos direitos humanos. 3 VAN ZYL, Paul. Promovendo a Justiça Transicional em sociedades pós-conflito. in Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Ministério da Justiça. - N. 1 (jan. / jun. 2009). - Brasília: Ministério da Justiça, 2009, p. 38. Disponível aqui. Acesso em: 15. Set. 2023. 4 BRASIL. Ministério da Igualdade Racial. Nota oficial contra a PEC 9/2023. Disponível aqui. Acesso em: 14.set.2023. 5 Site Ministra Negra no STF. Disponível aqui. Acesso em 14.set.2023 6 Declarado Patrimônio da Humanidade pela Unesco em 2017, o Cais do Valongo é um sítio arqueológico com vestígios do antigo cais de pedra construído pela Intendência Geral de Polícia da Corte do Rio de Janeiro para o desembarque de africanos escravizados. Estima-se que mais de um milhão de negros escravizados tenham passado por ali em 300 anos, tornando o local um marco de extrema importância para a história do Brasil. Disponível aqui. Acesso em: 14. set. 2023. 7 Relatório final  da comissão de juristas destinada a avaliar e propor estratégias normativas com vistas ao aperfeiçoamento da legislação de combate ao racismo estrutural e institucional no país. Câmara dos Deputados, Brasília, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 15. set. 2023
Nesta segunda-feira, dia 4 de setembro de 2023, o Conselho Nacional de Justiça sediará o II Seminário de Questões Raciais no Poder Judiciário, em que entre os diversos temas tratados, se apresentará o perfil étnico-racial do Poder Judiciário e os quatro eixos do Programa para Equidade Racial no Poder Judiciário. O Pacto Nacional para Equidade Racial resulta de acordo de cooperação técnica (TCT N. 053/2022) firmado pelo Conselho Nacional de Justiça e o Conselho dos Tribunais Superiores que tem por objetivo o desenvolvimento de programas, projetos e iniciativas, em todos os graus de jurisdição, a fim de combater e corrigiras desigualdades raciais, por meio de ações afirmativas, compensatórias e reparatórias em favor da eliminação do racismo estrutural no âmbito do Poder Judiciário. O Pacto Nacional para Equidade Racial no Poder Judiciário assenta-se em quatro eixos: a promoção da equidade racial no Poder Judiciário; a desarticulação do racismo institucional; a sistematização dos dados raciais do Poder Judiciário e a articulação interinstitucional e social para a garantia de cultura antirracista na atuação do Poder Judiciário1. De acordo com dados de 28 de agosto de 2023, apesar de 100% de adesão dos Tribunais Superiores, quando considerada a totalidade do Poder Judiciário 91% dos órgãos judiciários aderiram ao acordo de cooperação técnica, sendo 96% dos tribunais vinculados à Justiça Estadual, 93% à Justiça Eleitoral e 79% da Justiça do Trabalho.2 Em 08 de março de 2023, foi editada a resolução 490, que instituiu o Fórum Nacional do Poder Judiciário para Equidade Racial (FONAER), em caráter nacional e permanente, com intuito de elaborar estudos e propostas para o aperfeiçoamento do sistema de justiça, por meio da edição de normativos e a implantação e modernização de rotinas para voltadas a garantir a equidade racial, inclusive nos processos judiciais. Desde o ano de 2021, a pesquisa sobre negros e negras no Poder Judiciário publicada pelo Conselho Nacional Judicial3 já demonstrava para a necessidade de os órgãos jurisdicionais promoverem drásticas mudanças em sua estrutura, a um porque o perfil sociodemográfico na magistratura brasileira atestou que o quantitativo de juízas(es) negras(os) equivalia a apenas 12,8%4 do total de magistradas(os), percentual esse que contrasta flagrantemente com o perfil racial da populacional brasileira composta por 42,8% de brasileiros que se declararam como brancos, 45,3% como pardos e 10,6% como pretos, totalizando 55,90% de pessoas negras5.  A dois, porque o mesmo estudo aponta que, do total de juízas(es) integrantes de todos os ramos do Poder Judiciário, somente 0,49% foram aprovadas(os) por meio do sistema de cotas raciais, enquanto em relação às(aos) servidoras(es), o sistema de cotas permitiu o ingresso de apenas 0,68%, o que denota que as ações afirmativas relacionadas ao ingresso na carreira ainda não foram suficientemente eficazes para promover mudanças estruturais.6 Nesse particular, merece destaque a Resolução nº 516, de 22 de agosto de 2023, que alterou o §3ºdo art. 2º da Resolução CNJ nº 203/2015 para impor vedação ao estabelecimento de qualquer espécie de cláusula de barreira a candidatas(os) negras(os), sendo bastante o alcance de nota 20% inferior à nota mínima estabelecida para aprovação dos candidatos da ampla concorrência e, em se tratando de concursos da magistratura, o alcance da nota 6,00 para admissão nas fases subsequentes. A três, porque mantido o compasso atual, para atingir o parâmetro de inclusão de 22,2%, o que ainda se distancia substancialmente do perfil racial da população brasileira, serão necessários aproximados 33 anos, o que desvela, portanto, que mantidas as regras de ingresso e permanência atuais, o Poder Judiciário precisará de três décadas para atingir um percentual que, como destacado, ainda assim não representará a face da população brasileira, composta majoritariamente por pessoas negras. A quatro, porque, enquanto expressão da sociedade, não se pode olvidar que nos espaços dos órgãos jurisdicionais sejam encontradas práticas enquadradas como racistas, a exemplo da modalidade individual, praticada por seus pares e por terceiros que acessam o sistema de justiça, e da forma institucional, que as práticas cotidianas e as disposições administrativas implícitas impedem que juízas(es) e servidoras(es) negros de ascender a postos para os quais são qualificados, em nítida assimilação interna do chamado pacto da branquitude7 que igualmente estrutura e contamina as relações administrativas travadas no âmbito dos tribunais, prova disso revela-se pela baixa representatividade de pessoas negras no âmbito dos tribunais, nesse particular, merece o destaque de que até o presente momento não tivemos nenhuma ministra negra no âmbito do Supremo Tribunal Federal. A partir das métricas apontadas, é inequívoco que a promoção da Equidade Racial no âmbito do Poder Judiciário é pauta urgente e indispensável para dar concretude aos princípios fundamentais assinalados na Constituição Federal, bem como aos compromissos internacionais de que o Brasil é signatário, a exemplo da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação e Formas Correlatadas de Intolerância e a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de discriminação racial. Em remate, enquanto magistrada negra, inserta nesse microcosmo social que é o Poder Judiciário, destaco as palavras de Ariano Suassuna8: "Não sou nem otimista, nem pessimista. Os otimistas são ingênuos, e os pessimistas amargos. Sou um realista esperançoso. Sou um homem da esperança. Sei que é para um futuro muito longínquo. Sonho com o dia em que o sol de Deus vai espalhar justiça pelo mundo todo" Com mais essa edição do Seminário de Questões Raciais no Poder Judiciário, intitulo-me como "uma mulher da esperança" de que as questões raciais continuem como pauta prioritária nas ações jurisdicionais, assegurando-se a democratização nos órgãos judiciários, em todos os graus e que persista o intransigente combate a todas as formas de discriminação, de preconceito e de outras expressões da desigualdade de raça no País, em respeito à Constituição Federal e aos compromissos internacionais de que o Brasil é signatário. __________ 1 Conselho Nacional de Justiça. Pacto Nacional do Judiciário pela Equidade Racial. Disponível aqui. Acesso em 30 ago. 2023. 2 Conselho Nacional de Justiça. Adesão dos Tribunais. Disponível aqui. Acesso em 30 ago 2023. 3 Conselho Nacional de Justiça. Pesquisa sobre negros e negras no Poder Judiciário / Conselho Nacional de Justiça. - Brasília: CNJ, 2021. 4 Conselho Nacional de Justiça. Pesquisa sobre negros e negras no Poder Judiciário / Conselho Nacional de Justiça. - Brasília: CNJ, 2021. 5 IBGE. Características gerais dos domicílios e dos moradores 2022. Disponível aqui. Acesso em 22 ago 2023. 6 Conselho Nacional de Justiça. Painel para Avaliação da Diversidade de Raça/Cor dos Funcionários dos Tribunais. Disponível aqui. Acesso em 30 ago 2023. 7 BENTO, Cida. O Pacto da Branquitude.Companhia das Letras: São Paulo, 2022. 8 Frases de Ariano Suassuna. O pensador. Disponível aqui. Acesso em 30 ago 2023.  
"Mundo moderno, lei do enquadro,peito estendido, vários tiros no alvo. A carne barata continua mais fraca,o sangue inocente na mão do Estado.Corpos sequestrados, desbaratinados,sabe que gera na consequência.O sangue frio, o sol que queima,sabe que gera na consequência.'Tô cheia de ódio e sem emblema,Exú escuta o que você pensa". $Salbitch - Cronista do Morro Esse texto nasceu diferente, foi um filho parido à fórceps. Pelas inúmeras demandas da vida, por não estar alheia aos acontecimentos do cotidiano e por ter a certeza de que o corpo preto já nasce alvo, a sensação é que vivemos em uma sociedade adoecida. Parcelas da humanidade sendo desumanizadas. Outras parcelas desumanizando as humanidades. E tal qual Nando Reis, em Relicário, eu também pergunto: "O que está acontecendo? O mundo está ao contrário e ninguém reparou..." Homicídios decorrentes de oposição à intervenção policial operados sob o estigma da banalidade. O Brasil mostrando a sua cara e escancarando a política das vidas que são matáveis, dos corpos descartáveis e da polícia que mais mata. Seguindo o lema "Deus, Pátria, família, os homens de preto ou de marrom, deixam corpos pretos caídos ao chão. Como se não fosse amargo demais, há um vídeo circulando nas redes sociais, no qual o navio negreiro de prenome "caveirão", jorra o sangue do abate, em frente ao Hospital Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro. "Entre esquerda e direita, continuo preta", sentenciou Sueli Carneiro nos idos dos anos 2000 e tão atual, revela a face mais abjeta de um país construído e sustentado por mãos negras, mas que, regado a sangue negro, odeia as pessoas negras. São negras as vítimas da matança institucionalizada promovida pelo Estado Brasileiro. Em se tratando da Bahia, o dado é digno de uma intervenção. A Secretaria de Segurança Pública, em uma fala que revela a descartabilidade de alguns corpos, informou que as pessoas mortas em confrontos com os agentes são "homicidas, traficantes, estupradores, assaltantes, entre outros criminosos". Por essa razão, não computa os registros junto com os dados de "morte praticada contra um inocente". Revelando uma política de subnotificação de dados e perpetrando a disposição governamental de "botar a bola dentro do gol, pra fazer o gol"1, em alusão à fala do ex. Governador, ao comentar a Chacina do Cabula, a Bahia assumiu a liderança do Estado em que mais ocorre mortes decorrentes de intervenção policial, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.2 E são diversas as pesquisas que trazem dados alarmantes acerca do tratamento ofertado a essas mortes. O relatório "Autos de resistência": uma análise dos homicídios cometidos por policiais na cidade do Rio de Janeiro (2001-2011) elaborado pelo Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana, da UFRJ, revelou que "o número de inquéritos de 'autos de resistência', arquivados por 'exclusão de ilicitude' a partir de 2005 alcança a cifra de 99,2% por cento de todos os inquéritos instaurados"3. E como se não bastasse, o Supremo Tribunal Federal, sela o pacto narcísico que rege, guarda, governa e ilumina as decisões do Judiciário Brasileiro, sendo composto por 11 ministros terrivelmente brancos. A mais alta Corte continua completamente alva, mesmo quando diversos esforços foram envidados para que o presidente Lula indicasse uma mulher negra. Daí eu lembro de Steve Biko ao dizer que "estamos por nossa própria conta". E o apelo é para que não nos desviemos no caminho. Os nossos antepassados sofreram agruras nos navios, não podemos nos contentar com qualquer transporte dos nossos corpos, sob pena de ferirmos a ética dos que vieram antes. Merecemos estar sentados/as nas primeiras classes dos aviões, viajando para falar de nós, por nós. "E o risco que assumimos aqui é o do ato de falar com todas as implicações. Exatamente porque temos sido falados, infantilizados, que neste trabalho assumimos nossa própria fala", conforme ensinou a saudosa Lélia González. __________ *Edson Gomes - Camelô. 1 "É como um artilheiro em frente ao gol que tenta decidir, em alguns segundos, como é que ele vai botar a bola dentro do gol, pra fazer o gol", comparou. "Depois que a jogada termina, se foi um golaço, todos os torcedores da arquibancada irão bater palmas e a cena vai ser repetida várias vezes na televisão." 2 Disponível aqui. 3 MISSE, Michel. (Coord.). "Autos de resistência": uma análise dos homicídios cometidos por policiais na cidade do Rio de Janeiro (2001-2011). Relatório de pesquisa. Rio de Janeiro: Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2011.
"(...) 'Stamos em pleno mar...Dois infinitosAli se estreitam num abraço insano,Azuis, dourados, plácidos, sublimes...Qual dos dous é o céu? qual o oceano?... (...) Donde vem? onde vai?Das naus errantesQuem sabe o rumo se é tão grande o espaço?Neste saara os corcéis o pó levantam,Galopam, voam, mas não deixam traço. (...) Que importa do nauta o berço,Donde é filho, qual seu lar?Ama a cadência do versoQue lhe ensina o velho mar!Cantai! que a morte é divina! (...) O navio negreiro - Castro Alves Calunga grande, meu destino, revela ao meu coração clandestino, por que, mesmo nas profundezas do seu abismo, somos, ainda assim, vítimas de tamanho cinismo? Se é verdade que "em vida nos distinguimos, mas na morte somos todos iguais" (Chuang Tse), por que é tão seco o pranto que rega a nossa eterna desgraça fugaz? Proveniente da palavra bantu kalunga - que pode ser traduzida como "espaço oco" -, o termo Calunga, dentre os diversos significados que lhe podem ser atribuídos, assume sentido associado ao luto, ao "vazio por dentro" deixado pela partida de entes queridos. Com o sistema escravocrata da Modernidade, sobretudo a partir do século XVI, embarcar em um navio negreiro era o mesmo que ser tragada/o pelo "mar sem fim", o grande cemitério marinho que passou a ser chamado de Calunga Grande pelas famílias africanas que testemunhavam seus parentes partirem. Até hoje, nos contos (des-en)cantados por velhas vidas que habitam Aruanda - e que trazem inscritas em suas almas, outrora desprovidas de valor humano, experiências e lembranças do balanço dos tumbeiros e da terra-vida que no horizonte se perdia -, o Oceano Atlântico é chamado de Calunga Grande, em virtude do número incomensurável de corpos negros que lá jazem. A cifra negra que a branquitude ignora demonstra que essas vidas ainda não têm valor, não importando o quanto os ecos do passado mais que presente gritem o contrário. Recentemente, dois trágicos acontecimentos - separados por alguns dias e pelo paradoxo da (des)importância das vidas/mortes - revelam que, ao contrário do que nos diz Castro Alves em seus versos sublimes, o berço e a origem dos nautas determinam a quem é reservado o palco e a quem sobra a coxia, no horrendo espetáculo das travessias fatais. Já era noite do dia 8 de junho de 2023, quando o barco pesqueiro Adriana partiu da costa da Líbia, avançando Calunga Grande adentro, com destino (in)certo rumo à costa italiana. A bordo homens, mulheres e crianças; famílias inteiras, outras, divididas pela (des)esperança de (sobre)viver. A minúscula embarcação não era capaz de abrigar a enormidade dos sonhos das 750 pessoas, cujos nomes, rostos, histórias e vidas parecem não importar. A viagem era longa; maior ainda a ânsia de fugir da fome, da miséria, do desemprego, do desalento. Foram cinco dias e seis noites, até a madrugada profunda do dia 14 de junho, quando não se sabe quantos corpos foram engolidos pela imensidão do mar sem fim. Uma das mais mortais tragédias em alto mar da história recente do Mediterrâneo não mereceu sequer um décimo da atenção dada pelos meios de comunicação ao acidente que se sucedeu a seguir, em outros mares. Quatro dias depois, em 18 de junho de 2023, teve início a saga do submersível Titan que, saindo do Canadá, realizava uma viagem turística com uma tripulação de cinco milionários. Seus nomes, rostos, fortunas e trajetórias estão estampados em matérias jornalísticas de todo o mundo. Cada tripulante pagou US$ 250 mil pela expedição de oito dias, para visitar os destroços do famoso navio Titanic que, naufragado em 1912, está localizado a 3.800 metros de profundidade, no Oceano Atlântico. Milhões de dólares foram gastos na megaoperação de resgate promovida pelas Guardas Costeiras do Canadá e dos Estados Unidos da América, desde o desaparecimento da embarcação, cerca de uma hora e 45 minutos após o início do mergulho, quando esta perdeu contato com a base. No dia 22 de junho, a OceanGate Expeditions, empresa responsável pela expedição, confirmou a morte dos cinco tripulantes, no que teria sido uma catastrófica implosão do submarino, em virtude de problemas técnicos. Informações sobre a expedição ao Titanic e sobre os excêntricos turistas a bordo do Titan, mesmo dias após os fatos, continuaram ocupando de modo obsessivo os jornais, os noticiários televisivos e os portais eletrônicos do mundo inteiro, com detalhes a respeito da viagem milionária, das famílias e dos interesses dos aventureiros. No caso do barco pesqueiro, não houve preocupação com os perfis dos náufragos e sobreviventes, tratados não como indivíduos protagonistas de suas próprias trajetórias, mas como uma massa amorfa de indesejáveis. Não têm nomes, rostos ou imagens. Suas histórias não são dignas de serem contadas; suas ausências não serão sentidas pela sociedade, suas mortes não comovem nem provocam piedade. Afinal de (tantas e incontáveis) contas, não valem um vintém; são apenas imigrantes, clandestinos sem destinos, refugiados refugados. O curto espaço temporal entre os dois eventos escancarou a diferença no tratamento dado a estes, o que diz muito sobre as pautas que a mídia escolhe visibilizar; sobre as histórias que a História decide não contar e sobre as vidas com as quais a sociedade resolve se importar. Nesse contexto, é inevitável lembrar da seletiva consternação mundial diante dos horrores do holocausto judeu. Nesse sentido, Aimé Césaire chama atenção para o pseudo-humanismo, baseado numa visão racista dos direitos humanos. Para ele, o que é imperdoável no nazismo hitleriano não é o crime em si, mas o abominável crime contra o homem branco; ou seja, a inaceitável aplicação aos brancos europeus dos processos de extermínio colonialistas praticados até então apenas contra indianos, amarelos e negros (CÉSAIRE, 2020, p. 18). Já o holocausto negro, maior crime já cometido contra a humanidade - e que segue definindo a (des)importância de certas vidas até os dias de hoje - não gerou indignação internacional tampouco indenização aos seus descendentes, não sendo suficiente para provocar a aprovação de (nenh)uma Declaração Universal dos Direitos Humanos. É também Aimé Césaire, em seu Discurso sobre o colonialismo, quem nos alerta sobre a tríade colonialismo-racismo-capitalismo, fenômenos indissociáveis que se consolidam como maldita herança da Europa - ainda incrustrada nas sociedades do século XXI -, cuja hipocrisia coletiva pretendeu uma inconciliável associação entre colonização e civilização (CÉSAIRE, 2020, p. 9). A partir da sistematização (i)lógica da colonização desumanizante - germe do sistema racial capitalista da atualidade -, a cruz/fardo do homem branco1 nos (a)fundou no mito civilizatório dos povos não europeus, ideologia salvacionista que, na verdade, serviu de instrumento de controle sacralizado, imprescindível ao imoral desenvolvimento da Europa. A humanidade dicotômica colonial era dividida em europeus e não europeus, superiores e inferiores, racionais e irracionais, civilizados e selvagens, humanos e sub-humanos, nós e os outros. As profundezas da desumanização dos outros são, entretanto, desenterradas com um mergulho nas águas rasas dos discursos "igualitários". Desse modo, a racionalidade humanística, com suas luzes monocromáticas, ofuscou a seletividade dos princípios das revoluções liberais, apenas válidos quando aplicados em solo europeu. Nesse jogo de cartas (ainda) marcadas com sangue e suor dos povos subalternizados, a regra básica da segregação construiu territórios (de)limitados como "zonas do não-ser" (FANON, 2008, p. 26), aprisionados fora dos limites da "civilização", condenados à sentença de morte da miserabilidade humana. É preciso abandonar o "barco furado" do discurso do universalismo igualitário para salvar a humanidade do contrato social que é, em verdade, um contrato racial que nos acorrenta a desigualdades e opressões interseccionais, ancoradas na supremacia branca global, base do sistema político-econômico do atual "mundo moderno". Esse contrato racial opera como um elo entre dois mundos contrapostos: de um lado, o convencional, de caráter moral, preocupado com a discussão sobre justiça e direitos (the white world); do outro, um mundo de opressão e exploração (a)moral, no qual esses valores não são aplicáveis (MILLS, 1997). Os impactos da escravidão e do colonialismo na história da África - que se estendem à quase totalidade das colônias europeias e ao denominado Terceiro Mundo - são analisados pelo historiador e um dos líderes do panafricanismo, Walter Rodney, ao argumentar que o subdesenvolvimento africano não é um fenômeno natural, mas sim resultado da exploração imperial do continente pela Europa. Segundo o autor, a África desenvolveu a Europa na mesma proporção em que a Europa subdesenvolveu o continente africano, por meio da exploração de suas riquezas, povos e regiões, inicialmente como fornecedores de mão de obra escravizada e, em seguida, com mão de obra assalariada extremamente subvalorizada. Voltando os olhos para a atualidade, nota-se que, em todas as sociedades fundadas a partir desse passado (presente) colonial, vidas indignas ainda naufragam na busca pelo reconhecimento de suas humanidades, afogando-se nos sombrios efeitos da coisificação de seus corpos, da usurpação de suas riquezas, da desvalorização de suas potencialidades. O negacionismo cínico ainda impera entre os Estados que enriqueceram às custas do sangue e suor de outros povos, cujas vidas insistem em desprezar. Mundo afora, são os mesmos corpos que continuam pagando a conta desse contrato racial unilateralmente assinado, enquanto as elites brancas seguem mamando nas fartas tetas do capitalismo racista. A radical imposição do capitalismo como único futuro possível das sociedades contemporâneas relega à África e aos países subdesenvolvidos a eterna posição de náufragos sem destino, condenados à pobreza que alimenta a sanha acumulatória da Europa branca. Como nos lembra Angela Davis (RODNEY, 2022, p. 13), não se pode vislumbrar o desmantelamento desse sistema de exploração/coisificação de determinadas pessoas e territórios, enquanto as estruturas racistas se mantiverem intactas. No entanto, os rumos da história parecem indicar que a Europa - moral e espiritualmente indefensável e responsável pela maior pilha de cadáveres de todos os tempos (CÉSAIRE, 2020, p. 26) -, indiferente à pobreza alheia, que ela própria criou para forjar sua riqueza, seguirá empilhando incontáveis corpos nos mares e oceanos, guiada por fúnebres (en)cantos capitalistas. Aquelas/es que, hoje, arriscam-se em precárias embarcações para adentrar territórios de países europeus parecem estar em busca de tudo aquilo que, por séculos, a Europa lhes roubou da maneira mais vil e cínica que se possa imaginar, inclusive sua própria dignidade. Enquanto isso, o rico (ou enriquecido) continente europeu vira as costas para suas responsabilidades históricas, para os povos que foram por ele empobrecidos e que, de um modo ou de outro, por bem ou por mal, cobrarão essa dívida. Que Calunga Grande - em sua paradoxal força/movimento, portal de chegadas e partidas, lugar de perecimento e renascimento -, em sua imensidão, seja horizonte para gestar a nossa igualdade, em vida e na morte. Referências bibliográficas CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Tradução de Claudio Willer. Ilustração de Marcelo D'Salete. Cronologia de Rogério de Campos. São Paulo: Veneta, 2020. FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. MILLS, Charles. The Racial Contract. Nova York: Cornel University Press, 1997. RODNEY, Walter. Como a Europa subdesenvolveu a África. São Paulo: Boitempo Editorial, 2022. __________ 1 Para recordar o poema The White man's burden (O fardo do homem branco), publicado em 1899, pelo poeta britânico Rudyard Kipling e que ficou conhecido como uma ode ao imperialismo. O poema aborda o fardo do homem branco como a árdua civilizatória dos selvagens e tristes povos negros, "metade demônio, metade criança". No poema, cabia ao generoso homem branco a tarefa de enfrentar as "guerras selvagens pela paz, de encher a boca dos famintos, de cessar as doenças".
segunda-feira, 12 de junho de 2023

Minha mãe para o Supremo Tribunal Federal

A minha estreia numa coluna de olhares interseccionais será sobre minha mãe na Suprema Corte. Por falar em interseccionalidade, como a doce palavra mãe neutraliza uma existência, parece nem ser de uma pessoa que falamos, é algo sagrado, embora a concepção mãe resuma e anule todo o ser. Não é apenas minha mãe, é uma mulher, negra, de origem pobre, com ensino fundamental incompleto, e hoje, idosa.   Trabalhou boa parte de sua vida como doméstica numa fazenda, ao que consta por ser a esposa do capataz, meu pai, seu trabalho não teve a necessidade de ser remunerado. Um não ser para aquele mundo do trabalho, e por que não dizer para os vários outros. Não a deixaram existir, mas agora será alçada ao Supremo Tribunal Federal. Pode parecer um passado longínquo, de violências superadas, não para as mulheres negras, pobres e trabalhadoras, embora a Constituição de 1988 tenha centralizado a dignidade das pessoas, em especial de grupos em situação de vulnerabilidade, no fundamento do Estado de Direito brasileiro. A democracia foi conquistada. Os direitos, inclusive os sociais, foram reconhecidos e em certa medida concretizados. Mas, há pessoas do lado de fora da festa. Não apenas pelo fator da escassez, mas pela reprodução cada vez mais sofisticada de silenciamentos e apagamentos de sujeitos, em particular a mulher negra. Os espaços de poder comprovam essas ausências, normalizadas. De norte a sul, do primeiro ao último tribunal, magistradas negras são raridade. A jurisdição não é delas e nem para elas, afinal majoritariamente violentadas, pouco proteção judicial encontram. Designado constitucionalmente para resguardar os direitos fundamentais, o Supremo Tribunal Federal é genuinamente uma corte para minha mãe. Uma mulher negra na Corte, minha mãe, com seu passado, presente e futuro. Vidas e horizontes esquecidos agora no mais importante tribunal do país. Só assim você terá existido lá naquela fazenda, mãe! A sua história será reescrita, a sua e a de outras Rosas negras. Você estará no Supremo! A dignidade do seu trabalho vive, sua liberdade existe, sua paz está aqui, sua dignidade está salva. Sua condição de mulher e a sua negritude não te apagam, reinventam a justiça da Corte. Minha mãe no Supremo é a completude da democracia, no seu paradoxo contramajoritário, ainda carente das experivivências negras das mulheres, tão necessárias para uma jurisdição que faz cumprir as promessas constitucionais de igualdade, promessas de rompimento das subalternidades, das não existências. Dar concretude ao constitucionalismo com a adoção de postura interpretativa geral e abstrata, às vezes até com tentativa de neutralidade, além de ser um engodo terrível, é silenciar as já constituías ausências normalizadas nos espaços os quais se possa produzir a inclusão para a igualdade. Constitucionalismo para "pessoas" é para o homem branco, para "mulheres" é para a mulher branca, para a mulher negra, apenas se houver a postura interpretativa que especifique este sujeito de direitos. No plano global, a existência da mulher negra é especificada para o direito após a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (ratificada em 1969) e Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância (ratificada em 2022) não terem pronunciado uma só vez a expressão "mulher", da mesma forma que Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, não pronunciou "mulher negra" ou algo que equivalha ao reconhecimento de que a discriminação contra a mulher se avoluma quando o fato raça é atravessado. Por acaso minha mãe não é uma mulher? É na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher - "Convenção de Belém do Pará" (1996), no art. 9, que aparece a minha mãe, ao dispor que para a adoção das medidas que visem erradicar a violência contra as mulheres, os Estados partes levarão especialmente em conta a situação da mulher vulnerável a violência por sua raça. Interseccionalidade ignorada na construção da identidade do nosso sujeito constitucional, da identidade da nossa Corte Suprema. Por um constitucionalismo feminista que não escape do fator raça, da negritude. Um constitucionalismo para minha mãe, para as outras Rosas, impregnado pelas ideias de Lélia González, quem tanto buscava pelo lugar da mulher negra na luta contra as múltiplas opressões. Minha mãe no Supremo Tribunal Federal, este é o lugar! Como interpretar o texto constitucional se os horizontes históricos que retratam a aniquilação dos corpos negros femininos não integram o elemento pré-compreensivo da Corte? Se não há interpretação sem antes o intérprete compreender o mundo, inclusive interpretar a si mesmo neste mesmo mundo, os significados se distanciam dos significantes. Uma interpretação apenas de e para pessoas iguais perante a lei não é para minha mãe e nem para as outras Rosas negras. Pelas mentes e mãos de homens e de apenas três mulheres, brancas, até aqui, é que o direito à liberdade, à privacidade, à religião, à moradia, ao trabalho, à educação e à segurança da minha mãe e das outras Rosas negras foi "dito", considerando seus horizontes históricos de existências apenas no imaginário, talvez até com certa empatia, mas não integrados ao processo hermenêutico institucional por quem os carrega. Minha mãe nunca esteve na Corte. Minha mãe precisa estar lá por todas as outras Rosas negras, de todas as idades, classes, credos, desejos e origem.    Para além dos importantes e positivos aspectos que a representatividade proporciona em termos de legitimidade, minha mãe será mais que convidada para festa, se sentará à mesa, tomará parte do banquete, será uma mulher negra no Supremo, será a jurisdição que diga o direito a respeito si, da sua trajetória, do seu modo de ser, da sua vida negra, e claro, de todas as outras Rosas negras. Ela buscará cumprir as promessas constitucionais da igualdade, pensando como uma jurista negra. Minha mãe no Supremo, pelos braços, mentes e corações de outras Rosas Vilmas, negras.
Marcando a minha chegada a esta coluna especial, busco acrescer mais uma lente aos múltiplos olhares a partir de uma perspectiva interseccional. A largada neste escrito fica por conta de uma passagem que ouvi há muito tempo, e que me marcou, ainda que não consiga precisar a autoria: "o Brasil tem problemas de memória e de divã". Essa constatação revela a existência de estratégias de apagamento da memória coletiva brasileira que relega parte do corpo social à vivência de uma neurose cultural. O ponto de partida, portanto, é uma provocação que serve como pavio para evidenciar os entraves ao cumprimento da promessa constitucional de promoção da igualdade material, que resulta na negação da cidadania plena ao povo negro. Na sequência, daremos continuidade à reflexão iniciada por André Nicolitt1, percebendo os modos de legitimação nos sistemas de justiça e de segurança pública a diligências discriminatórias e de controle social, mimetizados também por agências privadas. Com isso, poderemos avançar ao adequado enfrentamento destes problemas. Entre abordagens por "fundada suspeita", uso da força policial para retirar "figuras de perigo" em aviões, abordagens "aleatórias" que funcionam como um jogo de cartas marcadas, álbuns de "suspeitos" circulando em grupos de trocas de mensagens, e prisões preventivas fundamentadas pela "garantia da ordem pública", são sempre os mesmos corpos que seguem flagelados pelas múltiplas formas de opressão da existência negra. As pessoas que ostentam a cor da noite vivem sob o peso do estereótipo utilizado para inspirar o medo e instigar a repressão, ao passo em que, aos olhos do poder, não são cidadãs suficientes para receber medidas de reparação diante das violências a que são cotidianamente submetidas. Esta 'neurose cultural brasileira', fenômeno através do qual coletivamente se constroem modos de ocultação do sintoma, visando a manutenção de privilégios e o alívio da angústia de se defrontar com o recalcamento2, leva-nos ao cenário, no sistema de justiça, onde o óbvio precisa ser reiterado. Como exemplo concreto, há a discussão atualmente em curso no Supremo Tribunal Federal, por meio do Habeas Corpus (HC) n.º 208.240. No caso desse Habeas Corpus, discute-se a impossibilidade de busca pessoal fundada em filtragem racial, e a pele-alvo da vez é a de Francisco Cícero, que foi encontrado com quantidade insignificante de drogas (1,53g) e condenado, na primeira instância, a sete anos e onze meses de reclusão. A pena foi reformada, pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), para dois anos e onze meses; contudo, um dos ministros da Corte apresentou dois argumentos para absolver Francisco da acusação: 1º) a ínfima quantidade de droga apreendida remete à insignificância jurídica, e 2º) uma abordagem a partir do racismo invalida toda a prova daí derivada3. Aberta a discussão no Supremo Tribunal Federal, o Relator, Ministro Edson Fachin, expôs o entendimento de que "não se pode ter como elemento ensejador da fundada suspeita a convicção do agente policial despertada a partir da cor da pele"4. O que causa espécie, nessa discussão, é que três dos quatro ministros votantes até a presente data se manifestaram pela denegação da ordem do HC, sob o argumento de que "o caso concreto não é um bom caso para se discutir perfilamento racial". Pretendem, portanto, que aguardemos outro caso mais explícito do que esse - no qual o agente de segurança pública realizou a busca pessoal e afirmou que a fundada suspeita emergiu quando, ao passar pela rua "avistou ao longe um indivíduo de cor negra, que estava em cena típica de tráfico de drogas"5 - para, só então, termos o "caso certo" para discutirmos a inconstitucionalidade da realização de diligências de segurança pública motivadas pela cor da pele. O julgamento segue paralisado em razão do pedido de vista de um dos Ministros, feito no mês de março, sem previsão de continuidade do julgamento. É assim que, em maio, no mês em que se demarca a abolição formal da escravatura, percebe-se que ainda há um caminho muito longo para a emancipação da população negra e para que, enfim, possam reverberar os cânticos de verdadeira liberdade. Importante neste momento assinalar um aspecto ao qual não se dedica muita atenção, embora fundamental na discussão: a suposta ignorância quanto ao modo como as questões raciais atravessam as relações no Brasil é utilizada como escudo para evitar o enfrentamento da discriminação e do racismo, sob o argumento de que não é o momento/caso correto, ou de que não houve intenção por parte do autor da violência racial, ou mesmo sem sequer uma justificativa, simplesmente através da concretização dos atos discriminatórios ou da omissão diante da prática destes atos. Daí assentamos: é preciso que aprofundemos a compreensão do fenômeno da ignorância como escudo cultural que impede o tratamento das questões raciais, e a chave para isso é o estudo da agnotologia6. A sociedade brasileira está imersa em um cenário onde, para além das negações coletivas do passado, as pessoas são encorajadas a agir como se não conhecessem o presente. No país onde é institucionalizado o "racismo sem racistas", a existência é baseada em formas de crueldade, discriminação, repressão ou exclusão, que são conhecidas, mas nunca reconhecidas abertamente, reforçando as hierarquias raciais socialmente arquitetadas. Charles Mills aponta que há uma negação da centralidade do racismo como ideologia constituinte do pensamento Ocidental, fruto de um trabalho de apagamento histórico realizado por elites intelectuais. Para o autor, a superação da ignorância branca (white ignorance) no passado e no presente requer um aprofundamento na análise das teorias sociais e de humanidades, além das implicações na prática (no direito, nas políticas públicas e no governo), bem como uma investigação do que o legado destas práticas, na contemporaneidade, relega-nos, nacional e internacionalmente, como consequências7. Impossível, portanto, que o antirracismo siga somente como plataforma discursiva. O clamor político e social na luta pela promoção da igualdade racial é por ações e políticas públicas efetivas, e pela consciência e comprometimento sociais, afinal: "cientes de que não haverá nenhum tipo de paz e ou concordata, enquanto não forem revistos os termos de um pacto social que aposta na inviabilidade no segmento negro no Brasil, parece mesmo que sobra muito pouco espaço para meias palavras e meias convicções (...) com as legendas devidamente registradas, agora, parece ter chegado o tempo derradeiro das filiações"8. Não há caminho outro que não a revisão do próprio pacto social que sustenta essas assimetrias raciais, e que nutre a perpetuação de desigualdades através do sistema de justiça criminal brasileiro. __________ 1 NICOLITT, André. STF - HC 208240: O que une Francisco e Luiz Justino? Disponível aqui. Acesso em: 10. mai. 2023 2 GONZALEZ, Lelia. Racismo e Sexismo na cultura brasileira. In: Por um feminismo afrolatinoamericano: ensaios, intervenções e diálogos. Org: Flavia Tios, Marcia Lima. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2020, p. 84. 3 NICOLITT, André. O Supremo Tribunal Federal no julgamento do Habeas Corpus 208.240-SP. Conjur, 12 de março de 2023. Acesso em: 10.mai.2023 . 4 MIGALHAS. STF: Para 3 ministros, caso em pauta não trata de perfilamento racial. Disponível aqui. Acesso em: 03 mai. 2023. 5 Idem. 6 A agnotologia  foi um termo cunhado, em 1995, por Robert Proctor, professor de História da Ciência da Universidade de Stanford, que define o estudo da produção política e cultural da ignorância. 7 Mills, Charles. W.. Global white ignorance. In Routledge International Handbook of Ignorance Studies, 2015, p. 221. Taylor and Francis Inc. Disponível aqui. Acesso em: 03 mai. 2023. Tradução livre.      8 FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: O sistema penal e o projeto genocida do Estado Brasileiro. 2ª ed. Brasília: Brado Negro, 2017, p. 139.
"Meus pés estavam doendo, e eu não sei bem a causa pela qual me recusei a levantar. Mas creio que a verdadeira razão foi que eu senti que tinha o direito de ser tratada de forma igual a qualquer outro passageiro. Nós já havíamos suportado aquele tipo de tratamento durante muito tempo.Estava cansada de ser tratada como uma cidadã de segunda classe" (Rosa Parks) 1º de dezembro de 1955, Rosa Louise McCauley Parks, costureira afro-americana estava sentada dentro de um ônibus de Montgomery, em plena época de segregação racial nos EUA e foi intimada a levantar para dar lugar a um passageiro branco. Ao recusar-se a levantar, a polícia foi acionada pelo motorista do ônibus e Rosa Parks, presa. Pioneira na luta pelos direitos civis, Rosa causou um levante contra a segregação, na Comunidade negra dos EUA. "Estamos cansados de ficar segregados e humilhados. Não temos alternativa a não ser protestar", exclamou o pastor Martin Luther King Jr. Durante aproximadamente 381 (trezentos e oitenta e um) dias, houve boicote aos transportes coletivos. Homens e mulheres negras aliaram-se à luta e não utilizavam os ônibus. Em lugar disto, caminhavam, em protesto, das suas casas aos trabalhos e vice-versa. Caminhavam por dignidade, por reconhecimento, pelo fim da segregação. Em 1956, a Suprema Corte declarou a ilegalidade da segregação racial em locais públicos. O "não", de Rosa Parks, fez história.  28 de abril de 2023, Samantha Vitena, professora de inglês, Mestranda em Saúde Pública, mulher negra, saiu do anonimato de maneira brutal. Sim, não basta que os nossos corpos negros jorrem sangue pelo chão dessa pátria mãe nada gentil para sentirmos na pele a força da brutalidade do racismo à brasileira. As ações e omissões também nos expõem e vitimizam. No dia 29, o vídeo do escárnio contra Samantha e contra todas nós, mulheres negras, foi divulgado. Uma mulher altiva, questionava sobre o seu direito de estar, de permanecer, de merecer cruzar a ponte aérea Salvador-São Paulo, em um transporte aéreo. Tal qual Rosa Parks, em 1955, Samantha, disse "não". Não ao abuso, não à segregação, não ao racismo operado pela Companhia aérea. Um corpo que resistiu e não se calou diante de tamanha atrocidade. Um corpo que protestou e ultrapassou todos os limites a ele impostos pelo imaginário da branquitude: sim, uma mulher preta tem que estar no lugar de subserviência, calada. A sua mala tinha que ser transportada como eles quisessem e não como mandam as normas. No caso, ainda que o notebook estivesse dentro da bagagem de mão e a própria companhia aérea no site oficial divulgue que "Seu laptop só poderá ser transportado somente como bagagem de mão", a de Samantha, seria despachada. Como houve protesto, Samantha também foi despachada por agentes da Polícia Federal, para longe do voo 1575 da Gol, por "medida de segurança" e por ordem expressa do Comandante. De acordo com o artigo 168 da lei 7565/1986, que dispõe sobre o Código Brasileiro da Aeronáutica, "o Comandante exerce autoridade sobre as pessoas e coisas que se encontrem a bordo da aeronave e poderá: I - desembarcar qualquer delas, desde que comprometa a boa ordem, a disciplina, ponha em risco a segurança da aeronave ou das pessoas e bens a bordo". Eu prefiro deixar que vocês, leitoras/es tirem as suas próprias conclusões sobre o comando, obedecido pela Polícia Federal, à ordem da autoridade a bordo da aeronave. Isto porque, a jornalista Elaine Hazin, que também estava no voo, relatou em entrevista a um jornal local: Logo que eu entrei, tinha uma mulher branca em minha frente que ela 'tava com 3 (três) bagagens de mão, três! E ela acomodou as 3 (três) bagagens de mão dentro do compartimento, mesmo a tripulação falando pra ela: "senhora, por favor, bote uma bagagem embaixo do assento". E ela falou: "não vou botar, eu vou botar minha bagagem aqui em cima"! E essa senhora colocou a bagagem dela em cima, as 3 (três) bagagens e a mulher negra não colocou nenhuma. O relato da Elaine traduziu o desespero: "Meu coração está sangrando neste momento. Presenciei agora à noite um caso extremamente violento de racismo, sofrido por uma mulher negra no voo 1575 da Gol, chamada Samantha. Eu me desespero, todas com muito medo, apreensão e os policiais ameaçam algemá-la. Não dizem a razão de levá-la presa, só que foi uma ordem do comandante". Eu fugi o quanto pude das redes sociais, não aguentava mais assistir ao vídeo e sentir a dor de Samantha. Sobretudo, porque 90% das vezes em que viajei de avião, estava sozinha. Sobretudo, porque o medo tomou conta de mim. Sobretudo, porque os nossos corpos são invisibilizados no percurso e não nos dão o direito de existir. Mas, conforme nos ensinou Rosa Parks, "Você nunca deve ter medo do que está fazendo quando está certo". Que a sua semente continue a florescer e que nós, mulheres negras e homens negros sejamos pontes para o boicote à toda e qualquer empresa que ganha dinheiro de preto, mas se acha no direito de vilipendiar os nossos corpos. "Irmão, quem te roubou te chama de ladrão desde cedo.  Ladrão. Então peguemos de volta o que nos foi tirado, mano, ou você faz isso ou seria em vão o que os nossos ancestrais teriam sangrado". Djonga
segunda-feira, 17 de abril de 2023

Uma provocação inicial

Este é o meu primeiro texto para essa coluna e eu não poderia deixar de mencionar a felicidade que sinto por, ladeada de tanta gente que admiro, ocupar este espaço e poder falar sobre alguns temas interseccionais que tocam a minha existência e, talvez, estejam invisibilizados na sua. O gosto pela escrita me acompanha há muito tempo, assim como a insegurança sobre os frutos dela. Foram muitos os diários - físicos ou digitais - e as notas com ideias e pensamentos sobre temas diversos - desde questões existenciais até o objeto deste artigo. Entre os seus autores preferidos, quantos são indígenas? Quantos autores indígenas você conhece? Quantas autorAs indígenas? O que é que você sabe sobre nós, além daquilo que te ensinaram na escola sobre a nossa participação como figurante na primeira temporada da série sobre a história do Brasil (mais precisamente no capítulo "descobrimento") e das notícias sobre nossa briga por terra ou alguma grave situação de violação dos nossos direitos? Nós somos mais do que isso. De acordo com dados parciais do censo 2022, hoje no Brasil existem 1.652.8761 indígenas em todos os Estados, o que corresponde a um aumento de quase 100% em relação aos dados do censo de 20102. A constatação da existência de um número tão expressivo de indígenas no território nacional deveria naturalmente induzir a uma outra reflexão: onde eles estão? É certo que no imaginário popular os indígenas brasileiros estão todos vivendo da caça e da pesca em alguma área de difícil acesso da floresta amazônica, mas os dados do último censo demonstram que há indígenas em todas as unidades federativas. Sim, há indígenas no Amazonas, no Acre, mas há também em São Paulo, em Santa Catarina, em Pernambuco, no Espírito Santo, em Minas Gerais e em todas as outras 20 unidades da federação. O fluxo natural desta reflexão levará ao próximo questionamento como vivem esses indígenas? A resposta a essa pergunta, de tão simples, surpreenderá muita gente: os povos indígenas do Brasil vivem de formas variadas, em zonas urbanas e rurais, trabalhando com tecnologia, arte, saúde, agricultura etc. e isso não tem o condão de torná-los "aculturados" ou menos indígenas. Ter acesso a tecnologias, ao mercado de trabalho e aos produtos da sociedade capitalista em que estamos inseridos não é critério definidor de etnia. Aqui eu peço desculpas aos leitores que têm a sensação de estar perdendo tempo de vida ao ler tanta obviedade, mas o óbvio precisa ser dito e, infelizmente, vocês ainda são a minoria. Feitos esses esclarecimentos e considerando a surpresa de muitos diante das informações trazidas, chegamos ao cerne da questão: se esses indígenas são tantos e estão em todos os lugares por que você não os conhece? A militância na causa indígena e a recente atuação na Defensoria Pública do Estado da Bahia, à frente do Grupo de Trabalho sobre Igualdade Étnica, tem mostrado que o primeiro obstáculo que os indígenas precisam superar no processo de luta pela efetivação de direitos é a invisibilidade das suas lutas e lutos. E isso não é por acaso. A legislação brasileira sobre povos indígenas pré-Constituição de 1988 é orientada pelo paradigma assimilacionista, pautado pela tentativa de integrar os indígenas à "comunhão nacional". A ideia de integração aqui não corresponde apenas a uma viabilização do acesso aos serviços e direitos ofertados pelo Estado e à convivência respeitosa em sociedade; integrar corresponde ao outro de uma ponte que precisaria ser atravessada pelos indígenas para que pudessem tornar-se parte da sociedade brasileira qualquer cidadão e a os passos dessa travessia seriam também de distanciamento da própria cultura, de modo que o caminho estaria percorrido quando se estivesse completamente despido desta. A perfeita materialização deste paradigma encontra-se positivada na lei 6001/1973, o Estatuto do índio, que em seu art. 4º classifica os indígenas em isolados, em via de integração e integrados. A partir da Constituição Federal de 1988, este paradigma foi formalmente superado e aos indígenas passou a ser assegurado o direito de preservar e ter respeitados seus costumes e tradições sem que isso seja empecilho ao acesso aos demais direitos. Na prática, porém, o processo de superação de um paradigma como este, que esteve vigente por mais de 4 séculos demanda muito mais esforço do quê a mera atividade legislativa e exige esforços, inclusive, do sistema de educação. Os livros didáticos brasileiros contam a história de surgimento do Estado brasileiro com a versão do "descobrimento" em que os indígenas são constantemente retratados como selvagens que viviam no meio do mato, passaram pelo processo de catequização e sumiram. É por causa dessa narrativa que você não tem referências indígenas atuais e ainda vê escolas que insistem em utilizar o dia 19 de abril para pintar as crianças com tinta guache colocar um enfeite papel na cabeça e fazer bater a mão na boca para fazer barulho. É por causa dessa narrativa que as lutas e lutos dos povos indígenas precisam romper o manto da invisibilidade. A histórica ausência de indígenas em espaços de poder, nas instituições públicas e a conivência da sociedade com isso reafirma que estes espaços não foram pensados para nós, o presente da sociedade brasileira foi planejado sem contar com a nossa presença. Mas nós estamos aqui, estamos ocupando esses espaços e aldeando as instituições. Uma importante ferramenta para suprir essa lacuna é a política de reserva de vagas em concursos públicos. Mas, diferente do que acontece em relação à população negra, não existe ainda uma lei federal tratando sobre a reserva de vagas para indígenas em concursos públicos, apenas algumas poucas iniciativas, sobretudo nas Defensorias Públicas e mesmo as instituições que possuem uma política de reserva de vagas que contempla a população indígena, ainda é frequente a reserva de um mesmo percentual para negros e indígenas, disputando entre si. Essa medida, se por um lado representa um avanço em relação à retirada do véu da invisibilidade, também desnuda outra questão: gera uma concorrência entre grupos historicamente vulnerabilizados para acessar espaços que foram negados ao longo dos séculos. Outro aspecto relevante é a valorização da educação escolar indígena, a educação diferenciada que permite o acesso aos conteúdos do currículo regular mas também aos conhecimentos tradicionais do seu povo no ambiente da escola. A consagração da educação escolar indígena e a sua farta regulamentação no âmbito do MEC é uma demonstração de como espaços pensados para apagar a cultura indígena vêm sendo demarcados para que se tornem locus de fortalecimento dela. A finalização dos processos de demarcação dos territórios indígenas que, de acordo com o art. 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, deveria ser concluído até 5 anos após a promulgação da Constituição Federal de 1988, consiste noutro instrumento poderoso nessa luta contra a invisibilidade destinada aos Povos Indígenas. Há muito a ser discutido sobre esses fatores que contribuem para suprir essa lacuna de presença indígena em espaços de poder e vamos falar, com calma, nos próximos textos. Até lá! __________ 1 Dados parciais do censo 2022, disponível aqui. 2 IBGE. Os indígenas no Censo Demográfico 2010 primeiras considerações com base no quesito cor ou raça.disponível aqui.
No livro Lugar de Negro1, Lélia Gonzalez e Carlos Hasenbalg, além de desmascarar a falácia da democracia racial, há mais de quatro décadas, já denunciavam as opressões e discriminações de todo gênero sofridas pela população negra, as quais constituíam e ainda constituem a epigênese da hierarquia das relações sociais e profissionais atribuídos às mulheres negras e aos homens negros no país. A genialidade do título da obra escancara qual o lugar social e hierárquico em que é permitida a presença da mulher negra e do homem negro na sociedade brasileira, quer no que diz respeito à posição social e profissional propriamente dita, quer no que se refere ao espaço imaginário que nos é reservado quando a branquitude2 se depara com uma pessoa negra, não raro, vinculados a esteriótipos demarcados por elementos de inferioridade e vulnerabilidade. Partindo desse lugar ou não lugar de negro construído histórica e culturalmente, nos últimos meses, as rodas de conversas tem sido tomadas por expectativas e especulações a respeito de quem serão as(os) próximas(os) ministras(os) a serem indicadas(os) pelo Presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, para a ocupar as vagas decorrentes da aposentadoria dos Ministros Ricardo Lewandowski e Rosa Weber. Centenas de movimentos sociais e associativos tem encampado inúmeras articulações visando a demonstrar a necessidade de que a mais alta corte do país espelhe nessas duas vagas o reflexo da população brasileira, composta majoritariamente por mulheres e pessoas negras, como demonstra a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2021 (PNAD contínua), atualmente composta por 56,1% dos brasileiros que se identificam como pretos e pardos3 e 51,1%, são mulheres. A Suprema Corte Brasileira, criada por meio do decreto 510, de 22 de junho de 1890, nos 133 anos de sua existência, contou até então com a presença de somente 3 mulheres (2 ainda em atividade), todas brancas, e apenas três ministros negros4 , o último, foi o ministro Joaquim Barbosa que exerceu o cargo no período de 2003 até 2014. Hoje já passados quase 10 anos, a composição do Supremo Tribunal Federal é integrada por 11 ministros, sendo duas mulheres, que compartilham a mesma identidade racial: são todas(os) brancas (os). Ao se deparar com esse quadro, o professor de Direito da UNB Benedito Cerezzo Pereira Filho, nos lançou uma provocação para reflexão de como seria se a composição da mais alta corte fosse inversa, ao questionar: "Imaginem, só imaginem, um STF formado integralmente, os Onze, por negros e negras. A ideia choca?". Essa inversão imaginária das posições do lugar de negro na cúpula do Poder Judiciário, poderia ser estendida aos demais centros de poder e de decisão, quer na iniciativa privada, quer nos Poderes Executivos e Legislativo, onde igualmente caberia essa reflexão. E a resposta não poderia ser a menos esperada: sim, imaginar o cenário proposto, chocaria, sim. Chocaria, sim, porque tradicionalmente todos esses locais não são lugar de negro(a). A colonização racial e de gênero dos centros de poder, baseada no pacto narcísico que impera entre a branquitude no país5 , que desprestigia tanto a mulher como a pessoa negra, revela a estruturação da sociedade, que preterindo a população negra, sempre empregou os melhores esforços com vistas a empreender o branqueamento racial da população, projeto estatal que contemplou inclusive o fomento e financiamento da imigração de europeus, a quem foi concebido acesso facilitado à terra, bem como assegurou-se trabalho, meios esses indispensáveis para assegurar dignidade e cidadania aos despossuídos, tudo em detrimento da população negra escravizada por séculos e ora, encontrava-se recém-liberta, largada à própria sorte e ao infortúnio da cor. Tecidas essas considerações, então se indaga: mas, afinal, qual o lugar do negro no país? Sem dúvidas, é no sistema carcerário, em que 67,4% é composto por pessoas negras, conforme revela o Anuário Brasileiro da Segurança Pública de 20226; é como vítima de violência policial, em que a cada quatro horas, uma pessoa negra é morta no país7, o que correspondente ao percentual de 79,1% de vítimas letais pretas e pardas8 em decorrência da chancelada necropolótica9 que massacra 2,6 vezes mais corpos pretos e pardos. O lugar de negro é como corpo referente nas abordagens policiais, em que de "forma aleatória", só Rio de Janeiro, 63% das pessoas pretas e pardas já relatam terem passado por revista, além de 66% terem afirmado já ter sofrido abordagem policial mais de 10 vezes10. O lugar de negro se encontra nos maiores índices de analfabetos do país: em que no ano de 2019, pessoas da cor preta e parda na faixa etária de 15 anos compunham 8,9% da massa de analfabetos do país, enquanto 3,6% eram pessoas brancas. No grupo etário de 60 anos ou mais, entre os pretos e pardos a taxa de analfabetismo era de 27,1%, enquanto entre os brancos o percentual era de 9,5%11 . O lugar de negro é como trabalhador vulnerável e subalterno, em que a população negra titulariza as maiores taxas de desemprego, que atingiu 13, 9% de mulheres negras, enquanto a taxa de desemprego geral ficou em 9,3%; é como integrantes da maior parcela das (os) trabalhadores empenhados em trabalhos desprotegidos, em que 47,5% se destina às mulheres negras e 46,9% a homens negros, enquanto o índice geral entre a população branca é de 34,7%. O lugar de negro é no trabalho doméstico, em que a proporção de mulheres negras (16,8%) é quase o dobro do quantitativo das mulheres brancas que se empenham na mesma atividade (8,8%), números esses extraídos do triênio de 2019 a 2022, conforme pesquisa do Dieese12. O lugar de negro é como vítima de "trabalho escravo moderno" em que, do total de 2.575 trabalhadores resgatados em condições análogas à escravidão, no ano de 2022, 92% eram homens e 83% se autodeclaram como pretos ou pardos13. Por fim, é lugar de negro o trabalho infantil, cujos dados apontam que 62,7% da mão de obra precoce do país é exercida por pessoas negras, e, quando se trata de trabalho infantil doméstico esse número sobe para 73,5%, dos quais 94% de meninas negras14. Por tudo isso, é que sabemos que esses todos são o lugar de negro, e por óbvio, o Supremo Tribunal Federal, não o é. __________ 1 GONZALEZ,Leila. HASENBALG, Carlos. Lugar de negro. Rio de Janeiro: Zahar, 2022. 2 BENTO, Cida. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022. 3 Disponível aqui. Acesso em 28 mar 2023. 4 Ao longo de toda sua história, o Supremo teve apenas 3 ministros negros: Pedro Lessa, o primeiro ministro negro do STF (1907 a 1921), Hermenegildo de Barros (1917 a 1931) e mais recentemente Joaquim Barbosa (2003 a 2014). CRUZ, Fabiano. GARFINKEL, Leo. SOARES, Sarah. A falta de representatividade negra no STF. Disponível aqui. Acesso em 28 mar 2023. 5  BENTO, Cida. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022. 6  Disponível aqui. Acesso em 28 mar 2023. 7 Disponível aqui. Acesso em 28 mar 2023. 8 TEIXEIRA, Evandro.Violência policial no Brasil: fatores socioeconômicos associados à probabilidade de vitimização. Acesso em 28 mar 2023. 9 MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições, 2018.  10 ANDRADE, Tainá. Estudo mostra que a cor da pele influencia abordagens policiais. Disponível aqui. Acesso em 30 mar 2023. 11 BERMÚDEZ, Ana Carla.Analfabetismo entre negros é quase o triplo que entre brancos. Disponível aqui. Acesso em 30 mar 2023. 12  Disponível aqui. Acesso em 28 mar 2023. 13  Disponível aqui. Acesso em 28 mar 2023. 14  DIAS, Guilherme.TTrabalho infantil negro é maior até hoje por herança da escravidão no Brasil. Disponível aqui. Acesso em 28 mar 2023.  
60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais Já sofreram violência policial A cada 4 pessoas mortas pela polícia, 3 são negras Nas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros A cada 4 horas, um jovem negro morre violentamente em São Paulo Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente (Racionais MC's, Capítulo 4, Versículo 3) Em 2020 fomos tomados por uma inquietude. Reproduzindo a lógica do ambiente jurídico geral, nos canais digitais de informação jurídica não havia uma coluna que expressasse diversidade racial, com o consequente conteúdo que tocasse o direito a partir de outro olhar que não o do universo eurocentrado. A partir de então, um grupo de juristas composto por pessoas negras, mulheres e homens, vinculados a diversas raízes institucionais  - juiz, juíza, promotor e promotora, defensora e advogado - com diversas especialidades temáticas, ciências criminais, filosófica do direito, direito do trabalho, direitos humanos, foi acolhido pelo Portal Migalhas, que, pioneiramente, abriu espaço para uma coluna regular composta por juristas negros/as. O primeiro texto desenvolvido pelo grupo indagava exatamente "Quantas/os professoras/es negras/os você já teve?". Ademais, constatava: De fato, o sistema de justiça brasileiro não reflete, sequer minimamente, a diversidade étnico-racial da população em seus quadros. A propósito, quanto juízes de direito, promotores de justiça ou defensores públicos negros você conhece? E, em se tratando de mulheres negras, quantas ocupam cargos no sistema de justiça? O primeiro tema levantado pela coluna revelava exatamente um questionamento sobre a vontade institucional, seja qual for a instituição, em acolher e realizar a pluriversalidade. Nota-se, quase 03 anos após essa manifesta inquietude, mantem-se atual a abordagem pioneira da coluna. Ao longo do período, tratou-se de um grande cardápio temático: ativismo judicial, reformas legislativas, relações de trabalho, sexualidade, entre outros, tudo marcado por um olhar interseccional (raça, classe e gênero). A proposta da coluna sempre foi trazer temas atuais e com visões diversificadas, a partir de sujeitos diversos. Após todo esse período, sentimos profunda alegria e honra de estarmos unidos nessa tarefa com juristas de tamanha envergadura e capacidade analítica. Todavia, duas coisas nos marcam nesse momento: (i) A deliciosa opressão de novos desafios acadêmicos e a ideia de que é preciso renovar e ampliar os quadros, visibilizar ainda mais outros juristas negros/as, o que nos leva a fazer esse texto de despedida e de votos de boa sorte aos que chegarem, sem, é claro, deixar o registro da saudade que já se avizinha relativa ao convívio específico, em razão das tarefas de manutenção da coluna. O tema eleito então é o quanto as tecnologias racistas operam no sistema penal de forma interligadas. A escolha do tema tem por motivação o julgamento do HC 208240, que cuida da prisão em flagrante e da condenação de um homem preto chamado Francisco Cícero, que foi parado e revistado por policiais, por ser negro, e com ele foi encontrado 1.53g de droga. Portanto, condenado inicialmente a mais de sete anos de prisão, posteriormente a pena foi reduzida para 2 anos e 11 meses. Mas o recorte analítico amplificador desse habeas corpus se dá pela prisão de um jovem negro chamado Luiz Justino. O que além da cor da pele dessas pessoas, Francisco e Justino, os casos trazem em comum? Resposta: a abordagem policial com filtragem racial. Muito se escreveu e falou sobre o caso Luiz Justino, em razão do reconhecimento fotográfico (na verdade aplicação de álbum de suspeito). No entanto, é preciso desvelar outro aspecto dessa história. A prisão de Justino deve ser desdobrada em dois aspectos. 1. Porque foi decretada sua prisão? Resposta: Porque sua fotografia estava em um álbum de suspeito (instrumento produzido esmagadoramente a partir de fotos de pessoas negras).  2. Como o mandado de prisão contra Justino foi cumprido? Ele era um jovem preto, que caminhava em uma praça e foi submetido a uma abordagem policial (stop and frisk).     Notem que os dois aspectos apresentam um mesmo recorte. Justino estava no álbum porque é preto. Justino foi parado porque é preto. Mesmo absolvido e tendo ganhado certa notoriedade, tempos depois voltou a ser abordado pela polícia e levado à delegacia, em seguida solto. Por quê? Porque é preto. A toda evidência, pessoas brancas dificilmente passam por situações como essas. No entanto, o imbricamento dessas tecnologias deve ser denunciado igualmente. Existe uma relação direta entre a formação dos álbuns de suspeitos e as abordagens policias. Isso porque, muitas vezes, pessoas pretas são abordadas na rua e levadas para delegacias para averiguação. Não raro são fotografadas e passam a constar em álbuns oficioso. Esses catálogos surgem inexplicavelmente. A ideia de cadeia de custódia das evidências passa longe das práticas que capturam corpos negros para o sistema de justiça criminal. A formação e composição dos álbuns de suspeitos é um verdadeiro mistério jurídico, que não merece a menor atenção por parte do chamado controle externo da atividade policial. Com o uso disseminado de smartphones, os álbuns de suspeitos e os "reconhecimentos" passaram a ter ainda maior intensidade de descontrole. Isso, pois, muitas vezes, a própria polícia militar faz abordagens, fotografa pessoas e espalha as fotos em grupos de whatsapp para "alertar" que viram "alguém" com estereótipo de suspeito em determinada região, podendo conduzir a "reconhecimentos" tanto em relação a fatos ocorridos, como a fatos que venham a acontecer. Tudo isso para dizer que as abordagens policiais no campo do policiamento ostensivo podem gerar prisões em flagrante, conduções arbitrárias, podendo ser, também, fonte de alimentação de "álbuns de suspeitos", etc. Daí a relevância do HC 208240 do STF que, para além de considerar ilícita a prova decorrente de abordagem policial racista, irá dar uma diretriz sobre o tipo de policiamento admitido pelo Estado Democrático de Direito. Uma vez fixada pelo STF, a tese antirracista terá o reflexo também de impedir essa tecnologia para o fim de alimentação de álbuns de suspeitos. Como derradeira recomendação ao combate ao racismo institucional, o Ministério Público, como destinatário constitucional da missão de realizar o controle externo da atividade policial poderia criar estratégias para coibir tanto as abordagens racistas, como também exercer correições nas policias para fiscalizar a existência de "álbuns de suspeitos". O Judiciário poderia exercer rigoroso juízo de admissibilidade de denúncias fundadas em abordagens policiais racistas e reconhecimentos por álbuns de fotografias de suspeitos. Desse modo, nos despedimos dos leitores e das leitoras e das pessoas queridas que coordenam essa coluna, com a certeza que estamos construindo um mundo livre do peso da raça.
Feminicídio é o tipo penal ( não autônomo) que agrega em sua essência o marcador de gênero como requisito necessário para qualificar circunstância que envolve a prática  de homicídio. A lei 13.104/2015 inseriu o inciso VI no § 2º do CPB e foi recepcionada com bastante debate e críticas na comunidade jurídica, sobretudo pelos estudiosos de criminologia que não defendem o punitivismo como solução para a prevenção das ocorrências delitivas. Passados tanto anos após a inserção desta qualificadora, há, ainda, quem creia que o homicídio praticado cuja a vítima seja uma mulher seria simplesmente o suficiente para caracterizar a ocorrência do feminicídio. Contudo, para avaliar a prática delitiva que envolve o feminicídio, é preciso debruçar-se sobre o estudo do conceito de gênero, como marcador da relação de poder e dominação do homem pela mulher, em razão de motivações que envolvem o desprezo pela condição de mulher ou a existência de violência doméstica e familiar. Crimes passionais deixam de ser avaliados sob a ótima emocional, para terem sobre si as lentes de gênero, com análise do contexto social e cultural que envolve práticas opressivas ligadas ao machismo e patriarcado.1 Nesse contexto, o homicídio deve estar agregado dessa característica que envolve a relação de poder de subjugação do homem pela mulher, o que não necessariamente desafia que exista uma relação amorosa prévia para caracterizar a ocorrência. Dito isso, os números de feminicídio nos últimos anos revelam dados que traduzem um pouco da nossa estrutura desigual e patriarcal, bem como a ineficácia de medidas criminalizadoras para o enfrentamento a violência de gênero. O último levantamento do Fórum de Segurança, realizado no primeiro semestre de 2022, informa que houve um aumento de 10 por cento nas ocorrência de feminicídio nos últimos quatro anos, de maneira progressiva.2 Tal progressão coincide com um período delicado vivenciado pela nossa sociedade, em que demandas ligadas ao gênero tiveram arrefecimento no que toca a proteção das mulheres como política de governo. Segundo dados levantados, 68,7% das vítimas de feminicídio tinham entre 18 e 44 anos; 16% delas tinham entre 18 e 24 anos; 12,3% entre 25 e 29 anos; 14,4% entre 30 e 34 anos; 15,2% entre 35 e 39 anos;10,8% entre 40 e 44 anos; 62% eram negras; 37,5% brancas 0,3% amarelas, 0,2% indígenas; 81,7% das vítimas foram mortas pelo parceiro ou ex-parceiro íntimo. Os números levantados apontam, de igual modo, que houve uma queda no número de feminicídios cujas vítimas são mulheres brancas. No entanto, as mulheres negras seguem sendo as maiores vitimadas, conforme os levantamentos estatísticos. Este desalinhamento apontado por tais dados revela-se sintomático e desafia uma reflexão sobre os fatores que concorrem para tal diferença na evolução dos números. Os dados denunciam que a rede de proteção e acesso à Justiça não estaria tão disponível para as mulheres negras. As perguntas que se devem fazer é: O que faz essa categoria de mulheres serem as maiores vitimadas? O que faz haver menor proteção da rede multidisciplinar de atenção? O racismo estrutural pode ser um dos fatores para que mulheres negras não possuam tanto acesso e facilidade para ter as suas demandas acolhidas junto às autoridades públicas. Nos últimos quatro anos, a política de governo ainda desestimulou o debate sobre gênero, bem como o enfrentamento a violência decorrente. Observe-se que a própria nomenclatura para a designação do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH) sinaliza um caráter conservador das abordagens de políticas públicas para mulheres. O governo anterior ao atual, durante os quatro anos de gestão, propôs para Orçamento da União 94% menos recursos para políticas específicas de combate à violência contra a mulher do que nos quatro anos anteriores. Estes números fazem parte do levantamento do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc)3 que informa que entre 2020 e 2023, foram indicados R$ 22,96 milhões para políticas  de enfrentamento à violência contra a mulher. Nos quatro anos anteriores, esses recursos chegaram à marca de R$ 366,58 milhões. Tais recursos deveriam ser utilizados em diversas frentes de enfrentamento a violência doméstica,  a exemplo do fortalecimento da rede multidisciplinar de proteção prevista na Lei Maria da Penha, que engloba parcerias com instituições públicas e privadas, com o objetivo de prestar acolhimento psicológico, social e assistência jurídica. Segundo nota técnica produzida pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), em relação aos recursos investidos pelo Governo Federal para o enfrentamento dessa situação, em 2022, R$5 milhões foram destinados ao combate à violência contra mulheres, tendo sido este o menor repasse de recursos dos últimos quatro anos. A politica de fortalecimento da cultura armamentista foi outro fator ligado a política de governo dos últimos quatro anos, que pode ter colaborado com o aumento dos índices de óbitos de mulheres vitimadas por violência doméstica. É importante ponderar, ainda, que neste período avaliado, a pandemia de Covid-19  foi um fator determinante para  um aumento de subnotificação de vários crimes, dentre eles aqueles relacionados às opressões de gênero. Ademais, a pandemia desarticulou algumas redes de proteção, com a mudança estrutural na rede de atendimento das instituições públicas, que durante um tempo significativo do período de isolamento social mais crítico adotaram a prática de atendimentos exclusivamente virtuais. Movimentos sociais e organizações da sociedade civil também sofreram arrefecimento nas suas atividades e uma certa desmobilização nas atuações de pressão e cobrança aos órgãos públicos. Projetos do governo Federal nominados de Plano Nacional de Enfrentamento ao Feminicídio e o Plano Nacional de Prevenção e Enfrentamento à Violência contra a Mulher na Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social, jamais foram implementados, efetivamente. Neste contexto, após vivenciar o turbilhão de retrocessos dos últimos anos, nosso país possui um grande desafio que é minorar os danos do enfraquecimento do combate a violência de gênero, não apenas o feminicídio aumentou, mas outras formas de violência de gênero e misoginia explícita ganharam espaço e legitimidade durante este período nefasto. Deve haver um necessário compromisso na reconstrução deste país pelos próximos governantes, com o compromisso sério com a proteção da vida das mulheres, através da construção de políticas públicas focadas com um olhar sensível para as opressões de gênero, sem descuidar das abordagens interseccionais de raça e classe. __________ 1 Mendes, Soraia da Rosa.Criminologia feminista: novos paradigmas- 2ª ed. São Paulo, Saraiva, 2017. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 
Nas últimas semanas, tem vindo à tona cenas chocantes sobre a condição de vida da comunidade Yanomami, replicadas pelos diversos meios de comunicação, exibindo homens, mulheres e crianças em estado quase cadavérico. Em que pese, dentro daquela cultura, não ser adequado fotografar pessoas doentes1, a exceção tem se justificado para trazer a público a situação de total desamparo, ina(ni)ção e exploração ilegal das terras indígenas, fruto do projeto de dizimação imposto nos últimos quatro anos aos povos tradicionais.  De acordo com os antropólogos, o termo "Yanomami" remete a nossa essência, quer dizer "seres humanos". Mas ser "humano" deveria se reportar ao direito de gozar das prerrogativas reservadas a todo o homem, mulher e criança, de ver assegurados direitos fundamentais de dignidade e de valor da pessoa humana, como previstos nos ordenamentos jurídicos constitucionais2, em especial no capítulo VIII, que trata dos "índios" (sic) e  em diplomas internacionais3.  A título exemplificativo, merecem destaque dois diplomas internacionais ratificados pelo País, manifestamente descumpridos tal como os preceitos constitucionais: a Convenção n° 169, da Organização Internacional do Trabalho, sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes, que assegura, dentre tantos direitos, a propriedade e a posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam (arts. 14 e 18); o direito ao respeito a sua integridade, suas culturas e instituições (arts. 2, 5 e 7); o direito a determinar sua própria forma de desenvolvimento (art. 7); o direito a participar diretamente na tomada de decisão sobre políticas e programas que os interessem ou os afetem (arts. 6, 7 e 15); e o direito a serem consultados sobre as medidas legislativas ou administrativas que lhes possam afetar (arts. 6, 15, 17, 22 e 28)4.  E a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas5, que afirma a liberdade e a igualdade de todos os povos e pessoas indígenas; proíbe a discriminação no exercício de seus direitos, em particular a que se baseia em sua origem ou identidade étnica; consagra o direito à autodeterminação política, econômica, social e cultural; a conservar e fortalecer as suas próprias instituições políticas, jurídicas, econômicas, sociais e culturais, bem como a participar plenamente na vida política, econômica, social e cultural do Estado.  A despeito da proteção normativa, os mortos Yanomani, nesses últimos quatro anos, são incontáveis. Estima-se que, somente no ano de 2022, tenham morrido mais de "570 crianças por fome, por desnutrição e por contaminação por mercúrio"6. Repita-se, somente, no ano de 2022.  E, toda essa tragédia não é fato novo tampouco se restringe à comunidade Yanomami. Desse cenário faz parte uma ampla rede de exploração das terras indígenas que lhes ceifa a vida por bala, por fome, pelo mercúrio, tudo arregimentado pela ambição de variadas e poderosas organizações criminosas que atuam em frentes variadas de exploração ilegal da floresta, que vão desde a extração de madeira, da pesca predatória, bem como a garimpagem de metais preciosos.  Soma-se a essa tragédia conhecida a inércia ou ineficiencia das medidas adotadas pelas autoridades públicas, que poderiam e deveriam atuar em cumprimento aos mandamentos legais e constitucionais. No entanto, muitas delas, sequer são dotadas de igualdade de condições para promover reação capaz de eliminar os riscos e crimes ambientais e humanitários perpetrados.  Não se perdem apenas as vidas. A cada morte de homem, mulher e criança perde-se a memória de toda uma comunidade e o potencial do que poderia ser. E mais: a cada dia, ceifa-se em cada um deles a esperança de que virá uma salvação para que não sejam o próximo, o que raramente vem.  Os que lhes defendem, denunciam e tentam com suas poucas forças e meios conter essas barbáries, não raro têm um fim comum: o seu  silenciamento e morte brutal, como ocorreu recentemente com Bruno Pereira e Don Philips7. Mais dois que entraram para a lista trágica que há décadas só se avoluma, composta por nomes emblemáticos como o ativista Chico Mendes, assassinado em 1988, a freira missionária Dotothy Stang, assassinada em 2005 e tantos outros nomes conhecidos e desconhecidos que se empenham na luta por respeito e dignidade aos povos tradicionais.  Se de um lado, vimos, estupefatos e em tempo real, o ataque gravíssimo aos símbolos e prédios situados na Praça dos Três Poderes, em Brasília, no dia 8.01.2023, em uma ação pontual orquestrada por grupos antidemocráticos para violar signos de cunho eminentemente material que nos representam como República e povo, nada se compara às cenas vistas da violência, gradualmente infligida à comunidade Yanomami. Trata-se de uma omissão continuada, orquestrada e posta em prática há anos para dizimar silenciosa e diariamente o verdadeiro signo da nossa nação e que representam a essência do povo brasileiro: a vida e valores indígenas.  É preciso, portanto, reconhecer as diversas armas de extermínio utilizadas contra as comunidades indígenas, dentre elas a ina(ni)ção, o que, a bem da verdade, não é tática tão diferente daquela vista em muitas favelas e em comunidades agrícolas pobres.  No último domingo, em reportagem de Marcelo Canellas8, que investigava os efeitos da desnutrição e do êxodo rural, o repórter retornou a algumas comunidades que tinha visitado há vinte anos, em busca de reencontrar as pessoas que entrevistou e conhecer a sua condição de vida atual.  Na reportagem original, é exibida a conversa com uma paupérrima família brasileira, a quem o - incansável e na ativa até os dias atuais- agente de saúde, de nome Cirene, avisa aos pais que a filha se encontra em estado de profunda desnutrição, com risco de morte.  Diante do alerta, aquele trabalhador tão humilde com sua enxada nos ombros olha nos fundos dos olhos do repórter e lhe questiona o que ele acha que deveria fazer e não obtém nenhuma resposta. É uma das poucas imagens que a filha sobrevivente, e hoje com 22 anos, tem daquele pai, que 6 meses depois se dirige a São Paulo em busca de uma vida melhor e morre. Fato corriqueiro na vida de tantos(as) trabalhadores(as) nortistas e nordestinos(as) que deixam seu lugar, sua vivência e afetos para se deslocar para as grandes capitais do Sudeste do país em busca de uma vida melhor.  Também é revisado o caso da lavadeira Maria Rita, que, na reportagem inicial, já se mostrava em estado grave de desnutrição e adoecimento e 15 dias depois da entrevista concedida morre em decorrência da fome9.  Por fim, é exibido como estão depois de 20 anos o casal Maria e João, ambos abatidos pela fome e agora, pela velhice. Este, tão desiludido com as poucas ou nenhumas perspectivas de melhoria de vida que não vieram, diz a triste frase: "Eu ando doido pra morrer. Eu morrendo, descanso. Descanso dessa vida. Leva pra onde Deus quiser". Faltou dizer que todos os personagens são negros.  A ina(ni)ção que comparece nas duas situações descritas se entrecruzam e fazem parte do genocídio imposto à população indígena e negra, que lhes extermina silenciosamente, nas favelas urbanas e nos diversos rincões desse país.  Esses dois contextos e o genocídio dessas populações que compõem a tríade em que se estrutura a nação brasileira se entrecruzam no cenário macabro que desde sempre viu essas pessoas como meras mercadorias, seres de classe inferior, cuja morte, invisibilizada, quase sempre, por conta da cor e da etnia, serve para ilustrar estatísticas e que exigem reparação e mudança urgentes dos rumos de atuação, tão rápidos quanto os reparos que estão sendo feitos nos símbolos materiais da República, afinal, a morte de cada negro e indígena nesse país representa a perda de cada traço da grande nação que poderíamos ter sido.    __________ 1 Território Yanomami tem 28 mil indígenas e foi tomado por mais de 20 mil garimpeiros no governo Bolsonaro. Acesso em 24 jan 2023. 2 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2023]. Disponível aqui. 3 Disponível aqui. Acesso em 24 jan 2023. 4 GALVIS, María Clara Galvis. RAMÍREZ, Angela. Manual para defender os direitos dos povos indígenas. Disponível aqui. Acesso em 20 jan 2023. 5 Op. Cit 6 Território Yanomami tem 28 mil indígenas e foi tomado por mais de 20 mil garimpeiros no governo Bolsonaro. Acesso em 24 jan 2023. 7 CASTRO, Mateus. 'Colômbia' foi o mandante dos assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips, diz PF. 8 FANTÁSTICO reencontra jovem que quando criança quase morreu de desnutrição: 'Achavam que eu não ia nem sobreviver. Disponível aqui: Eu venci'. 9 Ando doido pra morrer': 20 anos depois, a dor de quem continua a conviver com a fome. Disponível aqui.  Acesso em 24 jan 2023.
Não importa o que o preto portaPele preta é portaPra porrada, pro porrete, pro projétilPolícia prendePolicia premeE pode até pisotearPorte o preto o que portarPrecisa apenas ser preto Vinícius Assumpção Cena 01. Dierson Gomes da Silva foi enterrado no cemitério da Pechincha, doída ironia para alguém cuja vida tem valor nenhum - aos olhos do Estado. "Portava" um pedaço de madeira pendurado numa bandoleira, instrumento afetivo que lhe acompanhava e ajudava a lidar com a dura realidade de trabalhador da reciclagem, me permito supor. Sentindo-se ameaçada durante mais uma operação "contra o tráfico" na Cidade de Deus, a polícia (e tanta gente antes; tanta gente depois) puxa o gatilho e mata Dierson, atirando pelas costas. Difícil não recordar que outros artefatos igualmente perigosos já foram confundidos com armas letais e despertaram a pronta reação policial; foram eles: vassoura, macaco hidráulico, furadeira, skate, guarda-chuva, e muleta1. Como toda tragédia é pouca pra nosso povo, o atestado de óbito de Dierson foi emitido sem carimbo ou assinatura médicos2; assim, o sepultamento, adiado pelo descuido e descaso, coincidiu com o aniversário do seu filho mais velho, que lamentou a perda: "Eu sinto dor, não sei explicar a dor que sinto. Tudo que um filho espera é passar o aniversário com os pais. E tiraram isso de mim, mataram meu pai por um pedaço de madeira". Sua outra declaração é um lugar-comum entristecedor que expõe a violência sistemática que nos abate: "Fizeram uma covardia dessas com um homem que nunca teve envolvimento nenhum. Ele ainda estava de costas"3. É a rotineira e injusta explicação que precisamos dar, contando, na mídia sensacionalista que não enxuga nossas lágrimas, que mais uma pessoa preta vitimada pela polícia era inocente, não tinha passagem, não tinha antecedentes. Lida do avesso, a mensagem é que, se fossem ligadas ao crime, a execução seria seu destino certo - embora a pena de morte seja formalmente vedada no Brasil. Cena 02.  Vestem um verde e amarelo incompatível com a exortação renitente à nação estadunidense e aos seus vínculos genealógicos com a aristocracia italiana, portuguesa, espanhola e afins. Dizem ser patriotas e assim marcham, pelas vias públicas, exclamando "Deus, Pátria, família e liberdade", uma mescla de lema integralista, que deveria causar alarde e preocupação, com pedido de salvo-conduto - prontamente atendido pela Polícia Militar. Ela que os permitiu caminhar despreocupadamente pelo plano-piloto; mais: os escoltou e assegurou tranquila chegada a seu destino4. Houve, inclusive, agentes da lei - tão estruturalmente condicionados à repressão viril - que pararam para conversar e fotografar os "manifestantes"5. Os três Poderes foram atingidos violentamente, imagética e materialmente. Como se não bastasse, em si mesma, a nefasta simbologia da invasão ao Planalto e ao Congresso, a turba fez questão de depredar Cavalcanti, Giorgi, Brecheret..6. "A crise é também estética", não há dúvidas. E no Supremo Tribunal Federal, confirmando que o bordão "Deus acima de tudo" sempre foi um conclame autoritarista, e não uma declaração de fé, arrancaram até mesmo a imagem de Cristo. Cidadãos de bem acima de tudo. Em terra de "bandido bom é bandido morto", é a cor da pele que dita quem pode morrer. Este arremedo de democracia em que estamos imersos - bom a ponto de não querermos pior e insuficiente para a dignidade do viver negro - esteve exposto (uma vez mais) no último 8 de janeiro. Os  cidadãos de bem, figura mitológica tão presente, tripudiaram das "sólidas instituições", ostentando ao mundo o manto da imunidade que acompanha o ser branco. A novidade está no extremo, no acinte supremo, na prepotência de saberem-se acima da lei mesmo quando não há argumento que justifique seus atos de vandalismo, depredação, tentativa de ruptura com o Estado democrático. Puro capricho e demonstração de força. Clamarão por direitos humanos e o escárnio estará também aí, em usufruírem daquilo a que são contrários, ao que dizem ser "cartilha dos bandidos", "benefício aos comunistas" e outros espantalhos retóricos que quase escondem suas vísceras autoritário-racistas. Os socorrerá o privilégio de serem vítimas7, de se dizerem maltratados e serem ouvidos, algo que falta amiúde nas audiências de custódia, na favela, nas delegacias e salas de espancamento neste Brasil. O racismo organiza e sustenta a democracia brasileira. Os atos branco-golpistas desnudam ainda mais sua consciência de um poder pretensa e possivelmente ilimitado, capaz de deixar ilesas mais de mil pessoas que dilapidam o patrimônio publico e carcomem a civilidade, enquanto Dierson jaz no túmulo da barbárie naturalizada contra nós, negros e negras. __________ 1 Vassoura, muleta, guarda-chuva, skate: enganos que viraram tragédias. 2 Morte de catador:por falta de carimbo em atestado de óbito, corpo de morador da Cidade de Deus não foi sepultado 3 'Mataram por pedaço de madeira', diz filho de catador morto pela PM no Rio. 4 Vídeo: PM do DF escoltou bolsonaristas até a Praça dos Três Poderes. 5 Policiais aparecem filmando vandalismo em Brasília e conversando com manifestantes. 6 As obras de arte vandalizadas nas invasões em Brasília. 7 Ana Flauzina e Felipe Freitas, sempre ela e ele, em "Do paradoxal privilégio de ser vítima".
Odé KomorodéOdé arerêOdéKomorodé odéOdé arerê O negrume da noiteReluziu o diaO perfil azevicheQue a negritude criou Constituiu um universo de belezaExplorado pela raça negraPor isso o negro lutouO negro lutouE acabou invejadoE se consagrou Inicio este texto pedindo agô à ancestralidade, às minhas mais velhas, às matripotências das mulheres negras, úteros férteis e geradores de filhas/os fortes, cabaças solares, orís coroados. O arco e flecha em punho anuncia a grandiosidade de uma mãe: Odé Kayodê - "o caçador que traz alegrias". Rememoro a infância e o quintal de casa, muitas árvores, chão de terra e a força da ancestralidade presente no Terreiro que me deu régua e compasso para ser a mulher que eu sou. Neste mesmo quintal de casa, havia uma senhora, cabelos grisalhos, olhar sereno e passos firmes. Como um guarda-costas, Alopá, o cachorro da raça pastor alemão a acompanhava. Todas as crianças, inclusive eu, paravam de brincar para admirar a passagem de Mãe Stella. Em uníssono pedíamos a benção, ela sorria e nos abençoava, enquanto alguém já ajeitava a cadeira de balanço para ela se sentar na porta de Xangô. Saudosa lembrança. Mãe Stella é referência, memória viva e continuidade. Nos deixou no plano físico em 27 de dezembro de 2018, aos 93 anos. Contudo, há uma cantiga que diz: "Os iniciados no mistério não morrem. Os iniciados no mistério não desaparecem. Os Iniciados no mistério vão para a casa do renascimento, onde tudo se renova." Desta forma, a sua energia e essência continuam entre nós. Assim como a energia de Oxóssi, o caçador de uma flecha só, que por ser única, não pode errar o alvo. Certeiro, flexível, observador, mira, atira a lança para acertar, trazer o alimento, matar a fome, gerar a vida. Considerada uma das maiores Ialorixás do Brasil, lutou bravamente pela legitimidade do território/espaço das religiões de matrizes africanas. Confrontou a opressão e o racismo, defendendo a possibilidade de candomblecistas professarem a sua fé. Mesmo diante de todo o caminho trilhado, abrindo portas e sendo voz, não deixou de ser vítima do crime perpetrado pelo Estado Brasileiro há mais de 500 anos: o racismo. Após a morte, mãe Stella foi homenageada com uma escultura do artista plástico Tatti Moreno, in memorian, situada na entrada da Avenida Mãe Stella de Oxóssi. Medindo 8,50 metros de altura, a obra traz a figura do Orixá Oxóssi, com 6,50 m, e a da Iyalorixá com 2 m. Trazendo a imponência que lhe era peculiar, a imagem é o símbolo de altivez e beleza, no litoral de Salvador.  Inaugurada no dia 9 de abril de 2019, poucas horas depois, foi alvo de um vídeo feito por um homem evangélico que associava a imagem de Oxóssi ao diabo. Ato explícito de racismo religioso, contou com a indignação de muitas pessoas, bem como, com o pedido de providências ao MP. Interessante notar que a figura do diabo é criação das religiões cristãs. Nós, praticantes das religiões de matrizes africanas, não possuímos essa concepção, uma vez que o diabo não nos pertence e a nós nos compete a sua adoração. Como dizia a minha avó, mulher negra de Oyá: "quem acendeu o seu carvão molhado que abane". Outro episódio ligado à escultura, ainda em 2019, diz respeito à depredação, além de ser pichada, teve a placa de sinalização arrancada.1 Atitudes criminosas que demonstram o quanto o nosso país sinaliza para o ódio a tudo que é de preto, inclusive a religião. Os crimes são diversos e as punições inexistentes beiram ao descaso e à sensação de impotência. Como se não bastassem os vilipêndios em 2019, explicitando o quanto a figura de uma mulher negra candomblecista incomoda aos racistas, no dia 4 de dezembro do corrente ano, madrugada de domingo, a escultura foi incendiada. E nesse episódio eu me filio a Adriano Azevedo, Obá de Xangô do Ilê Axé Opô Afonjá e sobrinho de Mãe Stella de Oxóssi: "Assim como foi uma estátua queimada, corpos pretos são queimados, mortos, torturados pelo simples fato da cor da pele. Esses mesmos corpos são hostilizados só por professarem uma religião que é oriunda do povo preto".2 As religiões de matrizes africanas sempre estiveram sujeitas aos controles das autoridades. E esse controle nunca foi instrumento desconhecido pela população negra. Durante muitos anos, os terreiros de candomblés eram as únicas instituições religiosas que precisavam de registro obrigatório na polícia para funcionamento. Há um histórico de perseguição e marginalização das religiões de matrizes africanas e esse racismo só tem atualizado as suas formas. Esse caso é o mais recente, mas diuturnamente nós somos vilipendiados institucionalmente, seja quando barram a nossa entrada em locais públicos por conta das vestimentas, seja pelos impropérios que são proferidos aos praticantes da religião. O fato é que nenhum templo religioso católico, pentecostal ou neopentecostal sofre esse tipo de retaliação, e esse é o melhor quadro de legalidade que nós vimos. Não é para acontecer. Nós temos diversos órgãos empenhados em denunciar, frentes de praticantes da religião que envidam esforços para que esses casos não caiam no esquecimento, mas até que ponto contamos com o apoio do sistema de justiça? Neste cenário, clamo para que Xangô e Ogum façam a justiça, pois não descansaremos. Eu sou o fruto das sementes lançadas por mulheres negras ancestrais e esse texto é flecha atirada por quem foi ensinada a nunca ser caça. Okê Arô. _____   1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui.
segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Dentro de mim, cada vez mais negro*

"Como se fosse a noite, cê vê tudo pretoComo fosse um blackout, cê vê tudo pretoSão meus manos, minhas minasMeus irmãos, minhas irmãs, yeahO mundo é nosso, hãTipo a noite, cê vê tudo pretoTipo um blackout, cê vê tudo pretoSão cantos de esquinas, de reis e rainhasYeah, o mundo é nosso" (Djonga) Fui lá. Perdi o medo. Encontrei-me, depois de longo tempo, no espelho que precisava. Ela, mergulhada na tintura reluzente de sua pele, poderia me devolver à beleza da noite. Trêmulo, quase virginal. Apesar de outras experiências, nada me valeria. Nada. Tinha medo de falar comigo mesmo sobre a raça que demarcava meus passos. Naquela ocasião, tudo era negro. Do sentir ao pensar.  Mas a própria recusa de si, escondida em entranhas emocionais ainda indecifráveis, tentaria cumprir o seu papel: afaste-se dos seus e desafie-se para beijar o corpo branco. A "joia rara" da pele branca, de valor autenticamente falso, custa caro a quem se insere, sendo negro/a, na classe média. De alguma maneira, o incenso da brancura parece esfumaçar nossos desejos, embaçar a visão e oferecer uma sensação de pertinência humana que, mais cedo ou mais tarde, se rachará diante de um ato racista. Às vezes, o fogo ultrajante da palavra despretensiosa vem do branco "amigo" ou da branca "amiga", que nos permitiu, na dança inter-racial dos corpos, conhecer uma tatuagem diferente: o toque esperado da mão branca. Dessa vez não. Disse não ao não. E a lembrança poética que vem daquela juventude descoberta, da negrura nervura sendo exposta, consta no verso: nossos corpos estenderam-se na noite, no breu íntimo de um prazer alegremente negro. A minha boca salivou. Um cheiro nosso, como se nos frequentássemos há mais tempo,  lançava uma pequena e morna pergunta no ar reduzido daquele ambiente: haveria outros momentos  assim? Não posso falar por você, não seria justo. A experiência nos toca diferente. Também havia um abismo de classe que, embora não impedisse o querer daquele momento, definiu trajetórias e desencontros. Houve ali, porém, uma potencialidade negra germinativa. A experiência sensorial me empurrou para novos encontros, definidos pela regência de nossa pele. Sim, certamente nos embrenhamos em outros lençóis - de pele branca -, mas talvez não haja nisso um mal em si. A questão é desejar sempre que todos os lençóis sejam brancos e acreditar sempre que só lençóis brancos podem ser aveludados e trazer paz ao nosso sono. Depois disso, chegou até as minhas mãos o livro de Neusa Santos Souza, o Tornar-se Negro1. Há mais de 15 anos que a fotocópia desse livro me levou a conhecer narrativas psicanalíticas sobre experiências que envolvem a subjetividade negra. E no futuro próximo, hoje passado, houve um reencontro com a minha adolescência.  Ela, com quem nada tive, colou as suas mãos pretas, de uma tintura retinta, sobre a enorme barriga de uma das donas da minha cabeça, a minha esposa, grávida de sete meses. Suspeita de parto precipitado. Foi uma agonia aquele dia.  Ainda assim, deu tempo de gravar na memória aquela cena: ela, com um azeviche que parecia soltar de sua pele em direção à minha consciência, me chamou pelo nome, me disse para ficar tranquilo, que teria uma família bonita. Sorriu, me dizendo que era chefe da enfermagem daquele hospital. Pensei sem malícia, resgatando uma história em neblina:  mas por que disse um silencioso não a você naquela época?  Não me doía a história não vivida.  Somos feitos de não vivências. Somos feitos de povoados de imaginações. Engraçado, recordo que, ali no hospital, estava lendo Na Minha Pele, de Lázaro Ramos, esse talento que nos guia sobre muitas possibilidades, inclusive no amor. O que me doía era saber, mesmo depois de ler Neusa Santos Souza, que minha recusa a viver uma paixão preta simbolizava meu descompasso de viver em um mundo branco. Era o despedaçar sutil e inevitável do meu íntimo Ilê Aiyê, causado por piadas endereçadas ao meu cabelo, à minha cor, além daquela mania constrangedora de brancos quererem predestinar a vida afetiva e sexual de negros, dizendo-lhes: você só pode ficar com preto/as, neguinho/a. A questão estava posta:  quebrar o sistema, conquistando o mundo branco. Impossível! Caminho errado! Ainda bem que consegui visualizar placas de aviso com essas mensagens, instaladas no meu coração por algumas decepções inter-raciais.  A fundação do desejo humano é originariamente branca.  Consegue visualizar a metáfora do Éden com um Adão e Eva negros? Por alguma sorte, construí naquela época sólidas amizades negras, todos, coincidentemente, filhos/as de divorciados/as. O prazer de aquilombar-se, embora não conhecesse essa expressão, me fez muito bem. Sentia-me tocado, ao participar de alguns concursos de poesia, pelas lanças sustentadas por Zumbi e Dandara de Palmares. Pode haver vida e esperança na palavra entoada por um negro/a. Do rap, cantigas de roda, a teses de doutorado. É um papo profundo tudo isso, requer tempo, estômago mental e emocional. Nem por isso deve ser adiado. Nem mesmo o medo de ser mal interpretado deve nos fazer evitar colocar a seguinte pergunta: podemos (re)orientar racialmente nossos afetos-desejos? Não consigo digerir bem a informação de que o amor não tem cor. Ou que negros e brancos, enquanto "opostos", se atraem afetivamente. Nesta última frase o raciocínio binário é uma hipérbole. A questão não é recusar, condenar, abominar nosso desejos-afetos por corpos brancos. Assumi-los talvez seja o primeiro passo de uma redescoberta existencial negra. Aqui no Brasil esses corpos fazem nossas cabeças sim, a mídia é uma das forças responsáveis pelo arquétipo branco de nossas vontades. Apesar de casado com uma negra, já perambulei por avenidas do prazer branco. E ainda posso assim proceder. A sensorialidade branca é um mundo paralelo dentro da cabeça preta. Algo mudou, e pode mudar mais. Depois de leituras raciais, dessas e tantas outras experiências que continuam aqui escondidas comigo, sinto que os meus desejos-afetos têm retomado uma vitalidade superlativa que quer abraçar os da minha pele. Dar mais risada com eles/elas. Meus olhos crescem em vida quando veem uma negrura-vida assumir que "a minha pele de ébano é/a minha alma nua/espalhando a luz do sol/espelhando a luz da lua/tem a plumagem da noite/e a liberdade da rua/minha pele é linguagem (...)."2 A tua histórica resistência racial, querida pele preta, é o beijo da insurgência que hoje me fascina. Que nossa subjetividade permaneça sendo um Ilê Aiyê.  Que a alucinação pela brancura, implantada na memória coletiva, não consiga quebrar a magia preta que nossos encontros afetivos podem favorecer. Acredito que a tomada de consciência racial pode reorientar nossos desejos-afetos, dando-nos lucidez nas escolhas de apertos de mão e abraços prolongados, inclusive os que se debruçam sobre a cama do prazer. Gozar também é uma atitude racial.  Dentro de mim, cada vez mais negro(s), no desafio constante de nas histórias que chegam compreender a plenitude da palavra ancestral. É assim que meu coração bate. E o seu? __________ * Advirto ao leitor/a que este texto não pretende estabelecer nenhuma generalização sobre as formas de afetividade entre pessoas negras ou negras e brancas (inter-racialidade). É apenas um texto que revela um ponto de vista do autor sobre o tema da subjetividade inte-relacional negra, a partir de suas experiências de vida e de sua condição de homem negro inserido na classe média. Há questões extremamente complexas que tocam esse tema, em especial quando se aborda a solidão da mulher negra e da pessoa LGBTQIAP+, algo que se agrava emocionalmente nos espaços periféricos da sociedade. 1 Na introdução desse livro, Neusa Santos diz que "uma das formas de exercer a autonomia é possuir um discurso sobre si mesmo. Discurso que se faz muito mais significativo quanto mais fundamentado no conhecimento concreto da realidade. Este livro representa meu anseio e tentativa de elaborar um gênero de conhecimento que viabilize a construção de um discurso do negro sobre o negro, no que tange à sua emocionalidade. Ele é um olhar que se volta em direção à experiência de se ser negro numa sociedade branca. De classe e ideologia dominantes brancas. De estética e comportamentos brancos. De exigências e expectativas brancas. Esse olhar se detém, particularmente, sobre a experiência emocional do negro que, vivendo nessa sociedade, responde positivamente ao apelo da ascensão social, o que implica a decisiva conquista de valores, status e prerrogativas brancos". (SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro. Rio de Janeiro, Zahar, 2021. p. 45. 2 Trecho da música Alegria da Cidade, cuja composição é de Jorge Portugal e Lazzo Matumbi.
O direito penal é fruto da criação do Estado para a concreta realização de um fim, ou seja, realiza uma função política que alguns autores apontam como a "garantia de vida da sociedade", a finalidade de "combater o crime", ou ainda, a "preservação dos interesses dos indivíduos ou do corpo social".  Todavia, essas ideias não podem ser aceitas sem críticas. Por exemplo, o direito penal nazista, pretensamente, visava garantir as condições de vida da sociedade, no entanto, foi um dos maiores horrores experimentados pela sociedade1. Na verdade, a função do direito penal consiste em estruturar e garantir determinada ordem econômica e social. Essa é a sua finalidade, não é ele uma celebração de valores eternos ou uma "glorificação de paradigmas morais"2. O direito penal serve aos interesses dominantes que, via de regra, refletem os interesses daqueles que estão no exercício do poder. Há uma íntima relação entre os sistemas penais e às fases do desenvolvimento econômico que vão lhe imprimir variações. Georg Rusche3, em 1930, apontou a intrínseca relação entre punição e estrutura social, demonstrando ligação de proximidade entre o mercantilismo e as penas de galés e degredo, da prisão com a fábrica, da acumulação de capital com os sistemas penais. Conhecer os fins do direito penal é conhecer os objetivos de criminalizar determinadas condutas praticadas por determinadas pessoas. A isso se dá o nome de "seletividade do sistema penal", outros designam de racismo. Zaffaroni entende por sistema penal o controle social punitivo institucionalizado4. Juarez Cirino ensina que o sistema penal é constituído pelos aparelhos judiciais, policiais e prisionais, e operacionalizado nos limites das matrizes legais, pretendendo-se afirmar como garantidor de uma ordem social justa, mas, na verdade, funciona como uma estrutura opressora e injusta5, atuando seletivamente e a serviço de interesses econômicos, tendo como marca, além da seletividade e da repressividade, a estigmatização6.  Em termos simples, quando se vai, através das leis definir o que será crime, portanto, punido com uma "pena", essa escolha (definição) não é feita com base em critérios verdadeiramente justos, paradigmas morais, ou fundadas nas leis naturais, mas ao contrário, a definição do que será crime punível com uma pena decorre de interesses de grupos que dominam o poder de fazer as leis em dado tempo e em dado território. A própria história da pena de morte no Brasil ilustra bastante a questão da seletividade penal (do racismo) e o quanto o direito penal é utilizado para proteger interesses econômicos. Vamos começar pelo Código Penal do Império. A Constituição Imperial de 1824 tinha um caráter liberal, por influência do iluminismo, foi um importante marco no Brasil do chamado "despotismo esclarecido", ou seja, a manutenção do poder real com aplicação de alguns princípios iluministas, como o racionalismo, os ideais filantrópicos e o progresso. Na esteira desse ambiente, surge em 1830 o Código Criminal do Império, também com forte influência do pensamento liberal que, no campo penal, tinha em Beccaria seu maior expoente, com as ideias de humanização das penas. Houve uma Comissão Bicameral que discutiu o projeto de código e nela muito se debateu sobre a utilidade e possibilidade de supressão da pena de morte. Todavia, a pena capital foi mantida ao argumento de que a criminalidade servil era muito difundida e, sem a pena de morte e as galés, não se manteria a ordem entre os escravos7. Antes do Código Criminal de 1830 ser promulgado, países como a Dinamarca, o Haiti, o Chile e o México já haviam abolido a escravidão. Ainda assim, prevaleceu o temor em relação ao descontrole sobre os trabalhadores negros escravizados, tendo o código "liberal" de 1830, mantido a pena de morte. Previa, assim, em seu art. 113, o crime de insurreição se vinte ou mais escravos se juntassem "para haverem a liberdade por meio da força" e punia tal fato com pena de morte em grau máximo8. Em 1933 ocorreu a revolta das Carrancas. Essa insurreição ocorreu no ano de 1833 em São João d'el Rei-MG, quando os escravos de um deputado do Império (Gabriel Francisco Junqueira) mataram seu filho e partiram para uma outra fazenda, dando cabo da família do irmão do deputado. Já no final de janeiro de 1835, ocorreu a Revolta dos Malês, na Bahia, na qual escravos nagôs em Salvador organizaram uma rebelião contra seus senhores que, todavia, não houve êxito. Esses dois eventos foram determinantes para que os dirigentes da sociedade escravista imperial elaborassem e trouxessem a tona a Lei de 10 de junho de 1835, que retirou dos escravos condenados a morte, por atentarem contra seus senhores e familiares, qualquer possibilidade de recurso9. Quando o projeto da Lei de 10 de junho de 1835 foi remetido à Câmara e ao Senado, constou em seu preâmbulo a fala do Ministro da Justiça que destacava que "As circunstâncias do Império em relação aos escravos africanos merecem do corpo legislativo a mais séria atenção. Alguns atentados recentemente cometidos contra fazendeiros convencem dessa verdade (...) A punição de tais atentados precisa ser rápida e exemplar."10 Na verdade, os "atentados recentemente cometidos", referidos pelo Ministro da Justiça, seriam episódios ocorridos nas províncias da Bahia, de São Paulo e de Minas Gerais, nos quais, por não mais aceitarem castigos violentos e trabalhos extenuantes ou por serem vendidos para outros pontos do país, sendo separados da família, pessoas escravizadas atacaram seus senhores11. O senador Silveira da Mota, manifestando-se sobre o descontentamento que se tinha com a resistência do Imperador Pedro II na execução das penas capitais, disse que:  "Nós sabemos que a escravidão é uma violência e uma injustiça, mas as violências se mantêm senão com outras violências. (...) Num país de escravidão, se o governo quer harmonizar a lei criminal com os princípios filosóficos, então o meio é outro, é acabar com a escravidão. Enquanto não acabar com ela, o meio é a lei de 1835"12. Note-se que no discurso do parlamentar há uma relação de essencialidade entre escravidão e pena de morte, ou seja, uma economia na qual o modo de produção era fundado na mão de obra escrava não poderia abrir mão da pena de morte para sua manutenção. Para acabar com a pena de morte (Lei de 1835), prescrevia o Senador, há que se acabar com a própria escravidão.  Com a chegada da República, vê-se novamente a relação seletiva entre direito penal e interesses econômicos.  Com o fim das senzalas, acontece a ocupação dos espaços públicos pelos negros, ex-escravizados que não foram absorvidos como mão de obra assalariada, a política pública da época foi de importação de mão de obra branca, assalariada imigrante. Os negros livres nas ruas produziram uma sensação generalizada de caos, fundamentando a repressão à ociosidade. Ademais, nesse período de mudança no modo de produção e de uma nova economia no mundo, advinda da revolução industrial, mendigos, incapazes e negros recém-libertos eram considerados como anormais que dificultam e oneram a parte produtiva da sociedade13. No Brasil, o poder político nesse período era dominado por fazendeiros escravocratas e seus filhos. O fim da escravidão (1888) foi seguido de um projeto de criminalização da vadiagem, com pena privativa de liberdade de até 03 anos para reincidentes, mantendo vivo o ideário do Código de 183014. Assim, no nascimento da República, tivemos um projeto repressivo elaborado para aplacar os medos das elites com receio das hordas de libertos, vistos no campo como potenciais furtadores e na cidade, como bandos de capoeiras e desocupados não admitidos na indústria15. Temos que lembrar que vadios e ociosos desprovidos de recursos ou meios de vida no início da República eram irremediavelmente os ex-escravos. Cremos que, com isso, já se tem uma ideia bem concreta sobre a associação do direito penal a proteção de interesses econômicos hegemônicos. A pena de morte no Brasil teve sua aplicação desde o descobrimento, basta pensar no indígena que o governador-geral Tomé de Souza mandou explodir a boca de um canhão em 1549. São lembrados alguns episódios históricos, como enforcamento e esquartejamento de Tiradentes em 1792 e no fuzilamento de Frei Caneca em 1825. Todavia, a pena de morte, praticamente, teve seu fim na pacata cidade de Pilar, na província de Alagoas, quando em 1876 ocorreu a última execução no Brasil. No episódio, o negro Francisco foi enforcado em praça pública, reunindo cerca de 2 mil curiosos, inclusive vindos das vilas vizinhas. Na plateia, contava-se com muitos escravos levados por seus donos, para que o espetáculo de horror lhes servisse de exemplo, vez que o escravo fora condenado à forca por matar a pauladas e punhaladas um dos homens mais respeitados de Pilar e sua mulher16. Com a Constituição Republicana de 1891, as legislações que previam a pena de morte foram abolidas. Ainda hoje, a Constituição Brasileira permite a pena de morte, mas apenas no caso de guerra declarada (art. 5º, XLVII, a c/c art. 84, XIX, CRF/88).  No entanto, as execuções informais de negros e negras, de todas as idades, mas principalmente da juventude negra, faz parte do cotidiano brasileiro. Através de uma pesquisa realizada pela Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e pelo Senado Federal, constata-se que 56% da população brasileira concorda com a afirmação de que "a morte violenta de um jovem negro choca menos a sociedade do que a morte de um jovem branco". Uma campanha da Organização das Nações Unidas (ONU Brasil) apontou a relação entre racismo e violência no país. Chama a atenção o fato de que um jovem negro morre a cada 23 minutos no Brasil17. Os números são do Mapa da Violência, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso). Diante desse cenário é importante afirmar que para aqueles que ainda ostentam de fato a condição de não-ser na sociedade brasileira, a pena de morte reinventada na informalidade, o que lhe torna ainda mais cruel e incontrolável, não foi abolida, ao contrário é a tecnologia do poder para gerir os indesejáveis. É uma política pública de "segurança". Vidas negras importam! _____________ 1 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 20-21. 2 BATISTA, op. cit., p. 20. 3 RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. 2.ed. Rio de Janeiro: Revan/Instituto Carioca de Criminologia, 2004. 4 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Sistemas penales y derechos humanos em América Latina. Buenos Aires, 1984, p. 07. 5 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 26. 6 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 26. 7 PINESCHI, Bruna de Carvalho Santos; SOUSA. Daniel Aquino de. O Código Criminal do Império e seu papel no direito penal brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais | vol. 131/2017 | p. 79 - 115 | Maio / 2017. 8 PINESCHI, op. cit.  9 Sobre o tema: REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil: a história do levante dos Malês, 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1987; RIBEIRO, José Luis. No meio das galinhas as baratas não têm razão: a Lei de 10 de junho de 1835 - os escravos e a pena de morte no Império do Brasil: 1822-1889. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. 10 Agência Senado, https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/04/04/ha-140-anos-a-ultima-pena-de-morte-do-brasil 11 Idem. 12 Idem. 13 CRUZ, Eugeniusz. O eco escravista: Processo histórico de formação da seletividade penal. Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica Rio de Janeiro: vol. 10, no3, setembro-dezembro, 2018, p. 464-484. 14 CRUZ, op. cit.  15 BATISTA, Nilo. Apontamentos para uma história da legislação brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2016, p 63. 16 Agência Senado, https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/04/04/ha-140-anos-a-ultima-pena-de-morte-do-brasil 17 Os números são do Mapa da Violência, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso). Disponível também em: https://www.geledes.org.br/cada-23-minutos-um-jovem-negro-morre-no-brasil-diz-onu-ao-lancar-campanha-contra-violencia/?gclid=CjwKCAjwtp2bBhAGEiwAOZZTuC0bQ0a6o_nHbxU__3OG0pM0uo3c-TXdfV8JxctLWX1xlkAm3GvFnRoCXUMQAvD_BwE
Nas semanas que antecedem o processo de  sufrágio, é comum haver debates e reflexões  sobre fenômenos relacionados ao universo da comunicação utilizada nas propagandas políticas, bem como sobre o adequado manejo das informações difundidas no processo eleitoral e o cotejo com limites e ditames éticos/morais. Em tempos de pós-verdade e comunicação tecnológica difundida em redes, as Fake News são um problema de difícil enfrentamento. Além das notícias que não possuem lastro fático verídico, é um desafio para as autoridades envolvidas combater formas de comunicação que ofendam princípios basilares da nossa democracia. Se por um lado o pluralismo político e a dignidade da pessoa humana são fundamentos de nosso Estado Democrático, de igual modo, são objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:  construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Nesse sentido, tais valores devem servir de bússola na avaliação dos limites do que deve ser expresso, sempre havendo a devida observância do direito fundamental a liberdade de expressão. Um grande equívoco, contudo, é utilizar este  direito fundamental como escudo para graves violações de direitos humanos e dos valores basilares de nossa democracia. O presidente da corte TSE enfatizou, em julgamento recente, que no segundo turno das eleições de 2022, estão ocorrendo duas modalidades de desinformação: a que manipula premissas reais para se chegar a uma conclusão falsa e o uso de mídias tradicionais para divulgar fake news.1 Recentemente, a campanha de determinado candidato proferiu ofensas a comunidade penitenciária, ao afirmar que os votos do outro candidato concorrente teria sido originado de pessoas presas, dando a entender que este seria um fator negativo a ser levado em consideração na escolha de daquele candidato. A Narração da peça induz a conclusão de que "os criminosos escolheram o candidato x para presidente!" Em nota oficial sobre o tema, a Defensoria Pública da União ressaltou que "a propaganda eleitoral em questão causa repúdio pela escolha de imagens de  jovens negros com índole sensacionalista possivelmente extraídas de acervo policial, evidenciando uma grosseira distorção dessas imagens para imprimir os gestos de apoio ao candidato adversário ao que tempo que o rotula como apoiador de bandidos, incitando inclusive a violência política com contornos raciais ainda mais preocupante no atual cenário eleitoral." A propaganda eleitoral, de fato, distorce o entendimento do eleitor, ao omitir que o direito de voto deve ser exercido por pessoas que se encontram presas provisoriamente em estabelecimentos prisionais em razão de medida cautelar judicial, antes da ocorrência do julgamento com trânsito em julgado. Falha, portanto, com o dever de prestar uma informação real.   A peça refutada pode ser entendida, ainda,  no sentido de possuir  como pano de fundo um cunho racista, ao reforçar estigmas negativos que recaem sobe a população preta e pobre existente de maneira majoritária no nosso sistema penal já permeado pela  seletividade que envolve critérios de raça e classe. As imagens utilizadas de pessoas pretas algemadas na propaganda reforçam essa circunstância. As estatísticas que envolvem a população carcerária  brasileira  e os estudos relacionados à epistemologia criminológica depõem sobre essa realidade seletiva. O código eleitoral determina em seu  Art. 243:  Não será tolerada propaganda:  I - de guerra, de processos violentos para subverter o regime, a ordem política e social ou de preconceitos de raça ou de classes; Contudo, na guerra argumentativa que ocorre dentro e fora da campanha política, tanto por parte dos profissionais de comunicação, quanto do eleitorado movido pela passionalidade, não faltam defesas para com a suposta correção da aludida peça de propaganda sob o argumento de que em termos de propaganda política, tudo é válido,  devendo prevalecer o direito à liberdade de expressão. No entanto, a incitação ao racismo não está protegida pela liberdade de expressão. A   Jurisprudência do STF  entende que  o discurso de ódio (hate speech) está em oposição aos princípios constitucionais de igualdade,  dignidade da pessoa humana, bem como o objetivo da promoção do bem de todos sem preconceito, conforme ilustra o julgado do STF do HC 82.424/RS. Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta. Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria CF (art. 5º, § 2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o "direito à incitação ao racismo", dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica. [HC 82.424, red. do ac. min. Maurício Corrêa, j. 17-9-2003, P, DJ de 19-3-2004.]  O entendimento da nossa Suprema Corte é no sentido de que manifestações discriminatórias não se alinham ao sistema principiológico da Constituição Federal de 1988 , notadamente em relação ao princípio da dignidade da pessoa humana e outros dele derivados, em desrespeito aos valores éticos, políticos, morais e sociais que permeiam nosso meio social. Ronaldo Dworkin2 discorre que a "liberdade de expressão tem papel evidente na concepção majoritarista. Essa concepção de democracia exige que se dê oportunidade aos cidadãos de se informar de maneira mais completa possível e deliberar, individual e coletivamente, acerca de escolhas, e é um critério estratégico vigoroso que a melhor maneira de proporcionar essa oportunidade seja permitir que qualquer pessoa deseje se dirigir ao público o faça, de maneira e na duração que pretender, por mais impopular ou indigna que o governo ou os outros cidadãos julguem essa mensagem".  Daniel Sarmento informa que "Cortes constitucionais e supremas cortes de diversos países já se manifestaram sobre a liberdade de expressão, bem como instâncias internacionais de direitos humanos. Uns, de um lado, afirmam que a liberdade de expressão não deve proteger apenas a difusão das ideias com as quais simpatizamos, mas também aquelas que nós desprezamos ou odiamos, como o racismo. Para estes, o remédio contra más ideias deve ser a divulgação de boas ideias e a promoção do debate, não a censura. Do outro lado estão aqueles que sustentam que as manifestações de intolerância não devem ser admitidas, porque violam princípios fundamentais da convivência social como os da igualdade e da dignidade humana, e atingem direitos fundamentais das vítimas.3 Ao se analisar a teoria dos direitos fundamentais de Robert Alexy4, verifica-se que nenhum princípio constitucional deve ser entendido de maneira  absoluta, devendo ser feita, em cada caso concreto, a ponderação e equilíbrio entre eles. É bem de ver, igualmente,  que a CF informa que racismo é crime imprescritível e inafiançável e o Brasil é signatário de diversos tratados e acordos internacionais que  tipificam condutas racistas ou discriminatórias, seja por questões de raça, etnia, cor, religião ou nacionalidade. Na legislação brasileira, não existe uma definição sobre o  denominado "hate speech", discurso de ódio. O projeto de lei 7582/2014 , rejeitado pela Comissão De segurança pública em 2021 tinha a seguinte previsão : Art. 3º Constitui crime de ódio a ofensa a vida, a integridade corporal, ou a saúde de outrem motivada por preconceito ou discriminação em razão de classe e origem social, condição de migrante, refugiado ou deslocado interno, orientação sexual, identidade e expressão de gênero, idade, religião, situação de rua e deficiência. Lamentavelmente, o critério racial não foi aposto no texto do projeto originário. Equívoco inadmissível.  Nesse sentido, ainda estamos no começo da caminhada para o enfrentamento deste tipo de prática, de modo que as instituições que velam pelo Estado Democrático de Direito, bem como a sociedade civil devem manter-se vigilantes e combativos com os abusos ocorridos nos tempos de pós-verdade, com a prática de discriminações de cunho racial em nome da liberdade de expressão. __________ 1 Disponível aqui. 2 DWORKIN, Ronald. A virtude soberana - a teoria e a prática da igualdade. Tradução de Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 503/504:  3 SARMENTO, Daniel. A liberdade de expressão e o problema do "Hate Speech". In: SARMENTO, Daniel. Livres e iguais: estudos de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.  4 ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madri: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2001.
"Experimenta nascer preto, pobre na comunidade,Você vai ver como são diferentes as oportunidadesE nem venha me dizer e isso é vitimismo,não bota a culpa em mim pra encobrir o seu racismo" Cota não é esmola, Bia Ferreira1 O Brasil acorda, nesta segunda-feira (3/10/2022), com novos(as) e velhos(as) representantes, eleitos(as) para ocupar cargos nos Poderes Executivo e Legislativo, Federal, Estadual e Distrital. É inegável que toda eleição retrata um momento cívico e democrático, em que brasileiros e brasileiras vão às urnas depositar suas expectativas e sonhos por um país melhor, tem-se ali a chance de promover a renovação e/ou a continuidade, o resgate ou a perpetuidade, não apenas de legendas partidárias, como também de rostos e de ideais. Mas será esta eleição capaz de reverter o quadro histórico de sub-representatividade política de que padece a população negra no âmbito desses Poderes? Adotando-se o recorte racial e mantido o histórico das eleições de 2014 a 2020, as perspectivas não se revelam tão animadoras. Entre uma eleição e outra, observa-se que houve um aumento, tímido é verdade, do número total de candidaturas de negros/negras a galgar cargos no Poder Legislativo, no âmbito federal, estadual e distrital, entretanto, ainda assim, na Câmara dos Deputados somente 24,4% das cadeiras foram ocupadas por candidatos autodeclarados pretos/as e pardos/as, enquanto no Senado Federal, pretos/as e pardos/as representavam apenas 13 eleitos/as do total de 81 senadores2. No âmbito municipal, a eleição de candidatos pretos e pardos revela maior equilíbrio na composição das chapas e formação das casas legislativas, com a eleição de 57% a 53% de candidatos declarados pretos e pardos, respectivamente em 2016 e 2020. Mas quando se somam os critérios de raça e gênero, os números demonstram resultados piores, revelando uma face ainda mais desigual de acesso à representação política por mulheres negras, isso porque nas eleições de 2020, mulheres pretas e pardas somaram apenas 3,65% do total de prefeitos eleitos e 6,28% das vereadoras3. O problema se confirma quando analisamos os dados do TSE referentes aos candidatos/as eleitos/as para todos os cargos políticos, em cotejo com o contingente populacional. Dos candidatos eleitos em 2018, apenas 27,61% se autodeclaravam negros e 72,39%  se autodeclaravam brancos, enquanto a população brasileira, era composta majoritariamente por pretos e pardos, sendo que, em 2017, representávamos 55,7% da população brasileira e em 2021, éramos 56,1%, o que explicita, em números totais, a nítida desproporção entre a representatividade da população por cor/raça e a não-ocupação de os espaços políticos de poder4. Nestas eleições, é bem verdade, pela primeira vez, duas normas visaram a balançar o pêndulo em favor da igualdade racial nas Casas Legislativas: a Emenda Constitucional 111/202,  que estabelece a contagem em dobro dos votos destinados a candidatas mulheres ou a candidatos negros para a Câmara dos Deputados, e a resolução 23.605/2019, modificada pela Resolução n°23.664/2021, do Tribunal Superior Eleitoral, que assegura a distribuição proporcional dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) e do tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão ao total de candidatos negros que o partido apresentar para a disputa eleitoral. A contagem de voto em dobro e a concessão de mais recursos e tempo de propaganda, em tese, sugerem a possibilidade de superação da desvantagem inicial a candidatos negros/negras, entretanto, se mantido o mesmo padrão constatado nas candidaturas femininas, no âmbito municipal, nas eleições de 2016, bem como nas eleições de 2018, não há que se esperar a eleição de maior número de candidatos/as negros/as, pois, o que já viu, nessas duas oportunidades, é que, a despeito de um número mais elevado de candidatas mulheres, não houve repercussão proporcionalmente na sua eleição5. Os direitos de participação política não podem se restringir apenas à possibilidade de livremente escolher seus representantes, o que, para muitos, já se traduziria na real democracia. Tem-se que ir além, é imprescindível participar da formação da vontade política, com base na real possibilidade de elegibilidade para cargos públicos nas casas de representação política, em todas as searas6, e por conseguinte, participação nas decisões que ditam os rumos do país. O Poder Judiciário, bem como o Ministério Público e Defensoria, em todo o país já enveredaram o caminho para tentar contornar a flagrante desigualdade de composição de seus quadros, ao possibilitar, pelo menos, nas instâncias de ingresso, a adoção de políticas de cotas, ainda que, a bem da verdade, nas instâncias superiores, a presença de mulheres e negros/as ainda não se revele igualitária. Mas um passo já foi dado. A matemática improvável de traduzir no Parlamento e no Executivo o colorismo da população brasileira e toda a sua diversidade, não apenas de raça e gênero, critérios esses adotados juntos ou separados, apresenta obstáculos aparentemente invencíveis, que revelam a existência de mecanismos de seleção privilegiada7, que tal como em outros campos da vida social, limitam a participação da população negra em espaços de poder, como já exaustivamente nesta coluna, em especial em seu artigo de abertura. A ocupação minoritária da população negra nos espaços políticos institucionais em contraste com seu caráter majoritário de composição populacional confirma a flagrante desigualdade racial que impera no país, alijando esse grupo racial de possibilidade de participação em instâncias de decisões coletivas, e por conseguinte, provoca distorção na elaboração e implementação de políticas públicas, que contam com a prevalente participação de pessoas brancas nos processos políticos decisórios, muitas vezes, destituídas do conhecimento, sensibilidade e vivência necessária para enfrentar as desigualdades econômicas e sociais e promover respostas que atenda os anseios daqueles/as que dela efetivamente necessitam, comprometendo o esperado pluralismo político e fragilizando o próprio Estado Democrático de Direito. O tom pessimista com que esse artigo foi iniciado, confirmado pelos números, por sua vez, não esmorece o coração desta brasileira, que anseia, mais que nunca, por um Brasil em que sua face negra seja refletida não apenas nos noticiários policiais; como uma exceção em uma fotografia da composição de cargos diretivos, ou ainda um mero adereço para dar ar de suposta diversidade em espaços políticos. O que espero dessas urnas, em que todo brasileiro e brasileira teve a cada voto, mais um segundo para refletir suas escolhas, cujo silêncio só foi quebrado pelo emblemático som da confirmação do voto: é esperança por dias melhores. __________ 1 FERREIRA, Bia.Cota não é esmola.Youtube, 2017. Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=qcqiaohajom. Acesso em 25 set 2022. 2 LEITE, Geraldo. Racismo Estrutural e Representação Política. In: Rodrigues, Ricardo José Pereira (org.).Agenda Brasileira/Câmara dos Deputados. Consultoria Legislativa. Ano 3. Nº5 (2022). Brasília. p.86-105. 3 LEITE, Geraldo. Racismo Estrutural e Representação Política. In: Rodrigues, Ricardo José Pereira (org.).Agenda Brasileira/Câmara dos Deputados. Consultoria Legislativa. Ano 3. Nº5 (2022). Brasília. p.86-105. 4 Disponível aqui. Acesso em 28 set. 2022 5 RABAT, Márcio Nuno. A composição por raça/cor das casas de representação política e as eleições proporcionais de 2022. In: Rodrigues, Ricardo José Pereira (org.).Agenda Brasileira/Câmara dos Deputados. Consultoria Legislativa. Ano 3. Nº5 (2022). Brasília. p.108-137. 6 LEITE, Geraldo. Racismo Estrutural e Representação Política. In:  Rodrigues, Ricardo José Pereira (org.).Agenda Brasileira/Câmara dos Deputados. Consultoria Legislativa. Ano 3. Nº5 (2022). Brasília. p.86-105. 7 LEITE, Geraldo. Racismo Estrutural e Representação Política. In:  Rodrigues, Ricardo José Pereira (org.).Agenda Brasileira/Câmara dos Deputados. Consultoria Legislativa. Ano 3. Nº5 (2022). Brasília. p.86-105.
segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Branco, este artigo é pra você!

Eles que são brancos e os que não são eles que são machos e os que não são eles que são adultos e os que não são eles que são cristão e os que não são eles que são cristãos e os que não são eles que são ricos e os que não são eles que são sãos e os que não são todos os que são mas não acham que são como os outros que se entendam que se expliquem que se cuidem que se (Brancos, Ricardo Aleixo) Você, branco, talvez não tenha lido esta coluna até ver nela seu "nome". Talvez tenha sido tragado pela curiosidade de saber "o que esse preto está a dizer de mim?" Seja bem-vindo, este texto é sobre você. A escala da existência humana pressupõe o humano e o humano é branco. Branco-macho-cis-hetero-rico-casado-cristão-semdeficiência é o ser paradigma da existência plena, completa, inteira. Todo o resto é pedaço-menor, é incompleto,  e vai-se descendendo até notar que a existência negra nem mesmo humana é - daí porque nos afligem diariamente com toda sorte de aviltamento do corpo, imagem, memória, subjetividade... Por ter uma existência atravessada por dores atemporais, que nos conectam à colônia e ao futuro péssimo - tanto possível quanto provável -, temos escrito muito sobre a nossa condição de vítima das sevícias constantes, bem como de seus impactos sobre o nosso povo. O negro como um lugar de dor é uma construção frequente, ainda quando o que nos move é a denúncia dessa realidade. Com recorrência, apresentamos os números do genocídio negro, enunciamos as narrativas das famílias pretas marcadas na carne, contudo, não raro, cometemos o pecado de dar ao sujeito branco o benefício de figurar como agente oculto ou implícito. Está aí um dos muitos privilégios de ser branco: não ser exposto, não ser apontado, não ser constrangido. Quando não "botamos o dedo na ferida", a consequência é essa aparência absolutória; por não ser referido, ou não ser referido o quanto deveria, o branco vai esmaecendo, se tornando etéreo e quase desimportante. De repente, as estatísticas que revelam a desgraça do viver negro parecem ser naturais, causadas por uma espécie de destino que há de se abater sobre nossas cabeças, sem agência, sem responsabilização ou possibilidade de interrupção do seu curso. É o que acontece quando falamos das heranças da escravidão para o povo preto, tema da maior relevância, sem lembrar de dirigir os holofotes às heranças dessa mesma atrocidade para o povo branco. Enquanto nós carregamos no dorso as mazelas, os loiros carregam os louros dessa vil espoliação - até hoje e além. "Os beneficiários do colonialismo europeu não eram apenas a companhias e as famílias ricas que participavam diretamente da extração das riquezas das colônias. Todas as outras classes, até as mais pobres, também se beneficiaram da elevação de padrão de vida, do desenvolvimento econômico e da transferência do trabalho pesado para as colônias" (Cida Bento, O Pacto da Branquitude, p. 29-30) Os brancos vão transmitindo intergeracionalmente esse patrimônio material e imaterial que a posição hegemônica lhes legou, sem qualquer necessidade de parentesco. É de um branco a outro, pelo simples fato de sê-lo. A epiderme alva ativa automaticamente um feixe de privilégios que independem do grau de consciência do ser branco que os titulariza. Não há como acordar não-branco, ainda que você se envergonhe ou rejeite o mal causado por seus antepassados (e por seus contemporâneos!), do mesmo modo que nós, negros, não perdemos a ostensividade epidérmica por eventual ascensão ou inserção social, econômica, prestígio político ou coisa que o valha. Nesse cenário, o branco que se acha menos branco por ser consciente e empático com as violências que nós sofremos apenas reforça sua prerrogativa de "poder ser o que se quer". Existe até quem se declare pardo, sabendo - ou devendo saber - que essa afirmação faz incidirem políticas afirmativas voltadas para o povo negro (que é a soma de pardos e pretos, vale lembrar). Coisa de branco mesmo... Se você chegou até aqui, não se preocupe: sabemos que nem todo branco é assim. Fala-se em "branquitude" para nominar essa vantagem que o povo branco tem independentemente de querê-la ou aceitá-la; fala-se também em pessoas (brancas) "aliadas", para ressalvar quem, apesar da sua posição especial, deseja contribuir para uma mudança do status quo. Não ache, porém, que você é um branco aliado se você (i) usa o termo "racismo estrutural" para isentar a responsabilidade pelas práticas diárias de discriminação, suas e dos outros; (ii) se você leu a orelha de um ou dois livros de pessoas negras, absorveu ideias gerais e acredita que está imune de ser racista após essa sua "imersão"; (iii) se você acha que pode escrever ou falar sobre o racismo sem ouvir, consultar e aprender com pessoas negras (as que estejam dispostas a ensinar!), e se faz isso para ser protagonista absoluto, favorecendo a você e não à causa; (iv) se você ainda não entendeu que a diversidade em eventos está na participação real, em número significativo, de pessoas negras - e não na presença figurativa, no convite feito para colorir o cartaz pretensamente europeu; (v) se as pessoas negras no seu Instagram, nos lugares que você frequenta, nos seus encontros festivos estão apenas servindo, trabalhando, atendendo aos seus prazeres dominicais; (vi) se a existência negra é seu objeto de estudo, seu fetiche, e suas práticas seguem as mesmas de sempre; (vii) se você interrompe, interpela, interdita as pessoas negras no seu falar e existir, especialmente quando o assunto é a nossa vivência; (viii) se você só é antirracista nas redes sociais, nos discursos oficiais, mas esquece o seu antirracismo nos clubinhos, nos "petits comités" - isso vale também para as mulheres brancas, que, na luta contra o velho e bruto machismo, esquecem de contemplar as mulheres negras; (ix) se você...; (x) se você...; (...) ...  ... todos os que são mas não acham que são como os outros que se entendam que se expliquem que se cuidem que se...
"Negro dramaEntre o sucesso e a lamaDinheiro, problemas, invejas, luxo, fama Negro dramaCabelo crespo e a pele escuraA ferida, a chaga, à procura da cura [...] Eu num li, eu não assistiEu vivo o negro dramaEu sou o negro dramaEu sou o fruto do negro drama". (Negro Drama - Racionais MC's) Sábado, 3 de setembro de 2022, no palco do Rock in Rio, o auge da apresentação dos Racionais MC'S, foi Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay cantarem o clássico hino  "Negro drama", enquanto exibia-se no telão os rostos, nome e idade de algumas vítimas da violência estatal no Brasil: Ágatha, Cláudia, Durval, Genivaldo, João Pedro, Kathlen, Luana, Moisé, Mariele... "Olha quem morre, então, veja você quem mata". "Recebe o mérito, a farda que pratica o mal, me ver pobre preso ou morto, já é cultural..." A lista é infinita, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 84% (oitenta e quatro por cento) das pessoas mortas em ações policiais no Brasil, em 2021, são negras. Em Salvador, 100% (cem por cento) dos mortos pela polícia, são negros/as, conforme levantamento realizado pela Rede de Observatórios da Segurança, em relação ao ano de 2020. O rap engrandece as nossas narrativas e embala jovens negros/as, sobretudo das periferias, pois o ponto fulcral, talvez seja o resgate das memórias. Pelo impacto da exposição dos Racionais MC's, as redes sociais ficaram em polvorosa, tal qual a exclamação: "Nós não esqueceremos". "Negro drama, cabelo crespo e a pele escura, a ferida, a chaga, à procura da cura"... Sim, nós, mulheres negras e homens negros não esqueceremos das várias marcas coloniais circunscritas em nossos corpos. Seja porque, "dói quando respiramos", ou porque não dá tempo de sentir a dor, uma vez que o projétil atinge o peito antes de sequer sabermos o significado dela. E foi assim, sem saber distinguir a dor causada por um arranhão oriundo de uma brincadeira de criança, e a dor da morte em vida, que muitas sementes brotaram, mas não tiveram as chances de florescerem, até a fase adulta.                    Em Salvador, Mirela do Carmo Barreto, 6 anos, filha única, foi morta na laje de casa, no bairro de São Caetano. A Comunidade desabafou em poucas palavras o sentimento visceral: "O que essa criança viveu para passar por isso? Que culpa ela tem? Você vê o clamor por justiça e sabe que não vai dar em nada porque somos da periferia, somos pobres. Falta respeito". [...] "Eles sabem que não vai dar em nada e a gente está cansado de tomar porrada". Joel Conceição Castro, 10 anos, morto durante uma ação policial no Nordeste de Amaralina. A mãe da vítima desabafou: "eles já chegaram aqui xingando todo mundo. Meu filho estava arrumando a cama para dormir quando recebeu os tiros".1 Davi Fiúza, 16 anos, desaparecido após uma abordagem da polícia Militar, nunca foi encontrado. 8 anos após o desaparecimento, em agosto desse ano seria realizada a 1ª audiência, cancelada no dia marcado para acontecer. A mãe, Ruth Fiúza desabafou: "Eu preciso disso para acalmar a alma. É muito difícil, porque o meu filho não teve direito de ir e vir. São oito anos que eu espero por ele, mas eu sei que ele não volta mais. De qualquer forma, ele está vivo dentro de mim, e vai continuar vivo até o fim da minha vida". Railan Santos da Silva, 7 anos, portador de transtorno do espectro autista, atingido por disparos de arma de fogo perpetrados por policiais militares, no Curuzu, enquanto assistia uma partida de futebol na comunidade.2 Fernanda Evangelista, mãe de Railan desabafou: "Eu digo todos os dias: eu estou morta viva. Eu tive um filho de 7 anos, cuidei de meu filho, para agora acontecer isso. Está errado isso, gente! E agora, eles vão dizer que as balas foram de quem? Só faltaram, dizer que meu filho estava armado". O que essas crianças e adolescentes têm em comum, perpassa pela variável que se apresenta desde o nascimento até a morte: a cor negra. Em quase todos os casos expostos, a assessoria de comunicação da Polícia Militar alegou que os policiais se depararam com suspeitos armados, que teriam disparado contra eles, ocorrendo o predestinado "revide à injusta agressão". A militarização da polícia passa pela lógica de combate ao inimigo. Pelo raciocínio do policiamento ostensivo, os policiais deveriam prevenir delitos, em lugar disso, revidam à suposta "injusta agressão" e acumulam mortes. Ainda em Salvador, Cristal Rodrigues, 15 anos, foi morta em uma tentativa de assalto, no bairro do Campo Grande, quando caminhava para ir à escola. A delegada responsável pelo caso explicou em entrevista: "Os familiares estão muito abalados. Já mantivemos contato com um familiar da vítima e a gente se solidarizou com o sentimento de dor, dissemos que todas nossas equipes estão mobilizadas e a gente está tentando viabilizar o melhor momento de fazer a oitiva da família".3 Após a morte, o Comandante-Geral da Polícia Militar enfatizou: "Gostaria de me solidarizar com a família. É uma tragédia. Queremos dizer que daremos a resposta à sociedade o mais rápido possível. Todo nosso efetivo está imbuído na busca desses algozes que precisam ser retirados do convívio social".4 O Centro da cidade foi tomado por efetivos policiais civis e militares, durante muitos dias, após o fato. O local da morte virou santuário no qual as pessoas renderam homenagens com coroa de flores, cartas e velas acesas em memória. Toda a sociedade soteropolitana àquela altura clamou por justiça. No lapso de 2 (dois) dias, as duas suspeitas foram presas. Cristal era uma menina branca, moradora do Corredor da Vitória, bairro nobre de Salvador. Assim como os casos relatados neste texto, merecia florescer, brilhar. Teve a sua vida ceifada por duas mulheres negras, o caso mudou totalmente a narrativa-padrão. Eram negras as mãos que apertaram o gatilho e era branco o corpo estendido no chão. Mesmo se eu não tivesse mencionado a cor da pele de Cristal, talvez, a descrição tenha trazido ao/a leitor/a a dimensão sobre os antagonismos da Negra Salvador. Isto porque, as narrativas sobre corpos negros seguem na via marginal. Detalhes que passam despercebidos, "pois no racismo o indivíduo é cirurgicamente retirado e violentamente separado de qualquer identidade que ele/ela possa realmente  ter"5. "Daria um filme, uma negra e uma criança nos braços solitária na floresta de concreto e aço. Veja, olha outra vez o rosto na multidão, a multidão é um monstro sem rosto e coração..."6 __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 KILOMBA, Grada. "The Mask". In: Plantation Memories: Episodes of everyday racism. Tradução: Jessica Oliveira de Jesus. Munster: UnrastVerlag, 2ª Edição, 2010, p. 176. 6 Negro Drama- Racionais MC's.
É torrencial e ácida a chuva de gente negra que se derrama no cotidiano em formato de pedaços de carne ensanguentados e selados por chumbo. Aliás, viver negramente não sugere eufemismos, ainda mais quando perspectivas sufocantes sobre classe, gênero e sexualidade constituem a encruzilhada desse existir. É melhor falarmos logo em genocídio antinegro. A contínua, massiva, sistemática e gratuita morte de pessoas negras não cabe na literatura. É tão assustadoramente real, que desdenha da mais tormentosa ficção afropessimista.  E com tanta nervura exposta, essa morte coletiva negra é invisibilizada por quem, com sobra de tempo, brinca de blackface e antirracismo de ocasião. A branquitude - muitos/as de uma alvura postiça - é perita na arte de se manter no poder e explorar a carne negra. E, justamente por isso, cenas desse genocídio antinegro entram no especulativo e lucrativo mercado midiático, cujo critério é: quem pode oferecer mais detalhes sobre o suplício deste ou daquele corpo negro? São tantas formas de nos matar. São várias as maneiras de nos fazer morrer de "morte natural". Do excesso de sal e gordura na alimentação desconectada de princípios alimentares ancestrais, passando pela saúde mental interrompida pela parábola neoliberal da meritocracia, aos tiros certeiros de balas perdidas, aquelas que devastam sonhos das comunidades negras, interrompem grávidas, abortam a ingenuidade das crianças, antes mesmo que consigam chegar nas sinaleiras da vida, onde costumam segurar placas de papelão nas mãos que anunciam: tenho fome! Há quem prefira dizer que essas crianças famintas esquecidas nas ruas são apenas mais um caso de insegurança alimentar. É fome grotesca, quer saber, é fome, e, como sempre, no Brasil a fome é negra. "      (...) tem gente com fome tem gente com fome tem gente com fome   Tantas caras tristes querendo chegar em algum destino em algum lugar                   (...) se tem gente com fome dá de comer. (Solano Trindade)1" "A felicidade do branco é plena. A felicidade do preto é quase." Queria tanto discordar de Emicida. Sinto uma espada atravessar meu corpo, em corte diagonal, quando ouço esse trecho de Ismália. Penso: será sempre assim a condição da negritude, uma atmosfera de falta, subtração, a variar somente na intensidade dessa falta de si, desse sentir-se estranho e deslocado em convívio com o mundo branco? Difícil escapar daquela cena musical, do quase .... que angustia o coração, e que é real num país que se recusa a discutir seriamente seus conflitos étnicos e raciais, e não consegue assumir historicamente que a (falsa) abolição da escravização não assegurou o respeito à dignidade do povo negro, a suas tradições religiosas e elaborações linguísticas, lançando-o em um mar social de explorações e criminalizações destinadas a novas formas de aprisionamento. Do ferro quente lançado em seus rostos, das correntes amarradas em seus pulsos, diretamente para os porões de viaturas e cárceres imundos. Canta Lazzo Matumbi, nos lembre sempre daquela música que diz: "no dia 14 de maio, eu saí por aí/ Não tinha trabalho, nem casa, nem pra onde ir/ Levando a senzala na alma, eu subi a favela/Pensando em um dia descer, mas eu nunca desci/ Zanzei zonzo em todas as zonas da grande agonia/Um dia com fome, no outro sem o que comer/Sem nome, sem identidade, sem fotografia/ O mundo me olhava, mas ninguém queria me ver."  Esse negro poeta musical também nos entrega um pouco de vigor ao cantar os versos: "mas minha alma resiste, meu corpo é de luta/Eu sei o que é bom, e o que é bom também deve ser meu." Conseguiremos resistir e (re) existir a esse desperdício de vidas negras, marcado por uma ciranda infinita de assassinatos, violências obstétricas e sexuais? Outro dia a placa de um restaurante zen mostrava: "a alimentação cura e a arte salva".  Algo assim. A população negra, como regra, está exposta a uma alimentação de baixa qualidade nutritiva, isso quando não está inserida num quadro crônico de fome. Ou seja, é alvo do que se pode chamar de racismo alimentar, que resulta em nutricídio.2 E quem está agonizando no dia a dia, tentando garantir um prato de feijão com arroz, catando restos, não tem espaço mental, por óbvio, para a arte.  Aquela frase zen, na prática, não acolhe a população negra. Carolina de Jesus deixou anotado em seu diário: "eu cato papel, mas não gosto. Então eu penso: faz de conta que eu estou sonhando.3" E no subúrbio ferroviário tem muita gente morrendo de "invasão domiciliar". Lá pelas tantas e, às vezes em plena luz do dia, tem gente preta sendo exterminada. Ninguém sabe. Ninguém viu. A história se repete por anos, investigações não são iniciadas ou esbarram em ausência de informações probatórias sobre a autoria delitiva. Códigos de silêncios celebram o genocídio da juventude negra. Cadáveres adiados. Parece que foi essa a expressão usada por Zaffaroni em A Questão Criminal para se referir à situação dos/as que são alcançados/as pelo sistema de justiça criminal. Ainda é pouco. O pensamento de João Costa Vargas é mais certeiro, precisamos compreender que "a morte negra não causa escândalo."4 O Brasil é um país antinegro. Talvez por isso as frequentes condenações injustas de pessoas negras, uma espécie de morte social, não causam o impacto reflexivo que deveriam proporcionar. A branquitude segue inabalável em seu percurso histórico de expropriação material, carnal, espiritual e emocional de pessoas negras. Tem gente preta desaparecendo, transformando-se em gotas de sangue que jorram dos olhos de mães pretas. Há dores que nem a força do atabaque acalma, nem a magia de estar descalço na terra molhada, esperando Exu passar, consegue dar conta, porque ser mãe numa comunidade negra periférica é experenciar um constante déjà vu sobre a morte precoce do próprio/a filho/a. Ao abrir o email institucional, algumas mensagens eletrônicas portavam o título Nota de Falecimento: "Com pesar comunicamos o falecimento de .... O sepultamento será .....". Essas notas têm um sabor emocional adstringente. Quando será a minha vez? Uma nota sobre um parente próximo? Naquela semana, percebeu-se que as notas se referiam também a parentes distantes, que eram sempre no mesmo formato, embora motivadas por uma intenção burocrática de prestar condolências. Na hora da morte, o Estado não perderia o caráter insosso de sua existência. Naqueles dias, um pensamento diferente apareceu quando a pele preta reluziu mais forte nas reflexões diárias. Nem isso. Nem mesmo essa frieza burocrática estatal que presta solidariedade sobre a morte de um parente, a comunidade preta tem direito. Não que seja grande coisa. Não bastassem os corpos negros em que tropeçamos nos noticiários e nas calçadas periféricas, é mais uma evidência de que "a morte negra não causa escândalo." __________ 1 Poema Tem gente com fome, de Solano Trindade, em Cantares ao meu povo, 1961. Disponível aqui. Acesso em 18 ago. 2022. 2 Expressão usada pelo médico e intelectual Dr. Llaila O. Afrika para designar o limitadíssimo acesso da população negra a alimentos saudáveis, frescos, e como essa população, em um cenário problemático de nutrição global, tem sofrido com o consumo de produtos ultraprocessados, sendo alcançada por doenças como diabetes e pressão alta, além de integrar com destaque o mapa da fome mundial. É autor dos livros Nutricide: The Nutritional Destruction of the Black Race e African Holistic Health. 3 Jesus, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2014, p. 29. 4 VARGAS, João Costa. Por uma mudança de paradigma: antinegritude e antagonismo estrutural. In: Revista de Ciências Sociais. Fortaleza, v.48, n. 2, p.83-105, jul./dez., 2017.
Até que os leões possam contar suas próprias históriasOs caçadores sempre serão os heróis das narrativas de caça. Provérbio bakongo As vivências do racismo são como feridas abertas que não cicatrizam. De tanto doer, chegamos até a "esquecer" que elas estão lá, latentes, em carne viva. Certa feita, uma pesquisadora da área da educação e relações raciais me perguntou de inopino, no início de uma entrevista: "qual a sua experiência mais violenta de racismo?". Embora engasgada, a resposta saltou da minha boca sem que eu pudesse dosar as palavras: "eu apanhei!". Os traumas (coloniais)1 daquela lembrança "quase esquecida" latejaram no meu corpo e meus olhos quiseram transbordar. Engoli o choro como, muitas vezes, minha menina engoliu. Permanecemos alguns segundos em silêncio, enquanto eu ouvia aquela voz: "neguinha aguenta, neguinha aguenta!", era o que dizia um dos meus agressores enquanto me batia. Eu ainda não tinha nem oito anos de idade, quando "gritaram-me negra",2 mais uma vez!   A pesquisadora interrompeu a entrevista. Nunca mais nos encontramos, mas, depois daquele dia, uma pergunta passou a rondar meus pensamentos por alguns poucos pares de anos, até hoje. Por que eu não contei aos meus pais essa e outras tantas experiências de racismo que sofri na infância? Há alguns dias, foi exaustivamente noticiada e festejada a reação de Giovana Ewbank, mulher branca, diante de ataques racistas cometidos contra seus filhos, duas crianças negras. Giovana reagiu como toda mãe deveria ter o direito de reagir. Mas mães pretas não têm! Quando Taís Araújo, mulher negra, revelou publicamente que a cor do seu filho fazia com que as pessoas mudassem de calçada, sua fala foi invalidada, deslegitimada. Ela teve sua dor de mãe preta negada e ainda sentiu na pele, ela própria, mais uma vez, o racismo. Sim, Tais foi taxada de vitimista e sofreu ofensas racistas por quebrar o silêncio acerca do racismo contra crianças negras, por proteger o seu filho. Os dois episódios, tratados de maneira tão diferentes, demonstram que não há toga, jaleco ou qualquer roupa de grife que seja capaz de nos proteger do racismo, de "revestir" a nossa pele preta para imunizá-la. Nosso corpo é um alvo sempre disposto e exposto! Afinal, quem se importa com a dor da mãe preta? Aquela que prefere que seus pretinhos tomem chuva do que saiam "armados" com guarda-chuvas ou usem casacos com capuz; aquela que permanece em angustiante vigília enquanto seus filhos não retornam para casa; e que, depois de enterrarem seus meninos - quase (nunca) homens feitos - encontrados pelas balas perdidas, precisam transformar luto em luta. Enquanto isso, a guerra antinegra segue seu curso, responsável por 77,9% do número de homicídios cometidos no Brasil (que representam 20,4% dos homicídios cometidos no mundo) Dentre os assassinados, 91,3% eram negros e 50% tinham entre 12 e 29 anos.3 Num modelo de mundo tão estruturalmente racista como esse em que vivemos, no qual a violência racista não encontra qualquer limitação geográfica ou etária, apenas quando pessoas brancas reagem ao racismo que violenta nossos corpos todos os dias, ele, enfim, se torna realidade. Mas se somos nós a defendermos nossas crias, esse mesmo racismo encarnado atravessa nossas existências, sangrando velhas/novas feridas eternizadas. Precisamos, então, de proteção das/os brancas/os? Não foi o que nos ensinou a nossa ancestralidade, que abriu caminhos em meio às opressões coloniais escravagistas e, com isso, confirmou que não precisamos e que não podemos contar com a defesa de uma branquitude que colheu e segue colhendo privilégios às custas de sangue, suor e lágrimas negros Se não é possível imaginar quais serão nossas reações quando o racismo nos atingir às escâncaras, mesmo que através das mais costumeiras formas, quando sua violência é direcionada a nossas filhas e filhos, não é difícil antever a ventania que nos invade e nos enche de fúria. Afinal, a queimadura é sempre certa quando se brinca com fogo. Tinha razão Luiz Gama quando dizia que "essa cor convencional da escravidão, tão semelhante à da terra, abriga sob sua superfície escura, vulcões onde arde o fogo sagrado da liberdade"!4 Da nossa liberdade, pois o nosso útero-cabaça é umbigo-berço do mundo; não gera e protege apenas nossas crianças! Protege o quilombo inteiro! Enfim, entendi, o porquê eu, menina preta em meio à branquitude, silenciava frente às violências racistas que me afligiam quando ainda nem sabia nominá-las: eu estava, instintivamente, tentando proteger os meus pais do próprio racismo. Com o tempo, aprendi a me defender, a responder à altura, a bater de volta. O que teria sido da minha menina se não fosse o racismo? Hoje, não sei dizer o quanto da minha postura altiva (ou seria vigilante?) e da minha língua a(la)fiada ("indolente", na visão branca; insurgente em essência) são resultado das (sobre)vivências ao racismo. De tanto "apanhar" acabamos criando uma couraça defensiva que, de um lado, nos endurece o coração, do outro, nos faz padecer da alma. Ainda assim, "tornar-se negra dói, mas é libertador!",5 porque envolve retomar o direito de nomear as nossas dores,6 numa disputa narrativa que faz ecoar um clamor ancestral por justiça. Que possamos ter o direito de narrar, nomear e ter reconhecidas as nossas dores em primeira pessoa. Que sejamos leoas a contar as nossas próprias histórias de caça, colocando o caçador em seu devido lugar... __________ 1 KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. 2 Em referência ao poema cantado de Victoria Santa Cruz, "Gritaram-me negra". 3 Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública - 2022. Disponível aqui. 4 GAMA, Luiz. Primeiras Trovas Burlescas. 5 VAZ, Lívia Sant'Anna Vaz; RAMOS, Chiara. A Justiça é uma mulher negra. 6 Rita Segato aborda a importância do "direito de nomear o sofrimento", conferindo significado social ao sofrimento que é convertido em pauta emancipatória na construção de justiça. SEGATO, Rita. Femi-geno-cidio como crimen en el fuero internacional de los Derechos Humanos: el derecho a nombrar el sufrimiento en el derecho. In: FREGOSO, Rosa Linda; BEJARANO, Cynthia (Orgs.). Feminicídio en América Latina Diversidad Feminista. Cidade do México: CEIICH/UNAM, 2011.