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Quero vender meus bits and bytes - Parte 1

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Atualizado em 6 de setembro de 2013 11:38

Ygor Valerio e Gabriela Muniz Pinto Valerio

O Sebo Ornabi1 causava aos visitantes a aparência de não ter fim. Na rua Benjamin Constant, a poucos metros da entrada do Largo São Francisco, era digno de dias seguidos de visita, e sua confusa sequência de salas e andares o transformava em algo orgânico, com vida própria. Seu simpático proprietário, o Sr. Luiz, permaneceu por mais de sessenta anos na atividade de comprar e revender livros usados, e montou um acervo digno de nota, que chegou a contar com 300 mil volumes, muitos deles raros e antigos.

Certamente sem a mesma aura da Ornabi, não é novidade que livrarias nacionais oferecem vastos catálogos de e-books com mais de um milhão de exemplares que podem ser acessados em uma questão de segundos por meio de nossos smart devices. As demais indústrias de conteúdo também navegam esse mundo do conteúdo digital já há alguns anos, e o último relatório da IFPI - International Federation of the Music Industry, relata que 35% da receita da indústria global de música é auferida a partir de canais digitais. O instituto Gartner de pesquisa informa que, somente em 2012, foram 45 bilhões de downloads de aplicativos (apps), dos quais cerca de 7% foram adquiridos onerosamente.

Correndo o risco de cometer o repisado erro de utilizar raciocínios típicos da realidade anterior à era digital para sobre esta opinar, interessa-nos um problema que o futuro próximo certamente não se esquivará de resolver. Poderá existir uma Ornabi de conteúdo digital? Será possível a revenda e sequencial distribuição eletrônica de bens protegidos por direitos autorais?

O instituto jurídico que permitia ao velho sebo conduzir seu negócio na mais perfeita legalidade e sem infringir direitos de propriedade intelectual é o da exaustão ou esgotamento de direitos, também denominado nos EUA de first-sale doctrine. Uma vez que o titular do direito tenha colocado no mercado determinado bem que de alguma forma incorpora seu direito intelectual, exaure-se o direito de controlar a posterior distribuição daquele suporte físico específico, retendo-se tão-somente o direito de controlar a nova reprodução da obra. O conceito, intuitivo para os bens tangíveis, permeia os direitos de propriedade intelectual como um todo, materializando, embora não sem limites, o princípio de livre circulação de bens e mercadorias2.

Se aplicarmos puramente essa sistemática ao regime de regulação dos conteúdos digitais, também passíveis genericamente de proteção autoral, teremos que, após a compra de um e-book ou de uma faixa digital, o titular dos direitos autorais incorporados a esse bem não poderia exercer mais controle sobre sua posterior distribuição3. Estaria o adquirente livre para revender esse conteúdo, contanto que deixasse de utilizá-lo no momento em que o passasse adiante.

Estaríamos diante da possibilidade de criarmos uma Ornabi que sucederia a original mas, com pés fincados no mundo virtual. Um empreendedor tão astuto quanto o sr. Luiz buscaria usuários que já leram seus livros digitais ou não querem mais seus aplicativos, faixas e afins e os revenderia, agregando-os em um novo website, por um preço significativamente inferior ao que pudesse ser obtido diretamente do titular de direitos.

Mas quando nos debruçamos sobre os contratos utilizados pelos maiores atores desse mercado, percebemos que os distribuidores de conteúdo digital on-line normalmente trazem proibições contratuais que vedam expressamente essa possibilidade aos seus usuários. Ao menos contratualmente, portanto, esse plano de negócios não é viável.

Um exemplo são os termos de uso do Google Play, em que se lê a seguinte cláusula: "Venda, Distribuição ou Transferência para Terceiros. Você não poderá vender, alugar, arrendar, redistribuir, difundir, transmitir, comunicar, modificar, sublicenciar ou transferir seus direitos a produtos para terceiros sem autorização, incluindo o download e quaisquer produtos que venha a obter através do Google Play4. A busca em todos os demais atores importantes desse mercado revelou contratos com termos semelhantes, que restringem o manejo posterior do conteúdo, em desatenção à ideia de first-sale doctrine.

Será que o papel da doutrina de exaustão de direitos no sistema de propriedade intelectual continua sendo bem desempenhado quando traduzido integralmente e sem adaptações à sistemática dos conteúdos puramente digitais? O regramento da exaustão é claro no direito autoral brasileiro? Se for claro, trata-se de norma cogente ou de norma afastável contratualmente? Há precedentes judiciais para essas questões? Como se posicionam os demais países a esse respeito? Essas restrições contratuais são justas?

O tema, como se vê, merece uma análise mais aprofundada sob diversos aspectos que buscaremos explorar nesta série de três artigos, mais flanando sobre os problemas e questões oriundos desse choque entre a economia de bens digitais e o sistema de propriedade intelectual do que tentando uma resposta definitiva.

São três os enfoques que nos propusemos explorar sequencialmente: (i) o desequilíbrio pró-sociedade no sistema de propriedade intelectual derivado de características inerentes dos bens digitais; (ii) aspectos relacionados à exaustão de direitos autorais sobre conteúdos digitais; (iii) cenário internacional das discussões que cercam a exaustão de direitos no espaço virtual.

O primeiro item será tratado no presente artigo, e os dois demais nos subsequentes.

(i) O desequilíbrio pró-sociedade no sistema de direito de autor derivado de características inerentes dos bens digitais

Tomando por pressuposto que a atribuição de direitos de propriedade intelectual pode ser vista dentro de uma proposta sistêmica, temos que o fundamento do exclusivo que se confere ao autor é o benefício que a sociedade obterá não só em razão da vinda a público de uma criação, mas da ulterior expiração desse monopólio de que até então gozava o autor. Há, portanto, na essência do sistema, uma tensão constante entre o interesse do autor, de maximizar seus ganhos com a obra durante o período do exclusivo, e o interesse da sociedade, de obter livre acesso a esses bens intelectuais.

O equilíbrio entre essas duas tensões contrapostas é indispensável para a higidez do sistema, uma vez que um fortalecimento exagerado de qualquer um dos extremos pode significar o aniquilamento de seu contraposto. Se não houver retribuição de algum gênero ao criador, deixará este de criar; se não houver retribuição de algum gênero à sociedade, o monopólio perde sua justificação econômica, vez que não faz senão privar a sociedade do livre acesso5.

Para a manutenção desse equilíbrio, há alguns mecanismos de balanceamento entre esses dois interesses contrapostos que servem para operar uma sintonia fina do sistema, entre eles o licenciamento compulsório, os limites ao direito autoral e, justamente, a doutrina da exaustão de direitos.

O sistema de exaustão de direitos é um vetor pró-sociedade no equilíbrio de forças que descrevemos, libertando dos constrangimentos típicos do exclusivo um exemplar tangível, que incorporou direitos intelectuais, por sua simples colocação autorizada no mercado de consumo. Egresso de uma realidade oitocentista, muito anterior à economia a que estão submetidos os bens digitais que consumimos hoje, constituiu-se em instituto importante para manter aquele equilíbrio almejado pelo sistema. Com efeito, a simples ideia de que não se poderia tomar um livro emprestado de um colega porque seu autor assim o determinou se nos afigura uma distorção no exercício desses direitos.

Entretanto, é indispensável que nos questionemos se esse fundamento perdura para os nossos ebooks, apps e faixas digitais. É dizer, se traduzida diretamente para a economia de bens digitais, continua a exaustão de direitos cumprindo seu papel de balanceamento do sistema?

Entendemos que há características inerentes aos bens digitais que colocam a aplicação não adaptada desse instituto não mais como um elemento de equilíbrio e razoabilidade do sistema de propriedade intelectual, mas como um vetor de profundo desequilíbrio na direção pró-sociedade. Sem a pretensão de esgotá-las, enumeraremos três dessas características intrínsecas dos bens digitais que, ao nosso ver, recomendam adaptações à doutrina do esgotamento de direitos: (a) sua virtual imperecibilidade no tempo; (b) virtual ausência de custos para sua distribuição; (c) ausência de custos e de controle sobre a sua reprodução.

Assim, primeiramente, se a doutrina do first-sale nos permite emprestar, doar, revender bens materiais que incorporam direitos imateriais sem que o titular destes direitos a isso se oponha, essa faculdade do adquirente está naturalmente limitada pela perecibilidade do bem. Outro aspecto da perecibilidade é a depreciação do valor do suporte físico ao longo do tempo, de modo que os vendedores de segunda-mão não competem diretamente com o titular de direitos, porque seus exemplares terão, naturalmente, menor atratividade, obrigando-os a reduzir os preços. O exemplar físico se danifica e, por óbvio, está sujeito à ação da natureza. Já no mundo digital, os bens são virtualmente imperecíveis, e um exemplar de segunda-mão é idêntico em aparência e qualidade a um exemplar obtido diretamente do titular, eliminando esse limite intrínseco que a própria constituição do suporte corpóreo apresenta.

Ademais, para alcançarem grande penetração no mercado de consumo, bens materiais dependem de grande capilaridade de seus canais de distribuição, além de um investimento no efetivo transporte desses bens até que chegue ao seu destinatário final. O estabelecimento de um concorrente de peso no mercado de segunda mão, portanto, no mundo físico, custa razoável investimento. Não é assim, como sabemos, no mundo digital. Qualquer website, com custo mínimo, pode ter a mesma eficiência de distribuição6 de um grande revendedor de livros, de modo que uma venda de segunda-mão terá, neste ponto, não só um produto tão bom quanto o exemplar primígeno, mas também uma rede de distribuição tão confortável e eficiente quanto o titular pode ter, podendo com ele competir diretamente.

Por fim, a terceira característica intrínseca desses bens digitais que queremos explorar é a virtual ausência de custos de reprodução dos bens digitais e a inviabilidade de um controle de cópias que garanta que uma revenda desse bem digital seria seguida de deleção garantida do suporte do primeiro comprador. Se no mundo tangível a cópia idêntica é cara, e a revenda do exemplar original autoexecuta a indisponibilidade daquele mesmo exemplar para o comprador original, sabemos que no mundo eletrônico essa realidade não existe. O revendedor torna-se, potencialmente, portanto, fonte inesgotável de exemplares, tal qual o titular dos direitos intelectuais.

Essas três características intrínsecas dos bens digitais alargam sobremaneira o vetor pró-sociedade proposto pelo mecanismo de exaustão de direitos de propriedade intelectual, convertendo-o não em um fator de equilíbrio, mas de descompasso de forças, porque investe o comprador primário de poderes que em realidade o colocariam muito próximo da condição de titular dos direitos intelectuais, e não de simples apoderado sobre o suporte físico da obra. É indevida transformação de um mecanismo de balanceamento do sistema em ameaça ao próprio exclusivo garantido constitucionalmente, de modo que nos pareceria razoável que a tradução dessa doutrina para a economia de bens digitais sofresse adequada adaptação, sob pena de colocarmos em cheque a viabilidade econômica desse modelo digital.

Nas partes II e III deste artigo, a serem publicadas sequencialmente, debateremos aspectos específicos da doutrina de exaustão de direitos e o cenário internacional dessa discussão. Até lá!

__________

1Há um interessante documentário sobre o Sr. Luiz e o Sebo Ornabi no TV Migalhas. Tivemos o prazer de compartilhar boas horas com essa personagem da vida quotidiana do centro de São Paulo, que em qualquer momento do dia podia ser encontrada em uma escrivaninha encrustrada em meio a seus livros raros, ouvindo jazz e folheando ad aeternum algum belo exemplar.

2A nossa lei de Propriedade Industrial (lei 9.279/96) positiva o conceito nos artigos 43, IV, e 132, III, quando diz que o titular da patente ou da marca não poderá impedir a livre circulação de produto que diretamente colocou no mercado ou que foi colocado no mercado com o seu consentimento.

3É verdade que a doutrina autoralista se refere à distribuição como algo que só se passaria com exemplares "materiais", e que as discussões que antecederam o tratado da OMPI, apesar de chegarem à ideia de colocação à disposição do público, acomodaram a transmissão de obras online no gênero de comunicação ao público. Parece-nos (e muito bem acompanhados estamos nesse parecer), entretanto, uma figura que não se encaixa perfeitamente em nenhuma categoria de uso previamente existente, já que nela se combinam características presentes em todos os grandes grupos de direitos do autor. No download, há fixação da obra no suporte físico do destinatário e transmissão dessa obra à distância. Há também reproduções meramente técnicas no curso da transmissão. Assim, para a análise zetética da exaustão de direitos feita neste artigo, não poderíamos sair com a simplista afirmação de que se não há distribuição, não há exaustão, porque com a insuficiente peneira das definições abstratas pretenderíamos tampar um sol de inegáveis concretudes que as infirmam.

4Consultamos, igualmente, termos e condições das lojas da Apple, Amazon, Microsoft e Kobo.

5São incontáveis as simplificações do encerramento deste conceito, mas a ideia mestra da ideia da propriedade intelectual somo sistema está preservada nessas breves linhas.

6Vide nota de rodapé número 4 para um esclarecimento terminológico e para entender a motivação da liberdade de uso deste termo.