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Porandubas nº 621

quarta-feira, 22 de maio de 2019

Atualizado às 08:19

Nesses tempos em que o nome de Deus é invocado em vão, abro a coluna com o senhor dos Céus.

Eu e Deus

O "causo" ocorreu em Conchas/SP. Era a audiência de um processo - requerimento do Benefício Assistencial ao Idoso para um senhor alto, velho, magro, negro, humilde e muito simpático, tipo folclórico da cidade. Antes da audiência, o advogado lembrou ao seu cliente para afirmar perante o juiz morar sozinho e não ter renda para manter a subsistência. Nisso residiria o sucesso da causa. Na audiência, veio a pergunta:

- O senhor mora sozinho?

- Não! Respondeu ele (o advogado sentiu que a coisa ia degringolar).

- Hum, não? Então, com quem o senhor mora?

- Eu e Deus, respondeu o matreiro velhinho.

O advogado tomou um baita susto. Mas a causa foi ganha. O juiz considerou procedente a ação. (Historinha enviada por Éder Caram e contada pelo pai dele).

O Deus de Franco

Pois é. Os governantes de todos os quadrantes não raro costumam escolher Deus como escudo. A história está pontilhada de referências a Deus. Em seus 40 anos de reinado, o ditador general Franco, "Caudillo da Espanha pela Graça de Deus" referia-se frequentemente à Providência Divina, conforme passagens de seus discursos, como esta de 1937: "Deus colocou em nossas mãos a vida de nossa Pátria para que a governemos". Os estatutos da Falange Espanhola o declaram "responsável perante Deus e perante a história". Lembrete: a Falange Espanhola, criada em 1933 por José Antônio Primo de Rivera, foi um movimento e um partido político inspirado no fascismo.

Reis e o Direito Divino

As ideias que justificam a autoridade e a legitimidade de um monarca se originam no direito divino. A doutrina do direito divino sustenta que um rei deriva seu direito de governar da vontade divina, e não de qualquer autoridade temporal, nem mesmo da vontade de seus súditos. Hassan II, no Marrocos, se declarava descendente do profeta Maomé. Dizia: "não é a Hassan II que se venera, mas ao herdeiro de uma dinastia, a uma linhagem dos descendentes do profeta Maomé". Da mesma forma, o rei Khaled da Árábia Saudita se apresenta como defensor da lei e da tradição, fundamentando seu poder no direito divino.

Hirohito

Hirohito, imperador do Japão de 1926 até sua morte, também era visto como uma divindade pelos japoneses. Criou esta fama, não só por ter uma realidade distante da população que viveu guerras e mortes, mas também por construir uma aura divina. Ele nunca aparecia com roupas normais, sempre estava vestido com vestimentas dignas de um "imperador divino e perfeito", como um deus que os japoneses acreditavam ser descendente da deusa do sol, Amaterasu.

Idi Amin

O marechal Idi Amin Dada, ditador de Uganda, garantia ao povo que conversava com Deus, em sonhos, uma espécie de aval concedido a seus atos. Certo dia, um esperto jornalista joga a pergunta: "o senhor conversa com frequência com Deus"? O cara de pau marechal: "só quando necessário". Já em Gana, os eleitores cantavam assim a figura de Nkrumah: "o infalível, o nosso chefe, o nosso Messias, o imortal".

Deus na moeda

Os americanos têm gravado em sua moeda o lema: In God We Trust (Em Deus Confiamos). Foi designado por um ato do Congresso em 1956. Já no Brasil, no início dos anos 80, a população era de cerca de 120 milhões de pessoas. Dessas, 89% pertenciam à religião católica. Apenas 1,6% das pessoas se diziam sem religião, 6,6% eram evangélicas e 3,1% se identificavam com outras crenças. O país tinha acabado de adotar o cruzado, e o então presidente da República, José Sarney, solicitou ao Banco Central imprimir a expressão na nova moeda. Sarney tomou como base outros modelos, como o dos EUA, e ordenou que nossas cédulas passassem a conter: "Deus seja louvado".

Bolsonaro, o enviado

E agora surge nos céus da divindade Jair Bolsonaro. O nosso Messias, que viu a fala de um pastor evangélico do Congo, Steve Kunda: "Na história da Bíblia, houve políticos que foram estabelecidos por Deus. Um exemplo quando falam do imperador da pérsia Ciro. Antes do seu nascimento, Deus fala através de Isaías: 'Eu escolho meu sérvio Ciro'. E senhor Jair Bolsonaro é o Ciro do Brasil. Você querendo ou não". Assim o pastor congolês falou em vídeo. E o que faz o nosso presidente? Insere o vídeo nas redes sociais. Arrematando: "não existe teoria da conspiração, existe uma mudança de paradigma na política e quem deve ditar os rumos do país é o povo. Assim são as democracias". O dono do lema coroa a ideia: "Brasil acima de tudo; Deus acima de todos".

Deus, Jesus, Cristo

Em 2019, de cada 100 tuítes postados com a palavra Bolsonaro, quatro traziam citações a Deus, Jesus ou Cristo. Entre os mais citados também apareceu Satanás, como fez questão de mencionar, em sua postagem de 13 de março, o usuário do Twitter Beto Silva. "Satanás e seus asseclas amam a mentira. O problema é que a mentira nunca prevalece sobre a verdade. Resumindo: eles continuarão fracassando e Bolsonaro continuará cavalgando no lombo deles".

Macedo apela

O bispo da Igreja Universal, Edir Macedo, pede que Deus 'remova' quem se opõe a Bolsonaro. E acusou políticos de tentarem "impedir o presidente de fazer um excelente governo". Disse ainda que Marcelo Crivella enfrenta "impeachment do inferno".

O próprio culto

O fato é que os governantes em países atrasados culturalmente (e até em mais desenvolvidos) costumam organizar seu próprio culto. E agem para que a imprensa cultive uma imagem que geralmente é a combinação de facetas: herói, salvador da pátria, guerreiro, super-homem, pai dos pobres e até Enviado dos Céus. Nietzsche já alertava contra essa esperteza: Dizia ele: "o super-homem destrói os ídolos, ornando-se com seus atributos. A apoteose da aventura humana é a glorificação do homem-Deus".

Símbolo de veneração

O duce Mussolini e o führer Hitler tentavam criar uma divindade substituta. O culto à personalidade fazia parte da liturgia. Lênin continua exposto à veneração pública em seu esquife de vidro. Já Stalin ganhou, por ocasião de sua morte, uma "canção" que realçava grandeza super-humana: ó tu, Stalin, grande chefe dos povos, que fizeste nascer o homem, que fecundas a terra, que rejuvenesces os séculos, que teces a primavera, que fazes cantar a lira...Sem esquecer o "camarada" Mao. (Badalação sem tamanho).

A onda direitista

Essa tendência de se ver como "o iluminado" tem sido mais forte na paisagem direitista que, nos últimos anos, cobre importantes espaços do planeta, inclusive Nações culturalmente avançadas. Emerge em muitos países uma retórica direitista, com viés populista, que tende a jogar a imprensa no canto do ringue. Listemos alguns países onde essa retórica se apresenta: Hungria, Polônia, Áustria, Itália, Suíça, Noruega, Dinamarca, Filipinas, Turquia e, claro, os Estados Unidos de Donald Trump.

O papel da imprensa

Diante dos atores que vestem "o manto de protetor da Nação", (acima descritos), como se enxerga a imprensa? Qual seu papel? Ora, a imprensa é o esteio da liberdade de expressão. Liberdade que pertence ao povo, não aos governantes. Se a imprensa faz críticas, cobranças, apontamentos, conforme seu traçado nos sistemas democráticos, ela é vista como "a voz do demônio", a porta-voz de adversários políticos, a tribuna dos perdedores.

Freios e contrapesos

No Brasil, podemos analisar o papel da imprensa sob a ótica da crise em que o país vive. Crise que desmantela até o sistema de freios e contrapesos (check and balance system), o mecanismo arquitetado pelo barão de Montesquieu para conter os abusos de um poder sobre outro - Executivo, Legislativo e Judiciário. A crise que corrói o sistema político estiola a força dos Poderes e instituições, desnivelando a estrutura de poder. Vemos o Executivo perdendo força e não conseguindo levar adiante seus programas. Vemos um Judiciário perdendo credibilidade, a ponto de alguns de seus protagonistas passarem a frequentar o dicionário de imprecações das ruas. Já o Poder Legislativo, por falta de habilidade do Executivo, reforça poderio com a criação de uma agenda própria. Ganha força.

Sucursais do inferno

As críticas da imprensa aos Poderes constitucionais acionam mecanismos de defesa por parte de seus protagonistas, cada qual passando a enxergar a mídia como adversária. Esse posicionamento é mais crítico por parte do Poder Executivo. Os governantes não aceitam que jornais, revistas, rádio e TV exerçam as funções clássicas de promover a integração social por meio de sua carga informativa, não aceitam que sejam vigilantes dos governos e poderes públicos, não aceitam que façam cobranças. E menos ainda que abram espaços para os movimentos sociais.

A crise da imprensa

É verdade que a imprensa também perdeu poder nas últimas décadas, na esteira da crise que assola as democracias representativas. Essa crise abriga o declínio das ideologias, a desmontagem dos partidos, o arrefecimento das bases, o declínio das oposições, a perda de força dos Parlamentos, entre outros fatores. A imprensa sofre os efeitos da crise econômica que solapa grandes grupos de mídia, em função dos impactos causados pelas novas tecnologias - as redes sociais - e pela remodelagem dos modelos de comunicação.

Fontes e canais

Como é sabido, os governantes passaram a ser fontes de comunicação e eles mesmos assumem a condição de distribuidores de mensagens, com canais próprios nas redes. Os consumidores se veem, agora, sendo alvo de um bombardeio informativo e, ainda, de notícias falsas, que as mídias tradicionais não conseguem substituir.

Menos recursos

Os volumosos investimentos publicitários deixaram de ser distribuídos aos grupos de comunicação. A crise financeira derruba pilastras importantes do edifício da comunicação. Milhares de empregos deixam de existir. A massificação informativa via internet cria novas levas de consumidores, eles mesmos sendo receptores e fontes de comunicação. Interessante é observar que o funil da comunicação passa a ter sua entrada quase com a mesma largura da saída. Ou seja, as portas de entrada e de saída das mensagens passam a abrigar quantidades quase idênticas de transmissores e receptores de informação.

O jornalismo de opinião

Assiste-se a uma monumental expansão do juízo de valor sobre os fatos do cotidiano. O "achismo" inunda o mercado. Expande-se a rede de influenciadores, colunistas, intérpretes e quadros de opinião em detrimento da informação socialmente significativa. Os grupos de imprensa tornam-se alvos da crítica social. Parcela ponderável do poderio da imprensa clássica entra nas mãos de grupos financeiros/investidores do mercado.

A comunicação institucional

A sociedade atravessa um ciclo de densa organicidade. Multiplica-se a teia de associações, movimentos, núcleos, grupos e organizações de toda espécie, que criam sistemas e estruturas próprias de comunicação - assessorias, consultorias, agências e grupos independentes. A par dessa visão compartimentada da sociedade, os Poderes constituídos - Executivo, Legislativo e Judiciário - também organizam, há muito tempo, operações próprias de comunicação (com sistemas de rádio e TV, equipes profissionalizadas, etc.) Assim, a carga informativo-analítica da mídia tradicional torna-se menor. Amplia-se consideravelmente o universo de receptores de mensagens institucionais, originadas nos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário em todas as três esferas: Federal, estadual e municipal. Parcela dos profissionais da grande imprensa migra para as estruturas de comunicação institucional.

Impactos e efeitos

Os impactos dessa realidade começam a ser medidos, a partir da cultura de absorção de informação por parte de nossa sociedade virtual. Entre os efeitos, podemos anotar:

- perda de credibilidade na informação (abundancia de fake news)

- perda de qualidade informativa

- ingresso de "exércitos" dispostos a integrar a "guerra da informação e da contra-informação"

- formação e expansão do apartheid social por meio da guerra expressiva; polarização discursiva

- Enfraquecimento financeiro dos grupos tradicionais de comunicação

- Desemprego em massa de jornalistas

-Incremento de mensagens falsas que chegam aos grupamentos sociais

- Reformulação do modelo clássico de comunicação

- Fortalecimento da "individualidade"

- Expansão do Estado-Espetáculo: olimpianos da cultura de massa; criação de mitos

- Negação dos "perfis tradicionais" da velha política.

Controle

No meio desse turbilhão, o brasileiro que se acha escolhido de Deus investe contra a imprensa e tenta criar a sua própria realidade. Talvez não perceba que só os seus mais fanáticos seguidores acreditam que ele é emissário dos Céus.

P.S. Luiz Inácio, em 2005, até que tentou criar um Conselho Federal de Jornalismo. Objetivo: "orientar, disciplinar e fiscalizar o exercício da profissão e a atividade do jornalismo".