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Porandubas nº 700

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Atualizado às 08:21

Abro a coluna com uma historinha do Piauí.

Hermenegildo

Recebi de Raimundo Junior uma historinha do Piauí que foi contada por seu pai, Raimundo Dias, ao nosso amigo Sebastião Nery, com quem estudou no Seminário. Vejam o inelegível: O candidato contra Jorcelino chamava-se Hermenegildo. O advogado de Hermenegildo, na impugnação de Jorcelino, era Benjamin Lustosa. O dr. Benjamin ficou a audiência inteira tentando provar que Jorcelino era "inelegível". Era "inelegível prá cá, inelegível prá lá". Quando saíram, Jorcelino disse a seu advogado, Raimundo Dias:

- Doutor, o senhor viu como o Dr. Benjamin está louco?

- Por quê?

- Ele passou o tempo todo dizendo que eu era Hermenegildo.

(A fonética entrou mal nos ouvidos de Jorcelino).

Panorama

Como tenho dito e escrito, projetar cenários é um desafio dos mais instigantes para os analistas da política. Principalmente quando fatores imprevisíveis baixam sobre o planeta. Mesmo assim, arriscamo-nos a fazer o exercício. Na esfera mundial, são visíveis certos fenômenos que tendem a se avolumar na esteira da desigualdade, que se expande na economia e seus impactos sobre as Nações. Dentre estes, podemos apontar a polarização política, o enfraquecimento dos partidos de esquerda e centro-esquerda, o declínio das ideologias, a indignação das bases com entes partidários e seus protagonistas, a fragmentação das classes médias, enfim, o solapamento de valores clássicos da democracia.

A crise da democracia

Em seu clássico Sociologia Política, Roger-Gérard Schwartzenberg descreve com primor alguns desses fenômenos, mostrando a ascensão de outros vetores da política - como a emergência dos técnicos/burocratas, firmada sobre a aliança entre políticos e círculos de negócios. Norberto Bobbio, por sua vez, em O Futuro da Democracia, mostrou as promessas não cumpridas pelos sistemas democráticos: a educação para a cidadania, o combate ao poder invisível, a transparência dos governos, a permanência das oligarquias. Já Adam Przeworski, autor do livro Crises da Democracia, ao analisar a recente invasão do Capitólio, a sede do Poder Legislativo, é peremptório: "agora os EUA não podem mais se vender como bastião da democracia". Afinal, o que está acontecendo lá fora e por aqui?

O fanatismo

O fracasso dos governos contemporâneos tem expandido a ira social. Ira que se transforma em busca de "novos profetas e salvadores da Pátria", manifestações populares e mesmo a devastação de espaços públicos. Claro, com a eleição de figuras que mais se identificam com o estilo outsider, como Trump e Bolsonaro, mesmo sendo este um político que passou quase três décadas no Parlamento. Esse fanatismo se encontra com outros eixos, como o religioso, particularmente os credos engajados na extrema direita e comprometidos com defesa da família e de valores tradicionais.

O nacional-populismo

Onde esses grupos encontram um escoadouro para jogar as suas mágoas e encontrar motivação para seu engajamento na vida político-institucional? Na corrente nacional-populista, que defende um escopo pátrio, de fundo populista, com políticas que venham ao encontro de seus anseios, como defesa do emprego para os nativos, não para imigrantes, que deverão ser proibidos de entrar no país.

"Cinturão da ferrugem"

É o caso dos Estados Unidos, onde Trump, na campanha de 2016, foi intensamente votado no "cinturão da ferrugem", região localizada no Nordeste dos Estados Unidos, composta pelos Estados de Michigan, Minnesota, Ohio, Iowa, Pensilvânia e Wisconsin, que tiveram uma indústria bem desenvolvida até o século 20, mas depois sofreram com o declínio da economia, desemprego, redução da população e decadência urbana. O nome faz referência às fábricas hoje abandonadas na região. Aí Trump, em 2016, foi consagrado sob o lema o lema "Keep America First" ("Os Estados Unidos em primeiro lugar").

O empobrecimento das classes médias

As classes médias têm perdido seu poder de fogo. Na esteira da crise que se expande para além da pandemia, deteriorando as economias, a sociedade busca novas fontes de poder. As classes médias, que sempre exerceram seu papel de pedra jogada no meio do lago para formar ondas que correm até as margens, dividem-se em grupos com afinidades profissionais, dando origem às bancadas especializadas de representação política, como médicos, advogados, ruralistas, mulheres, transgêneros etc. Ou seja, as vozes que tocam na tuba de ressonância social agora fazem parte de orquestras mais fechadas. As massas acorrem às ruas quando convocadas por suas categorias profissionais. O empobrecimento das classes médias integra o painel do empobrecimento global. Os tais três trilhões de dólares que corriam, como nuvens, para descer nos mercados mais promissores, estão se evaporando.

Outra tuba

Quem está enriquecendo, e muito, são os empreendedores nas áreas do conhecimento tecnológico e inteligência artificial, os promotores de negócios nas áreas de serviços, os apostadores nas invenções que poderão mudar o curso da Humanidade, como carros elétricos, aeronaves para prospectar condições sobre o futuro da civilização noutros planetas e aqueles que se aproveitam para atender novas demandas dos consumidores. Esse bloco tem como suporte a nova tuba de ressonância social, as redes tecnológicas da Internet.

Explosão

As massas carentes juntam-se aos grupos insatisfeitos e, em caso de agravamento de sua situação - hipótese que leva em conta o destroço das economias - podem formar um gigantesco barril de pólvora. Sinais de erupção já se vêem aqui e ali. Se o "mundo de cima" não der respostas satisfatórias ao "planeta de baixo", não podemos esperar que cresça o Produto Nacional da Felicidade nas Nações. Canaliza-se a insatisfação para os tanques dos movimentos populistas, que poderão eleger figuras estrambóticas e escandalosas. E pior é quando tais figuras ameaçam mobilizar seus simpatizantes com propostas antidemocráticas. Atentem: a invasão do Capitólio ocorreu no seio da maior democracia ocidental, como é conhecida a Pátria de George Washington.

Haverá perigo?

Adam Przeworski acha que a democracia não está em perigo. Suas palavras: "nos últimos 20 anos, mais ou menos, houve um aumento claro de partidos radicais de direita, mas parece que o apoio para esse tipo de radicalismo de direita fica sempre na faixa de 20% a 25%. O fato é que as instituições representativas tradicionais não funcionam muito bem. Se você é uma pessoa pobre no Brasil, no México, na Espanha, na Grécia, e se pergunta o que essas instituições fizeram por você ao longo da vida, a resposta será 'muito pouco'. Desigualdade em alta é sintoma de algo errado com as instituições. A crise veio para ficar, mas não ameaça a existência da democracia na maior parte dos países".

E por aqui?

Por nossas plagas, os fatos ocorridos na contemporaneidade se relacionam a alguns fatores acima citados. Mas algumas situações merecem destaque. Por exemplo, a gestão governamental Federal no combate à pandemia é um caso sui generis de despreparo, desleixo, incúria, irresponsabilidade. Um país de 210 milhões de habitantes, um território continental de riquezas inigualáveis, uma economia que, apesar dos pesares, ainda é uma das maiores do mundo vive um clima de futrica em torno das vacinas e de seus protagonistas. Quem vacinará primeiro? O governo Federal ou o governo de São Paulo? Triste ver o nosso mandatário-mor usar a vacina como mote de suas piadas e os mais de 200 mil mortos como coisa absolutamente natural. "Vacina transformará a pessoa em jacaré".

Autoritarismo

Quase todos os dias vemos cenas de descontrole e falta de planejamento por parte das autoridades Federais. E, no meio da bagunça, sobram espaços para piadas e chistes, declarações que não dizem nada - "a vacinação vai começar no dia D na hora H". Essa pérola de autoria do ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, deve brilhar no museu da esquisitice. Mas é preocupante a relação de coisas absurdas que se espraiam: uma investigação criminal sobre os jornalistas Ruy Castro e Ricardo Noblat, o primeiro por ter sugerido, em artigo na FSP, que tanto Trump e Bolsonaro poderiam seguir o caminho do suicídio para ganhar fama na história. O segundo, Noblat, por ter publicado o texto em seu blog. O tom de galhofa com que Castro se refere a Bolsonaro é bem diferente da defesa da tortura que o presidente sempre fez e faz questão de fazer nos tempos do regime militar.

Ausência de líderes

Infelizmente, nos horizontes de nossa política, não se enxergam líderes, perfis de respeito, autoridade e sapiência que possam traduzir a chama da esperança. Os nossos representantes vivem na arena da política de interesses, saindo de uma eleição e já se preparando para outra, não dando tempo nem para limpar destroços das administrações em fim de mandato. Uma eleição atrás da outra, com poucas opções de escolha, acaba amortecendo a motivação de eleitores. E quando o bolso apertar mais ainda, com a extinção ou diminuição do auxílio emergencial, é possível prever contingentes desesperados saindo às ruas para cobrar o que lhes prometeram. Da mesma forma, a fome, como a vacina, não tem ideologia.

Na padaria

Conversa entre dois senhores de cabelos grisalhos esperando pelo pão. "Fulano, como eu tenho também a nacionalidade portuguesa, corri a Lisboa para me vacinar. Me vacinei e aqui estou de volta". Números de contaminados sobem diariamente.