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Questão de Direito

Temas atuais variados, desde comentários a teses decididas pelo STJ, temas de Direito Digital, bancários, aspectos atuais do processo, entre outros.

Maria Lúcia Lins Conceição e Teresa Arruda Alvim
terça-feira, 19 de março de 2024

Ação de improbidade é ação civil pública?

A Lei de Improbidade Administrativa, lei Federal 8.429/92, disciplina a aplicação de sanções ao agente público que comete desvios éticos, especialmente atos de corrupção. As punições são gravíssimas (suspensão dos direitos políticos, perda da função pública, indisponibilidade dos bens e ressarcimento ao erário). E isso, por si só, indica que a improbidade administrativa não é algo banal.  Com a experiência de quase trinta anos, a Lei de Improbidade precisava ser reformada. Dentre os pontos mais problemáticos estava a aproximação, equivocada, com o microssistema de proteção aos interesses coletivos. As ações coletivas são regidas pelo Código de Defesa do Consumidor (em sua parte processual), pela lei da Ação Civil Pública e pela Lei da Ação Popular. Esses diplomas disciplinam, de modo concatenado, as ações coletivas no país. Mas o que é uma ação coletiva? As características de uma ação coletiva estão em seus dois extremos: na legitimidade diferenciada e no espectro de abrangência da eficácia da sentença, ou da "coisa julgada" (como erradamente se diz). Não estão no bem jurídico tutelado. Basta considerar que o meio ambiente e os direitos dos consumidores podem ser tutelados por meio de ações civis individuais, ações civis públicas, ou, ainda, por ações penais. A legitimidade diferenciada da ação civil pública visa a possibilitar a defesa de direitos coletivos (pertencente a vários indivíduos, de forma indivisível), ou dar proteção coletiva a direitos individuais homogêneos (cujos titulares são individualmente determinados, mas tratados coletivamente em razão da massificação das relações jurídicas). Por isso, a Lei da Ação Civil Pública (art. 16) e o Código de Direito do Consumidor (art. 103) estabelecem que a sentença terá eficácia erga omnes ou ultra partes, beneficiando os titulares dos direitos de forma genérica. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, antes da reforma da Lei Federal nº 8.429/92, adotou o entendimento de que a ação de improbidade faria parte do "microssistema de tutela dos direitos difusos", em razão da proteção da "moralidade administrativa sob seus vários ângulos e facetas"1. A consequência prática era a aplicação emprestada de normas previstas na Lei da Ação Civil Pública, na Lei da Ação Popular e no Código de Defesa do Consumidor. Já se entendeu, por exemplo, que: i) a sentença de improcedência na ação de improbidade estaria sujeita ao reexame necessário2; ii) a apelação do réu deveria ser recebida somente no efeito devolutivo3; iii) e que qualquer decisão interlocutória poderia ser impugnada por agravo de instrumento (art. 19 da Lei Federal nº 4.717/65), afastando o rol taxativo do art. 1.015 do CPC/20154. A ação de improbidade administrativa, contudo, nunca foi uma espécie de ação coletiva. O critério definidor da ação civil pública não é a natureza dos bens e direitos por ela protegidos (meio ambiente; consumidor; ordem econômica; ordem urbanística; patrimônio público e cultural). Tais bens e direitos podem ser tutelados por outros meios, como a execução fiscal, a ação penal e a ação individual.  Além disso, a sentença proferida na ação de improbidade não espraia seus efeitos por toda uma comunidade. Eventual condenação atinge, individualmente, os acusados, na medida da sua culpabilidade.  A ação de improbidade volta-se, primariamente, à aplicação de sanções punitivas aos agentes públicos, não à inibição ou à reparação de danos causados em nível supraindividual. A ação de improbidade busca a aplicação de penas (civis, administrativas e políticas) ao réu. Por meio dessa ação, o autor exercita pretensão acusatória, que é cercada de garantias especiais, decorrentes da presunção de inocência (art. 5º, da Constituição Federal).  O regime jurídico da punição não se confunde com o regime jurídico da reparação/indenização. Enquanto a reparação visa à recomposição patrimonial, a punição é um meio de retribuição e intimidação para a prevenção de ilícitos. Como a sanção punitiva vai além da mera reparação do dano, não raro atribuindo um estigma social ao condenado, sua aplicação está cercada de cautelas mais rígidas, previstas no art. 5º da Constituição Federal5.  A reparação do dano ao erário e a perda dos bens ilicitamente adquiridos são efeitos civis da sentença condenatória proferida na ação de improbidade (art. 18 da LIA), semelhante ao que ocorre na sentença penal (art. 91 do Código Penal). A ação de improbidade administrativa, portanto, não é ação civil pública. Mas também não é, evidentemente, uma ação civil comum, em razão da legitimidade diferenciada e da pretensão acusatória nela veiculada. É uma ação civil sui generis, construída de modo a compatibilizar a repressão dos atos de corrupção com os direitos fundamentais dos acusados. A legitimidade para propor uma ação de improbidade é diferente da legitimidade disciplinada pelo Código de Processo Civil. Nas ações individuais, às quais se aplica o Código de Processo Civil, a legitimidade para o processo deriva da legitimidade para a ação. Significa, por exemplo, que aquele que contratou (e que, portanto, tem legitimidade para a causa) tem legitimidade para o processo em que se vai discutir a higidez das cláusulas contratuais daquele contrato específico. Diferentemente ocorre com as ações coletivas, as ações penais públicas e a ação de improbidade. A legitimidade processual não decorre automaticamente da legitimidade para a causa - decorre da lei. Aquele que pode mover uma ação de improbidade não tem legitimação para a causa. Este é o caso do Ministério Público (ou ainda a pessoa jurídica lesada, conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal nas ADIs 7042 e 70436), que tem legitimidade extraordinária, ou seja, exclusivamente para o processo. A legislação reformada, resolvendo a polêmica, dispôs que a ação de improbidade segue o procedimento comum previsto no Código de Processo Civil (art. 17), temperado com regras específicas que buscam dar efetividade às garantias constitucionais dos acusados em geral (art. 1º, §4º). Segue, assim, não o "procedimento comum", mas um procedimento especial. Para enfatizar a separação entre a ação de improbidade e a ação civil pública, o legislador vedou o ajuizamento da ação de improbidade para fim de controle de legalidade de políticas públicas, ou para a proteção de interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos (art. 17-D). Também dispôs que, se o magistrado não identificar os requisitos para a imposição das sanções aos agentes incluídos no polo passivo da demanda, poderá, em decisão motivada, converter a ação de improbidade administrativa em ação civil pública, decisão que poderá ser impugnada por meio de agravo de instrumento (art. 17, §§ 16 e 17). A ação de improbidade, portanto, nunca foi uma espécie de ação civil pública, nem integrava o "microssistema" de tutela dos direitos coletivos. É uma ação civil sui generis, na qual a repressão dos atos de corrupção deve ser compatibilizada com os direitos fundamentais dos acusados. __________ 1 REsp 695.396/RS, Primeira Turma, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, DJe 27/4/2011; REsp n. 1.217.554/SP, relatora Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe de 22/8/2013; AgInt no REsp n. 1.379.659/DF, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe de 18/4/2017. 2 EREsp 1.220.667/MG, Relator Ministro Herman Benjamin, Primeira Seção, DJe 30/6/2017. 3 REsp 1.523.385/PE, Relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe de 7/10/2016. 4 AgInt no REsp n. 1.733.540/DF, Relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, DJe de 4/12/2019. 5 As sanções punitivas seguem alguns princípios em comum, historicamente desenvolvidos no direito penal, como: i) a presunção de inocência e a interpretação restritiva (inc. LVII); ii) o princípio da personalidade da sanção (inc. XLV); iii) o princípio da irretroatividade, salvo da lei mais benéfica (inc. XL); iv) o princípio do contraditório e ampla defesa, que incide de forma mais incisiva nos processos acusatórios (inc. LV); v) o princípio tipicidade ou da anterioridade da norma punitiva (inc. XXXIX); vi) e a vedação das provas ilícitas (inc. LVI). 6 Em 31/08/2022, o STF, por maioria, julgou parcialmente procedentes os pedidos das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 7042 e 743 para: (a) declarar a inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, do caput e dos §§ 6º-A e 10-C do art. 17, assim como do caput e dos §§ 5º e 7º do art. 17-B, da lei 8.429/1992, na redação dada pela Lei 14.230/2021, de modo a restabelecer a existência de legitimidade ativa concorrente e disjuntiva entre o Ministério Público e as pessoas jurídicas interessadas para a propositura da ação por ato de improbidade administrativa e para a celebração de acordos de não persecução civil; (b) e para declarar a inconstitucionalidade parcial, com redução de texto, do § 20 do art. 17 da lei 8.429/1992, incluído pela Lei 14.230/2021, no sentido de que não existe "obrigatoriedade de defesa judicial"; havendo, porém, a possibilidade dos órgãos da Advocacia Pública autorizarem a realização dessa representação judicial, por parte da assessoria jurídica que emitiu o parecer atestando a legalidade prévia.
O ano de 2024 começou com a publicação de importante decisão do E. STJ para o contencioso de Mercado de Capitais, pois confirma a aplicabilidade das previsões contidas Lei 6.404/76 nos litígios judiciais promovidos por acionistas investidores contra companhias abertas. Apesar de ter sido concebida para regulamentação das Sociedades por Ações, não é raro encontrar decisões judiciais afastando a aplicação da Lei 6.404/76 em demandas envolvendo, especialmente, investidores pessoa física. Isso, sob o fundamento de que o Código de Defesa do Consumidor - CDC regularia o relacionamento desses com as companhias emissoras, na medida em que a aquisição de ações para fins de poupança seria equiparável à aquisição de um produto ou bem.  Em algumas ocasiões, o STJ já se pronunciou em sentido contrário, confirmando a aplicabilidade das regras previstas na lei 6.404/76 mesmo quando o acionista é pessoa física e adquire ações como forma de investimento.1 Mas a decisão agora proferida no Agravo em Recurso Especial nº 2.410.427/RS, é ainda mais relevante. Nela, foi afastada tese que vinha sendo sustentada muito frequentemente por acionistas investidores. Qual seja: de que, em função do dever de informação previsto no CDC, as deliberações quanto aos eventos societários de grupamento e desdobramento das companhias abertas deveriam ser notificadas, pessoalmente, a todos os acionistas. E, consequentemente, que a não notificação pessoal a respeito desses atos configuraria ilegalidade capaz de gerar direito à indenização. Como se sabe, o grupamento de ações, previsto no artigo 12 da lei 6.404/76, é uma operação societária deliberada pela Assembleia Geral de determinada companhia emissora, que implica a redução da quantidade de ações representativas do capital social da empresa, sem que haja alteração na sua expressão financeira. Trata-se de uma operação aritmética, que resulta da reunião de títulos, destinada a dar razoabilidade ao valor das ações quando este se torna demasiadamente diminuto. Por exemplo, 1.000 (mil) ações que no total representam R$1 (um real), são grupadas na proporção de 1000/1, transformando-se em 1 (uma) ação no valor de R$1 (um real). O desdobramento de ações, por sua vez é o oposto. Trata-se de ato pelo qual uma ação é desdobrada em tantas quantas a Assembleia Geral de acionistas aprove. Dessa forma, 1 (uma) ação no valor de R$ 1,00 pode ser desdobrada na proporção de 1/1000, e assim transforma-se em 1.000 (mil)  ações com o valor total de R$ 1,00. Ambas as operações são frequentes em companhias de capital aberto. E, embora não tenham o condão de alterar a expressão econômica das ações, podem acabar transmitindo a impressão de que teria havido prejuízo ao acionista - especialmente quando se delibera o grupamento de ações. Afinal, de um dia para o outro, reduz-se a expressão numérica das ações da companhia.  Ocorre que, não raras vezes, os acionistas investidores deixam de acompanhar os eventos societários das companhias de que possuem ativos. Frequentemente, mudam de endereço, telefone e deixam de manter seu cadastro atualizado perante suas corretoras de valores e perante as empresas emissoras, dificultando o recebimento de informações acerca de decisões tomadas pelas Assembleias Gerais. Posteriormente, ao tomarem conhecimento do saldo de seus ativos, notam que eventos como grupamento de ativos acabaram por reduzir a sua quantidade. E, não raras vezes, sentem-se prejudicados, decidindo procurar o Judiciário para obter a restituição de suas posições.  Nessas demandas, invariavelmente alicerçados no CDC, os acionistas defendem que a quantidade de ações por eles adquiridas não poderia ter sido alterada sem que tivessem sido comunicados, pessoalmente, das deliberações assembleares - para fins de possibilitar a verificação e até contestação de sua legalidade. Na recente decisão proferida pelo Min. Moura Ribeiro no ARESP 2.410.427/RS, acertadamente, reconheceu-se que inexiste previsão legal que obrigue as companhias emissoras a comunicarem, pessoalmente, os acionistas, acerca da realização de Assembleias que deliberam sobre eventos como grupamento. Veja-se: "Ressalta-se que a convocação pessoal por telegrama ou carta registrada é exigida, tão somente, para o acionista de companhia fechada que representar 5% ou mais do capital social e desde que o tenha solicitado por escrito à companhia, com indicação do endereço completo (art. 124, § 3º da Lei n° 6.404/76). Forçoso concluir, portanto, que a Lei das Sociedades Anônimas não exige que os acionistas de companhia aberta, como no caso dos autos, sejam notificados pessoalmente sobre a realização das assembleias, e sim, que a comunicação seja feita mediante publicações realizadas em órgãos oficiais e jornais de grande circulação." Na citada decisão, enfatizou-se que as decisões acerca de grupamentos de ações são deliberadas em Assembleia Geral Extraordinária, cuja convocação deve ocorrer na forma do art. 124 da Lei 6.404/76 e ser divulgada na forma do art. 289 da mesma Lei. Isto é, por meio de publicação no Diário Oficial do Estado onde se situa a sede da companhia e em jornal de grande circulação:2 "É cediço que as decisões a respeito dos grupamentos são tomadas pela Assembleia Geral Extraordinária, que é o órgão com poder de deliberação, nos termos do art. 121 da Lei n° 6.404/76 [...] Quanto aos procedimentos de convocação, o art. 124, caput da referida lei dispõe que ela será feita mediante anúncio publicado por três vezes, no mínimo, contendo, além do local, data e hora da assembleia, a ordem do dia e, no caso de reforma do estatuto, a indicação da matéria [...] O art. 289 da Lei n° 6.404/76, por sua vez, prevê que a divulgação do ato de convocação será feita no Diário Oficial do Estado onde se situa a sede da companhia, bem como em jornal de grande circulação, exatamente para que se estabeleça a presunção legal de conhecimento dos acionistas" Em outras palavras: concluiu o STJ que não podem, os acionistas investidores, alicerçados no CDC, pleitear que o Judiciário reconheça o descumprimento de uma obrigação que a legislação própria das S/As não prevê. Cabe ao investidor, portanto, estar sempre atento aos comunicados publicados pelas companhias emissoras, como demonstração de diligência para com os seus próprios interesses3. Da mesma forma, é importante que o Judiciário garanta a devida observância da Lei das S.A em demandas que envolvem o mercado de capitais, para higidez desse sistema e como meio de impedir o enriquecimento ilícito de demandantes oportunistas. ___________ 1 Ao julgar o recurso 1.685.098/SP, por exemplo, a Corte afastou a aplicação do CDC, concluindo não existir prestação de serviços no processo de aquisição de ações - REsp n. 1.685.098/SP, relator Ministro Moura Ribeiro, relator para acórdão Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 10/3/2020, DJe de 7/5/2020. Não obstante, a mesma Corte também já decidiu que, o CDC deve ser aplicado na relação entre investidores e corretoras de valores (REsp nº 1.599.535/RS, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 14/3/2017, DJe de 21/3/2017). 2 A respeito, Modesto Carvalhosa explica que tal forma de convocação evita que o acionista alegue desconhecimento, tal como têm se verificado em diversas ações propostas em face de companhias emissoras de ativos: " Objetivamente, no entanto, é uma notificação pública, uma vez que é meio pelo qual se dá ciência aos acionistas da reunião que irá realizar-se, a fim de que não possam, em qualquer hipótese ou sob qualquer pretexto, alegar ignorância relativamente à realização do conclave e seus efeitos jurídicos." CARVALHOSA, Modesto; KUYVEN, Fernando. Tratado de Direito Empresarial - Vol. III - Ed. 2023. São Paulo (SP):Editora Revista dos Tribunais, 2023 3 "Cabe, outrossim, ao acionista o direito de fiscalizar a gestão dos negócios sociais.  O direito de fiscalizar corresponde a um dever da companhia de, espontaneamente, informar os acionistas. A iniciativa de manter o acionista informado constitui encargo da companhia, através de seus órgãos de administração, notadamente quando se trata de companhia aberta." (CARVALHOSA, Modesto; KUYVEN, Fernando. Tratado de Direito Empresarial - Vol. III - Ed. 2023. São Paulo (SP):Editora Revista dos Tribunais. 2023.)
Este artigo tem por objetivo provocar uma reflexão a respeito das consequências de uma causa ser julgada pelos juizados especiais ou pela justiça comum. A instituição desses juizados pelo menos parcialmente se deve à necessidade de que algumas circunstâncias possam gerar um procedimento menos formal e facilitar sob certo aspecto o acesso à justiça. No entanto, existe uma outra preocupação que ultimamente tem norteado as reflexões da doutrina, que diz respeito à necessidade de que o direito seja uno e coeso, proporcionando, portanto, isonomia e previsibilidade. Numa palavra, pode-se dizer que à segurança jurídica tem se dado imensa importância nos últimos tempos. Toda a supressão de meios de impugnação das decisões proferidas, no âmbito dos juizados especiais, deve ser analisada também sob a ótica de não serem suprimidos caminhos por meio dos quais se atinge segurança jurídica, o que em última análise significa mais conforto para o jurisdicionado e em geral para toda a sociedade. O microssistema dos Juizados Especiais é dividido entre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais dos Estados e Distrito Federal, regulados pela Lei 9.099/1995; os Juizados Especiais Cíveis e Criminais da Justiça Federal, regulados pela lei 10.259/2001 e os Juizados Especiais da Fazenda Pública no âmbito dos Estados, Distrito Federal e Municípios, regulados pela Lei 12.153/2009. Cada qual conta com lei específica, que disciplina o procedimento a ser adotado e os recursos à disposição das partes para impugnação das decisões proferidas. A Lei 9.099/1995, no seu art. 59, dispõe que "não se admitirá ação rescisória nas causas sujeitas ao procedimento instituído por esta Lei". Duas das subscritoras deste artigo, em obra em coautoria1, já tiveram a oportunidade de sustentar a inconstitucionalidade dessa regra, uma vez que inexiste critério legitimador para o tratamento diferenciado dos pronunciamentos de mérito proferidos nos processos que tramitam nos Juizados. A gravidade dos vícios que autorizam a rescisão dos julgados não é menor em razão de os pronunciamentos judiciais envolverem lides de menor valor e complexidade. A gravidades desses vícios, muitas vezes, consiste justamente em compreender a unidade, a coesão e a harmonia do direito. Não se trata, portanto, de uma espécie de gravidade que diga respeito apenas à situação das próprias partes. Uma vez que as leis 10.259/2001 e 12.153/2009, que regulam respectivamente, os procedimentos dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais da Justiça Federal e dos Juizados Especiais da Fazenda Pública, não contêm regra expressa acerca do não cabimento da ação rescisória, embora haja disposição no sentido de que será aplicável subsidiariamente o disposto na Lei 9.099/1995, há autores2 que sustentam ser cabível ação rescisória no âmbito desses juizados. A jurisprudência, contudo, não tem encampado esse entendimento.3 Tanto a lei dos Juizados Especiais Federais, quanto aquela que regula os Juizados da Fazenda Pública Estadual, do Distrito Federal e Municipal, dispõem sobre o meio adequado à solução da divergência de entendimentos acerca de direito material existente entre Turmas Recursais, o chamado Incidente de Uniformização de Interpretação de Lei (art. 14, da Lei 10.259/2001 e art. 18, § 1º, da lei 12.153/2009).  A Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais da Justiça Federal prevê que a competência para o julgamento do incidente, quando a divergência se der entre Turmas da mesma região, é do órgão formado a partir da reunião das Turmas Recursais em conflito (art. 14, § 1º, da lei 10.259/2001). Quando, todavia, a divergência existir entre entendimento de Turmas Recursais de diferentes regiões, a competência para julgar é da Turma Nacional de Uniformização4. Porém, se a Turma Nacional de Uniformização emitir pronunciamento contrário "à súmula ou jurisprudência dominante do STJ", o incidente de Uniformização de Interpretação da Lei será instaurado perante o Superior Tribunal de Justiça (art. 14, § 4º, da lei 10.259/2001)5. A Lei dos Juizados Especiais da Fazenda Pública tem peculiar distinção: a divergência entre Turmas Recursais do mesmo Estado, como nos Juizados da Justiça Federal, é resolvida em julgamento realizado pela reunião das Turmas Recursais em conflito, porém se a divergência de entendimentos se der entre Turmas Recursais de diferentes Estados ou quando a decisão proferida estiver em contrariedade com "súmula do Superior Tribunal de Justiça", a instauração do incidente deverá ocorrer diretamente no Superior Tribunal de Justiça, sem necessidade de recorrer à Turma Nacional de Uniformização (art. 18, §3º, lei 12.153/2009)6. Essas leis referem-se a súmulas e jurisprudência dominante do STJ, mas a interpretação que se deve fazer dos respectivos dispositivos é extensiva, alcançando todos os precedentes vinculantes. Ocorre que, no âmbito dos Juizados Especiais Estaduais, inexiste previsão semelhante. Ou seja, a Lei 9.099/1995 não prevê qualquer instrumento de controle das decisões proferidas no âmbito dos Juizados Especiais Estaduais, voltado a dissipar a divergência de entendimentos entre as Turmas Recursais ou entre essas e os Tribunais Superiores. Há Estados em que, ainda que a lei 9.099/1995 não disponha a respeito, é previsto o cabimento do Incidente de Uniformização de Jurisprudência quando há divergência de entendimentos entre as Turmas Recursais.7 Não é, contudo, por exemplo, o caso do Estado do Paraná. As Turmas Recursais do Paraná não conhecem de IUJs, sob o fundamento de ausência de previsão legal ou regimental para o incidente.8 No intuito de promover e prestigiar a uniformidade e coerência das decisões judiciais, o STF decidiu, nos EDcl no RE 571.572/BA, que competiria ao Superior Tribunal de Justiça, até que lei federal instituísse órgão uniformizador, julgar as reclamações ajuizadas para dirimir divergências entre acórdão prolatado por Turma Recursal Estadual e a jurisprudência, súmula ou entendimento formado em julgamento de recursos repetitivos pelo Superior Tribunal de Justiça. Na época, para concretizar esse comando, o STJ editou a Resolução 12/2009, que disciplinava o processamento da reclamação no âmbito desse Tribunal. Em 2016, contudo, sob o fundamento de que o grande fluxo de reclamações advindas dos juizados especiais estaria acarretando acúmulo de trabalho, o STJ editou a Resolução 3, que prevê que compete às Câmaras Reunidas ou Seção Especializada dos Tribunais de Justiça processar e julgar as reclamações que tenham por fim dirimir divergência entre acórdão prolatado por Turma Recursal Estadual e do Distrito Federal e a jurisprudência do STJ, consolidada em IAC, IRDR, recursos especiais repetitivos e em enunciado das Súmulas do STJ, bem como para garantir a observância de precedentes. Há vários Tribunais locais, entretanto, que não admitem a reclamação, baseados no entendimento - em nosso sentir, absolutamente equivocado - do próprio STJ no sentido de que o inciso IV, do art. 928 do CPC/2015, teria sido modificado pela lei 13.256/2016, "não sendo mais cabível a reclamação com base em Recurso Especial Repetitivo".9 A situação, especialmente em relação aos Juizados Especiais Estaduais, é bastante sensível, porque acaba por tornar as Turmas Recursais verdadeiras células de poder, sem equivalente na Constituição Federal e no sistema judiciário brasileiro como um todo. Há, no âmbito desses Juizados Especiais, uma séria antinomia, porque, ao mesmo tempo em que se afirma que esse microssistema está voltado à ampliação do acesso à ordem jurídica justa, esse acesso é gravemente obstruído, negando-se ao jurisdicionado a apreciação de relevantes questões de direito, muitas vezes já solucionadas e pacificadas pelos Tribunais Superiores em sentido diverso àquele que prevaleceu no âmbito dos Juizados.10 Uma série de fatores, em nosso entender, tem impedido, especialmente, os Juizados Especiais Estaduais, de contribuírem para a uniformidade, estabilidade e previsibilidade da ordem jurídica e que impõem, de forma urgente, mudança de posicionamento, seja no plano legislativo, seja dos Tribunais locais e superiores. São eles: a regra que proíbe a ação rescisória; o enunciado da Súmula 203 do STJ, de que não cabe recurso especial contra decisão proferida por órgão de segundo grau dos Juizados Especiais; o rigoroso juízo de admissibilidade dos recursos extraordinários; as regras dos regimentos internos dos tribunais locais, no sentido de que não teriam competência originária para conhecer de mandado de segurança quando apontada como autoridade coatora o juiz dos Juizados Especiais11, cabendo aos próprios Colégios Recursais fazê-lo, por serem a instância recursal imediatamente superior e não os tribunais de justiça; a ausência de instrumento de controle específico, perante os tribunais locais, para as decisões proferidas em Incidentes de Uniformização de Jurisprudência, que possuem a pretensão de uniformizar a jurisprudência nas turmas recursais; a presunção relativa de inexistência de repercussão geral dos recursos extraordinários interpostos em causas processadas pelos Juizados Especiais Cíveis (Tema 797/STF); e a resistência de parte da doutrina e jurisprudência em admitirem a instauração de IRDR originado de causas dos Juizados Especiais Estaduais. Felizmente, vislumbramos uma luz no fim do túnel. Ao julgar o Recurso Extraordinário (RE) 586068, com repercussão geral (Tema 100), o STF fixou tese no sentido de que: " (...) 3) O art. 59 da Lei 9.099/1995 não impede a desconstituição da coisa julgada quando o título executivo judicial se amparar em contrariedade à interpretação ou sentido da norma conferida pela Suprema Corte, anterior ou posterior ao trânsito em julgado, admitindo, respectivamente, o manejo (i) de impugnação ao cumprimento de sentença ou (ii) simples petição, a ser apresentada em prazo equivalente ao da ação rescisória"12 Não se nega que o microssistema dos Juizados Especiais cumpre papel importantíssimo na ordem jurídica, mas não se pode admitir que seja instrumento para consolidação de provimentos escancaradamente ilegais, gerando, como se isso fosse possível, uma ordem jurídica paralela. O STF bem vislumbrou esse grave problema e concluiu que é possível anular decisão definitiva dos Juizados Especiais se ela tiver sido baseada em norma ou em interpretação declarada inconstitucional pelo Supremo. Espera-se que também os Tribunais locais e o STJ voltem sua atenção ao problema e dialoguem entre si, com vistas a buscar solução que, sem desvirtuar o papel e a importância dos Juizados Especiais, prestigie a segurança jurídica.13 __________ 1 Teresa Arruda Alvim; Maria Lúcia Lins Conceição. Ação rescisória e querella nullitatis: semelhanças e diferenças. 3. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, p. 140. 2 Para Vicente Ataide Jr. "(.) as causas submetidas à Lei 10.259/2001 e, em semelhante medida, à Lei 12.153/2009, são complexas e geram consequências individuais e sociais bastante relevantes. (.). Por essa razão fundamental, não é mais possível sonegar a ação rescisória no âmbito dos Juizados Federais e Fazendários. A segurança jurídica que se reclama, com vigor mais intenso, no julgamento de causas mais complexas, exige a possibilidade de rescisão, quando presentes os respectivos pressupostos legais, hoje presentes no art. 966 do CPC/2015". ATAIDE JR., Vicente de Paula. O Código de Processo Civil/2015 e os Juizados Especiais Federais. Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região. Ano 5, n. 11, p. 20. No mesmo sentido, confiram-se: Joaquim Felipe Spadoni. O direito constitucional de rescisão dos julgados. In: Processo e Constituição. Estudos em homenagem ao Professor José Carlos Barbosa Moreira. São Paulo: RT, 2006. p. 1073; Joel Dias Figueira Júnior. Juizados Especiais Cíveis e Criminais. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 398; Roberto Corte Real Curra. O cabimento da ação rescisória nos Juizados Especiais Federais. In: CUNHA, Leonardo Carneiro da (org.). Questões atuais sobre os meios de impugnação contra decisões judiciais. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 229-240; Alexandre Freitas Câmara. Juizados Especiais Cíveis Estaduais, Federais e da Fazenda Pública. 7. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. p. 146. 3 Convém mencionarmos, pela sua relevância, a Ação Rescisória 5045923-68.2017.4.04.7000/PR, 2ª Turma Recursal, Seção Judiciária do Paraná, j. 09.08.2018, rel. Vicente de Paula Ataíde Júnior, para quem a impossibilidade jurídica de ajuizamento da ação rescisória "(.) não traz qualquer vantagem prática para o sistema. Isto porque os casos de rescindibilidade podem se manifestar também em sede de Juizados Especiais Cíveis. Nada impede, por exemplo, que uma sentença proferida em processo que tramita perante Juizado Especial Cível tenha sido proferida por um juiz que tenha sido corrompido. Da mesma forma, é possível que tal sentença tenha sido prolatada em processo que tenha havido dolo da parte vencedora em detrimento da vencida, ou qualquer outra hipótese prevista no art. 966 do Código de Processo Civil. Ainda, se no processo comum, mais complexo e diversificado em recursos, é possível que a parte só verifique a ocorrência de tal imperfeição após o respectivo trânsito em julgado; com mais razão ainda há de se pressupor que, no âmbito dos Juizados Especiais, tal fenômeno seja mais provável e frequente. Em verdade, não se admitir a ação rescisória nos Juizados Especiais, sob o pretexto de se buscar maior celeridade na prestação jurisdicional, gera situação mais gravosa, ao possibilitar a consolidação de provimentos que, se tivessem sido obtidos em outros procedimentos, dariam ensejo à desconstituição da coisa julgada". A 2ª Turma Recursal, assim, por maioria, julgou procedente a Ação Rescisória. Na ocasião, ficou vencido o Juiz Federal Leonardo Castanho Mendes, que declarou voto no sentido de não conhecer a Ação Rescisória, porque "por opção do legislador, se entendeu que ela [Rescisória] não era essencial à validade do procedimento, quando em causas questões de pequeno valor". No julgamento dos Embargos de Declaração, após o voto divergente do Juiz Federal Leonardo Mendes no sentido de reconhecer a incompetência da 2ª Turma para julgar a Ação Rescisória, pois o acórdão rescindendo tinha sido prolatado pela 4ª Turma, por maioria dos julgadores, a 2ª Turma declinou a competência e remeteu os autos para a 4ª Turma. A 4ª Turma Recursal, em 25.09.2019, por sua vez, no julgamento do Agravo Interno, de relatoria da Juíza Federal Ivanise Correa Rodrigues, inadmitiu a Ação Rescisória. 4 A composição da TNU estabelece o equilíbrio de representação entre as 6 (seis) regiões, na medida em que cada Tribunal Regional Federal indicará dois juízes federais na qualidade de membros efetivos e dois como suplentes. A presidência da TNU é exercida pelo Ministro do Superior Tribunal de Justiça investido no cargo de Corregedor-Geral da Justiça Federal, cujas atribuições estão especificadas no art. 7º do RITNU. 5 De acordo com a Resolução 10 de 2007 do STJ o Pedido de Uniformização de Intepretação de Lei (PUIL) será processado e julgado pela Seção competente. Assim, se a questão for de direito público compete à 1ª Seção o seu processamento e julgamento, se se tratar de questão de direito privado o processamento e julgamento do PUIL dar-se-á na 2ª Seção, já se a questão envolver matéria criminal compete à 3ª Seção o processamento e julgamento do PUIL. 6 Aplica-se, por analogia, o que dispõe a Resolução 10 de 2007. Pedimos licença ao leitor para remetê-lo à nota de rodapé acima. 7 É o caso do Estado de São Paulo, em que o art. 2º do Regimento Interno da Turma de Uniformização do Sistema dos Juizados Especiais daquele Estado prevê: "Compete à Turma de Uniformização processar e julgar o pedido de uniformização de interpretação de lei, quando houver divergência entre decisões proferidas por Turmas Recursais do Estado de São Paulo sobre questões de direito material ou processual, bem como responder a consulta, sem efeito suspensivo, formulada por mais de um quinto das Turmas Recursais ou dos juízes singulares a ela submetidos, sobre matéria processual, quando verificada divergência no processamento dos feitos, e apreciar reclamações nas hipóteses previstas pela Resolução STJ/GP n. 3, de 7/04/2016, bem como artigos 988 a 993, do Código de Processo Civil, no que couber". É também admitido o Incidente de Uniformização no Estado do Rio de Janeiro, em que o art. 33 do Regimento Interno da Turma prevê "Haverá, na Comarca da Capital, 3 (três) turmas de uniformização do Sistema dos Juizados Especiais, sendo uma Turma de Uniformização Cível, uma Turma de Uniformização Fazendária e uma Turma de Uniformização Criminal, com competência para julgamento dos pedidos de uniformização de que trata o art. 18 da Lei nº 12.153/2009, no âmbito de suas competências. Art. 34. As turmas de uniformização serão presididas pelo Desembargador Presidente da COJES e compostas por todos os integrantes das turmas recursais de mesma competência das turmas em que tenha sido verificada a divergência". 8 "Trata-se de Incidente de Uniformização de Jurisprudência interposto por Ana Carolina Martins Acedo, em face de acórdão proferido pela 6ª Turma Recursal do Paraná. A suscitante aponta divergências existentes entre acórdãos proferidos pelas demais Turmas Recursais. Em que pese os argumentos expandidos pela suscitante, o presente incidente não merece conhecimento. Isso porque o Regimento Interno das Turmas Recursais não prevê a possibilidade de interposição do incidente, somente abrangendo as medidas elencadas em seu artigo 28:   Art. 28. As Turmas Recursais contarão com os seguintes procedimentos de uniformização e divulgação de jurisprudência: I. - enunciados; II. - pedidos de julgamento prioritário de matéria; III. - boletim informativo. Além disso, o Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Paraná, aplicável subsidiariamente ao sistema dos juizados especiais, restringe o procedimento de uniformização de jurisprudência aos Incidentes de Resolução de Demandas Repetitivas, Incidentes de Assunção de Competência e Incidentes de Arguição de Inconstitucionalidade[1]. Observa-se, assim, que tanto o Regimento Interno das Turmas Recursais do Paraná quanto o Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Paraná estão alinhados ao CPC/2015, que não mais prevê a possibilidade de interposição de Incidente de Uniformização de Jurisprudência, como fazia o CPC/1973. Sobre o tema, a doutrina atual ensina[2]: "Não há mais previsão, no CPC, do incidente de uniformização de jurisprudência, previsto no CPC/73. A assunção de competência constitui mecanismo mais eficiente, destinado a dar operatividade ao art. 926, que determina aos tribunais que uniformizem sua jurisprudência e a mantenham estável, íntegra e coerente, em atendimento aos princípios da isonomiae da segurança jurídica.". Gonçalves, Marcus Vinicius Rios. Direito Processual Civil Esquematizado. 11. ed. - São Paulo:Saraiva Educação, 2020. Nesse sentido também são os precedentes da Turma Recursal Reunida do Paraná: IUJ 0000267-19.2020.8.16.9000, Rel.: Fernanda Karam de Chueiri Sanches; IUJ 0000700-23.2020.8.16.9000 - Rel.: Juiz Marcel Luis Hoffmann; IUJ 0004545-97.2019.8.16.9000 - Rel.: Juiz Alvaro Rodrigues Junior. (.) Isto posto, deixo de conhecer o presente Incidente de Uniformização de Jurisprudência". (TJPR, Turma Recursal Reunida dos Juizados Especiais, 0000320-58.2024.8.16.9000, rel. Juiz de Direito da Turma Recursal dos Juizados Especiais Aldemar Sternadt, j. 15.2.2024). 9 Cf., por todos, o seguinte acórdão do TJSP: "Reclamação. Acórdão proferido pela Turma de Uniformização do Sistema dos Juizados Especiais do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Alegação de decisão contrária ao entendimento do Superior Tribunal de Justiça em julgamento de Recurso Especial Repetitivo (Temas 970 e 971). Incompetência do Órgão Especial. Impossibilidade de utilização da reclamação como sucedâneo recursal. Precedentes desta corte. Reclamação extinta, sem resolução do mérito, com fundamento no art. 485, VI, do C.P.C". (TJSP, Reclamação 2205231-58.2021.8.26.0000, Órgão Especial, j. 26.1.2022, rel. Des. Campos Mello, DJe 27.1.2022). 10 É o que tem ocorrido nos casos envolvendo "golpe do motoboy" em que terceiro, sem qualquer relação com a instituição financeira, recebe o cartão do consumidor, após ligação telefônica fazendo se passar por funcionário da referida instituição. Há aplicação equivocada da Súmula 479 do STJ. A Súmula 479 do STJ, editada em 27.6.2012, dispõe que: "As instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias". Entre os 12 (doze) Recursos Especiais que levaram à edição da Súmula 479: 5 (cinco) casos tratavam da abertura de conta corrente por estelionatário, utilizando-se de documentos falsificados da vítima (AgInt no AI 1.235.525/SP; AgInt no AI 1.292.131/SP; AgInt no AREsp 80.075/RJ; REsp 1.197.929/PR e REsp 1.199.782/PR, julgados sob o regime de repetitivos); 2 (dois) casos diziam respeito à saque indevido efetuado por estelionatário na conta corrente da vítima (AgInt no AI 1.345.744/SP; AgInt no AI 1.430.753/RS); 2 (dois) casos versavam sobre fraudes decorrentes de roubo de malotes com talões de cheques durante o transporte (AgInt no AI 1.357.347/DF; REsp 685.662/RJ); 2 (dois) casos de roubo de cofre dentro da agência bancária (REsp 1.045.897/DF; REsp 1.093.617/PE); 1 (um) caso envolvia assalto seguido de morte de funcionário no interior de agência bancária (AgInt no AI 997.929/BA). Os "delitos" e as "fraudes" de que trata a Súmula 479, como se pode inferir, dizem respeito a atos criminosos (roubo, furto, assassinato e falsificação) praticados dentro ou no entorno de agência bancária, sem qualquer possibilidade de a vítima controlar ou interferir. Veja-se acórdãos das Turmas Recursais: "RECURSO INOMINADO CÍVEL. DIREITO DO CONSUMIDOR. GOLPE DO MOTOBOY. Autor alega que passou seu cartão na "maquinha" do motoboy pelo valor de R$ 5,00 , mas posteriormente tomou conhecimento de débito em sua conta bancária de R$ 7.999,99. Sentença que julgou procedente a ação e condenou o banco réu, ora recorrente, a restituir ao requerente o valor mencionado. Razões recursais que não trouxeram nenhum elemento de convicção capaz de abalar os sólidos fundamentos da decisão monocrática. Demonstração segura da ocorrência do "golpe" e da transação que fugia completamente ao perfil do correntista. Falha na segurança interna do banco. Fortuito interno. Súmula 479 do STJ. Culpa da vítima não demonstrada. Culpa exclusiva de terceiro bem afastada, em face da falha na segurança da instituição financeira. Decisão de primeiro grau de jurisdição que deu justa e correta solução à causa e que deve ser mantida por seus próprios fundamentos. Artigo 46 da Lei 9099/1995. RECURSO IMPROVIDO". (TJSP, Recurso Inominado Cível 0010118-26.2023.8.26.0003, rel. Juiz Jefferson Barbin Torelli - Colégio Recursal,1ª Turma Recursal Cível, j. 15.2.2024, DJe 15.2.2024); "CONSUMIDOR - FRAUDE CARTÃO DE CRÉDITO - INEXIGIBILIDADE e INDENIZAÇÃO - DANOS MATERIAIS E MORAIS - "GOLPE do Presente de Aniversário" e/ou do "DELIVERY" - Falsa solicitação de taxa de entrega de presente da Cacau Show, quando o autor digitou sua senha em uma "maquinha" e o motoboy fugiu com o cartão de crédito do autor, tendo (o terceiro) realizado operações de R$8.000,00 e R$7.999,99, totalizando R$15.999,99 - Boletim de Ocorrência de fls. 41/28 formalizado na mesma data (R$23/1/2023) - Indícios veementes de Estelionato pelo beneficiário (credenciado) - Sentença de Parcial Procedência - Pretensão de reforma pela financeira - Não cabimento - Em que pese a falta de responsabilidade, em tese, da operadora pelos fatos criminosos narrados, inexiste qualquer justificativa razoável para a recusa ao estorno da operação, uma vez que se tratava de cartão de crédito e não de débito, cujos valores em regra são recebidos pelo vendedor no prazo de 30(trinta) dias - Ademais, a questão é recorrente, tanto que objeto do Enunciado n. 13 da Seção de Direito Privado do E. TJSP - Inequívoca, pois, a responsabilidade da instituição financeira em casos de "golpe do motoboy", quando houver falha na prestação dos serviços, da segurança ou desrespeito ao perfil do consumidor - Manifesta discrepância das operações em relação ao perfil do usuário dos serviços - Aplicação das Súmulas nº 297 e 479 do STJ - Atualização desde o desembolso (evento danoso) corretamente fixada, conforme Súmula 54 do STJ, já que a responsabilidade pela fraude é extracontratual - Sentença mantida por seus próprios e jurídicos fundamentos - Recurso a que se nega provimento - Recurso do autor deserto (fl. 453) - Contudo, é certo que encargos acessórios (listados na fl. 402) seguem a inexigibilidade do principal já declarada, sendo incontroverso que o montante controvertido foi creditado em 18/4/2023 (fl. 412), devendo ser ajustado para a mesma data (23/01/2023) ou excluídos os encargos, para o retorno das partes ao estado anterior, limitando a execução condenatória à verba sucumbencial".  (TJSP, Recurso Inominado Cível 1001566-52.2023.8.26.0004, rel. Juiz Antonio Carlos Santoro Filho - Colégio Recursal, 7ª Turma Recursal Cível, j. 15.2.2024, DJe 15.2.2024). 11 Em regra, a jurisprudência não conhece de Mandado de Segurança contra julgado da Turma Recursal. Confira-se: "MANDADO DE SEGURANÇA - Ação que tramita perante o Juizado Especial Cível - Competência da Turma Recursal - Remessa determinada". (TJSP, Mandado de Segurança Cível 2040416-10.2022.8.26.0000, 25ª Câmara de Direito Privado, j. 24.3.2022, rel. Des. Almeida Sampaio, DJe 24.3.2022). Veja-se, a seguir, caso excepcional em que o TJSP concedeu ordem no Mandado de Segurança 2205336-98.2022.8.26.0000, de relatoria do Des. Giffoni Ferreira, julgado em 31.1.2023, para cassar acórdão da Turma Recursal que se tinha declarado competente para julgar a ação, ainda que se exigisse a produção de prova pericial: "MANDADO DE SEGURANÇA - COMPETÊNCIA DE JUIZADO ESPECIAL - MATÉRIA DE ALTA INDAGAÇÃO - JUSTIÇA COMUM COM MELHOR APRECIAR A QUESTÃO - ORDEM CONCEDIDA". (TJSP, Mandado de Segurança Cível, rel. Des. Giffoni Ferreira, 2ª Câmara de Direito Privado, j. 31.1.2023, DJe 1º.2.2023). 12 Da ementa, extrai-se o seguinte: "Constitucional e Processual Civil. 2. Execução (atual fase de cumprimento de sentença). Inexigibilidade do título executivo judicial (artigo 741, parágrafo único do CPC/73 e art. 535, § 5º, do CPC/15). Aplicabilidade no âmbito dos juizados especiais. 3.Coisa julgada (artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal). Entendimento do Supremo Tribunal Federal em sentido contrário ao comando transitado em julgado. 4. Inexigibilidade do título executivo transitado em julgado. Precedentes. ADI 2.418, Rel. Min. Teori Zavascki, Pleno, DJe 17.11.2016 e RE 611.503, Redator p/ acórdão Min. Edson Fachin, DJe 10.3.2019 (Tema 360 da sistemática da repercussão geral). Extensão do entendimento do STF aos casos com trânsito em julgado anteriores, que estejam pendentes de cumprimento. 5. Admitida a impugnação pela inexigibilidade do título judicial, transitado em julgado, em contrariedade ao posicionamento do Supremo Tribunal Federal, seja no Juizado Especial Cível da Justiça Estadual ou Federal, nada obstante o disposto no art. 59 da Lei 9.099/1995. 6. Fixação das teses, as quais demandam análise conjunta: '1) é possível aplicar o artigo 741, parágrafo único, do CPC/73, atual art. 535, § 5º, do CPC/2015, aos feitos submetidos ao procedimento sumaríssimo, desde que o trânsito em julgado da fase de conhecimento seja posterior a 27.8.2001; 2) é admissível a invocação como fundamento da inexigibilidade de ser o título judicial fundado em aplicação ou interpretação tida como incompatível com a Constituição quando houver pronunciamento jurisdicional, contrário ao decidido pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, seja no controle difuso, seja no controle concentrado de constitucionalidade; 3) o art. 59 da Lei 9.099/1995 não impede a desconstituição da coisa julgada quando o título executivo judicial se amparar em contrariedade à interpretação ou sentido da norma conferida pela Suprema Corte, anterior ou posterior ao trânsito em julgado, admitindo, respectivamente, o manejo (i) de impugnação ao cumprimento de sentença ou (ii) de simples petição, a ser apresentada em prazo equivalente ao da ação rescisória'. 7. Provimento, em parte, do recurso extraordinário". (STF, RE 586068, Tribunal Pleno, j. 9.11.2023, rel. Min. Rosa Weber, rel. p/ acórdão Min. Gilmar Mendes, DJe 31.1.2024). 13 Já há acórdão aplicando esse novo entendimento, passando a admitir que a impugnação no cumprimento de sentença tenha força rescisória: "Agravo de instrumento. Rejeição de impugnação a cumprimento de sentença. Alegação de desconformidade do título executivo com precedente obrigatório em matéria constitucional. Exigência de propositura de ação rescisória que é incompatível com Sistema dos Juizados Especiais. Vedação expressa no art. 59 da Lei nº 9.099/1995. Precedente recente do C. STF admitindo o manejo de impugnação ao cumprimento de sentença, ou de simples petição, a ser apresentada em prazo equivalente ao da ação rescisória. Policial Militar inativo. Contribuição Previdenciária. Tema 1177. Coisa julgada anterior à modulação dos efeitos que considerou válidos os recolhimentos da contribuição de militares efetuados nos moldes da lei 13.954/2019, até 1º de janeiro de 2023. Cumprimento de sentença iniciado com o objetivo único de recebimento das diferenças anteriores à referida data. Acolhimento da impugnação que se impõe. Inexigibilidade da obrigação contida no título executivo, porquanto em desconformidade com precedente vinculante em matéria constitucional. Agravo provido". (TJSP, Agravo de Instrumento 3000025-35.2022.8.26.9008, rel. Des. Melina de Medeiros Ros, Primeira Turma Civel e Criminal, j. 14.7.2023, DJe 14.7.2023) (g.n.).
terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Imparcialidade do árbitro e dever de revelação

Qual a gravidade da omissão do árbitro quanto ao dever de revelação? Quais as consequências deste descumprimento? Trata-se, a nosso ver, de problemas que devem ser resolvidos à luz da perspectiva do âmbito de eventual posterior atuação do Judiciário no controle da regularidade da arbitragem. Este controle deve, o tanto quanto possível, ser evitado.  Hoje em dia, já não mais se discute a respeito da natureza jurídica da arbitragem.  Trata-se de jurisdição. Envolve a atividade exercida pelos árbitros que, uma vez escolhidos pelas partes - por força da autonomia de sua vontade -, julgarão o conflito que lhes foi submetido à apreciação. Na jurisdição estatal, não se rediscute a decisão de mérito proferida pelos árbitros (art. 18, Lei n. 9.307/1996 - LArb).  Isto é, uma vez que as partes acordaram, livremente, em submeter seu conflito à apreciação de profissionais que consideram  aptos para tanto, e em que têm confiança, não lhes é aberta a possibilidade de rediscutir em juízo  a decisão do árbitro no mérito. A escolha definitiva dos árbitros se dá com base nas informações que estes devem revelar.  A partir destes dados, as partes podem aferir imparcialidade e independência dos profissionais escolhidos, para o bom e fiel desempenho do múnus para o que foram contratados1.   Há um mecanismo criado pela LArb, de que se pode utilizar a parte interessada, com vistas a suscitar, perante o Judiciário, vício formal de que, porventura, tenha padecido o procedimento arbitral (art. 32):  a ação anulatória, em conformidade com o art. 33. A ação anulatória, frise-se, visa a, única e exclusivamente, apontar vícios formais existentes na arbitragem e/ou na sentença arbitral. A nosso ver, a ação anulatória - naturalmente, quando cabível nos termos da LArb - ao contrário do que possa parecer à primeira vista, chancela a credibilidade da arbitragem2-3, já que concede ao poder soberano estatal - através do Poder Judiciário - a possibilidade de corrigir vícios formais4 que, porventura, tenham maculado o processo arbitral.  A ação anulatória é exemplo do importante regime de cooperação que deve haver entre as jurisdições do Estado e arbitral, regime esse sobre cuja existência também não mais se discute5. Clique aqui e confira a coluna na íntegra. __________ 1 Nesse contexto, pode-se verificar a natureza também contratual da arbitragem.  Por isso que costumamos afirmar que a arbitragem tem natureza jurídica mista:  fruto de contratação entre as partes, para o exercício, pelos árbitros, de uma atividade jurisdicional. 2 "O uso da ação anulatória, na medida certa e de forma coerente, acaba por incentivar o uso do instituto da arbitragem". BELLOCCHI, Márcio. Precedentes Vinculantes e a Aplicação do Direito Brasileiro na Convenção de Arbitragem. São Paulo: Ed. RT, 2017.  3 No mesmo sentido, Dinamarco: "A admissibilidade da ação anulatória de sentença arbitral, sempre circunscrita a fundamentos de natureza processual (nulidades - LA, arts. 32-33), é um temperamento do sistema de direito positivo à autonomia da arbitragem e constitui um penhor da legitimidade desta perante a ordem constitucional, particularmente a garantia do controle judicial (supra, n. 6). No sistema brasileiro essa sentença é soberana no tocante ao julgamento de mérito, não se devolvendo ao Poder Judiciário qualquer competência para o exame de possíveis errores in judicando, seja no tocante ao exame dos fatos e provas, seja quanto à aplicação ou interpretação do direito material (...)". DINAMARCO, Cândido Rangel. Processo Arbitral. Curitiba: Editora Direito Contemporâneo, 2022, p. 265.  4 "Assim, na ação de invalidação de sentença arbitral, o controle judicial, exercido somente após a sua prolação, está circunscrito a aspectos de ordem formal, a exemplo dos vícios previamente elencados pelo legislador (art. 32 da Lei n. 9.307/1996), em especial aqueles que dizem respeito às garantias constitucionais aplicáveis a todos os processos, que não podem ser afastados pela vontade das partes."   REsp n. 1.636.102/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva. 5 Isso pode ser constatado no texto da LArb, art. 22-C, que trata da carta arbitral, documento emitido pelo árbitro, destinado ao Judiciário, com o objetivo de que seja cumprido o ato do árbitro que necessite do poder de coerção, exclusivo da jurisdição estatal.  Também o Código de Processo Civil prevê essa figura (da carta arbitral), como se nota do inciso IV do art. 237.
Introdução: premissas conceituais.  O instituto da desconsideração da personalidade jurídica tem por objetivo afastar a separação patrimonial da empresa e de seus sócios, nos casos de abuso e fraude. Nas palavras de Marçal Justen Filho, "A desconsideração não é remédio para um defeito na criação ou manutenção da sociedade personificada. Bem por isso, seus pressupostos devem-se vincular à desnaturação funcional. O fundamento da desconsideração é o abuso funcional na utilização da pessoa jurídica, de molde a provocar um resultado incompatível, no caso concreto, com a previsão abstrata visualizada pelo ordenamento".1 2 Em situações em que a personalidade jurídica é utilizada como "véu" para o comportamento abusivo ou irregular de seus sócios e acionistas, a ordem jurídica admite alcançar o patrimônio destes, por dívida contraída em nome da sociedade, mediante a devida comprovação e o exercício do contraditório e da ampla defesa. Trata-se de medida excepcional, autorizada somente em hipóteses previstas taxativamente em lei. Em outras palavras, as hipóteses de aplicação do instituto não comportam interpretação analógica nem extensiva, devendo os elementos fraude e abuso estar presentes em todas as hipóteses de incidência, sejam elas regidas pelo Código Civil ou pelo Código de Defesa do Consumidor.3 O art. 28, CDC. Ao longo de mais de três décadas de vigência do CDC, o art. 28, CDC, esteve no foco de debates e controvérsias. De acordo com a doutrina, esse dispositivo consagra a "teoria menor" da desconsideração da personalidade jurídica, enquanto o art.50, CC a "teoria maior". O art. 28, caput, do CDC, autoriza a desconsideração da personalidade jurídica nas relações de consumo quando "houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social". Na parte final do caput, foram acrescidas as hipóteses de "falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica", desde que provocadas "por má administração". Quanto à primeira parte, a interpretação meramente literal do dispositivo deixa evidente ser imprescindível o abuso de direito, fraude, dolo, ou de qualquer atitude contrária às disposições legais e estatutárias. Nesse ponto, o Código de Defesa do Consumidor converge com a regra do art. 50 do CC, que prevê a chamada teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica, que, oportunamente, será objeto de um outro artigo nesta coluna. Some-se a isso, a parte final do caput do art. 28, CDC, que dispõe sobre a desconsideração fundada na (i) falência, (ii) estado de insolvência, (iii) encerramento ou (iv) inatividade da pessoa jurídica. Todas essas hipóteses devem estar, necessariamente, relacionadas à "má administração da empresa". Como bem observou o Min. Moura Ribeiro, no voto proferido no AREsp nº 2.116.191/SP, "má administração da empresa" não significa falta de expertise, mas, sim, a má utilização da pessoa jurídica, com dolo negocial, má-fé, na tentativa de obter vantagem ilícita. Ou seja, imprescindível a comprovação de fraude ou má-fé4. Isso, porque em uma economia de mercado, regida pela livre iniciativa, "inúmeros são os desafios enfrentados pelo empresário, sendo que o sucesso ou insucesso de seu negócio não dependerá, exclusivamente, de sua capacidade de administração".5 Essa conclusão decorre, além de uma interpretação jurídica-teleológica, de interpretação lógico-gramatical. Isso, porque a expressão "provocados por má administração" emprega a expressão "provocados" no plural, de modo a abranger todas as situações listadas no período. Por evidente, se a má administração estivesse vinculada somente à inatividade, o verbo estaria no singular, não restando quaisquer dúvidas. Nesse sentido, leciona a doutrina que a "correta interpretação [do art. 28 do CDC] é no sentido de se exigir a inadequada gestão dos administradores para todas as hipóteses arroladas nesta segunda parte do dispositivo (...), até porque a desconsideração é medida excepcional".6 Isto é, "a simples insolvência da pessoa jurídica não é suficiente para caracterizar a má administração".7 Concluindo esse raciocínio, afirma Bruno Miragem que "as hipóteses de falência, insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica não importam na desconsideração de per se. Ao contrário, apenas importam na desconsideração quando tais circunstâncias decorrem diretamente de má-administração".8 É de rigor, pois, a coexistência de (i) "má administração", sob a perspectiva apontada acima, e de (ii) algum estado de fato previsto na parte final do art. 28, entre eles, o estado de insolvência. O parágrafo 5º do art. 28. Tem-se difundido - de forma equivocada, em nossa percepção - o entendimento de que basta o consumidor comprovar o inadimplemento do fornecedor ou a ausência de bens suficientes à quitação do débito, para se permitir, com base no §5º do art. 28 do CDC, a desconsideração da personalidade jurídica, com a consequente imputação de responsabilidade pessoal, usualmente direcionada ao sócio. Porém, a aplicação irrestrita do § 5º do art. 28 dessa forma simplificada implicará, inevitavelmente, a "revogação da autonomia patrimonial no âmbito do direito do consumidor".9 Não é o simples prejuízo ou a situação de inadimplência que faz incidir a regra do § 5º - o dispositivo não pode ser interpretado em completa dissociação ao caput do mesmo art. 28. O § 5º deve ser interpretado de forma teleológica e sistemática, em consonância com as demais disposições do artigo em que se insere, sob pena de tornar "letra morta o caput do mesmo art. 28 do CDC, que circunscreve algumas hipóteses autorizadoras do superamento da personalidade jurídica"10, justamente porque a desconsideração é uma exceção à autonomia patrimonial da empresa.   Trata-se de regra básica de hermenêutica jurídica, no sentido de "que o parágrafo deve ser interpretado com base em seu caput, e não ampliar os seus termos ou contradizê-lo".11 Só cabe a desconsideração, pois, quando a personalidade jurídica da empresa for utilizada, como dito no item anterior, em fraude e má-fé. Evidentemente, a mera existência de inadimplemento não significa que a personalidade jurídica constitui um "obstáculo" ao recebimento do ressarcimento pelo consumidor. Ao revés, as sociedades empresárias enfrentam crises econômicas, podendo, sim, chegar a uma situação de desequilíbrio financeiro. Mas isso não quer dizer que os sócios, acionistas ou membros de órgãos deliberativos criaram, deliberadamente, "obstáculos" à satisfação do crédito. Interpretar o § 5º dessa forma equivaleria a eliminar o instituto da pessoa jurídica e o princípio da autonomia patrimonial no âmbito consumerista, pois, bastaria ignorar todos os critérios adotados pela legislação civil e pelo próprio CDC, sob um argumento genérico de que existem "obstáculos" ao crédito, mesmo que a conduta da empresa tenha sido sempre legítima e transparente. Em outros termos, a prevalecer referido entendimento, "ter-se-ia que reconhecer que, no Direito brasileiro, não haveria autonomia patrimonial das pessoas jurídicas nas relações de consumo", e a função promocional do ordenamento, "que fomenta a associação de pessoas e recursos para consecução de fins superiores às forças de cada uma delas", seria simplesmente desconsiderada.12 Não por outro motivo, leciona Fábio Ulhoa Coelho, ao comentar o § 5º do art. 28, que "a simples insatisfação do credor não autoriza, por si só, a desconsideração". Qualquer interpretação em contrário, destaca o autor, "contraria os fundamentos técnicos da desconsideração". Isso, porque o instituto da desconsideração representa um aperfeiçoamento da teoria da personalidade jurídica da empresa e não sua negação, razão pela qual "ela só pode ter a sua autonomia patrimonial desprezada para a coibição de fraudes ou abuso de direito".13 O verdadeiro sentido da norma expressa no art. 28, em momento algum, autoriza a desconsideração da personalidade, sob o único fundamento de inadimplência. O CDC, em respeito à autonomia patrimonial e ao próprio instituto da desconsideração, exige mais: mostra-se imprescindível a existência de atos abusivos ou fraudulentos, não sendo suficiente a mera alegação de inadimplência. Em outras palavras, não é suficiente que o consumidor invoque a insolvência da pessoa jurídica e a existência de bens no patrimônio dos sócios. Mostra-se imprescindível, também, que haja a demonstração de uma situação de anormalidade14, pois, à evidência, o expediente da desconsideração tem a função de corrigir desvios, que acontecem em casos excepcionais, autorizando o afastamento da regra geral da autonomia patrimonial, que é um desdobramento dos princípios constitucionais da livre iniciativa, previsto no art. 1º, IV, da CF, e da propriedade privada (arts. 170, II, e 5º, XXII, da CF).  Os efeitos jurídicos do princípio da autonomia patrimonial se irradiam, também, no âmbito social e econômico, uma vez que incentivam o surgimento das empresas, permitindo, assim, o desenvolvimento das relações produtivas e de consumo. Afinal, a não separação patrimonial entre a pessoa jurídica e seus sócios poderia implicar desestímulo à assunção de riscos negociais e, com isso, refletir no próprio desenvolvimento da economia nacional15. A possibilidade de se afastar a regra da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, intrinsecamente ligada à perspectiva de desenvolvimento do país, tem que ser entendida como uma exceção, e como acontece com toda exceção, deve ser objeto de interpretação cuidadosa e seu reconhecimento pelo judiciário deve ser cercado de todas as cautelas desejáveis. Na verdade, imprescindíveis. Por isso, desconsiderar a personalidade jurídica exclusivamente com base no inadimplemento ou na insuficiência de bens para quitar suas obrigações implica, em nossa perspectiva, no desvirtuamento total do instituto da personalidade jurídica da empresa e de seu papel na sociedade. Atingir o patrimônio pessoal dos sócios, sem evidências mínimas de má utilização da pessoa jurídica, não é a solução. Não por outra razão, observa-se uma tendência, ainda incipiente, na jurisprudência de afastar a responsabilidade pessoal do sócio que desempenha atos de gestão, a menos que haja prova de sua contribuição, ainda que culposa, em atos de administração16. Ou seja, além do mero inadimplemento ou insuficiência de bens do devedor, exige-se a comprovação da contribuição do sócio para aquele resultado. No Direito norte-americano, por exemplo, há a regra do business judgment rule17, que consiste, em síntese, na proteção à autonomia decisória de administradores de sociedades que exerçam seu mister dentro dos parâmetros de lealdade e boa-fé, objetivando, assim, protegê-los de eventuais responsabilidades decorrentes de prejuízos apurados ou gerados para a companhia a partir de suas decisões. Incumbe ao administrador da sociedade praticar todos os atos de gestão pertinentes à busca do objeto social da sociedade. Assim, os atos praticados no regular exercício da função, visando ao interesse da companhia e acima de tudo, praticados de boa-fé (observados os deveres dos administradores), não podem ensejar a responsabilização pessoal do administrador. Uma correta compreensão do business judgment rule e sua aplicabilidade no direito brasileiro passa pela avaliação de aspectos como a boa-fé e pela comprovação de infração, pelo administrador, dos deveres que devem nortear sua posição, sem criar um cenário em que seja possível, de maneira quase imediata, a responsabilização por todo e qualquer prejuízo que a companhia venha a experimentar. Em nosso sentir, tal raciocínio se revela capaz de equacionar os interesses, resguardando, por um lado, as relações de consumo, enquanto promove a proteção patrimonial de sócios e administradores da pessoa jurídica por atos hígidos e pertinentes de gestão na busca da realização do objeto social, conferindo maior segurança, o que, sabidamente, incentiva o exercício de atividade econômica, fundamental para o desenvolvimento do país. Necessária instauração do Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica.  O CPC/2015 previu o procedimento para instauração do Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica (IDPJ), nos arts. 133 a 137, para garantir o exercício do contraditório e da ampla defesa. Esse capítulo refletiu o posicionamento jurisprudencial e doutrinário sobre a matéria18. A desconsideração, como visto, consiste em exceção ao princípio da autonomia entre o patrimônio da sociedade e as pessoas que a integram na condição de sócios, acionistas, administradores, etc. Tendo em vista a excepcionalidade19 das hipóteses em que é aplicável a teoria da desconsideração da personalidade, não se pode admitir - em qualquer relação jurídica que seja, consumo, cível, ambiental, etc. - que a sua ocorrência se dê sem o prévio contraditório. A instauração do IDPJ, possível de ser suscitado em todas as fases do processo de conhecimento e execução20 (art. 134, caput, do CPC), visa a possibilitar às pessoas que integram a pessoa jurídica o exercício do contraditório pleno, inclusive com ampla produção de provas. Além disso, como a desconsideração da personalidade implica na expansão da responsabilidade patrimonial decorrente da obrigação discutida em juízo ao patrimônio de terceiros que, originariamente, não compunham a relação processual, essa medida não pode ocorrer sem o prévio contraditório, sob pena de violação ao princípio do devido processo legal. Em verdade, é por intermédio do IDPJ que a parte interessada deverá "demonstrar o preenchimento dos pressupostos legais para a desconsideração da personalidade jurídica" (art. 134, § 4º, CPC). O intuito do IDPJ é assegurar, a terceiros, o devido processo legal e a segurança jurídica, evitando-se, com isso, os excessos outrora cometidos. Não são poucas as decisões do STJ no sentido de que a instauração do IDPJ é obrigatória, o que não poderia ser diferente, tendo em vista a dicção da lei21. Nesse mesmo sentido, observa-se que os Tribunais Estaduais de Justiça entendem como imprescindível a instauração do IDPJ, sob pena de violação ao contraditório22. Tem-se, portanto, que em hipótese alguma poderá, o juiz, privar qualquer pessoa, física ou jurídica, de seus bens, por meio da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, sem antes: i) instaurar incidente próprio de desconsideração, seja em ação de conhecimento, execução ou cumprimento de sentença (art. 134 do CPC); ii) informar à parte demandada (alheia à relação processual) a respeito do pedido formulado pela parte contrária;  iii) abrir vistas à parte para se manifestar a respeito dos elementos (fáticos e jurídicos) constantes no processo; e iv) levar em consideração os argumentos e provas apresentados pela pessoa que se pretenda atingir os bens, antes de se decidir pela desconsideração, ou não, da personalidade jurídica23. _____________ 1 FILHO, Marçal Justen. Desconsideração da personalidade societária no direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987. p. 135. 2 Não se trata, portanto, de fenômeno relacionado à existência ou validade dos atos jurídicos, nem mesmo com a eficácia dos atos em si. FILHO, Marçal Justen. Desconsideração da personalidade societária no direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987. p. 155. 3 "A desconsideração não é remédio para um defeito na criação ou manutenção da sociedade personificada. (...). O fundamento da desconsideração é o abuso funcional na utilização da pessoa jurídica, de molde a provocar um resultado incompatível, no caso concreto, com a previsão abstrata visualizada pelo ordenamento". (JUSTEN FILHO, Marçal. Desconsideração da personalidade societária no direito brasileiro. São Paulo: Ed. RT, 1987. p. 135).3 4 SILVA, Joseane Suzart Lopes da. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica no novo CPC e a efetiva proteção dos consumidores. Revista de Direito do Consumidor, vol. 113, RT online, set./out. 2017. 5 BARATA, Pedro Paulo Barradas. A desconsideração da personalidade jurídica nas relações de consumo. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - Dissertação (Mestrado em Direito). 2009. 6 GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Desconsideração da personalidade jurídica no Código de Defesa do Consumidor e no Código Civil de 2002. Doutrinas Essenciais de Direito do Consumidor, vol. 5, RT online, abr. 2011. No mesmo sentido: SILVA, Joseane Suzart Lopes da. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica no novo CPC e a efetiva proteção dos consumidores. Revista de Direito do Consumidor, vol. 113, RT online, set./out. 2017. 7 BARATA, Pedro Paulo Barradas. A desconsideração da personalidade jurídica nas relações de consumo. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - Dissertação (Mestrado em Direito). 2009. 8 MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 6. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 687. 9 TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial: Teoria geral e direito societário, v. 1. 12. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021. 10 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa, v. 2, p. 52-53. 11 BARATA, Pedro Paulo Barradas. A desconsideração da personalidade jurídica nas relações de consumo. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - Dissertação (Mestrado em Direito). 2009. 12 BARATA, Pedro Paulo Barradas. A desconsideração da personalidade jurídica nas relações de consumo. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - Dissertação (Mestrado em Direito). 2009. 13 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa, v. 2, p. 52-53. 14 FILHO, Marçal Justen. Desconsideração da personalidade societária no direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987. p. 129. 15 Paulo Ricardo Pozzolo; Maria Angela Szpak Swiech; Lana Matienzo Gomes Pedrosa. Temas em Direito e Economia do Trabalho. Capitulo 6, A interação entre direito e economia na desconsideração da personalidade jurídica. FGV, Direito, Rio. 2021. Pp. 127-232. Disponível em: < https://dej.fgv.br/sites/default/files/arquivos/temas_direito_economia_trabalho_cap6.pdf> Acesso em: 20.11.2023. 16 RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. PERSONALIDADE JURÍDICA. DESCONSIDERAÇÃO. INCIDENTE. RELAÇÃO DE CONSUMO. ART. 28, § 5º, DO CDC. TEORIA MENOR. SÓCIO. ATOS DE GESTÃO. PRÁTICA. COMPROVAÇÃO. AUSÊNCIA. INAPLICABILIDADE. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. CARÁTER PROTELATÓRIO. INEXISTÊNCIA. MULTA. AFASTAMENTO. 1. Para fins de aplicação da Teoria Menor da desconsideração da personalidade jurídica (art. 28, § 5º, do CDC), basta que o consumidor demonstre o estado de insolvência do fornecedor e o fato de a personalidade jurídica representar um obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos causados. 2. A despeito de não se exigir prova de abuso ou fraude para fins de aplicação da Teoria Menor da desconsideração da personalidade jurídica, tampouco de confusão patrimonial, o § 5º do art. 28 do CDC não dá margem para admitir a responsabilização pessoal de quem, embora ostentando a condição de sócio, não desempenha atos de gestão, ressalvada a prova de que contribuiu, ao menos culposamente, para a prática de atos de administração. 3. Na hipótese em que os embargos de declaração objetivam prequestionar a tese para fins de interposição de recurso especial, deve ser afastada a multa do art. 538, parágrafo único, do Código de Processo Civil de 1973. Súmula nº 98/STJ. 4. Recurso especial provido. (REsp n. 1.900.843/DF, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, relator para acórdão Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, DJe de 30/5/2023.) 17 Acerca da business judgment rule, há, ao menos, dois artigos já publicados na Coluna do Migalhas, a saber: 1º) A Business Judment Rule na responsabilidade civil. Disponível em: 2º) A aplicação da business judgment rule no direito brasileiro. Disponível em: < https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/339861/a-business-judment-rule-na-responsabilidade-civil> 18 Conforme apontam Marinoni, Arenhart e Mitidiero: "Em todos os casos de desconsideração (...) o terceiro só poderá ser alcançado pela eficácia da decisão judicial se regularmente desconsiderada a personalidade jurídica mediante incidente de desconsideração, que demanda contraditório específico e prova igualmente específica sobre a ocorrência dos pressupostos legais que a autorizam. A única hipótese em que o terceiro pode ser alcançado sem o incidente específico é aquela em que a desconsideração já vem desde logo requerida com a petição inicial, hipótese em que o sócio (desconsideração) ou a pessoa jurídica (desconsideração inversa) será desde logo citada (art. 134, § 2º). Isso não quer dizer, porém, que o contraditório e a prova dos pressupostos legais da desconsideração estejam dispensados: de modo nenhum. Num e noutro caso é imprescindível o respeito ao direito ao contraditório e ao direito à prova do terceiro". Curso de Processo Civil: tutela dos direitos mediante procedimento comum. 6. ed. São Paulo, Thomson Reuters Brasil, 2020. v. 2, p. 116. 19 "A desconsideração da personalidade jurídica, com a consequente invasão no patrimônio de terceiros, é medida excepcional, sendo admitida apenas quando comprovados os seus requisitos, o que não ocorreu no caso". (STJ, AgInt no REsp 1337956/SP. 4ª T., Rel. Min. Raul Araújo, DJe 07.02.2017). 20 "O novo código inova ao prever um incidente específico e obrigatório para permitir a desconsideração da personalidade jurídica (artigos 133/137). No passado, à falta de regulação própria, era decretada a desconsideração da personalidade jurídica sem a observância das garantias processuais ao terceiro requerido, como o contraditório amplo e, ainda, sem fundamentação adequada e, até mesmo, de ofício pelo juiz, desestimulando a atividade empresarial séria." (Paulo Cezar Pinheiro Carneiro. O Novo Processo Civil Brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 178). 21 "(...). Para que uma empresa, pertencente ao mesmo grupo econômico da executada, sofra constrição patrimonial, é necessária prévia instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, não sendo suficiente mero redirecionamento do cumprimento de sentença contra quem não integrou a lide na fase de conhecimento, nos termos dos arts. 28, § 2º, do CDC e 133 a 137 do CPC/2015. 2. Recurso especial provido para julgar procedentes os embargos de terceiro, a fim de decretar a nulidade da penhora sobre o patrimônio da recorrente. (STJ, REsp n. 1.864.620/SP, 4ª T., Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, DJe 19.09.2023).  "(...). Por outro lado, segundo o entendimento jurisprudencial adotado por esta Colenda Corte, "é imprescindível a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica de que tratam os arts. 133 e seguintes do CPC/2015, de modo a permitir a inclusão do novo sujeito no processo (...)". (STJ, AgInt no REsp 1962045/RS, Rel. Min. Marco Buzzi, 4ª T., DJe 16.12.2021).  "(...). 6. Na hipótese de indícios de abuso da autonomia patrimonial, a personalidade jurídica da EIRELI pode ser desconsiderada, de modo a atingir os bens particulares do empresário individual para a satisfação de dívidas contraídas pela pessoa jurídica. Também se admite a desconsideração da personalidade jurídica de maneira inversa (...). 7. Em uma ou em outra situação, todavia, é imprescindível a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica de que tratam os arts. 133 e seguintes do CPC/2015, de modo a permitir a inclusão do novo sujeito no processo - o empresário individual ou a EIRELI -, atingido em seu patrimônio em decorrência da medida". (STJ, REsp 1874256/SP, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 19.08.2021).  22 "(...). PLEITO DE DIRECIONAMENTO DA EXECUÇÃO AOS SÓCIOS DA PESSOA JURÍDICA EXECUTADA. DECISÃO AGRAVADA QUE INDEFERIU O PEDIDO, DETERMINANDO QUE SE INSTAURASSE PREVIAMENTE INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. DECISÃO ACERTADA. NECESSIDADE DE PRÉVIA INSTAURAÇÃO DE INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA, NOS TERMOS DOS ARTIGOS 133 E SEGUINTES DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, SOB PENA DE VULNERAÇÃO AO CONTRADITÓRIO E À AMPLA DEFESA". (TJSP, AI 2121788-78.2022.8.26.0000, rel. Des. Vito Guglielmi, 6ª C.D.P., DJe 25.11.2022).  "(...). Independentemente de se estar caracterizado eventual grupo econômico ou mesmo sucessão empresarial, a jurisprudência deste Tribunal de Justiça entende que, para a consequente inclusão de empresa que não atuou como parte no processo, faz-se necessária a instauração de incidente próprio, nos moldes do art. 133 do Código de Processo Civil, com o fim de garantir o contraditório e a ampla defesa". (TJDF, AI 07187437920228070000, rel. Des. João Egmont, 2ª T., DJe 05.12.2022).  "(...). Pedido de redirecionamento da cobrança fiscal às empresas do mesmo grupo econômico. Decisão interlocutória indeferindo o redirecionamento requerido, tendo em vista a necessidade de prévia instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica da empresa executada, nos moldes do art. 133 do CPC. (...). Necessidade de submissão dos envolvidos ao incidente de desconsideração da personalidade jurídica, para fins de garantir o contraditório e a ampla defesa. (...)". (TJRJ, AI 0053839-66.2022.8.16.0000, Rel. Des. Cláudio Luiz Braga Dell'Orto, 18ª C.C., DJe 29.09.2022).  23 A esse respeito, veja-se a lição de HUMBERTO THEODORO JUNIOR e JOSÉ COELHO DIERLE NUNES: "Daí afirmar-se, correntemente, que a pretensão à tutela jurídica, que corresponde exatamente à garantia consagrada no art. 5º, LV, da CF, contém os seguintes direitos: 1) direito de informação ..., que obriga o órgão julgador a informar a parte contrária dos atos praticados no processo e sobre os elementos dele constantes; 2) direito de manifestação..., que assegura ao defendente a possibilidade a possibilidade de manifestar-se oralmente ou por escrito sobre os elementos fáticos e jurídicos constantes do processo; 3) direito de ver seus argumentos considerados..., que exige do julgador capacidade, apreensão e isenção de ânimo... para contemplas as razões apresentadas...". (Uma dimensão que urge reconhecer ao contraditório no direito brasileiro: sua aplicação como garantia de influência, de não surpresa e de aproveitamento da atividade processual. RePro, v. 34, n. 168, fev./2009, p.135).
No dia 4/10/23, realizou-se, no STJ, audiência pública para discussão do tema repetitivo 1.198, que visa a decidir se o juiz pode, ao identificar indícios da prática de litigância predatória, "exigir que a parte autora emende a petição inicial com apresentação de documentos capazes de lastrear minimamente as pretensões deduzidas em juízo, como procuração atualizada, declaração de pobreza e de residência, cópias do contrato e dos extratos bancários." A questão que se põe é a seguinte: pode o juiz, no caso de litigância predatória, cumprindo o art. 10 do CPC (isto é, permitindo à parte reparar o defeito da petição inicial), extinguir o processo sem resolução de mérito, caso o defeito não seja corrigido no prazo legal? Antes de responder a essa pergunta, precisa-se entender exatamente o que significa litigância predatória. De acordo com o dicionário Oxford, predador é aquele que "destrói o outro violentamente". Logo, litigância predatória, em um primeiro sentido, é aquela voltada a destruir a parte contrária. Ela é articulada com um objetivo obscuro, invisível na superfície: causar dano ao réu. O autor não quer simplesmente sair vencedor ou resolver um problema, ele pretende prejudicar a parte contrária, causando-lhe um mal global. Pode ser realizada por meio de uma demanda individual única ou por meio de várias ações, distribuídas coordenadamente. Foi o que aconteceu com o litígio conhecido como Birther litigation. Em 2008, nos Estados Unidos, foram propostas centenas de demandas individuais impugnando a candidatura de Barack Obama, sob o fundamento de que, por não ser americano nato, o democrata não preenchia requisito para concorrer à presidência. A primeira ação foi julgada improcedente, mas, ainda assim, dezenas de outras foram propostas, afirmando-se, em síntese, que o candidato faria parte de uma conspiração para fraudar o povo americano. Nesse caso, identificou-se que havia um ponto de contato entre as ações: a advogada das partes, pessoa responsável pela articulação do ajuizamento das ações. A profissional foi multada em US$ 20 mil, diante do abuso praticado. Nas palavras de Clay D. Land, juiz distrital responsável pelo julgamento, quando um advogado ajuíza uma ação ou pratica ato processual sem base jurídica, quando age em prol de uma agenda política particular e quando ataca pessoalmente as partes opostas e desrespeita a integridade do Judiciário, abusa diretamente das suas prerrogativas profissionais.  No caso, entendeu-se que a advogada tinha o dever de saber que as ações eram abusivas e, ao ajuizá-las, teria violado diretamente a Rule 11.1 A solução não poderia ser outra, afinal, naquele caso, foi possível demonstrar que as partes formais eram meros instrumentos para as violações  ao direito perpetradas pela advogada. E mesmo que assim não fosse, como bem decidiu a corte norte-americana, em casos de litigância predatória, em que a abusividade é manifesta, é dever do advogado constatar a ilegalidade das pretensões dos clientes, tentando impedir, ou, ao menos, não participando do ato ilícito. Há, ainda, um segundo sentido para a litigância predatória: situações em que não se pretende fazer mal ao réu, mas, enriquecer à custa dele de uma maneira não legítima. Nesse caso, não se pretende destruir a vítima, mas obter uma vantagem ilegítima, que não seria considerada devida, caso não houvesse o abuso de direito. É desse tipo de ação que o tema 1.198 trata. E quem seria o predador? O consumidor, muitas vezes idoso e hipervulnerável, que busca ver garantido o seu acesso à justiça? Certamente não. Ainda que, individualmente, alguns consumidores possam ajuizar demandas abusivas, a litigância predatória de que se fala, a exemplo da birther litigation, é praticada por advogados que, acreditando que instituições financeiras (ou grandes empresas, sem geral) seriam suas "galinhas dos ovos de ouro", ajuízam centenas, milhares de ações consumeristas, sob a "fabricada" e falsa imagem de que estariam servindo à sua função constitucional. Isso, porém, não corresponde à prática. Em casos de litigância predatória, muitas vezes, os consumidores mencionados na inicial sequer sabem da existência dos processos. Sequer contrataram os advogados e, principalmente, nem mesmo receberão desses advogados as indenizações que venham a ter arbitradas em seu favor. Há situações de consumidores falecidos, apresentação de procurações com assinaturas falsificadas e duplicidades de ações: tudo articulado e arquitetado por alguns advogados que, mais do que abusar das ações individuais ajuizadas em nome dos seus pseudoclientes, abusam das próprias prerrogativas da nossa profissão. Nesse caso, o que o advogado faz é utilizar da parte (e dos seus interesses, muitas vezes, legítimos) como um meio para a consecução de um objetivo ilícito. Ele não serve de "intérprete" da parte, mas, apenas, manipula o direito desta, em manifesto abuso, com o objetivo de beneficiar a si próprio. Foi o que aconteceu, em Pernambuco, com as milhares de ações propostas por consumidores analfabetos, em face de instituições financeiras. Identificou-se, em sete comarcas do Estado, a ocorrência de captação ilegal de clientes, bem como "irregularidades nas procurações, apropriação indébita dos valores recebidos e uso de teses jurídicas fabricadas", por um único advogado que, sozinho, protocolou mais de dez mil ações, em menos de três anos.2 Com a finalidade de se esquivar da ordem de suspensão de ações envolvendo validade de contrato celebrado por consumidor analfabeto, determinada pelo Tribunal, em razão da instauração de IRDR, referido advogado reproduziu as ações suspensas em novas demandas, modificando a causa de pedir de anulação dos contratos, por vício formal, para "irregularidade na contratação das cestas de serviços". A solução encontrada foi a extinção em massa das ações, sem condenação dos autores nas penas de litigância de má-fé, bem como: i) a expedição de ofícios à OAB e ao MP, com o fim de apurar a conduta do advogado; e ii) a vedação ao ajuizamento de novas ações pelas partes, ressalvada a correção do vício: No caso dos autos, após detida análise, percebe-se uma visível captação ilícita de clientela, falta de consentimento livre e esclarecido do suposto cliente no ajuizamento das ações, utilização indevida do direito de ação, abuso do direito de litigar, irregularidade na confecção dos instrumentos procuratórios, falta de litígio real entre as partes, indícios de apropriação indébita de transações com a parte ré, não restando qualquer incerteza de que as ações nesta comarca carecem de pressupostos processuais mínimos, dentre eles a adequada representação processual, a vontade manifesta de litigar, o interesse processual, a individualização do caso concreto, a higidez da documentação e a devida observância da boa-fé processual. O Magistrado tem o poder-dever de prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da justiça e indeferir postulações meramente protelatórias (art. 139, III do CPC/15), as partes e seus procuradores devem observar seus deveres (art. 77, II do CPC/15) e todos devem atuar na prevenção da litigância de má-fé (art. 80, V do CPC/2015). ANTE O EXPOSTO, EXTINGO, sem resolução de mérito a presente ação, com base no art. 485, IV e VI do CPC. Oficie-se à OAB e ao Ministério Público Estadual, encaminhando-se cópia desta sentença e dos documentos anexos. Encaminhe-se cópia da sentença e dos documentos anexos ao NUMOPEDE; Considero inviável desde logo a repropositura nos termos acima, na forma do art. 486, § 1º, do Código de Processo Civil, que dispõe: "No caso de extinção em razão de litispendência e nos casos dos incisos I, IV, VI e VII do art. 485, a propositura da nova ação depende da correção do vício que levou à sentença sem resolução do mérito. Tal solução, embora apresente uma resposta à necessidade de se garantir o bom funcionamento da Justiça, parece ter confundido as figuras das partes e do advogado. Os fundamentos adotados reconhecem que quem violou a lei foi o representante, sem qualquer interferência dos consumidores, de forma que a extinção do processo foi consequência jurídica aplicada contra quem não violou a boa-fé. Ela seria correta apenas se tivesse havido coordenação dos atos entre partes e advogado, ou seja, se o uso abusivo do direito de ação se desse (também) no interesse do autor. Melhor solução parece ser aquela definida no IRDR do TJ/MS (que deu origem ao recurso especial objeto de debate) e que está sendo deliberado no Tema 1.198: autorizar ao juiz que, diante do indício da prática de litigância predatória, realize uma análise apurada do preenchimento das condições de admissibilidade da petição inicial, determinando, conforme o caso, a juntada de documentos básicos atualizados, como documentos pessoais do autor, instrumento de mandato e comprovante de residência. Não ocorrendo a juntada no prazo legal, o processo deverá ser extinto. A medida, além de conter a litigância predatória, protege o consumidor. Isso, inclusive, já pode acontecer em toda e qualquer ação. Afinal, compete ao juiz garantir e zelar pela regularidade do feito, viabilizando a entrega da prestação jurisdicional célere e efetiva. E é importante que seja assim, mesmo porque a litigância predatória macula e envergonha a advocacia e a imagem dos advogados, além de gerar inúmeros prejuízos (que muitas vezes não são sequer descobertos) aos indivíduos hipossuficientes que são ou têm seus dados manipulados. A proteção da prática da advocacia e a garantia do acesso à justiça, obviamente, devem ser preservadas. Uma forma de proteger a prática da advocacia, o prestigio dos profissionais que representam seus clientes, a confiança que estes devem ter naqueles que os representam e a própria garantia de acesso à justiça é justamente  vedar abusos que causam prejuízos não apenas às grandes empresas (em regra, as demandadas na litigância predatória), mas à própria prestação da Justiça,  profundamente comprometida pelos atos abusivos de determinados sujeitos, que se valem daquelas garantias constitucionais como escudo para a prática de ilícitos. ____________ 1 Rhoads vs. MacDonald. 670 F. Supp. 2d 1363 (M.D. Ga. 2009) Decided Oct 13, 2009. 2 Consta na sentença prolatada nos autos do processo nº 0000298-75.2021.8.17.2210, da 2ª Vara Cível da Comarca de Araripina, em 23.2.2022: "O referido advogado, sozinho, ajuizou a média de 413 (quatrocentos e treze) processos por mês. A título de comparação, a Trigésima Segunda Vara Cível da Capital - SEÇÃO A, possui um acervo de 371 (trezentos e setenta e um) processos. Desta forma, o advogado, por mês, ajuíza mais processos que uma unidade judiciária possui como acervo total. Para indicar o prejuízo de tal ajuizamento em massa, verifica-se que o advogado ajuizou 4.956 (quatro mil, novecentos e cinquenta e seis) ações em um ano. Em números fornecidos pela COPLAN, no ano de 2020, cada magistrado pernambucano proferiu 868 sentenças no ano. Desta forma, seria necessária a nomeação de 06 (seis) Juízes apenas para decidirem as causas do referido advogado. A título de exemplo, a Vara Única de Ipubi possuía, em 2019, 1.673 (mil, seiscentos e setenta e três) processos em tramitação. Atualmente, após o ajuizamento temerário e em massa promovido pelo referido causídico, a unidade encontra-se com 4.321 (quatro mil, trezentos e vinte e um) processos em tramitação, um aumento de quase 300%. O referido advogado ajuizou 2.600 (duas mil e seiscentas) ações somente no Município de Ipubi, município com a população de 31 mil habitantes. Desta forma, tal ajuizamento em massa é surpreendente e possui indícios de ilicitude, já que a comarca é considerada de pequeno porte, com uma população adulta (acima de 18 anos) abaixo de 20.000 habitantes. Atente-se para o fato de que a Comarca de Ipubi possui vários outros advogados atuantes, além de Defensor Público, o que denota ser ao menos curioso o fato de tão alta parcela de jurisdicionados serem patrocinados exclusivamente por este advogado, o qual, inclusive, sequer possuí escritório profissional na Comarca, sendo sediado na cidade de Ouricuri, cidade que fica a 33 km de distância." A sentença transitou em julgado, sem que se tenha interposto recurso.
Novidade introduzida pelo CPC/2015, a técnica do julgamento ampliado tem gerado bastante controvérsia na doutrina e na jurisprudência. O tema é tão polêmico que, em 2020, foi apresentado o Projeto de Lei 3055/2020, visando à revogação do art. 942 do CPC/15, que prevê o instituto.1  A possibilidade de reversão do resultado do julgamento não unânime da ação rescisória - e, também, do recurso de apelação - já estava prevista no CPC/73, ainda que por meio de outro caminho. No regime anterior, essa função era exercida pelos embargos infringentes, recurso cabível nas hipóteses de julgamento não unânime da apelação e da ação rescisória (art. 530 do CPC/73).  A opção do legislador de 2015 foi a de eliminar o recurso e tornar automática - sem a exigência de provocação da parte - e obrigatória a técnica de ampliação do colegiado, desde que presentes alguns requisitos.2 A inobservância da regra resulta na violação de competência funcional.  Por se tratar, realmente, de prosseguimento do julgamento, até a proclamação do resultado, é possível que aqueles julgadores que já votaram, modifiquem o seu voto (art. 942, §2º). Aliás, por essa mesma razão, o STJ tem entendido que, uma vez ampliado o colegiado, os novos julgadores devem analisar e manifestar-se sobre todas as questões trazidas em apelação, agravo de instrumento ou ação rescisória.3  Sempre que possível, o prosseguimento dar-se-á na mesma sessão, colhendo-se os votos dos demais julgadores do órgão colegiado que estejam presentes, nos termos do art. 942, §1º do CP, o que, evidentemente, vai ao encontro da necessidade de celeridade do julgamento. Se não for possível, o julgamento prosseguirá em nova sessão, a que serão convocados outros julgadores e será assegurado o direito à nova sustentação oral (art. 942, caput, in fine).  A questão controversa, objeto deste artigo, que surgiu na doutrina, com reflexos na jurisprudência, diz respeito ao uso pelo legislador do termo "sentença", que consta no art. 942, §3º, I do CPC/15, assim redigido: "A técnica de julgamento prevista neste artigo aplica-se, igualmente, ao julgamento não unânime proferido em: I - ação rescisória, quando o resultado for a rescisão da sentença." (g. n.)  Há quem sustente que ao termo "sentença" deve dar-se interpretação restritiva, de modo que só haveria julgamento ampliado da ação rescisória voltada a desconstituir sentença.  Ocorre que a interpretação literal do art. 942, §3º, I do CPC/15 levaria a que se excluísse a ampliação do colegiado no caso de ação rescisória de decisão interlocutória de mérito, que tem, conforme a própria expressão já denota, o conteúdo de sentença de mérito.  De acordo com esse posicionamento - em relação ao qual, desde logo, expressamos nossa discordância -, também não se aplicaria a técnica de julgamento ampliado no caso de ação rescisória que vise à desconstituição de acórdão ou decisão monocrática do relator.  Na doutrina, Alexandre Freitas Câmara e Araken de Assis adotam essa posição, sob o fundamento de que a ação rescisória contra acórdão ou decisão monocrática do relator já seria julgada por órgão de composição mais ampla, tal como previsto no regimento interno do Tribunal, de modo que não haveria sentido em se fazer mais uma ampliação, exigindo-se o "colegiado do colegiado".4  Esse raciocínio, no fundo, coloca o Regimento Interno como diretriz de interpretação da lei: se o Regimento Interno dispõe de tal forma, então não se aplica tal artigo da Lei. Em outras palavras, subordina-se a Lei ao Regimento Interno dos Tribunais, o que, evidentemente, é inadmissível, já que consiste numa inversão.  A 3ª Turma do STJ seguiu esse entendimento, a nosso ver, equivocado. No julgamento do REsp 1.942.682/RS, de relatoria da Min. Nancy Andrighi, ocorrido em 1º/10/2021, ficou consignado que: "se o regimento interno do Tribunal de 2º grau contiver previsão no sentido de que as ações rescisórias dos acórdãos serão de competência dos órgãos fracionários de maior composição a que se refere o art. 942, §3º, I, do CPC/15, não devera´ haver ampliação do quórum de deliberação, técnica restrita, pois, às ações rescisórias de sentença" (g.n.).  Ou seja: fica condicionada a aplicabilidade da lei processual a uma previsão regimental, o que, segundo pensamos, fere o princípio da legalidade. Afinal, o regimento interno só pode dispor acerca de questões procedimentais, afeitas ao funcionamento do Tribunal, como, por exemplo, em relação a ordem de sustentação oral.5  Segundo a rel. Min. Nancy Andrighi, "em inúmeros Tribunais de 2º grau de jurisdição, as ações rescisórias de sentenças e as ações rescisórias de acórdãos são julgadas por órgãos fracionários distintos. Na forma de seus respectivos regimentos internos, as rescisórias das sentenças são usualmente de competência de Turmas ou Câmaras compostas por 03 julgadores, ao passo que as rescisórias dos acórdãos são normalmente de competência de Seções ou de Grupos de Turmas ou Câmaras compostas por 05, 07 ou mais julgadores ou, até mesmo, de Órgãos Especiais ou Plenos".6  Esse argumento desloca, indevidamente, o foco do que nos parece ser a essência da regra, que é a falta de unanimidade na prolação da decisão, para o número de componentes do órgão julgador, o que é irrelevante ou secundário (salvo quando o acórdão rescindendo já é proferido pela Corte Especial).  Além disso, não se sustenta no plano fático, pois parte da premissa equivocada de que toda ação rescisória contra acórdão seria julgada por órgão de maior composição, no Tribunal, que aquela voltada a desconstituição de sentença. Em verdade, em vários Tribunais de Justiça o órgão competente para julgar ação rescisória de sentença, de decisão do relator e de acórdão das Câmaras é o mesmo. Além disso, há Tribunais de Justiça, cujo Regimento Interno prevê, acertadamente, a possibilidade de ampliação do colegiado mesmo de ação rescisória julgada por órgão de maior composição (Câmaras Reunidas/Seção).  O resultado da pesquisa que fizemos nos Regimentos Internos dos Tribunais de Justiça dos 26 Estados e do Distrito Federal e territórios ilide a conclusão trazida no acórdão acima referido. O critério adotado pelos Tribunais de Justiça, para a distribuição da competência para o julgamento de ação rescisória, não se fundamenta na distinção entre sentença e acórdão, mas sim na falta de unanimidade e no órgão prolator da decisão rescindenda. Nesse sentido, é a previsão regimental dos seguintes Tribunais de Justiça: TJAL (art. 43, IX, 'c' e art. 46, III); TJAM (art. 202, I e II); TJAP (art. 14, I, 'f' e art. 17, II, 'c'); TJCE (art. 13, XI, 's' e art. 16, I, 'i' e 'j'); TJDF (art. 21, IV, embora contraditório com o art. 13, I, 'i'); TJGO (art. 15, VII e art. 16, I); TJMS (art. 127, I, 'i' e art. 128, I, 'c'); TJPA (art. 24, XIII, 'f' e art. 29-A, I, 'c' e 'd'); TJPB (art. 6º, XXVIII, 'g'); TJPI (art. 81, I, 'n' e art. 83, I, 'b'); TJRJ (art. 5º-A, IV, e art. 6º-E, I, 'c'); TJTO (art. 7º, I, 'h' e art. 10, II, 'c').  Destacam-se os seguintes Tribunais de Justiça, cujo Regimento Interno estabelece, que, no caso de aplicação do art. 942, §3º, I, o julgamento da ação rescisória iniciado na Câmara Reunida/Seção continuará no Órgão Especial: TJAL (art. 43, IX, 'a'); TJPB (art. 6ª, XLIII e art. 189-A, §3º, I); TJPA (art. 142, §3º, 'a'); TJPI (art. 266, §2º); TJRJ (art. 3º, 'h'); TJTO (art. 116).  Admitem a ampliação de colegiado dentro da própria Câmara ou Seção, convocando integrantes de outra Câmara ou Seção em número suficiente para garantir a possibilidade de inversão do resultado inicial, o Regimento Interno dos seguintes Tribunais de Justiça: TJDF (art. 120, i); TJGO (art. 172); TJMS (art. 55, §4°)  Do ponto de vista dogmático, deve-se dar o máximo rendimento à Lei.7  Interpretações como aquela do STJ no REsp 1.942.682/RS, uma vez que não encontram reflexo na realidade, esvaziam, pelo menos parcialmente, o conteúdo do art. 942, §3º, I do CPC/15. Se a única razão para não aplicar a técnica do art. 942 ao julgamento de ação rescisória contra acórdão/decisão monocrática/decisão interlocutória é a de que o julgamento sempre transcorre em órgão de maior composição - e como demonstrado, não ocorrem-, então o art. 942, §3º, I do CPC/15 fica comprometido.  A nosso ver, o legislador ao utilizar o termo "sentença" disse menos do que queria/deveria - minus dixit quam voluit-, de modo que se deve dar interpretação extensiva ao termo.8-9 Deve-se, assim, corrigir o equívoco cometido pelo legislador, para que a técnica prevista no art. 942 aplique-se tanto à ação rescisória de sentença quanto à de decisão interlocutória, bem como à de acórdão e de decisão monocrática.  Há, nesse sentido, interessante acórdão do TJSP:  "o que motiva o julgamento estendido em ação rescisória, 'quando o resultado for a rescisão da SENTENÇA', é a preocupação de resguardar a autoridade da coisa julgada, que só pode ser desconstituída em caráter excepcional, não importando em qual instância da justiça se tenha formado, dada a unidade do Poder Judiciário no que concerne à função jurisdicional, pois isso em nada afeta a importância e autoridade da coisa julgada.  Disso decorre a nossa conclusão pelo sentido teleológico e sistemático da expressão 'RESCISÃO DA SENTENÇA', pela motivação do conjunto dessas disposições como de 'DESCONSTITUIÇÃO DA COISA JULGADA', não importando em que instância da justiça tenha de formado, porque não faria nenhuma diferença em termos da razão e objetivo único e essencial da norma de conferir maior proteção à coisa julgada. A despeito da definição legal dos artigos 203 e 204 do Código de Processo Civil em vigor, de SENTENÇA como pronunciamento do JUIZ e ACÓRDÃO como julgamento colegiado proferido pelos tribunais, o vocábulo SENTENÇA por vezes é também utilizado com o significado genérico de DECISÃO JUDICIAL, abrangendo uns e outros, a partir do sentido etimológico e da acepção comum de julgamento, opinião, do latim 'sentire', tecer opinião ou juízo, sentir, perceber, em suma, julgar, e SENTENÇA como ato ou efeito de julgar" (g. n.).  O relator, então, questiona: "O que justificaria maior dificuldade para a desconstituição de SENTENÇA e menor para a desconstituição de ACÓRDÃO?" E, ao fim, responde: "Não faz nenhum sentido!".10  A nosso ver, também, não há razões jurídicas que justifiquem o discrimen que gera a interpretação dada por parte da doutrina e pelo acórdão isolado, acima mencionado, da 3ª Turma do STJ.  Não desconsideramos que a ampliação do colegiado nessas circunstâncias possa, se adotada, prejudicar a celeridade do julgamento. Muitas, nesse sentido, foram as críticas dirigidas pela doutrina ao instituto da ampliação do colegiado.  A crítica à técnica do julgamento ampliado que se baseia simplesmente na preocupação, genericamente expressada, com a celeridade dos julgamentos, sem levar em conta análises estatísticas, também, a nosso ver, não deve prevalecer.  O problema da morosidade nos julgamentos não é atual, não é exclusivo do nosso Judiciário e, tampouco, pode ser imputado a um determinado recurso ou técnica de julgamento.11 O problema é macro e não se resolve simplesmente alterando a legislação, seja para substituir um recurso por uma técnica de julgamento, seja para excluí-la.  Sabemos que diante da realidade do Poder Judiciário brasileiro, em que há uma carga de trabalho demasiada, o tempo dispendido com a ampliação da colegialidade, "a reverência perante a maioria"12, "a expectativa de reciprocidade"13 podem gerar um efeito contrário: aversão ao dissenso. Tentar impedir isso seria um trabalho de Sísifo. Cabe-nos, apenas, apresentar soluções viáveis e depositar confiança no "custo" da ciência e consciência dos magistrados. A técnica de julgamento prevista no art. 942 do CPC/15 tem, em tese, potencial de fortalecer o princípio da colegialidade, no plano interno do órgão colegiado, reforçar a consistência da fundamentação e unificação do entendimento, fortalecendo a autoridade moral do julgado.  Para que esse potencial possa se concretizar, um dos "caminhos" possíveis e desejáveis é o que passa a dar interpretação extensiva ao termo "sentença", previsto no art. 942, §3º, I do CPC/15, para que, assim, a técnica de ampliação do colegiado aplique-se tanto à ação rescisória de sentença quanto à de decisão interlocutória, bem como à de acórdão e de decisão monocrática. __________ 1 O projeto apresentado conta com a seguinte redação: "Art. 1º Fica revogado o art. 942 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 - Código de Processo Civil. Art. 2º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação". O Deputado Federal Reinhold Stephanes Jr., autor do projeto, na sua justificativa, elenca entre as desvantagens da técnica do julgamento ampliado, o fato de haver "distinção da amplitude da matéria que enseja a ampliação do colegiado: na apelação, basta a divergência, que pode abranger inclusive as preliminares ao mérito; no agravo de instrumento, as divergências sobre admissibilidade, o desprovimento ou a anulação por maioria, em tese, não justificam o emprego da técnica. Na ação rescisória, a matéria é remetida "a órgão de maior composição", o que dá a impressão de que, exclusivamente nesta hipótese, será realizado novo julgamento, uma espécie de remessa necessária". Disponível aqui, p. 3. Em 10.2.2021, o Projeto de Lei foi recebido na Comissão de Constituição e Justiça. Até o momento, o projeto não foi votado. 2 Nesse sentido, decidiu o STJ: "o art. 942 do CPC/2015 não estabelece nova espécie recursal, mas técnica de julgamento, a ser aplicada de ofício, independentemente de requerimento das partes, com o objetivo de aprofundar a discussão a respeito de controvérsia, de natureza fática ou jurídica, acerca da qual houve dissidência. (.) 3. Recurso Especial provido". (STJ, REsp n. 1.846.670/PR, 2ª T., j. 17.12.2019, rel. Min. Herman Benjamin, DJe 19.12.2019).  Não nos parece adequado tratar dessa técnica de julgamento como "embargos infringentes de ofício" ou "recurso de ofício" ou, ainda, "espécie de embargos infringentes com remessa necessária", como pretendem, respectivamente, Jordão Violin (Dupla conformidade e julgamento monocrático de mérito: os poderes do relator no Código de Processo Civil. In: Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, vol. 267, 2017), José da Fonseca Costa (Pequena história dos embargos infringentes no Brasil: uma viagem redonda. In: Novas tendências do processo civil. Estudos sobre o projeto do novo Código de Processo Civil. Baseado no relatório apresentado pelo Deputado Paulo Teixeira, na Comissão Especial presidida pelo Deputado Fábio Trad. JusPodivm: Salvador: 2014, vol. II, p. 399) e Lenio Streck e Ricardo Augusto Herzl (O que é isto - Os novos embargos infringentes? Uma mão dá e a outra... Consultor Jurídico, 13 jan. 2015. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-jan-13/isto-novos-embargos-infringentes-mao-outra. Acesso em: 16.3.2023). 3 "A natureza jurídica do instituto previsto no art. 942 do CPC/15, substituto do revogado embargos infringentes, é de técnica de julgamento, por meio da qual a sessão de julgamento iniciada pelo colegiado original retoma após a convocação de novos julgadores, e não de recurso com efeito devolutivo. Diante desse panorama, conclui-se que a incidência da técnica de julgamento ampliado do art. 942 do CPC/15 não limita os julgadores convocados à análise apenas da matéria decidida de forma não unânime pelo quórum original, deve, pois, ser apreciado todo o conteúdo da apelação. Precedentes desta e. Terceira Turma. Hipótese em que, ante o julgamento não unânime da apelação, houve a ampliação do quórum na forma do art. 942 do CPC/2015. Entretanto, na continuação do julgamento foi excluído o tema sobre o qual o colegiado original havia sido unânime, limitando-se os novos julgadores ao exame apenas da matéria em que houve divergência. Assim, impõe-se o retorno dos autos à origem, para que seja proferido novo julgamento, no qual deverão ser analisadas todas as alegações suscitadas nas razões das apelações interpostas. Recurso especial de ROSANA DAUDT PRIETO provido, com o retorno dos autos à origem. Recurso especial de CAIXA DE PREVIDÊNCIA DOS FUNCIONÁRIOS DO BANCO DO BRASIL - PREVI prejudicado". (STJ, REsp n. 1.934.178/DF, 3ª T., j. 14.9.2021, rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 16.9.2021). 4 Alexandre Freitas Câmara defende que: "No caso de ação rescisória contra sentença, porém, a competência originária será sempre de órgãos fracionários de menor composição, sendo então o caso de fazer incidir o disposto no art. 942 do CPC" (g. n.). Alexandre Freitas Câmara. A ampliação do colegiado em julgamentos não unânimes. In: Revista de Processo, vol. 282, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p. 259-260. Araken de Assis sustenta que: "a menção à 'sentença' há de ser interpretada restritivamente. É o ato emitido em conformidade com o art. 487, I e II, c/c art. 203, § 1.º. Não há necessidade de ampliação do quórum quando o objeto da rescisória for acórdão ou decisão singular do relator. E o motivo é simples: o julgamento da rescisória desses atos já ocorre 'em órgão de maior composição previsto no regimento interno' (art. 942, § 3.º, I, in fine) - grupo de câmaras -, composto de oito ou mais integrantes. Não seria razoável ampliar ainda mais o colégio" (g. n.). Ação rescisória. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 553-554. Concluindo nesse mesmo sentido, sem, contudo, apresentarem suas razões: "Se a rescisão for de acórdão, não incide o disposto no art. 942 do CPC" (g. n.) Fredie Didier Junior e Leonardo Carneiro da Cunha. Curso de Direito Processual Civil: meios de impugnação às decisões judiciais e processos nos tribunais. 15ª ed. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 101. 5 O critério que diferencia o regimento interno da lei não é o de hierarquia normativa, senão o do âmbito em que o regimento interno está circunscrito: o de aspectos procedimentais de funcionamento do Tribunal. É essa a lição de José Frederico Marques, de cujo artigo "Dos Regimentos Internos dos Tribunais", in: Nove ensaios jurídicos em homenagem ao centenário do Tribunal de Justiça de São Paulo. São Paulo: Lex Editora, 1975, p. 83-84, extrai-se o seguinte trecho: "É que, tirando da própria Lei Maior a sua força de regra imperativa, o regimento não está vinculado à lei forma naquilo que constitua objeto da vida interna do Tribunal. No campo do ius scriptum, tanto a lei como o cânon regimental ocupam a mesma posição hierárquica. A lei não se sobrepõe ao regimento naquilo que a estes cumpre disciplinar: ratione materiae é que a Lei e o Regimento se distinguem, no plano das fontes formais do Direito Objetivo". 6 (STJ, REsp n. 1.942.682/RS, 3ª T., j. 28.9.2021, rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 1º.10.2021). 7 "O jurista há de ter sempre diante dos olhos o escopo da lei, quer dizer, o resultado prático que ela se propõe conseguir. A lei é um ordenamento de relações que mira a satisfazer certas necessidades e deve interpretar-se no sentido que melhor responda a esta finalidade e, portanto, em toda a plenitude que assegure tal tutela". Interpretação e aplicação das leis. Trad. Manuel A. D. de Andrade. 3ª ed. Coimbra: Arménio Amado, 1978. p. 137.  8 No mesmo sentido, sustentam: José Miguel Garcia Medina, Flávio Cheim Jorge e Mariana Aguiar Daher, bem como Sergio Shimura e Wanessa de Cássia Françolin. Para aqueles, "a utilização do termo 'sentença' no dispositivo legal se trata de um equívoco por parte do legislador, pois não há motivos para que haja tal distinção. A título exemplificativo, considere-se que uma sentença é substituída pelo acórdão quando do julgamento de uma apelação, nesse caso, na hipótese de propositura de eventual ação rescisória, não haveria que se falar em ampliação do colegiado apenas e tão somente porque o pronunciamento atacado é um acórdão e não uma sentença?". Flávio Cheim Jorge e Mariana Aguiar Daher. 5 anos de vigência da técnica de ampliação do colegiado: uma análise sobre sua aplicação e seus aspectos controversos. In: O CPC de 2015 visto pelo STJ. Teresa Arruda Alvim, (et al.), coord. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 729-730. Segundo Sergio Shimura e Wanessa de Cássia Françolin, "é indiferente para a análise da aplicação da técnica do julgamento estendido pois esta é uma questão prévia, de modo que se tratando de rescisória ajuizada contra decisão de juízo singular de primeiro grau, em tese cabível será a ampliação do colegiado, a despeito da expressão utilizada pelo Código ser apenas 'sentença'". Colegiado do colegiado: discussão sobre o julgamento estendido previsto no art. 942 do CPC. In: Revista de Processo, vol. 318, São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 224. Essa é a posição também de José Miguel Garcia Medina: "Segundo o § 3º do artigo 942 do CPC/2015, a técnica aplica-se também ao julgamento não unânime proferido em ação rescisória, quando houver rescisão da sentença (e, embora isto não esteja escrito no referido texto, também de acórdão), e em agravo de instrumento, quando houver reforma da decisão de mérito.)". (José Miguel Garcia Medina. Colegiado do colegiado: técnica de julgamento ampliado e jurisprudência do STJ. Acesso em 19.01.2022). Por outras razões, veja-se o que afirma, em monografia sobre o tema, Bruna Rivaroli: "Importante registrar que, quando o Código de Processo Civil de 2015 menciona 'sentença' (artigo 942, § 3º, I) é possível interpretar que se aplica tanto para a rescisão de sentença propriamente dita, como para rescisão de decisão monocrática de relator e, ainda, para rescisão de acórdão.  Um fundamento para essa interpretação é o de que, nos termos do artigo 1.008 do Código de Processo Civil de 2015, quando o processo for submetido ao tribunal, a decisão impugnada será substituída pela decisão proferida naquele órgão. Em sua essência, não existe diferença entre sentença e acórdão; apenas por ser posterior, substitui aquela. Outro fundamento, de caráter mais prático, é o fato de ser muito difícil que um processo apenas transite em julgado com a sentença de primeira instância, sem qualquer recurso interposto pelas partes". Ampliação da colegialidade: técnica de julgamento do artigo 942 do Código de Processo Civil. São Paulo, 2017, p. 87. 9 Francesco Ferrara ensina que "A interpretação extensiva, pelo contrário, destina-se a corrigir uma formulação estreita demais. O legislador, exprimindo o seu pensamento, introduz um elemento que designa espécie, quando queria aludir ao gênero, ou formula para um caso singular um conceito que deve valer para toda uma categoria". Interpretação e aplicação das leis. Trad. Manuel A. D. de Andrade. 3ª ed. Coimbra: Arménio Amado, 1978, p. 137. 10 "EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. Ação rescisória. Julgamento não unânime. Necessidade de ampliação do colegiado. Código de Processo Civil, artigo 942, § 3º, I; Regimento Interno, artigo 40, IV, "a" e "d". Embargos acolhidos para anular o acórdão anterior, julgamento que será renovado, aumentada para nove juízes a composição do órgão julgador, em persistindo a não-unanimidade". (TJSP, Embargos de Declaração Cível 2210529-36.2018.8.26.0000, 6º Grupo de Direito Público, j. 14.05.2020, rel. Des. Edson Ferreira, DJe 15.05.2020). 11 Mantém-se atuais os equívocos elencados por Barbosa Moreira cometidos por aqueles que lançam o argumento da  celeridade dos julgamentos sem dados empíricos, como se fosse uma carta "super-trunfo". Cf. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O problema da duração dos processos: premissas para uma discussão séria. In: Temas de Direito Processual - nona série. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 367. 12 VIOLIN, Jordão. Colegialidade, polarização de grupo e integridade nos tribunais. In: Revista de Processo, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 268, 2017, versão digital, p. 13. 13 Ibidem.
Decisões judiciais podem ser vistas como normas jurídicas resultantes do processo de concretização do direito. Esse processo compreende a interpretação de princípios e regras e considera a dogmática jurídica No âmbito dos tribunais superiores, estas normas, muito frequentemente, irradiam efeitos jurídicos para toda a sociedade. Isso ocorre, por exemplo, no controle concentrado de constitucionalidade e em relação aos precedentes vinculantes. São normas dotadas de caráter geral, porque não se destinam apenas às partes envolvidas na demanda, e, em certa medida, abstrato (não inteiramente, já que emanam de um caso concreto e estão a este caso ligadas),  pois servem de orientação (ou pauta de conduta) para a solução de outros casos enquadráveis na mesma moldura fática. Justamente em razão desses efeitos gerais e razoavelmente abstratos (ou melhor, generalizáveis) é que, em situações excepcionais, deve haver "manipulação ou calibração da forma como esses efeitos se operarão no mundo empírico"1. Isso é feito por meio da modulação, sob o viés temporal. Modulação é regra jurídica cujo balizamento é conferido por princípios, especialmente o da segurança jurídica. A segurança jurídica tem relação direta com a própria existência do direito. Nas mais variadas concepções doutrinárias sobre o conceito de sistema jurídico, o princípio da segurança jurídica costuma ser tratado como vetor axiológico para a interpretação da Constituição e das leis2. Luis Recasens Siches destaca a relação entre segurança e o sistema jurídico, afirmando que "sem segurança não há Direito, nem bom, nem mau, nem de nenhuma espécie"3, porque "segurança é o valor fundamental do jurídico, sem o qual não pode haver Direito".4 Direito seguro é direito confiável. A sociedade precisa confiar que os atos praticados com base no sistema jurídico de hoje não sejam ameaçados por eventuais mudanças futuras. Ou seja, às pessoas deve ser garantido o direito de "prever, em alto grau, as consequências jurídicas dos comportamentos que adotarem"5. Contudo, surge a questão: nas decisões sobre matéria tributária, quem são os destinatários do princípio da segurança jurídica quando se trata da aplicação da regra de modulação? Seriam apenas os particulares? Ou o Estado também se beneficia desse princípio, possibilitando a aplicação da modulação em seu favor? Uma das maiores contribuições do direito à sociedade é a resolução de conflitos. E, para que a sociedade confie no direito, é fundamental que o sistema jurídico apresente congruência, refletida em decisões que estejam alinhadas à Constituição, às leis e à jurisprudência. O Estado, como entidade central do sistema político, é parte integrante da sociedade. Assim como os bancos, as universidades e os hospitais, que, no âmbito do sistema social, representam os sistemas econômico, educacional e de saúde, respectivamente. O Estado não opera isoladamente. Ele é constantemente influenciado por decisões judiciais, que podem validar ou refutar suas ações. Nesse contexto, para que as políticas públicas possam ser implementadas, é fundamental que haja previsibilidade. O próprio sistema jurídico impõe o agir programado do Estado, estabelecendo, por intermédio do direito financeiro, regras e princípios ligados à gestão do orçamento público (por exemplo, o princípio do equilíbrio orçamentário). Portanto, o princípio da segurança jurídica também se aplica em favor do Estado para fins de modulação, mas não com a mesma medida da segurança que o direito deve proporcionar aos particulares. Afinal, como afirmou Marcelo Neves, "os princípios variam conforme a esfera de comunicação em que se aplicam"6, e com relação à segurança jurídica não é diferente. Por se tratar de norma principiológica, sua compreensão deve partir da análise das diferentes capacidades de reação frente às comunicações produzidas pelo sistema jurídico. Com efeito, os particulares estão mais expostos a danos que o Estado, pois enquanto a eles são atribuídos direitos e deveres, às organizações do sistema político são conferidos poderes-deveres. Isso quer dizer que quando os tribunais mudam de posição, e a mudança ocorre em sentido contrário aos interesses da Fazenda Pública, o Estado poderá compensar os "prejuízos" financeiros por meio do exercício da competência legislativa voltada a questões orçamentárias. Já o particular não tem mecanismos de compensação. Qualquer prejuízo será suportado por ele, e ninguém mais. Por isso é que se pode ter a impressão de que a modulação seria um instituto pensado para favorecer exclusivamente o particular. Mas não é nem pode ser exatamente assim. Dado que a segurança jurídica é uma premissa sob a qual se estabelecem regras para proteger tanto o Estado quanto os particulares, a modulação pode ser aplicada em favor do Estado, mas partindo de outros critérios. Em outras palavras: se as medidas da segurança jurídica são diferentes, os critérios para a modulação também diferem. Quando as expectativas normativas mudam por obra dos tribunais, ao Estado deve ser conferido prazo para cumprimento das etapas do processo legislativo voltado ao estabelecimento do equilíbrio orçamentário. Imagine-se, por exemplo, a decisão sobre ser um tributo, que vinha sendo cobrado há tempos do particular,  inconstitucional. A modulação, neste caso, deve ocorrer por meio do estabelecimento de regra de transição, a fim de se conferir "tempo" para que o sistema político (no qual está inserido o Estado) possa produzir leis capazes de impedir o desequilíbrio nas finanças públicas, mantendo-se, sempre, os efeitos ex tunc da decisão contrária aos interesses fazendários, para que não se prejudique o direito dos particulares à restituição dos valores que foram pagos a título do tributo ilegal/inconstitucional. Por outro lado, se a mudança causar prejuízos ao particular - como no cenário inverso do exemplo anterior, em que um tributo que era considerado inexigível passa a ser considerado devido, porque tido como constitucional -, deve haver modulação para atribuição de efeitos ex nunc à nova orientação, "sob pena de se comprometer a segurança jurídica, destruindo-se a confiança dos jurisdicionados no Poder Judiciário"7. Percebe-se, com clareza, nesse exemplo, que a modulação aqui se faz de uma maneira completamente diferente, de molde a proteger alguém que não tem outras maneiras de criar segurança jurídica para si mesmo, a não ser a possibilidade de haver decisão do poder judiciário no sentido de que a nova regra não o atingirá. Evidentemente, trata-se de instituto extremamente novo, que está sendo compreendido, paulatinamente, por juristas, advogados e magistrados. Este sucinto artigo pretende ser uma contribuição, já que se constitui em elemento apto a gerar reflexão e discussão na comunidade jurídica. Relevante é que se tenha sempre em mente a sua única finalidade: preservar a segurança jurídica, de molde a que nenhum ente da sociedade seja prejudicado por haver uma mudança de regras do jogo no meio da partida. __________ 1 ALVIM, Teresa Arruda. Modulação na alteração da jurisprudência firme ou de precedentes vinculantes. 2.ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p.13. 2 Conforme Roque Antonio Carrazza, "a segurança jurídica é ínsita à própria ideia de Direito", que revela "uma das manifestações do nosso Estado Democrático de Direito" porque "visa a proteger e preservar as justas expectativas das pessoas", impedindo, assim, a "adoção de medidas legislativas, administrativas ou judiciais capazes de frustrar-lhes a confiança que depositam no Poder Público (CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 32.ed., rev., ampl. e atual. São Paulo: Malheiros, 2019, p.344). 3 No original: "Sin seguridad no hay Derecho, ni bueno, ni malo, ni de ninguna clase". (SICHES, Luis Recasens. Tratado General de Filosofía del Derecho. 19.ed. México: Editorial Porrúa, 2008, p.224). 4 No original: "seguridad es el valor fundamental de lo jurídico, sin el cual no puede haber Derecho". (SICHES, Luis Recasens. Tratado General de Filosofía del Derecho. 19.ed. México: Editorial Porrúa, 2008, p.224). 5 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 32.ed., rev., ampl. e atual. São Paulo: Malheiros, 2019, p.344. 6 E prossegue o autor: "o direito geral de liberdade, o direito geral de igualdade, a dignidade humana, , assim como também a igualdade e a liberdade econômicas, o princípio constitucional da concorrência, a liberdade religiosa, o direito à educação podem sofrer leituras as mais diversas a partir da esfera social em que o problema constitucional venha a surgir. (...) a compreensão do direito geral de liberdade a partir do sistema econômico pode colidir com a interpretação desse direito na esfera religiosa ou familiar. Da mesma maneira, a visão familiar, educacional ou religiosa do princípio da igualdade pode opor-se à concepção econômica ou política do mesmo princípio. Também a autocompreensão econômica do princípio da livre iniciativa pode chocar-se com a percepção desse princípio no sistema político, educacional, científico ou religioso. Por fim, a compreensão do princípio da dignidade humana varia conforme as perspectivas de cada sistema social". (NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais como diferença paradoxal do sistema jurídico. 3.ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2019, p.162-164). 7 E prossegue o autor: "Temos para nós que o Tribunal Superior (STF, STJ. TST e TSE) ao alterar sua jurisprudência consolidada, mais que a faculdade, tem o inafastável dever de limitar os efeitos temporais da nova orientação, preservando fatos ou situações ocorridos sob a égide da orientação anterior, bastando, para tanto, estejam presentes 'razões de segurança jurídica ou excepcional interesse social' (art. 27, in fine, da Lei 9.868/1999), sopesáveis caso a caso. Faz coro com o art. 27 da lei 9.868/1999 o art. 24 da LINDB, que veda, em síntese, que as modificações de critérios jurídicos estendam seus efeitos sobre situações já consolidadas, de modo a prejudicar as pessoas que nelas se encontram". (CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 32.ed., rev., ampl. e atual. São Paulo: Malheiros, 2019, p.292-293).
Como a recentíssima alteração de posicionamento nos faz refletir sobre a importância de avaliar os riscos da estratégia processual? Dia desses, numa roda de conversa, foi dito: "Médico, contador e advogado: algum desses profissionais, um dia, salvará sua vida". É claro que o ditado não deve ser compreendido de forma literal. Isso, porém, nos leva à reflexão: a advocacia, assim como tantas outras profissões seculares, conduz a uma grande responsabilidade. O advogado é responsável por informar e defender os interesses daqueles que lhes confiam seus direitos personalíssimos, suas empresas, seu patrimônio etc. Nos Tribunais, uma boa orientação jurídica consiste não apenas em definir a estratégia processual que apresenta maiores chances de êxito, mas, também, em alertar o cliente acerca dos riscos envolvidos. Trata-se do dever profissional de informação1 disposto no artigo 9º do Código de Ética e Disciplina da OAB2, segundo o qual é dever do advogado "informar o cliente, de forma clara e inequívoca, quanto a eventuais riscos da sua pretensão, e das consequências que poderão advir da demanda". A tarefa nem sempre é simples. Afinal, o exame cuidadoso dos riscos exige o contínuo estudo e atualização, sobretudo do entendimento jurisprudencial que, não raro, altera perspectivas antes consideradas sedimentadas. É o caso, por exemplo, da condenação em honorários no Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica (IDPJ). Sabe-se que a todos é conferido o direito de "postular em juízo. Mas o jurisdicionado há de atuar sabendo que arcará com as despesas processuais na medida em que não tenha razão quanto à posição que defende no processo"3. Trata-se do princípio da causalidade: aquele que dá causa à propositura da demanda, responde pelas despesas ocasionadas pelo processo. Esta é a regra. A fixação de honorários de sucumbência em incidente processual (dentre eles, o IDPJ), entretanto, não é a regra, mas a exceção. O IDPJ consiste em incidente que objetiva discutir se é, ou não, caso da pessoa física (ou da pessoa jurídica, em caso de desconsideração inversa) responder com seu patrimônio próprio pelas dívidas da empresa devedora (ou do sócio devedor, na hipótese inversa). A desconsideração, em si mesma, não é instituto novo. Contudo, a reforma da CPC, em 2015, dispôs sobre o procedimento a ser adotado para que o juiz decida a seu respeito, de modo a prestigiar o prévio contraditório. A lei passou a admitir sua instrumentalização pela via incidental, em apenso ao processo principal. A partir daí, surgiu a discussão acerca da (im)possibilidade de condenação em honorários à parte sucumbente no IDPJ. Importante frisar que o debate mais acirrado diz respeito ao cabimento de condenação em honorários na hipótese de improcedência do incidente. Isso porque, já há entendimento pacífico sobre a viabilidade de fixação de verba sucumbencial nos "casos em que os incidentes são capazes de extinguir ou alterar substancialmente o próprio processo principal"4. A fixação de honorários em caso de improcedência do IDPJ foi decidida em junho de 2020 pelo STJ, no bojo do Recurso Especial nº 1.845.536 - SC. Na hipótese concreta, a pessoa jurídica executada havia sido encerrada irregularmente e sem deixar bens passíveis de penhora, o que levou o exequente a instaurar o incidente contra seus sócios. O STJ, por entender que os sócios, mesmo vencedores do incidente, deram causa ao pedido de desconsideração, porque deixaram de encerrar a atividade empresária de forma regular, afastou a condenação em honorários, mesmo diante da improcedência do IDPJ. Na ocasião, a relatora Min. Nancy Andrighi destacou que o princípio da sucumbência não se contrapõe ao princípio da causalidade, sendo necessária a "articulação"5 de ambos, para que se alcance a "razão de justiça distributiva". O Min. Marco Buzzi também já teve a oportunidade de enfrentar a matéria. Há poucos meses (em abril de 2023), ao julgar o Recurso Especial nº 2.054.280 - SP, concluiu pelo descabimento de condenação em honorários. Na origem, o incidente havia sido parcialmente provido: foi afastada a responsabilização das demais empresas do Grupo devedor e, em contrapartida, foram incluídos os sócios da executada na execução de título extrajudicial que tramitava em apenso. A fundamentação adotada pelo Min. Relator, no entanto, fixou-se na ausência de previsão normativa para condenação sucumbencial em incidente (art. 85, §1º do Código de Processo Civil). O Ministro destacou que o STJ "possui entendimento consolidado no sentido de que, por ausência de previsão normativa, não cabe condenação em ônus sucumbenciais em incidentes processuais, tais como o incidente de desconsideração da personalidade jurídica"6. Ainda que não se tratasse de precedentes vinculantes, esse era o contexto jurisprudencial até abril de 2023, com base no qual o advogado, ao traçar sua estratégia processual em relação à instauração do incidente, tinha razões para acreditar que não haveria risco de condenação ao pagamento de honorários de sucumbência7. A nosso ver, a ausência de condenação em honorários, nos casos de improcedência do IDPJ, induz ao encorajamento da instauração desarrazoada do incidente, que deve ser medida excepcional. Isso, porém, não é suficiente para conduzir imediatamente à conclusão de que deve haver a condenação sucumbencial. É imprescindível que, tal como flagrado pela Min. Nancy, a situação seja examinada de forma a articular a sucumbência e a causalidade. Afinal, "é justo que quem tornou necessário o processo suporte-lhe o encargo econômico"8. Seja como for, o contexto jurisprudencial indicava que a improcedência do IDPJ não conduziria a parte perdedora à condenação em verba honorária. Ocorre que, no recentíssimo julgamento do Recurso Especial nº 1.925.959 - SP9, a Terceira Turma do STJ, por maioria de votos, concluiu pela possibilidade de fixação de honorários de sucumbência em caso de improcedência do IDPJ. Originariamente, era relator do recurso, o saudoso Min. Paulo de Tarso Sanseverino, substituído pelo Min. Villas Bôas Cueva. Foi vencida, a Min. Nancy Andrighi. O acórdão recém-publicado restou assim ementado: RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. NATUREZA JURÍDICA DE DEMANDA INCIDENTAL. LITIGIOSIDADE. EXISTÊNCIA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS DE SUCUMBÊNCIA. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. FIXAÇÃO. CABIMENTO. 1. O fator determinante para a condenação ao pagamento de honorários advocatícios não pode ser estabelecido a partir de critérios meramente procedimentais, devendo ser observado o êxito obtido pelo advogado mediante o trabalho desenvolvido. 2. O CPC de 2015 superou o dogma da unicidade de julgamento, prevendo expressamente as decisões de resolução parcial do mérito, sendo consequência natural a fixação de honorários de sucumbência. 3. Apesar da denominação utilizada pelo legislador, o procedimento de desconsideração da personalidade jurídico tem natureza jurídica de demanda incidental, com partes, causa de pedir e pedido. 4. O indeferimento do pedido de desconsideração da personalidade jurídica, tendo como resultado a não inclusão do sócio (ou da empresa) no polo passivo da lide, dá ensejo à fixação de verba honorária em favor do advogado de quem foi indevidamente chamado a litigar em juízo. 5. Recurso especial conhecido e não provido. O fundamento central do acórdão consiste em reconhecer que a instauração do incidente objetiva a formação de um litisconsórcio (para incluir terceiros no polo passivo), razão pela qual, segundo o STJ, "deve ser aplicado o entendimento de que a extinção parcial do processo em virtude da exclusão de litisconsorte passivo dá ensejo à condenação do autor ao pagamento de honorários."10 Em sessão de julgamento, o Min. Moura Ribeiro pontuou que a condenação em honorários restaria restrita aos casos de improcedência do IDPJ. Ressalvou que, nesse caso, a decisão interlocutória "teria natureza de sentença" (ou de interlocutória parcial de mérito), pois extingue a relação das partes convocadas a integrar a lide. Segundo o que se afirmou durante a sessão, em caso de sucesso, os advogados que instauraram o IDPJ já fariam jus a honorários no incidente, porque sua remuneração será (ou já terá sido) fixada por ocasião da ação principal. A situação seria diferente para aqueles que são incluídos, e precisam contratar advogado especificamente para sua defesa no incidente. Nesse ponto, o acórdão11 parece deixar a critério do juízo o exame, caso a caso, de haver propriamente sucumbência, de molde a ensejar honorários, na hipótese de provimento do incidente. Seja como for, não se pode negar que o julgamento do Recurso Especial nº 1.925.959 - SP deve ser fator a ser levado em consideração na análise da estratégia acerca da instauração do IDPJ. Espera-se que o STJ uniformize seu entendimento a respeito da questão e (re)estabeleça a segurança jurídica. Até lá, algumas dúvidas ficarão no ar: pleitear a desconsideração da personalidade na petição inicial será a estratégia menos onerosa? Os critérios para a fixação de honorários em caso de improcedência do IDPJ serão os mesmos da ação principal? E no caso de os advogados dos terceiros, que foram citados no IDPJ, serem os mesmos do devedor principal, farão jus a honorários pela improcedência do incidente, ainda que continuem atuando no processo principal? As respostas virão com o tempo. Enquanto isso não ocorre, cabe aos advogados o dever de alertar seus clientes acerca do risco de virem a ser condenados a pagar honorários em IDPJ. Afinal, a orientação jurídica acerca dos riscos econômicos do processo, em regra, é determinante para definição da estratégia processual. Na fixação da estratégia, é necessário que se leve em conta que a desconsideração da personalidade jurídica tem caráter excepcional (porque a regra é a autonomia patrimonial entre a pessoa jurídica e seus sócios), devendo ser manejada com ponderação, quando se vislumbra efetivamente a situação de desvio de finalidade ou confusão patrimonial. Seja qual for o cenário, o operador do direito deve estar sempre atento às alterações legislativas, doutrinárias e, é claro, jurisprudenciais - que, diga-se de passagem, são mais frequentes do que gostaríamos. __________ 1 TUCCI, José Rogério Cruz e. O advogado e o dever profissional de informação. Acesso em 17/09/2023. 2 "Art. 9º O advogado deve informar o cliente, de modo claro e inequívoco, quanto a eventuais riscos da sua pretensão, e das consequências que poderão advir da demanda. Deve, igualmente, denunciar, desde logo, a quem lhe solicite parecer ou patrocínio, qualquer circunstância que possa influir na resolução de submeter-lhe a consulta ou confiar-lhe a causa.". 3 TALAMINI, Eduardo. Os fundamentos constitucionais dos honorários de sucumbência. A&C - Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, n. 62, p. 73-97, dez. 2015. 4 Embargos de Divergência em Recurso Especial nº 1366014/SP, Corte Especial, Rel. Min Napoleão Nunes Maia Filho, j. 29.3.2017. 5 Recurso Especial nº 1.845.536 - SC. 6 RECURSO ESPECIAL Nº 2054280 - SP (2023/0041926-8). 7 Vide AgInt no REsp 1.852.515/SP, de relatoria do e. Ministro Moura Ribeiro (DJe de 27/08/2020), AgInt nos EDcl no REsp 1.767.525/RJ, também de relatoria do e. Ministro Moura Ribeiro (DJe de 11/12/2020), AgInt no REsp 1.933.606/SP, de relatoria do e. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino (DJe de 24/02/2022) e AgInt no REsp 2.013.164/PR, igualmente de relatoria do e. Ministro Moura Ribeiro (DJe de 11/11/2022). 8 TALAMINI, Eduardo. Os fundamentos constitucionais dos honorários de sucumbência: breve nota.  Cadernos jurídicos, Curitiba, v. 31, p. 01-04, julho/2012. 9 Julgado no dia 12/09/2023. 10 Recurso Especial nº 1.925.959 - SP. 11 Consta do acórdão do Recurso Especial nº 1.925.959 - SP: "Já em caso de deferimento do pedido de desconsideração (direta ou inversa), com o efetivo Redirecionamento da demanda contra o sócio ou a pessoa jurídica, conforme o caso, o eventual sucumbimento destes somente poderá ser aferido ao final, a depender do juízo de procedência ou improcedência da pretensão contra eles direcionada".
Um dos temas mais presentes nas pautas dos Tribunais é a prescrição. Especialmente, sua aplicação prática nos casos que se apresentam ao Poder Judiciário. Para além da definição do prazo aplicável à hipótese retratada - tarefa que nem sempre é das mais fáceis, como acontece, por exemplo, com a altamente controvertida prescrição para as hipóteses de responsabilidade civil contratual e extracontratual - são intensos os debates a respeito do termo inicial para a fluência do prazo. Obviamente, a definição desse marco dependerá da análise do caso concreto. Mas isso se torna muito mais complicado, quando se considera não haver, na jurisprudência, um consenso claro a respeito do mais adequado critério para sua eleição. No ambiente legislativo, a questão parece ser muito tranquila. Nosso ordenamento adotou o critério da actio nata, materializado no art. 189 do Código Civil: "Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206". É, portanto, a partir da violação do direito, objetivamente considerada, que surge o prazo prescricional para o exercício de determinada pretensão nele fundada. O que se tem visto, contudo, é a crescente flexibilização desse critério objetivo, que acaba cedendo em face do que se denominou de feição subjetiva da actio nata, em que mais interessa saber quando o sujeito tomou conhecimento da lesão, ao invés de quando essa lesão efetivamente se operou no mundo dos fatos. Para Pontes de Miranda, o nascimento da pretensão independe do conhecimento do titular do direito a respeito da "existência do direito, ou a sua natureza, ou a validade, ou eficácia, ou a existência da pretensão nascente, ou da sua extensão em qualidade, quantidade, tempo e lugar da prestação, ou outra modalidade, ou quem seja o obrigado, ou que saiba o titular que a pode exercer"1. Antônio Luís Câmara Leal, de seu turno, adverte não parecer racional "que a prescrição comece a correr sem que o titular do direito violado tenha ciência da violação. Se a prescrição é um castigo à negligência do titular - cum contra decises homines, et sui juris contentores, odiosa exceptiones oppositae sunt, - não se compreende a prescrição sem a negligência, e esta, certamente não se dá, quando a inércia do titular decorre da ignorância da violação"2. A jurisprudência, da mesma forma, não é uníssona a respeito do assunto. O STJ, por exemplo, reiteradamente considera a ciência do sujeito como o ato que deflagra a prescrição. Há, até mesmo, julgados conceituando a actio nata exclusivamente a partir de sua feição subjetiva3. Seja como for, não parece adequado pretender excluir um ou outro critério do ordenamento. Certamente, haverá situações nas quais a adoção da feição puramente objetiva da actio nata será causa de grandes injustiças e vice-versa. Tudo dependerá do exame do caso concreto. Mas não temos dúvidas de que há uma ordem lógica de preponderância a ser seguida, imposta pelo legislador: como regra, a prescrição se inicia com a lesão ao direito (feição objetiva). Excepcionalmente, poderá haver a relativização da regra geral, para considerar-se iniciado o prazo prescricional a partir da ciência do sujeito (feição subjetiva). É que a prevalência do critério subjetivo pode dar ensejo a pretensões verdadeiramente imprescritíveis e, o que é ainda mais preocupante, autorizar a manipulação da prescrição, a partir da criação de marcos iniciais fictícios pelas partes. Pretensão dessa natureza é incompatível com a finalidade da prescrição, que é a de garantir a segurança jurídica, a estabilidade das relações sociais e, de maneira mais ampla, a paz social4. Como ensina Teresa Arruda Alvim, seu objetivo é "colocar um fim a situações, cuja subsistência por tempo indeterminado perturbaria a estabilidade das relações jurídicas, situações essas que, às vezes, existem, mas não devem perdurar indefinidamente"5. Por isso, não é possível "brincar" com a prescrição. O critério objetivo é, certamente, o mais seguro e confiável, enquanto o subjetivo, a depender do caso, pode ser fruto de uma ficção. Nesse sentido, alerta Humberto Theodoro Júnior: "O afastamento desse objetivismo, para subordinar a contagem do prazo extintivo ao conhecimento da violação do direito por seu titular, somente pode, em princípio, ser autorizado pela própria lei. Banalizar na prática aquilo que, de acordo com a lei, deveria ser exceção de estrito cabimento, vulnera, profundamente, o espírito de um instituto vinculado à segurança jurídica, reduzindo muito o papel que a ordem jurídica lhe conferiu"6. Essa preocupação tem conduzido o STJ a examinar a problemática com maior rigor, como, por exemplo, no julgamento do REsp 1.685.098/SP7, em que o Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, relator p/ o acórdão, fez importantes considerações sobre o assunto. O caso envolvia pretensão indenizatória de herdeiros de determinado investidor, buscando o recebimento de dividendos oriundos de ações preferenciais escriturais adquiridas em 1974, supostamente não pagas. A prescrição foi afastada pelo Min. Moura Ribeiro, relator originário, justamente com base na feição subjetiva da actio nata, que faria com que o termo inicial do prazo fosse o momento em que os herdeiros buscaram a instituição financeira, a fim de obterem informações sobre os investimentos do falecido pai e marido. O Min. Cueva destacou que a regra, no ordenamento, é a de que "o prazo prescricional começa a fluir independentemente do conhecimento da pretensão por seu titular". A feição subjetiva teria espaço apenas em duas hipóteses: (i) quando assim prever de forma expressa a lei; ou (ii) "nas excepcionalíssimas situações em que possível constatar que, pela própria natureza das coisas, seria impossível ao autor, por absoluta falta de conhecimento de "défice à sua esfera jurídica", adotar comportamento outro que não o de inércia". A caracterização da segunda hipótese, ademais, "impõe a quem lhe aproveita, a incumbência de produzir a prova, senão inequívoca, ao menos dotada de verossimilhança, do momento a partir do qual lhe foi possível vislumbrar a existência ou a possibilidade de existência de lesão a um direito juridicamente tutelado". No caso examinado na ocasião, essas premissas conduziriam ao reconhecimento da prescrição, pois seria "descabido presumir que o investidor (titular de ações no período referente a 1974 até o seu falecimento) desconhecesse que teria direito ao pagamento periódico de dividendos, sendo incumbência dos autores da demanda a demonstração de que o falecido esposo/pai - verdadeiro titular das ações - estava verdadeiramente impossibilitado de tomar conhecimento da lesão narrada na inicial". Em ainda outra ocasião, desta vez em causa envolvendo violação a direito de imagem, a Min. Maria Isabel Gallotti afastou a feição subjetiva da actio nata, registrando que a adoção da "ciência da parte autora como o marco inicial da prescrição, no caso concreto, a meu ver, é o mesmo que afastar a possibilidade de prescrição por completo. Entendo que, no caso concreto, deva ser aplicada regra geral de que a prescrição começa a correr da efetiva violação ao direito, do uso indevido da imagem, evento que marca suficientemente o efetivo prejuízo/dano". Não faltam exemplos em que, da mesma forma, a prevalência da actio nata na feição subjetiva teria esse efeito prejudicial e indesejado, de obstar a prescrição, subvertendo a finalidade do instituto. Por isso, impõe-se, mesmo, restringir a feição subjetiva da actio nata a situações excepcionais e em caráter subsidiário ao critério objetivo. E, mesmo nas situações em que isso se mostre possível, é essencial exigir mais daqueles que pretendem se beneficiar da feição subjetiva da actio nata, ou seja, que efetivamente justifiquem os motivos pelos quais não tinham meios para ter ciência da lesão ao direito (o que não pode ser confundido com a inércia em fazer uso dos meios disponíveis). __________ 1 DE MIRANDA, Pontes. Tratado de Direito Privado - Parte Geral, Tomo VI, 1ª ed., Campinas, Editora Bookseller, p. 153/154. 2 LEAL, Antônio Luís Câmara. Da Prescrição e da Decadência, Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 31 3 "O início do prazo prescricional, com base na Teoria da Actio Nata, não se dá necessariamente no momento em que ocorre a lesão ao direito, mas sim quando o titular do direito subjetivo violado obtém plena ciência da lesão e de toda a sua extensão". (STJ. AgInt no AREsp 1.500.181/SP. Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze. 3ª Turma. J. em 22.06.2021). 4 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado - Parte geral, t. VI (Exceções. Direitos mutilados. Exercício dos direitos, pretensões, ações e exceções. Prescrição). Atualização de Otávio Luiz Rodrigues Junior, Tilman Quarch e Jefferson Carús Guedes. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais/Thomson Reuters, 2012, p. 219. 5 ALVIM, Teresa Arruda. Prescrição e Decadência. Revista de Processo. Vol. 29/1983 | p. 57 - 71 | Jan - Mar/1983. Doutrinas Essenciais de Direito Civil | vol. 5 | p. 679 - 698 | Out/2010. 6 JÚNIOR, Humberto Theodoro. Prescrição e decadência. Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 34. 7 STJ. REsp 1.685.098/SP. Rel. p/ acórdão Min. Ricardo Villas Bôas Cueva. 3ª Turma. J. em 10.03.2020.
O Migalhas, em seu informativo 5.672, noticiou que a CCJ da Câmara aprovou projeto de lei que autoriza a aplicação subsidiária do CPC no âmbito do processo penal, de maneira semelhante ao que ocorre atualmente nos processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos. Trata-se do PL 49/23, que altera o art. 15 do CPC1 para autorizar expressamente a aplicação supletiva e subsidiária do CPC ao CPP. Essa "interação" entre os regimes jurídicos, contudo, já tem ocorrido ainda que o art. 15 do CPC não faça, em sua atual redação, menção expressa ao processo penal. É o que se passa, por exemplo, em relação à medida de exibição de documento por terceiro e à possibilidade de imposição de multa no caso de descumprimento da ordem judicial. Embora não haja previsão expressa dessas medidas no CPP, ambas têm sido aplicadas no curso de investigação criminal, por interpretação analógica dos artigos 77, 380, 401 e 537 do CPC. De acordo com o STJ, a aplicação subsidiária do CPC no processo penal é permitida com fundamento no art. 3º do CPP2: "Inicialmente, vale lembrar que as normas de processo civil aplicam-se de forma subsidiária ao processo penal. Nesse sentido, observe-se o teor do art. 3º do Código de Processo Penal. A jurisprudência desta Corte, seguindo a doutrina majoritária, admite a aplicabilidade das normas processuais civis ao processo penal, desde que haja lacuna a ser suprida. Importante ressaltar que a lei processual penal não tratou, detalhadamente, de todos os poderes conferidos ao julgador no exercício da jurisdição. (...) Assim, quando não houver norma específica, diante da finalidade da multa cominatória, que é conferir efetividade à decisão judicial, imperioso concluir pela possibilidade de aplicação da medida em demandas penais. Note-se que essa multa não se confunde com a multa por litigância de má-fé, esta sim refutada pela jurisprudência pacífica desta Corte3". No que se refere à aplicação da multa pecuniária ao terceiro chamado a colaborar em procedimento criminal, há quem sustente tratar-se de multa coercitiva típica do âmbito do direito processual civil, verdadeira astreinte (art. 537, do CPC). Há, porém, quem defenda que a multa teria caráter punitivo, mais próximo ao instituto do contempt of court, visando a assegurar a necessária força imperativa das decisões judiciais (art. 77, do CPC). Independentemente da sua natureza jurídica, nos parece que a sua execução deve seguir as regras do processo civil. O STJ, porém, possui decisões entendendo que: i) não seria necessária a inscrição do débito na dívida ativa não tributária e a instauração de ação autônoma de execução da multa. Isso porque, não havendo um procedimento legal específico para aplicação de multa a terceiros, o magistrado poderia, em razão do poder geral de cautela, avaliar qual a medida mais adequada, se o bloqueio de ativos ou se a inscrição do débito em dívida ativa (REsp n. 1.853.580/SC, relator Ministro Nefi Cordeiro, relator para acórdão Ministro Ribeiro Dantas, Terceira Seção, DJe de 20/8/2020); e que ii) a execução das astreintes poderia ser feita de forma "imediata", operando-se o bloqueio de ativos, sendo que esta medida estaria sujeita ao contraditório diferido (REsp n. 1.568.445/PR, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, relator para acórdão Ministro Ribeiro Dantas, Terceira Seção, DJe de 20/8/2020). Ou seja, no caso de investigação criminal, a multa imposta ao terceiro seria "autoexecutável", no próprio juízo penal, num procedimento sui generis, em que a expropriação patrimonial seria imediata. Diz-se que, não fosse assim, ficaria comprometida a própria força imperativa das decisões judiciais no processo penal. Em nosso entender, esse posicionamento é equivocado vez que suprime garantias constitucionais fundamentais do devido processo legal, como os princípios do contraditório e da proporcionalidade. Tais princípios estão retratados no processo civil por meio da garantia de que os atos executórios devem se dar da forma menos onerosa ao "devedor" (art. 805). A execução das multas processuais, quando aplicadas com fundamento na legislação processual civil, obviamente, deve seguir a lei processual civil. Não pode ser executada com base em um procedimento sumário, com supressão de garantias processuais. Segundo pensamos, se, de acordo com o art. 51 do Código Penal4, a execução da própria pena de multa, contra o condenado, deve ocorrer na forma prevista no art. 2º da lei Federal 6.830/19805, que dispõe sobre a dívida ativa da Fazenda Pública, não há razão que justifique a adoção, em relação à aplicação da multa coercitiva a terceiro, de regime mais rigoroso que aquele conferido ao próprio réu do processo penal. Seguimos, nesse aspecto, o entendimento adotado pelo Min. Rogério Schietti Cruz, ainda que em voto vencido, no julgamento do REsp n. 1.853.580/SC, no sentido de que: "(...) a fixação de astreintes não consubstancia medida cautelar típica do processo penal e não constitui instrumento ou produto do crime. Possui natureza processual civil, pois objetiva assegurar o acatamento da deliberação judicial. Isso acaba por repercutir no procedimento em que haja o propósito de executá-las provisoriamente, o qual deve se orientar pelo CPC. Portanto, penso que a competência para requerer o levantamento desse valor refoge à competência do Juízo criminal. (...) se a própria condenação por crime não permite a sumária invasão patrimonial com a finalidade de satisfazer uma obrigação imposta por decisão com trânsito em julgado, admitir a execução imediata das astreintes, por mais que se proceda com algum objetivo de interesse público, vai de encontro à lógica do sistema. Uma coisa é a fixação da quantia para coagir a parte; outra é a cobrança desse valor, cujo procedimento deve observar o devido processo legal".6 O regime previsto no CPC, uma vez que o CPP nada dispõe a respeito, deve ser integralmente adotado tanto na aplicação da multa como, também, na sua cobrança (seguindo-se, por exemplo, a regra que determina que a execução seja feita pelo meio menos gravoso para o devedor, art. 805 do CPC). Ao terceiro, contra quem se impôs a multa pelo descumprimento de eventual obrigação de exibição, em procedimento investigatório, deve ser assegurada a ampla defesa e contraditório (art. 7º, do CPC), mediante intimação para realizar o pagamento do valor da multa ou oferecer garantia, antes que qualquer medida constritiva venha a ser proferida em seu desfavor. E essa garantia poderá, inclusive, consistir em seguro garantia judicial, conforme autorizam, expressamente, os arts. 835, §2º e 848, parágrafo único, do CPC. É indiferente o fato de a multa ter sido proferida no bojo do processo civil, inquérito policial ou de ação penal, porquanto a sua natureza jurídica não sofre qualquer alteração por se tratar de um ou de outro procedimento. O que não é possível é aplicar o CPC de forma seletiva, aportando ao processo penal apenas aquilo que é favorável ao autor. __________ 1 Art. 15. Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente. 2 Art. 3o  A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito. 3 REsp n. 1.568.445/PR, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, relator para acórdão Ministro Ribeiro Dantas, Terceira Seção, julgado em 24/6/2020, DJe de 20/8/2020. E, também, em situações diversas: STJ - AgRg no RHC: 119377 SP 2019/0311417-4, Relator: Ministra LAURITA VAZ, Data de Julgamento: 13/10/2020, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 23/10/2020; STJ - HC n. 513.374/MG, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 18/6/2019, DJe de 1/7/2019. STJ - EREsp: 1218726 RJ 2013/0105328-9, Relator: Ministro FELIX FISCHER, Data de Julgamento: 22/06/2016, S3 - TERCEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 01/07/2016. 4 Art. 51. Transitada em julgado a sentença condenatória, a multa será executada perante o juiz da execução penal e será considerada dívida de valor, aplicáveis as normas relativas à dívida ativa da Fazenda Pública, inclusive no que concerne às causas interruptivas e suspensivas da prescrição. 5 Art. 2º - Constitui Dívida Ativa da Fazenda Pública aquela definida como tributária ou não tributária na Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964, com as alterações posteriores, que estatui normas gerais de direito financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal. 6 REsp n. 1.853.580/SC, relator Ministro Nefi Cordeiro, relator para acórdão Ministro Ribeiro Dantas, Terceira Seção, DJe de 20/8/2020.
A recorribilidade das decisões que inadmitem recurso especial ou extraordinário tem sido objeto de nossas reflexões.1 Preocupa-nos, especialmente, a situação em que ao recurso de estrito direito é negado seguimento porque nele se estaria discutindo questão já decidida em precedente vinculante. De acordo com o art. 1.030 do CPC, o presidente ou vice-presidente do tribunal local poderá inadmitir o recurso especial ou extraordinário em razão da falta dos requisitos de admissibilidade, positivos ou negativos, gerais ou específicos, dos referidos recursos (1.030, V). Mas, não é só. Poderá negar seguimento ao recurso extraordinário, sempre que discuta questão constitucional à qual o Supremo Tribunal Federal não tenha reconhecido a existência de repercussão geral ou a recurso extraordinário interposto contra acórdão que esteja em conformidade com entendimento do Supremo Tribunal Federal exarado no regime de repercussão geral (1.030, I, a). Além disso, poderá negar seguimento aos recursos de estrito direito sempre que o acórdão impugnado esteja em conformidade com tese fixada pelos Tribunais Superiores no julgamento de recursos repetitivos (1.030, I, b).  Conforme o art. 1030, ainda, contra a decisão de inadmissibilidade com fundamento no seu inciso V, caberá agravo em recurso especial. Nas hipóteses do seu inciso I, contudo, o dispositivo prevê o cabimento de agravo interno (1.030, §2º). Ou seja, contra a decisão de inadmissibilidade, proferida pelo tribunal recorrido, caberá um ou outro ou ambos os recursos, a depender do(s) fundamento(s) adotado(s) na decisão. Apenas isso já seria suficiente para gerar incerteza jurídica. Afinal, nem sempre as decisões de inadmissibilidade têm sido claras quanto aos fundamentos adotados. Há, todavia, um segundo (e mais grave) problema. Como dito, art. 1.030, §2º prevê que, contra a decisão que inadmitir o recurso excepcional com fundamento em precedente vinculante, caberá agravo interno, que será julgado pelo órgão competente, a ser determinado pelo regimento interno do respectivo tribunal. A escolha é coerente. Afinal, dependendo dos fundamentos do agravo interno, será necessário que o julgamento do recurso exija a análise de fatos e provas (para apurar, por exemplo, a distinção entre os casos). Isso apenas pode ser realizado pelo tribunal local. Julgado o agravo interno, porém, o CPC não traz expressamente qual seria o recurso cabível para a parte levar a matéria ao conhecimento do STJ ou do STF. A questão remete diretamente à competência para o exercício do juízo de admissibilidade. Como se sabe, esta deverá, sempre, ser do juízo competente para decidir o mérito. No tocante aos recursos, ainda que a lei admita que o juízo de admissibilidade possa ser exercido pelo órgão a quo, tal circunstância não frustra nem impede a reanálise do tema pelo juízo pelo órgão ad quem. A duplicidade de juízos de admissibilidade recursal visa a evitar que o órgão a quo barre o recurso, "para não sujeitar suas decisões a outro crivo, excluindo a chance de o recorrente ver apreciada sua manifestação".2 É justamente o que ocorre com a hipótese do 1.030, I, uma vez que cria obstáculo quase instransponível para o exercício do juízo de admissibilidade pelos tribunais superiores e gera efeito ainda mais lesivo, especialmente considerando as funções dos recursos especial e extraordinário.3 Tanto o STJ quanto o STF já se manifestaram sobre a questão, entendendo que a decisão de inadmissibilidade, com base no art. 1030, I, a e b, é irrecorrível.4 Desse modo, rigorosamente, caberia ao Tribunal local decidir, de forma definitiva, sobre a existência ou não de distinção entre a situação objeto do caso sub judice e aquela a que se refere o precedente. Em outras palavras, o controle sobre a correta "aplicação" do precedente pelas instâncias ordinárias caberia unicamente ao Tribunal local. Não concordamos com esse posicionamento. Admiti-lo implicaria aceitar que a lei federal teria alterado e excluído a competência do STF e do STJ para o exercício de admissibilidade dos recursos a eles direcionados, o que é inconstitucional. Apenas a própria Constituição Federal pode delimitar a competência dos tribunais superiores, seja para ampliá-la, seja para - principalmente - restringi-la. Além disso, em nosso entender, esse posicionamento acaba comprometendo o próprio sistema de precedentes, pondo em risco a uniformidade e coerência que se pretendeu assegurar. Pensamos serem cabíveis, na hipótese, novos recursos excepcionais.5 Esses recursos, é importante ressaltar, não devem ser uma repetição do recurso anterior (inadmitido), ou das violações à lei praticadas pelo acórdão inicialmente impugnado. O acordão recorrido, agora, é o que julgou o agravo interno e, é apenas nele, que devem ser identificadas as violações à lei (ou à Constituição) - se existentes. Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero, por sua vez, defendem a interposição de agravo em recurso especial, ressaltando a inconstitucionalidade da tentativa de supressão do exercício do juízo de admissibilidade pelo tribunal competente para julgar o mérito do recurso.6 O mesmo entendimento é sustentado por Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery que, em interpretação conforme a Constituição, afirmam que a única solução possível, para o problema criado pela ausência de previsão legal quanto ao recurso cabível na hipótese, é admitir a recorribilidade da decisão, que julga o agravo interno, pelo agravo previsto no art. 1.042.7 Além disso, não se pode negar o cabimento da reclamação, diante da violação a precedente vinculante e da usurpação de competência do tribunal superior, que não pode ser impedido de realizar juízo de admissibilidade sobre os recursos a ele destinados. O mandado de segurança, também, é instrumento de que pode valer a parte. Nesse sentido, nos autos do Agravo Interno no Pedido de Tutela Provisória 473/SP, de relatoria do Min. Raul Araújo, a Quarta Turma do STJ concluiu que: "tratando-se de ato judicial contra o qual não cabe recurso, tem a parte, ainda, via excepcional outra, caso entenda ter tido violado direito próprio".8 O entendimento dominante, contudo, junto ao STJ e STF, é de que não se deve admitir mandado de segurança ou qualquer outro sucedâneo recursal, diretamente para aquela Corte.9 Diante desse contexto, mostra-se especialmente relevante o acórdão proferido pela Primeira Turma do STJ, nos autos do AIRMS nº 53.790/RJ, de relatoria do Min. Gurgel de Faria, em que se entendeu ser cabível mandado de segurança, perante o próprio tribunal. No caso, diante da inadmissão do recurso especial e do desprovimento do agravo interno, o recorrente impetrou mandado de segurança, perante o tribunal local, que não foi sequer admitido. Seguiu-se recurso ordinário, em cujo julgamento o STJ reverteu a decisão e determinou ao TJRJ que decidisse o mandado de segurança, no mérito: "7. A irrecorribilidade do acórdão objeto da impetração, que nem sequer admite reclamação, como decidido pela Corte Especial (Rcl 36.476/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, julgado em 05/02/2020, DJe 06/03/2020), evidencia, no caso concreto, situação de exceção a admitir a via do mandamus. 8. O julgado atacado no writ manifesta teratologia no emprego da tese repetitiva firmada no REsp 1.105.442/RJ: "é de cinco anos o prazo prescricional para o ajuizamento da execução fiscal de cobrança de multa de natureza administrativa, contado do momento em que se torna exigível o crédito (art. 1º do Decreto n. 20.910/1932)." (...) 9. Do confronto entre o acórdão recorrido e o recurso especial obstado, constata-se que a lide não discutia "a extensão do prazo prescricional da pretensão executória da multa administrativa, mas qual seria o seu termo inicial, se a data do ajuizamento da ação anulatória, caso em que a opção pela via judicial antes do exaurimento da esfera administrativa denotaria que o contribuinte abdicou da via administrativa, possível interpretação do parágrafo único do art. 38 da Lei n. 6.830/1980, ou o efetivo término do processo administrativo, uma vez que nele foi interposto recurso pela Petrobras", como bem consignado pelo Ministério Público Federal no parecer lançado aos presentes autos. 10. Caracterizadas a irrecorribilidade e a teratologia do decisum atacado, exsurge cabível o uso excepcional da via mandamental. 11. O indeferimento liminar da inicial do mandamus na origem e a impossibilidade de aplicação da teoria da causa madura em sede de recurso ordinário (art. 515, § 3º, do CPC/1973) não permitem indagar acerca do termo inicial correto para o cômputo do prazo prescricional, mas apenas cassar o aresto recorrido e determinar o retorno dos autos para o Tribunal a quo processar e julgar o mandado de segurança ali impetrado, como entender de direito."10 Devolvidos os autos ao juízo de origem, a segurança foi concedida, de modo que o tribunal local, realmente, reviu a decisão de inadmissibilidade e determinou a submissão do recurso especial "a novo juízo de admissibilidade pela E. Terceira Vice-Presidência".11 Os precedentes vinculantes, conforme ressalta Teresa Arruda Alvim, não mataram a atividade interpretativa do juiz.12 Ela pode ficar, sim bastante reduzida, quando se trata de um precedente proferido para resolver casos de massa que são absolutamente idênticos. Entretanto, mesmo nesses casos, não têm sido incomuns decisões equivocadas, em que o vice-presidente ou presidente do Tribunal, por exemplo, acabam aplicando o precedente para hipótese que não é aquela que deu origem à tese, o que pode acontecer em razão de como a própria tese foi redigida. A tese não deve, segundo salienta Teresa Arruda Alvim, ser abstrata e se afastar demasiadamente do caso concreto que lhe deu origem. Mas há situações em que isso ocorre e que levam a que recursos de estrito direito sejam ilegalmente barrados no tribunal local, pela falta de compreensão do alcance do precedente. É imprescindível que a questão chegue aos tribunais superiores para que eles próprios possam delimitar a tese que fixaram. Entender de forma diversa, de acordo com Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero, "significa suprimir do STF e do STJ o poder de afirmar os seus próprios precedentes mediante as devidas distinções e ao fim e ao cabo, não permitir o próprio desenvolvimento do direito mediante adições de paulatinas ampliações ou restrições".13 A discussão em torno de qual o meio de impugnação do acórdão, que decide o agravo interno do art. 1.030, §2º do CPC está longe de ser encerrada. Parece haver, porém, convergência quanto à impossibilidade de se admitir que decisões teratológicas sejam mantidas no ordenamento, sem que a parte tenha qualquer chance de defesa. Isso desmoraliza o Poder Judiciário e, especialmente quanto às decisões que tratam da conformidade ou não do acórdão recorrido com tese firmada pelos Tribunais Superiores, retira a confiança no sistema de precedentes, fundamental para a garantia da segurança jurídica. __________ 1 Dois recursos, muitos problemas: sobre a recorribilidade das decisões que inadmitem recurso especial ou extraordinário. Disponível aqui. 2 FUX, Luiz. A reforma do processo civil: comentários e análise crítica da reforma infraconstitucional do Poder Judiciário e da reforma do CPC. 2. ed. Niterói: Impetus, 2008, p. 16-17.  3 Restrição semelhante é encontrada em decisões monocráticas, nas quais o relator, prolator da decisão agravada, inadmite o agravo interno (por exemplo, vide AgInt no Pedido de Tutela Provisória nº 936/SP, Rel. Min. Gurgel de Faria, DJe 23/11/2017). Ao assim fazê-lo, obsta que o colegiado tenha acesso à decisão e ao próprio recurso, inviabilizando o controle sobre seus atos. A questão já foi observada por Athos Gusmão Carneiro, que sinalizou para o risco de criar-se um círculo vicioso. Em suas palavras "O agravo regimental (rectius, agravo interno) interposto contra a decisão de relator deve ser submetido, necessariamente, ao órgão colegiado competente [...]". (Recurso Especial, Agravos e Agravo interno: exposição didática: área do processo civil, com inovação à jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 300). 4 Agravo Interno no TP 473/SP, julgado em 17/08/2017, DJe 08/09/2017. No mesmo sentido, igualmente de relatoria do Min. Raul Araújo: Agravo Interno na Petição 11.856/PE, julgado em 18/05/2017, DJe 01/06/2017. A Corte Especial afirmou que o agravo interno é o "único recurso cabível" contra a decisão que inadmite recurso extraordinário, na forma do artigo 1.030, I, "a": (Agravo em Recurso Extraordinário no Agravo Interno no Recurso Extraordinário nos Embargos de Declaração no Agravo Regimental no REsp 1532329/SP, Rel. Min. Humberto Martins, Corte Especial, julgado em 19/04/2017, DJe 03/05/2017); No mesmo sentido: "É inadmissível a interposição de novo especial contra acórdão que, no julgamento de agravo interno, manteve a decisão de negativa de seguimento de recurso especial anterior ao fundamento de encontrar-se o entendimento da Corte de origem em harmonia com a orientação firmada no julgamento de recurso especial repetitivo" (STJ, AgInt no AREsp n. 1.829.782/RJ, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 23/5/2022, DJe de 27/5/2022). 5 ALVIM, Teresa Arruda; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins; RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva; MELLO, Rogério Licastro Torres de. Primeiros comentários ao Código de Processo Civil. 3. ed. rev., atual. e ampl. - São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 1608. No mesmo sentido: CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2017, p. 554; e LIPIANI, Julia. Como promover a superação dos precedentes formados nos julgamentos de recursos repetitivos por meio dos recursos especial e extraordinário? In: GALINDO, Beatriz Magalhães; KOHLBACH, Marcela [Coord.]. Recursos no CPC/15: perspectivas, críticas e desafios. Salvador: Editora Juspodivm, 2017, p. 145-166.   6 MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Comentários ao Código de Processo Civil: artigos 976 a 1.044. Vol. XVI. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 262-263. 7 "Só será constitucional essa sistemática, se entender-se recorrível por agravo interno, a decisão do relator que nega seguimento ao RE/REsp (CPC 1030 I), e, depois, por agravo de instrumento do CPC 1042, para o STF e/ou STJ, da decisão do tribunal local que julgar o mencionado agravo interno" (Código de processo civil comentado. 21. ed. ver., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2023, p. 2.341-2.342). No mesmo sentido: NERY JUNIOR, Nelson; ABBOUD, Georges. Recursos para os Tribunais Superiores e a Lei 13.256/2016. Revista de Processo, v. 257. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 41, julho, 2016. 8 AgInt no TP n. 473/SP, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 17/8/2017, DJe de 8/9/2017. 9 AgInt nos EDcl no RMS 63.188/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 24/08/2020, DJe 27/08/2020. Ainda, da Corte Especial: AgInt no MS 25.287/DF, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, CORTE ESPECIAL, julgado em 22/10/2019, DJe 30/10/2019; MS n. 27.348/DF, relator Ministro Og Fernandes, relator para acórdão Ministro João Otávio de Noronha, Corte Especial, julgado em 17/5/2023, DJe de 9/6/2023. 10 STJ, AgInt no RMS n. 53.790/RJ, relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, julgado em 17/5/2021, DJe de 26/5/2021 11 TJRJ, Mandado de Segurança nº 0061939-54.2015.8.19.0000 - MANDADO DE SEGURANÇA. Des(a). CUSTÓDIO DE BARROS TOSTES - Julgamento: 24/10/2016 - OE - SECRETARIA DO TRIBUNAL PLENO E ORGAO ESPECIAL 12 ARRUDA ALVIM, Tereza. O que significa dizer que os juízes devem obedecer a precedentes? Migalhas de Peso, 2022. Disponível aqui. Acesso em: 9 ago. 2023. 13 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil Comentado. 9. ed. São Paulo: Thompson Reuters Revista dos Tribunais. 2023, p. 1.215-1.216.
quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Novos rumos para a citação eletrônica

Com a entrada em vigor da lei 14.195/2021, regulamentada pela recente resolução 455/22 do CNJ, podemos dizer, definitivamente, que voltamos a trilhar o caminho da informatização dos atos processuais.1 Os primeiros passos se deram lá em 2006, com a lei 11.419, que dispõe sobre a informatização do processo judicial, numa época que estávamos preocupados com a substituição das máquinas datilográficas pelos computadores.2 Seguiu-se o Código de Processo Civil de 2015 (CPC), que passou a admitir a prática de atos processuais por meio de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real3 (art. 236, §3°), que tanto fez parte do nosso dia a dia durante a pandemia de COVID-19. Agora, a recente resolução 455 do CNJ vem, não somente regulamentar a forma como deve ocorrer a citação eletrônica ao criar o Domicílio Judicial Eletrônico (DJEL), mas, sobretudo, marcar um passo fundamental na futura integração dos sistemas (PJe, Projud, E-proc.).4 A questão que nos propusemos tratar nesse artigo diz respeito à citação eletrônica, que, com a lei 14.195/2021, regulamentada pela recente resolução 455 do CNJ, passou a impor a todas as pessoas jurídicas, incluindo as micro e pequenas empresas5, o cadastro para fins de citação e intimação, na forma eletrônica. O revogado art. 246, §1º do CPC previa que empresas públicas e privadas - exceto as microempresas e empresas de pequeno porte -,  deveriam cadastrar-se - incluindo um e-mail - nos sistemas de processamento dos autos eletrônicos, para efeitos de recebimento de citações e intimações eletrônicas. Essa regra também se aplicava e continua se aplicando à União, aos Estados e ao Distrito Federal, aos Municípios, e suas respectivas entidades da administração indireta (art. 246, §2º do CPC). Esse cadastro deveria ser realizado no prazo de 30 dias pelas empresas já constituídas, contados a partir da entrada em vigor do CPC e, para aquelas que vierem a ser constituídas, contados da inscrição do ato constitutivo da pessoa jurídica (art. 1.051 do CPC), perante o juízo em que tenham sede ou filial. O tempo mostrou, no entanto, que a ausência de sanção em caso de descumprimento da regra e, sobretudo, a falta de um sistema apto a viabilizar o cadastro, tornaram essas normas, até agora, "letras mortas".6 Isso, entretanto, começou a mudar com as alterações promovidas pela Lei 14.195/2021, que modificou vários artigos do CPC, e, sobretudo, com a recente regulamentação através da resolução 455 do CNJ.   A lei 14.195/2021 nasceu da conversão da Medida Provisória 1.040/2021. Essa Medida Provisória (MP) versava, originariamente, apenas sobre desburocratização e modernização do ambiente negocial, como estratégia de recuperação econômica pós-pandemia. Ocorre que, no curso do procedimento de conversão em lei, no Congresso Nacional, a MP sofreu inúmeras emendas parlamentares, que ampliaram o seu objeto.7-8 Com as mudanças trazidas pela lei 14.195/2021, o CPC passou a impor às partes e aos interessados o dever de informar e manter os dados cadastrais atualizados, incluindo, evidentemente, os dados eletrônicos. Não se trata, rigorosamente, de uma inovação que tenha sido introduzida pela nova lei. Trata-se, a nosso ver, em verdade, de um reforço à regra que já existia (art. 77, V do CPC), segundo a qual é dever de todos aqueles que participam do processo declinar, no primeiro momento que lhes couber falar nos autos, o endereço residencial ou profissional, bem como o eletrônico, por meio dos quais poderão vir a receber intimações. Aliás, o dever de atualizar essas informações se estende ao longo do processo e, inclusive, no caso de cumprimento de sentença, após o trânsito em julgado9, cabendo àqueles que dele participam informar nos autos qualquer modificação de seu endereço, seja temporária ou definitiva. O dever, daqueles que participam do processo, de manter seus dados atualizados é corolário dos princípios da cooperação e da boa-fé objetiva processual, e está intimamente ligado à garantia de que os atos de comunicação no processo se deem de forma, ao mesmo tempo, célere e confiável. O seu descumprimento poderá acarretar em multa por litigância de má-fé (art. 80, IV do CPC), entre 1 e 10% sobre o valor atualizado da causa, bem como dever de indenizar a outra parte pelos prejuízos causados e arcar com os honorários sucumbenciais. A principal mudança promovida pela lei 14.195/21 diz respeito à forma como deve, preferencialmente, ocorrer a citação. Além de a citação eletrônica passar a ser, em paralelo àquela realizada por correio, a regra geral (art. 247, caput, com redação dada pela lei 14.195/21), o art. 246, caput, deixa claro que a citação deve se dar, preferencialmente, pelo meio eletrônico. Ou seja: se houver endereço eletrônico cadastrado, deve-se, em detrimento da citação por correio, optar pela citação eletrônica.10 A citação eletrônica deve ocorrer, preferencialmente,  em 2 (dois) dias úteis11, e será remetida ao e-mail do réu que constar no banco de dados do Poder Judiciário.12 De acordo com a lei 14.195/21, no caso de citação eletrônica, o termo inicial do prazo para contestar/reconvir passou a ser o quinto dia útil seguinte à confirmação da citação, no portal eletrônico. Se não houver a confirmação em três dias úteis, contados do dia em que a comunicação estiver disponível no portal eletrônico, a citação dar-se-á por correio, oficial de justiça, escrivão - no caso de a parte comparecer em cartório - ou por edital. A falta de confirmação no portal do recebimento da citação eletrônica, sem justa causa, poderá configurar ato atentatório à justiça, passível de multa de até 5% sobre o valor da causa (art. 246, §1º-C do CPC). No caso de o réu deixar de "abrir" a citação eletrônica e vier a ser citado pelo correio, oficial de justiça, escrivão ou por edital, deverá, na primeira oportunidade que comparecer aos autos, esclarecer o porquê de não ter confirmado a citação, na forma eletrônica. A falta de causa justificadora, e de sua devida comprovação, poderá acarretar a condenação do réu ao pagamento de multa de até 5% sobre o valor da causa. A nosso ver, esse dispositivo derrogou (revogação parcial) a lei 11.419/06 - que dispõe sobre o processo eletrônico -, no ponto em que trata da abertura automática da citação em 10 (dez) dias a contar do seu recebimento (art. 5º, §3º).  O legislador, por meio da lei 14.195/21, em nosso entender, pretendeu estabelecer o equilíbrio entre a necessidade de se resguardar a higidez do ato de citação e, ao mesmo tempo, imprimir ao ato celeridade. Se o réu, injustificadamente, não fizer a leitura da citação eletrônica, será citado pela forma tradicional, mas estará sujeito à multa por ato atentatório à justiça. O mesmo raciocínio vale para os casos de intimação pessoal. A multa, neste caso, é medida que, fundamentalmente, visa a dissuadir o réu/executado de adotar esse comportamento em outros processos em que seja parte. Assim, a multa pode servir como incentivo para que o réu/executado não prolongue injustificadamente o andamento do processo, impedindo que a prestação jurisdicional venha em tempo razoável para o autor. Para regulamentar e dar potencial de efetividade a essas regras, o CNJ editou recentemente a Resolução 455/2022, que criou o Portal de Serviços do Poder Judiciário. O portal será acessado através da Plataforma Digital do Poder Judiciário (PDPJ)13 e vai unificar vários serviços - que atualmente estão espalhados nos diferentes sistemas de gestão de processos dos Tribunais de Justiça14-, permitindo aos operadores do direito e às partes cadastradas, com um único login/senha e no mesmo site, consultar processos, acompanhar andamentos processuais, receber citações e intimações e, inclusive, peticionar nos autos que estejam integrados à PDPJ.15  Esse portal englobará, além do Diário de Justiça Eletrônico Nacional (DJEN)16, o Domicílio Judicial Eletrônico (DJEL), ferramenta que passa a ser obrigatória para todos os Tribunais - à exceção do STF (arts. 15, parágrafo único, e 27 da referida Resolução) - e que vai permitir que as citações e intimações se deem de forma eletrônica. A partir do momento que o portal esteja disponível - havia uma previsão, de acordo com o CNJ17, que seria no dia 30 (30/9/2022), que, no entanto, não veio a se realizar-, inicia-se o prazo de 90 (noventa) dias para que todas as empresas, públicas e privadas, os entes federativos e suas respectivas entidades da administração indireta, realizem o cadastro e, então, passem a receber, virtualmente, as intimações e citações, sob pena das sanções mencionadas acima. Por fim, é importante sempre lembrar que a celeridade não pode se dar a qualquer custo. As formalidades, de que se reveste a citação, devem-se à extrema importância desse ato de comunicação, que assegura ao réu o exercício do direito de defesa, constitucionalmente garantido (art. 5º, XXXV e LV da Constituição). A citação deve cumprir a sua função primordial: dar ciência ao réu de que há uma demanda em seu desfavor, a fim de que ele possa exercer plenamente o seu direito de defesa. Aliás, em alguns casos o STJ considerou válida a citação ocorrida através de WhatsApp18. Em outros casos, no entanto, declarou nula a citação e determinou a renovação do ato, porque não ficou comprovada, com suficiente grau de certeza, a identidade do citando, o conhecimento da existência da demanda e a ciência do réu quanto às consequências da ausência de apresentação de defesa.19 O certo é que: dúvida e incerteza são termos que não se afeiçoam ao ato de citação. Se uma citação eletrônica não for capaz de atingir a sua finalidade primordial: dar ciência ao réu de que há uma demanda em seu desfavor, com advertência das consequências da falta de apresentação de defesa, deve-se reconhecer a nulidade da citação e dos atos seguintes, determinando, se possível, a sua renovação na mesma relação processual. O exercício do direito de defesa, constitucionalmente garantido, não pode ser violado por um "ideal" de celeridade. Afinal, como diz a máxima romana atribuída a Horácio, "est modus in rebus, sunt certi denique fines", ou seja, deve haver uma justa medida em todas as coisas, existindo, afinal, certos limites. __________ 1 Ainda que estejamos muito mais avançados que países europeus na informatização dos atos processuais, parece-me que, por alguns anos, ficamos paralisados, sem grandes avanços e investimentos voltados à informatização dos atos processuais. 2 Da justificativa do projeto de lei que levou à edição da lei de informatização do processo judicial (lei 11.419/2006), é possível extrair a preocupação ainda com a substituição das máquinas de datilografia pelos computadores e com a integração às novas tecnologias disponíveis. No Diário da Câmara dos Deputados, da 5ª Sessão Legislativa Extraordinária, publicado em 29 de dezembro de 2001, ficou consignado o seguinte: "Como justificativa para a proposição, atos praticados, bem como dos acessos efetuados na realçamos que - quando se trata da questão judiciária no Brasil - é consenso que os mais graves problemas se situam no terreno da velocidade com que o cidadão recebe a resposta final à sua demanda. (.)  Evidentemente, a informatização aqui não se refere somente à aquisição de computadores para utilização como substitutos mais eficientes das velhas máquinas de datilografia. (.) É necessário agora - simultaneamente ao término desta fase de aquisição de equipamentos nas unidades restantes - avançar em direção à integração de todos os atores que intervêm em um processo judicial (Varas, Ministério Público, Advocacia Pública, escritórios de Advocacia), de modo a que crescentemente os procedimentos judiciais utilizem ao máximo os avanços tecnológicos disponíveis", p. 68.191. 3 A linguagem utilizada pelo legislador é tecnologicamente arcaica. Apesar disso, é importante ressaltar a preocupação e a boa intenção do legislador em informatizar os atos processuais. 4 Considerando que não compensaria, do ponto de vista logístico e financeiro, migrar para um sistema só, o CNJ adotou, acertadamente, a iniciativa de integrar os mais diversos sistemas espalhados pelo país numa plataforma só. 5 Estão dispensadas, porque já existe e-mail cadastrado, as micro e pequenas empresas que estiverem integradas à REDESIM (Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios). A REDESIM é um sistema nacional informatizado que visa à desburocratização para abertura de empresas, bem como simplifica a prática de atos corriqueiros, como, por exemplo, alterações de dados da pessoa jurídica. 6 Na doutrina, Daniel Amorim Assumpção Neves critica a ausência de sanção em caso de descumprimento da regra: "somente se lamenta que o Novo Código de Processo Civil não tenha previsto qualquer espécie de sanção às pessoas jurídicas que deixarem de cadastrar seu endereço eletrônico, sendo tal omissão apontada por parcela da doutrina como indicativo de ser duvidosa a efetividade da importante novidade legislativa". (Manual de direito processual civil. 12. ed. Salvador: JusPodivm, 2020, p. 629). No julgamento pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, no Agravo de Instrumento 2125841-78.2017.8.26.0000, a 19.ª Câmara de Direito Privado, de relatoria do Des. João Camilo de Almeida Prado Costa, julgado em 18.09.2017, ficou consignado que: "Em suma, enquanto não regulamentado e implementado o cadastro de empresas no sistema informatizado desta Corte, inviável será a realização da citação por meio eletrônico [...]"). 7 Inseriu-se, na Lei de Sociedades Anônimas, por exemplo, o denominado "voto plural", classe de ação ordinária que pode dar direito de controle a um acionista (geralmente os fundadores), ainda que ele não detenha a maioria das ações ordinárias (com direito a voto). A prescrição intercorrente, instituto amplamente admitido pela doutrina e jurisprudência, recebeu um artigo próprio no Código Civil (art. 206-A). 8 É importante destacar que o Partido Social Democrático Brasileiro (PSDB) ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade, sob nº 7.005, impugnando os arts. 44 e 57, XXXII, da Lei 14.195/21, que alteraram os dispositivos do CPC. A PGR já se manifestou pela declaração de inconstitucionalidade dos mencionados dispositivos. O relator é o Min. Luís Roberto Barroso, que ainda não se pronunciou sobre o pedido de medida liminar. O fundamento da ADI nº 7.005 é o de que a Lei 14.195/21 transbordou a temática da Medida Provisória 1.040/21, que lhe serviu de origem.  Não é demais lembrar que o STF, em 15/10/2015, no julgamento da ADI 5127, reconheceu que essa prática - de editar emendas parlamentares que alterem o objeto ou, inclusive, o sentido da Medida Provisória - não é vedada expressamente pela Constituição, embora, nos termos do voto do relator para acórdão, Min. Edson Fachin: "o fato de a Constituic¸a~o na~o ter expressamente disposto no art. 62 a impossibilidade de se transbordar a tema'tica da Medida Proviso'ria, na~o significa que o exerci'cio da faculdade de emendar pelo Congresso Nacional seja incondicionado". O STF optou, na ocasião, pela técnica da sinalização, a fim de preservar as Medidas Provisórias que tivessem sido convertidas em lei com emendas parlamentares sem pertinência temática. O STF sinalizou que essa prática legislativa, dali para frente, seria reputada inconstitucional, vez que se trata de um atalho procedimental do qual o legislador lança mão para não submeter seus projetos a um escrutínio mais democrático e participativo. Uma vez que, até o momento da publicação deste breve artigo, não houve pronunciamento do STF quanto à concessão de liminar na ADI 7.005, a lei 14.195/21 está em vigor. 9 Inclusive após o trânsito em julgado de sentença, se pendente o seu cumprimento. A respeito, veja-se relevante acórdão do STJ, de cuja ementa extraem-se os seguintes trechos: "(.)Tanto na vigência do CPC/73 (art. 238, parágrafo único, introduzido pela Lei nº 11.382/2006), como no CPC/15 (art. 274, parágrafo único), serão consideradas válidas as intimações fictamente efetivadas no endereço informado pela parte no processo, cabendo-lhe comunicar o juízo sempre que houver alteração de seu endereço. O fato de ter transcorrido significativo lapso temporal entre o trânsito em julgado e o início do cumprimento de sentença pelo credor não afasta a incidência do art. 274, parágrafo único, do CPC/15, na medida em que a regra do art. 513, § 4º, do CPC/15, admite como válida a intimação fictamente realizada no endereço declinado na fase de conhecimento também nessa hipótese. A regra do art. 513, § 4º, do CPC/15, assentada nos deveres de boa-fé e de cooperação, está situada nas 'Disposições Gerais' do cumprimento de sentença, razão pela qual se aplica indistintamente a todas as modalidades de cumprimento disciplinadas pelo CPC (obrigação de pagar quantia certa, de fazer, de não fazer, de entregar coisa), salvo se incompatível com regra prevista para o cumprimento de alguma espécie específica de obrigação. (.) o devedor está obrigado a comunicar ao juízo qualquer modificação de seu endereço, de modo a facilitar a sua célere localização, mesmo após o trânsito em julgado da sentença e, sobretudo, nas relações de trato sucessivo, como é a hipótese da pensão alimentícia. Ordem denegada, revogando-se a liminar anteriormente concedida". (STJ, HC 691.631/PR, 3ª T., j. 29.03.2022, rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 01.04.2022). 10 O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro decidiu, corretamente, no sentido de que é indispensável o cadastramento prévio para recebimento da citação eletrônica, sendo inválido o mero envio de e-mail de citação à parte que não se cadastrou previamente no sistema: TJRJ, AI 0051199-66.2017.8.19.0000, 24.ª Câmara Cível, j. 25.10.2017, rel. Des. Nilza Bitar, DJe 26.10.2017. Se o e-mail foi cadastrado, é inválida a citação enviada por meio, por exemplo, do aplicativo WhatApp. 11 Esse prazo é, evidentemente, impróprio. O seu descumprimento não acarretará qualquer sanção. 12 Antes da entrada em vigor da lei 14.195/21 e da regulamentação dada pelo CNJ, através da Resolução 455/2022, as microempresas e as empresas de pequeno porte não estavam obrigadas a realizar o cadastro para recebimento de citação e intimação eletrônicas.  De acordo com a nova versão do art. 246, §1º do CPC, dada pela lei 14.195/21, todas as pessoas jurídicas públicas e privadas estão obrigadas a manter cadastro no banco de dados do Poder Judiciário, para efeito de recebimento de citações e intimações eletrônica. O art. 17 da Resolução 455/2022 impõe às microempresas e às empresas de pequeno porte que não possuírem endereço eletrônico cadastrado no sistema integrado da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios (Redesim), o dever de se cadastrarem. Aquelas que já possuírem endereço cadastrado na Redesim, este será utilizado para fins de citação eletrônica. 13 Para mais informações, consulte-se o link aqui. 14 A previsão do CNJ é a de reduzir a quantidade de sistemas utilizados pelos Tribunais de Justiça do país, dos atuais 55 sistemas ativos para 14. 15 Do último informativo lançado pelo CNJ, datado de 2/9/2022, extrai-se que dos 91 Tribunais, 71 já estão integrando o PDPJ. 16 O Diário de Justiça Eletrônico Nacional (DJEN) está substituindo os meios de publicação oficial do Poder Judiciário, como os diários de justiça eletrônicos dos tribunais.  17 Conforme notícia veiculada no link aqui. 18 Para que as demandas não ficassem paralisadas durante a pandemia de COVID-19, à espera de citação, os Tribunais autorizaram, em situações especiais, que o ato fosse realizado por WhatsApp, por exemplo, quando as ações envolviam a prática de crimes previstos na Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha). De modo exemplificativo, confira-se acórdão do STJ que reconheceu a validade da citação por meio do WhatsApp: "RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. ART. 24-A DA LEI MARIA DA PENHA. NULIDADE. CITAÇÃO POR WHATSAPP. CIÊNCIA INEQUÍVOCA DO PROCESSO. CONSTITUIÇÃO DE DEFENSOR. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DE PREJUÍZO. PAS DE NULLITÉ SANS GRIEF. CONCORDÂNCIA COM O FORMATO ADOTADO. COMPORTAMENTO CONTRADITÓRIO. NEMO POTEST VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS NÃO PROVIDO. 1. A nulidade de atos processuais penal leva em consideração a necessidade de respeito às garantias constitucionais, de modo que o reconhecimento do vício depende de demonstração de prejuízo experimentado pela parte em razão da inobservância das formalidades, nos termos do art. 563 do Código de Processo Penal e do princípio pas de nullité sans grief. 2. Neste caso, o paciente foi citado por meio de aplicativo instantâneo de troca de mensagens por telefone celular (WhatsApp). Esse formato foi adotado pelo Tribunal a quo, sobretudo em razão da emergência sanitária causada pela pandemia do novo coronavírus. 3. Neste caso, verifica-se que o paciente aderiu de forma voluntária à realização do ato na forma aqui questionada. Ademais, não há dúvida quanto à sua ciência da existência de processo criminal movido em seu desfavor, tendo em vista que manifestou interesse em ser patrocinado pela Defensoria Pública, não se constatando qualquer prejuízo às garantias constitucionais do paciente. 4. Além disso, o comportamento do acusado viola a proibição do venire contra factum proprium, pois, em um primeiro momento, o acusado ter concordado com a realização do ato processual para, em seguida, questionar a forma em que a citação se aperfeiçoou. 5. Recurso ordinário em habeas corpus não provido". (STJ, RHC 140.752/DF, 5ª T., j. 09.03.2021, rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, DJe 15.03.2021) (g. n.). 19 Veja-se: "HABEAS CORPUS. AMEAC¸A NO CONTEXTO DE VIOLE^NCIA DOME´STICA. AC¸A~O PENAL. RE´U SOLTO. CITAC¸A~O POR MANDADO. COMUNICAC¸A~O POR APLICATIVO DE MENSAGEM (WHATSAPP). INEXISTE^NCIA DE O´BICE OBJETIVO. DECLARAC¸A~O DE NULIDADE LIMITADA AOS CASOS EM QUE VERIFICADO PREJUI´ZO CONCRETO NO PROCEDIMENTO ADOTADO PELO SERVENTUA´RIO. ART. 563 DO CPP. PRECEDENTES DESTA CORTE. CIRCUNSTA^NCIAS DO CASO QUE INDICAM A NECESSIDADE DE RENOVAC¸A~O DA DILIGE^NCIA. 1. Em se tratando de denunciado solto - quanto ao re´u preso, ha´ determinac¸a~o legal de que a citac¸a~o seja efetivada de forma pessoal (art. 360 do CPP) -, na~o ha´ o´bice objetivo a que Oficial de Justic¸a, no cumprimento do mandado de citac¸a~o expedido pelo Jui´zo (art. 351 do CPP), de^ cie^ncia remota ao citando da imputac¸a~o penal, inclusive por interme´dio de dia´logo mantido em aplicativo de mensagem, desde que o procedimento adotado pelo serventua´rio seja apto a atestar, com suficiente grau de certeza, a identidade do citando e que sejam observadas as diretrizes estabelecidas no art.357 do CPP, de forma a afastar a existe^ncia de prejui´zo concreto a` defesa. 2.No caso, o contexto verificado recomenda a renovac¸a~o da dilige^ncia, pois a citac¸a~o por aplicativo de mensagem (whatsapp) foi efetivada sem nenhuma cautela por parte do serventua´rio (Oficial de Justic¸a), apta a atestar, com o grau de certeza necessa´rio, a identidade do citando, nem mesmo subsequentemente, sendo que, cumprida a dilige^ncia, o citando na~o subscreveu procurac¸a~o ao defensor de sua confianc¸a, circunsta^ncia essa que ensejou a nomeac¸a~o de Defensor Pu´blico, que arguiu a nulidade do ato oportunamente. 3. O andamento processual, obtido em consulta ao portal eletro^nico do Tribunal de Justic¸a do Distrito Federal e dos Territo´rios, indica que ainda na~o foi designada audie^ncia de instruc¸a~o em julgamento, ou seja, o re´u ainda na~o compareceu pessoalmente ao Jui´zo, circunsta^ncia que, caso verificada, poderia ensejar a aplicac¸a~o do art. 563 do CPP. 4. Ordem concedida para declarar a nulidade do ato de citac¸a~o e aqueles subsequentes, devendo a dilige^ncia (citac¸a~o por mandado) ser renovada mediante adoc¸a~o de procedimentos aptos a atestar, com suficiente grau de certeza, a identidade do citando e com observa^ncia das diretrizes previstas no art. 357 do CPP". (STJ, HC 652.068/DF, 6ª T., j. 24.08.2021, rel. Min. Sebastia~o Reis Ju´nior, DJe 30.08.2021) (g. n.).
É inegável que no último ano, as notícias que receberam maior destaque estão relacionadas à pandemia e à crise desencadeada nos diferentes setores econômicos; seja em razão da retração do consumo; da paralisação das atividades pela necessidade de isolamento social; ou atraso no fornecimento de insumos. Mas podemos citar outros fatos que também povoaram o noticiário, com impactos econômicos relevantes e chamam a atenção por sua absoluta falta previsibilidade: o navio gigante de 400m encalhado no canal de Suez; a crise energética, com riscos ao abastecimento; trabalho remoto e rescisão de contratos  de locação de imóveis; ataque cibernético a Tribunais, Hospitais, Companhias de Gás resultando na paralisação dos serviços. Nesse rápido 360º pelos noticiários, é possível identificar riscos locais, extraterritoriais e de âmbito mundial que direta ou indiretamente afetam ou afetaram as empresas brasileiras. Isso ocorre porque as empresas estão cada vez mais organizadas em ecossistemas interdependentes de outras empresas, por resultar em custos de transação mais baixos. Esses eventos ilustram o significado da expressão "sociedade de risco", cunhada pelo sociólogo da Universidade de Munique, Ulrich Beck, na década de 80. Segundo esse sociólogo, a sociedade de risco avança rapidamente no progresso científico e tecnológico, mas ao mesmo tempo, cria novos riscos, ameaças de caráter global com poder de autodestruição do nosso planeta. Partindo desse conceito, os Profs. Clayton REIS, Fabiana Baptista Silva CARICAT, Priscila GIUBLIN1 em excelente estudo afirmam que nem mesmo a ciência tem sido capaz de identificar todos esses riscos, passando nesse momento por uma revisão metodológica. Segundo os autores, este papel, de identificação dos riscos, foi delegado para a sociedade. Primeiro ao Poderes Executivo e Legislativo, mas que se encontram totalmente debilitados, pois não alcançam consenso para a regulamentação de novos temas. Deixando a tarefa então para o Poder Judiciário, o que, em nossa opinião explica o seu protagonismo, atualmente, que se encontra sobrecarregado de questões polêmicas e relevantíssimas, sendo chamado constantemente para definir e apaziguar conflitos e questões com absoluto ineditismo. Mas todos conhecem os problemas crônicos do Judiciário. Morosidade e custos altos para a sociedade e jurisdicionados. Então na prática, o que ocorre, é que a tarefa de identificar e tratar dos riscos também foi delegada às empresas. Essa tarefa é normalmente desempenhada pelos departamentos jurídicos e respectivos advogados, e especialmente no momento da elaboração e acompanhamento da execução de contratos. Nesse contexto, em que nem a ciência, nem o legislativo, executivo ou o judiciário tem lidado bem com riscos e situações absolutamente imprevisíveis, fica fácil concluir que a tarefa dos advogados em redigir contratos é hercúlea, dificílima, sendo que o tema de revisão de contratos nunca foi tão relevante. Tão relevante que provocou a alteração do Código Civil com a inclusão do art. 421-A, por força da Lei de Liberdade Econômica, em 2019. Esse dispositivo em seu inciso III reafirma o princípio da força obrigatória dos contratos, e estabelece que a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada. Mas isso não estaria em contradição com todo o cenário que se procurou trazer na introdução dessa fala? Pois, muito embora estejamos rodeados de todos esses riscos, tornando cada mais imprevisível o futuro, a revisão dos pactos, segundo o Código Civil, só se dará de forma excepcional. E é essa a diretriz que vem sendo seguida pela jurisprudência e que servirá de norte aos julgadores, nos casos futuros. Isso quer dizer que o Judiciário e o legislativo ignoram a existência dos riscos? Em nossa opinião definitivamente não. O que ocorre é que o legislador e o Judiciário pretendem incentivar que as empresas resolvam seus próprios problemas, desestimulando a judicialização. E desse modo, os Poderes Judiciário e Legislativo pretendem estimular, também, a manutenção dos contratos. Até mesmo porque os pedidos revisionais de contratos empresariais perante o Judiciário, na maior parte dos casos resultam na descontinuidade do contrato, pela quebra da confiança entre as partes, tão necessária para a manutenção do pacto. Quando o contratante decide ir ao Judiciário contra o seu parceiro comercial, buscando a revisão contratual, normalmente, já se está muito próximo do fim da relação contratual. E quais os instrumentos que o advogado tem em suas mãos para redigir um bom contrato, na medida do possível? Primeiro é importante refletir sobre a utilidade de uma "minuta padrão" para contratos empresariais. Talvez para operações em que o empresário já tenha muita experiência e sejam realmente mais imunes a riscos pode-se manter a utilização de um modelo, com cláusulas previamente estabelecidas. Mas para operações extremamente complexas é necessário analisar se não seria o caso de fazer uma minuta mais customizada. Segundo, hoje, infelizmente, uma pesquisa de doutrina e jurisprudência, por melhor que seja, nunca será suficiente para prever o futuro, em matérias cruciais como tributário, trabalhista, ambiental ou responsabilidade civil, dentre outras. O que temos hoje em matéria de doutrina e jurisprudência nos serve no máximo para entender o presente, tal como um espelho retrovisor, pois como disse Shakespeare: o passado é um prólogo. Ou seja, somente um ponto de partida. E jamais refletirá o futuro, sendo que contraditoriamente o contrato deverá reger o futuro, em um claro exercício de futurologia, muitas vezes puramente intuitivo. Temos que reconhecer essa verdade para lidar com ela. Terceiro, entendo ser essencial que o advogado conheça o ambiente negocial em que inserido o seu cliente, a empresa como um todo, seus sócios, fluxos de trabalho, ramo de atividade, ameaças e forças, vantagens competitivas etc. E essa Lição vem da famosa obra a Arte da Guerra de Sun Tzu: Se Você conhecer a si mesmo e ao inimigo não temerá 100 batalhas. Pois a primeira constatação pode ser a de que o seu cliente está em situação de desigualdade, financeira ou informacional com relação ao parceiro comercial. E nesse caso, a redação da minuta de contrato, obviamente, deve trazer equilíbrio e suprir essa assimetria informacional. O cuidado quanto a esse aspecto, pode reduzir sensivelmente a necessidade de se socorrer ao Judiciário com uma demanda para revisão contratual ou para resolução e ressarcimento por perdas e danos. O art. 421-A parte exatamente dessa premissa, ao estabelecer que os contratos civis e empresariais se presumem paritários e simétricos até que a presença de elementos concretos justifiquem o afastamento dessa presunção. Na nossa opinião esse dispositivo pode ter uma utilização muito interessante se bem compreendido. Porque em relações empresariais sempre foi muito difícil defender a hipossuficiência de uma das partes, já que a referência que se tem, atualmente, desse conceito é o aplicável às relações consumeristas. Um exemplo de aplicação prática desse novo dispositivo, seria a demonstração de que há uma assimetria de informação a respeito do negócio em si, por não ser o ramo de atividade de uma das contratantes, ou por envolver segredo de negócios ou novas tecnologias. Cabe ao advogado estabelecer regras contratuais que compensem essa assimetria, como por exemplo a solicitação de relatório periódicos sobre o andamento de projetos, travas para evitar mudanças societárias que possam resultar em desequilíbrio financeiro do contrato etc. O inciso primeiro e segundo do art. 421-A, CC trazem matérias muito analisadas no âmbito administrativo, especialmente, na disciplina das parcerias público-privadas. O art. 421-A, inciso I dispõe que as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução. Para tanto recomendamos fortemente consultar todas as áreas que terão impacto com a assinatura do contrato para trazer sua contribuição, em um grande brainstorm. O contrato deve ser um documento interdisciplinar, ou seja, não apenas do departamento jurídico, mas também da área comercial, industrial, financeira. Pois é dessa forma que receberá os inputs e insights dos times que estão no "front de batalha", com contato com o mundo externo e a realidade. Essa é uma estratégia utilizada em gestão de empresas para atuar em ambientes extremamente complexos, e auxiliar na tomada de decisões. Como o  conhecimento dessas áreas é possível por exemplo, ter saber de motivos mais frequentes ensejadores de resolução contratual. Para estabelecer assim objetivamente, causas para resolução do contrato. Seria o que em negociação se chama walk away. A condição intolerável e que justifica a necessidade de encerramento do negócio jurídico. Outra importante previsão contratual, se refere às multas compensatórias e sua relação com o inadimplemento contratual ocorrido. Por exemplo, saber na suspensão do fornecimento de um certo insumo, qual seria o tempo máximo de tolerância e qual seria a compensação respectiva, para paralisações que ensejam danos financeiros irreversíveis, com multas por atraso na entrega de bens ou deterioração de produtos in natura. Ou até mesmo, o desligamento de uma caldeira que demora horas, dias para chegar à temperatura ideal para o processo de geração de energia e/ou industrialização.  Outro exemplo prático. Sempre me pergunto se ainda faz sentido contratos com prazo indeterminado e com renovação automática no silêncio das partes. Logicamente, esse tipo de contrato, com prazo indeterminado, deve trazer vantagens econômicas financeiras, computadas e calculadas quando da assinatura, mas a longo prazo isso é sustentável? Cabe ainda estabelecer que a renovação seja automática sem que as partes possam analisar se as bases contratuais permanecem as mesmas? Se realmente houver a necessidade de assinatura de contratos com prazo indeterminado, que se tenha a cautela para estabelecer gatilhos que ensejem a revisão contratual. Como por exemplo, variação cambial ou inflação acima de um certo patamar, que coloquem em risco o equilíbrio econômico financeiro. Outra importante disposição do art. 421-A, CC se refere à  alocação de riscos ou matriz de riscos, cujo objetivo é definir desde já os ônus financeiros decorrentes de fatos supervenientes à formalização do instrumento. Essa definição precisa se encontra no inciso 27º do artigo 6º da Lei n. 14.133/2021, que rege os contratos administrativos e as parcerias público privadas. Os contratos complexos de incorporação, estabelecem quais os riscos assumidos por cada uma das partes. O contrato pode estabelecer, por exemplo, que o incorporador assumirá os riscos ambientais, de obtenção de licenças e autorizações administrativas, mudanças da legislação municipal sobre o plano diretor, zoneamento. E, por outro lado, os riscos mercadológicos podem ser compartilhados pelos contratantes, por exemplo, se haverá ou não absorção das unidades lançadas pelo mercado. Além de tudo isso, há situações que realmente vão escapar das mãos dos operadores do direito, sendo absolutamente impossível a sua previsão. Por isso, importante fazer menção ao princípio da boa-fé. Nesse ambiente complexo e dinâmico exige-se que os contratantes ajam muitas vezes sem regras explícitas, assim um consenso sobre finalidade e valores torna-se mais relevante do que nunca. Nesse contexto, o princípio contratual da boa-fé objetiva tem assumido relevância ímpar para resolver conflitos levados ao Poder Judiciário. Não se trata de princípio novo no direito, mas a sua aparente "descoberta" talvez venha desse momento de incerteza e imprevisibilidade, sendo um norte para definir os litígios complexos, servindo como um guia de interpretação, para colmatar as lacunas do contrato; ou um critério para a correção de condutas dos contratantes que destoam de um padrão ético de comportamento. Dentre as inúmeras aplicações do princípio tem-nos chamado a atenção a vertente que exige do credor a obrigação de mitigar o prejuízo, vedando o comportamento abusivo, o que já tendo sido adotado pela jurisprudência. Aplicado em hipóteses em que o credor provoca ou se mantém inerte, ou se comporta de forma abusiva, para que o devedor descumpra a sua obrigação, pois o contrato prevê multas e nesse ambiente de inflação alta, e juros moratórios, pode ser mais interessante ao credor que a obrigação seja convertida em perdas e danos, do que receber a própria prestação prevista contratualmente. Trata-se de comportamento totalmente imprevisível por parte do credor, no momento da elaboração do contrato, a ensejar provavelmente a intervenção do Judiciário. As questões práticas referentes ao tema são infindáveis e extremamente desafiadoras aos operadores do direito, sendo que o art. 421 do CC alterado pela Lei da Liberdade Econômica consiste em um verdadeiro guia para a elaboração dos contratos, nesse momento de tantas incertezas. __________ 1 Artigo capturado em 28/04/2022 da Revista Percurso (unicuritiba.edu.br).
Desde sempre, existe o foro de eleição. Há foro de eleição, quando as partes, baseadas no princípio da autonomia privada, estipulam aquele que, no entender de ambas, é o melhor foro para tramitação da demanda, em caso de instauração de litígio relacionado a um determinado contrato. A eleição de foro é, conforme farta doutrina1, uma espécie de negócio jurídico processual, que pode ser celebrado entre as partes, desde que em consonância com as regras de fixação de competência absoluta estabelecidas pelo CPC.  Regras que não podem ser deixadas de lado são só as da competência absoluta. A competência determinada em razão da matéria, da pessoa ou da função não pode ser modificada por força da vontade das partes. São estes os critérios relacionados à competência absoluta, que é inderrogável, portanto, por convenção das partes. É o que está disposto no art. 62 do CPC. O art. 63 do CPC, por sua vez, estabelece as hipóteses de fixação de competência relativa2, fixadas em razão do valor da causa e do território, de forma que às partes é possível deixá-las de lado e eleger o foro, onde deverá ser proposta a ação decorrente dos direitos e obrigações objeto do negócio jurídico em discussão. Para que a contratação do foro eleição, nos casos de competência relativa, seja válida e eficaz, é necessário que as partes a estipulem em instrumento escrito, fazendo constar a qual negócio jurídico, especificamente, a eleição do foro está relacionada, nos termos do que estabelece o § 1º, do art. 63 CPC. Este contrato "obriga os herdeiros e sucessores das partes" (§ 2º, art. 63 do CPC). O enunciado 335 da Súmula do STF3 chancela a validade da eleição do foro entre as partes, ao estabelecer que: "é válida a cláusula de eleição de foro para os processos oriundos do contrato". Assim, em princípio é sempre lícita - e, portanto, deve ser eficaz - a cláusula de eleição de foro livremente pactuada entre as partes, exceto se tal cláusula for abusiva ou, de alguma forma, criar dificuldades para uma das partes, no que tange ao exercício de seus direitos e ao cumprimento de suas obrigações. Nessas hipóteses, a cláusula será nula, face à sua abusividade, motivo pelo qual poderá o juiz, até mesmo de ofício, determinar a remessa dos autos ao juízo do domicílio do réu.  É a regra do § 3º, do art. 63 do CPC. A abusividade da cláusula de eleição de foro ocorre, apenas, em hipóteses em que a sua adoção possa acarretar prejuízo efetivamente comprovável a uma das partes.  Caso contrário, o desrespeito ao foro escolhido pelas partes implica, não só violação ao princípio da autonomia privada, mas também infração às regras de fixação de competência determinadas pelo CPC. Por isso é que o art. 64 estabelece a forma pela qual a incompetência (absoluta e relativa) deve ser arguida pela parte interessada, sendo que o art. 65 prevê que, sendo caso de competência relativa, a mesma estará prorrogada, caso a parte não a argua, em sede de preliminar de contestação. O CPC/15 inovou, ao criar regras específicas atinentes à fixação da competência para a execução de título executivo extrajudicial, regras essas que, entretanto, não contradizem, tampouco afastam, as outras regras de competência constantes da Parte Geral do CPC/15 mas, ao contrário, lhes são complementares. O art. 781 CPC/15 estabelece, no inciso I, que: "a execução poderá ser proposta no foro de domicílio do executado, de eleição constante do título ou, ainda, de situação dos bens a ela sujeitos;". A intenção da lei, no mencionado dispositivo processual, a nosso ver, não foi criar uma espécie de competência concorrente, para a execução de título executivo extrajudicial, dando ao exequente a possibilidade de optar pelo foro que melhor lhe aprouvesse, baseado no inciso I do art. 781 CPC. Isto seria o mesmo que dizer que o exequente não fica vinculado a um contrato por ele assinado! Ou seja, o contrato só vale se o exequente, no momento do ajuizamento da execução, ainda estiver de acordo com o que assinou. O entendimento de que o CPC/15 teria criado competência concorrente para a execução de título executivo extrajudicial -, muito embora, saibamos, existente na doutrina nacional4, - não se harmoniza, com o espírito do CPC/15 que tem, como um de seus pilares fundamentais, o princípio da contratualização do processo, baseado, naturalmente, no princípio da autonomia privada das partes. O art. 781, inciso I não pode ser interpretado de forma, meramente, literal5. Sabe-se que a interpretação literal longe está de ser, propriamente, um método interpretativo: trata-se, apenas, de um pressuposto que antecede, necessariamente, a interpretação propriamente dita. Portanto, se a interpretação literal leva a um resultado e a interpretação sistemática, a outro, deve-se preferir o segundo resultado. De fato, não se pode perder de vista que uma das notas marcantes do CPC/15 é prestigiar a vontade das partes para que elas possam, até mesmo, gerir, às vezes em conjunto com o juiz, o próprio procedimento. Portanto, a nosso ver, não tem sentido, ler-se no art. 781, inciso I, a possibilidade de o autor/exequente optar pelo foro que lhe pareça mais conveniente, desrespeitando a manifestação de vontade das partes - inclusive da própria - consistente em escolher determinado foro. Como leciona Antonio do Passo Cabral6: "Outra evolução que claramente parece fazer ruir a ideia clássica do juiz natural como sendo aquele previsto em regras legisladas reflete-se no revigoramento dos acordos processuais sobre a competência. (...) A partir dessa diretriz, e das cláusulas gerais do CPC/15 que ampliaram a autonomia privada no processo (art. 190 e 200), a norma processual passou a ter fonte negocial." Assim como na fase de conhecimento7, também na execução, a regra específica que dispõe sobre a cláusula de eleição de foro deve prevalecer em relação às demais de caráter geral, considerando-se que essa regra específica de fixação de competência funda-se, eminentemente, na livre manifestação das partes.8 Paulo Cezar Pinheiro Carneiro9 é taxativo, como nós somos, no que diz respeito à prevalência do foro de eleição sobre todos os demais, mesmo em casos de execução de título executivo extrajudicial: "A execução por título extrajudicial poderá ser proposta em um dos seguintes foros, a critério do exequente, salvo se houver foro de eleição, que prevalecerá: (...)"10 Se tivesse realmente havido a intenção de se enfraquecer a cláusula de eleição, permitindo que o exequente "voltasse atrás", afastando-se da marcante característica do CPC de 15 (que é a de prestigiar a vontade das partes), inclusive no que tange ao procedimento, a lei deveria, com certeza, ter sido muito mais clara. _____ 1 Por todos: Antonio do Passo Cabral. Juiz Natural e Eficiência Processual: Flexibilização, Delegação e Coordenação de Competências no Processo Civil. Tese apresentada no Concurso de Provas e Títulos para provimento do cargo de Professor Titular de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UERJ - Centro de Ciências Sociais - Faculdade de Direito, 2017. 2 Como leciona Arruda Alvim: "Por razões de ordem pública, a lei elege dois critérios (competência em razão da matéria e competência funcional) e trata de forma rígida as regras a eles vinculadas, de modo que as razões de ordem pública prevalecem frente à vontade das partes (v. art. 62 do CPC/15).  Nesses casos, define-se a competência como absoluta. De outra parte, para outros critérios (competência territorial e competência em razão do valor da causa), o fenômeno é, por assim dizer, visto sob uma outra ótica, prevalecendo o interesse das partes (v. art. 63 do CPC/15).  Nesses outros casos, define-se a competência como relativa". (Manual de Direito Processual Civil, 19. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 308). 3 Muito embora aprovada antes mesmo da entrada em vigor do CPC/73, a Súmula em comento continua em plena vigência, pois que possui comando válido conforme com o sistema e com a legislação atualmente em vigor, a respeito.  4 Denota-se que o entendimento no sentido de existir competência concorrente, nesse caso, decorre, exclusivamente, da análise literal do inciso I do art. 781. No entanto, mesmo essa doutrina vê, com perplexidade, a redação do dispositivo, em vista do espírito contratualista do CPC/15. Ver, por todos, Carlos Alberto Carmona, em obra coletiva (Coords.: José Rogério Cruz e Tucci, Manoel Caetano Ferreira Filho, Ricardo de Carvalho Aprigliano, Rogéria Fagundes Dotti, Sandro Gilbert Martins): Código de Processo Civil Anotado. 3. ed. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2018, p. 1098: "Diante da escolha do legislador para favorecer o exequente na seleção do local em que a demanda será promovida, chama a atenção o disposto no inciso I, que desvaloriza sobremaneira a eleição de foro.  Com efeito, num código que defere especial atenção à vontade das partes, fixando amplo alcance para os mais diversos negócios jurídicos processuais, causa certa perplexidade a determinação de que, mesmo havendo escolha (consensual) do local em que a demanda de execução deva ser movida, possa tal avença ser simplesmente desprezada potestativamente por um dos contratantes (o exequente), optando pelo domicílio do executado ou pelo local dos bens". 5 Reforçando sua posição, no sentido da insuficiência da interpretação literal, Carlos Maximiliano cita Tobias Barreto: "Não compreendo que valor poderia ter o estudo do Direito, se os que a ele se consagram fossem obrigados, como os doutores da lei, da escola do rabino Shammai, a ser somente exegetas, a não sair do texto, a executar simplesmente um trabalho de midrasch, como dizem os judeus, isto é, de escrupulosa interpretação literal. Assim viríamos a ter, não uma ciência do Direito, mas uma ciência da lei, que podia dar o pão, porém, ao certo, não dava honra a ninguém.  Assentar-lhe-ia em cheio o leiderauch com que Goethe humilhou a Teologia; e cada um de nós poderia, com mais razão do que Fausto, zombar do seu doutorismo (...)". (Carlos Maximiliano. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 90). 6 Juiz Natural e Eficiência Processual: Flexibilização, Delegação e Coordenação de Competências no Processo Civil. Tese apresentada no Concurso de Provas e Títulos para provimento do cargo de Professor Titular de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UERJ - Centro de Ciências Sociais - Faculdade de Direito, 2017, pp. 298 e 300. 7 Nesse sentido, o posicionamento de Arruda Alvim: "(...) - como se disse, na execução de títulos extrajudiciais, não havendo processo judicial anterior que possa vincular este ou aquele juízo do ponto de vista funcional, a competência é definida de modo semelhante àquela aplicável ao processo de conhecimento". (Novo Contencioso Cível no CPC/15. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2016, p. 358). 8 Nesse sentido, já decidiu o STJ: "Agravo Interno. Conflito Positivo de Competência. Ação de Execução de Título Extrajudicial. Ação Declaratória de Nulidade Contratual. Conexão. Cédula de Crédito Bancário com Pacto Adjeto de Alienação Fiduciária de Imóvel. Relação Obrigacional. Foro de Eleição. Validade. 1. O foro da situação de imóvel, previsto no art. 95 do CPC/15, não prevalece diante da cláusula de eleição de foro no contrato de mútuo bancário, quando a garantia prevista no contrato acessório de alienação fiduciária de imóvel sequer foi executada pela instituição financeira. 2. A cláusula de eleição de foro é válida quando inserta em contrato bancário firmado entre duas pessoas jurídicas para implementação de atividade econômica, não havendo comprovação de situação de vulnerabilidade de qualquer das partes. 3 - Agravo interno não provido". (AgInt no Conflito de Competência 157020 - CE Rel. Ministra Nancy Andrighi, j. em 14/5/19 - g.n.). 9 O Novo Processo Civil Brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 170. 10 Grifamos. 
A exigência de pertinência temática para a propositura das ações de controle concentrado voltou a ser discutida pelo plenário do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADC 62, proposta por confederações sindicais patronais para questionar aspecto processual da reforma trabalhista. Por maioria, vencidos os ministros Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia, decidiu-se que, "em se tratando de norma de natureza processual, o rol de potenciais atingidos é, por natureza, mais amplo, aplicando-se a qualquer pessoa, física ou jurídica, que venha a atuar como sujeito em determinada relação processual" (DJ 05/10/2021). A Ação Declaratória de Constitucionalidade foi proposta pelas Confederações Nacionais do Sistema Financeiro, do Transporte e do Turismo para questionar aspecto processual da reforma trabalhista, a nova redação do art. 702 da CLT, que estabelece requisitos para a edição de súmulas e enunciados de jurisprudência no âmbito da Justiça do Trabalho1. O relator, o ministro Ricardo Lewandowski, proferiu decisão monocrática, extinguindo a ação por ilegitimidade das confederações. No seu entendimento, apenas as entidades com legitimidade universal poderiam impugnar a constitucionalidade de normas processuais, pois estas não teriam impacto direto sobre as empresas e trabalhadores. A decisão monocrática foi revista em agravo interno. De acordo com o plenário, o entendimento do relator é excessivamente restritivo, pois o fato de envolver matéria processual não limita o impacto da norma. Ao contrário, revela que a repercussão é muito mais abrangente, legitimando diversos setores da sociedade para impugnar a sua constitucionalidade. Ademais, trata-se de processo dito "objetivo". De fato, em se tratando de norma de direito processual, o leque de "impactados" é, necessariamente, mais amplo: o espectro de pessoas afetadas pela norma é maior, porque a garantia de inafastabilidade da jurisdição torna possível em tese que qualquer pessoa, física ou jurídica, venha a atuar como sujeito em determinada relação processual. A decisão do Supremo Tribunal Federal na ADC 62 privilegia a participação dos chamados legitimados especiais. A Constituição de 1988 ampliou a legitimidade para propositura das ações de controle concentrado, atribuição antes reservada exclusivamente ao Procurador Geral da República. Embora o artigo 103 não faça qualquer distinção entre os legitimados para instaurar o controle abstrato de constitucionalidade, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, receosa de que houvesse aumento exacerbado do número de processos, passou a exigir a "pertinência temática" como pressuposto qualificador da legitimidade ativa de alguns interessados (ADI 1157-MC, DJ 17/11/06). Criaram-se, assim, duas classes de legitimados. De um lado, os legitimados universais, que podem impugnar qualquer ato, independentemente do seu conteúdo. De outro, os legitimados especiais, que somente podem impugnar ato que tenha pertinência com seus fins institucionais. São legitimados especiais, segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, as Mesas das Assembleias Legislativas e as Câmaras Legislativas (ADI 1307 MC, DJ 24/05/96), os Governadores de Estado e do Distrito Federal (ADI 2095 MC, DJ 19/09/03), as confederações sindicais (ADI 1526 QO, DJ 21/02/97) e as entidades de classe de âmbito federal (ADI 1139 MC, DJ 02/12/94). No que toca às confederações sindicais e as entidades de classe, o requisito da pertinência temática já foi caracterizado como: i) a relação de pertinência entre a defesa do interesse próprio do legitimado e o objeto da ação (ADI 4.722 AgR, DJ de 15/02/17; ADI 2.747, DJ de 17/08/07); ii) a existência de correlação entre o objeto da declaração de inconstitucionalidade e o escopo institucional associativo (ADI 5962, DJ de 25/02/2021; ADI 4.400, DJ de 2/10/2013); iii) e a repercussão, direta ou indireta, da norma contestada sobre a atividade profissional ou econômica da classe envolvida (ADI 5135, DJ de 07/02/2018). A exigência de que o legitimado demonstre seu "interesse" no julgamento da ação constitucional é, em certa medida, incoerente. As ações de controle concentrado são objetivas, voltando-se à discussão do Direito e, não, dos interesses subjetivos de partes. Por isso, o ministro Gilmar Mendes há tempo, defende, no campo doutrinário e jurisdicional, a revisão da jurisprudência do STF para eliminar, totalmente, o requisito da pertinência temática2. Também a ministra Rosa Weber já sustentou ser contrária à aplicação do requisito da pertinência temática, posto que incompatível com a Constituição (ADIn 4066 e ADIn 4406). Nos últimos anos, no entanto, o Supremo Tribunal Federal, tem revisto a sua jurisprudência. Gradativamente, a exigência de pertinência temática tem sido mitigada. Já se entendeu, por exemplo, que tal requisito "deve ser examinado com largueza em atenção aos fins do controle concentrado" (ADPF 97, DJ 30/10/2014) e que "a dúvida quanto à legitimidade (...) deve favorecer a parte requerente" (ADC 57, DJ 05/12/2019). No julgamento da PSV 53, o STF proferiu decisão paradigmática, entendendo que a Associação Nacional de Procuradores do Trabalho teria legitimidade para buscar a revisão da Súmula Vinculante nº 4, que veda a utilização do salário mínimo como indexador de base de cálculo de servidor ou empregado3. De forma explícita, o ministro Ayres Brito, observou que "o Supremo Tribunal vem mitigando sua antiga jurisprudência defensiva interpretando cum granus salis a questão da pertinência temática. Tudo com o espoco de ampliar o debate constitucional e legitimar ainda mais as decisões desta Suprema Corte4. Outra decisão relevante foi proferida no julgamento da ADI 3961, em que se reconheceu a legitimidade ativa da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho e da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho para questionar a constitucionalidade de dispositivos de lei dispondo sobre o transporte rodoviário de cargas5. Houve quem indagasse, inclusive, se o requisito da pertinência temática não teria sido superado depois desse precedente6. Lamentavelmente, não foi. O Supremo Tribunal continua exigindo a demonstração da pertinência temática aos legitimados especiais, embora de forma casuística. Situações semelhantes podem receber tratamentos distintos, conforme a repercussão do caso, o momento político, ou a capacidade do interessado de defender, adequadamente, um ponto de vista, agindo como um catalisador da discussão de um tema constitucional relevante.  No caso da ADC 62, o Colegiado proferiu decisão elogiável, ao reconhecer a legitimidade das confederações sindicais patronais, uma vez que está em discussão a constitucionalidade de um dos pontos mais polêmicos da reforma trabalhista: a nova redação do art. 702, da CLT, que impõe balizas para a edição de súmulas e enunciados de jurisprudência no âmbito da Justiça do Trabalho. Os requisitos diferenciados, aliás, têm sua razão de ser, pois o TST incorreu em excessos, modificando sua jurisprudência abruptamente, sem julgar casos concretos e sem que houvesse precedentes de seus órgãos fracionários7. __________ 1 Estabelece o art. 702, I, f e § 3°, entre as atribuições dos Tribunais do Trabalho, a de "estabelecer ou alterar súmulas e outros enunciados de jurisprudência uniforme, pelo voto de pelo menos dois terços de seus membros, caso a mesma matéria já tenha sido decidida de forma idêntica por unanimidade em, no mínimo, dois terços das turmas em pelo menos dez sessões diferentes em cada uma delas, podendo, ainda, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de sua publicação no Diário Oficial".  2 "A relação de pertinência envolve inequívoca restrição ao direito de propositura, que, tratando-se de processo de natureza objetiva, dificilmente poderia ser formulada até mesmo pelo legislador ordinário. A relação de pertinência assemelha-se muito ao estabelecimento de uma condição da ação - análoga, talvez, ao interesse de agir do processo civil -, que não decorre dos expressos termos da Constituição e parece ser estranha à natureza do sistema de fiscalização abstrata de normas." Curso de direito constitucional. 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 1.116. No mesmo sentido: MEIRELES, Hely Lopes; WALD, Arnold; MENDES, Gilmar Ferreira. Mandado Segurança e Ações Constitucionais, 38ª edição. São Paulo: Malheiros, 2019, p. 432. 3 Súmula Vinculante 4 - Salvo nos casos previstos na Constituição, o salário mínimo não pode ser usado como indexador de base de cálculo de vantagem de servidor público ou de empregado, nem ser substituído por decisão judicial. 4 "Agravo regimental na proposta de revisão da súmula vinculante nº 4. Reconhecida a legitimidade ativa ad causam da Associação Nacional de Procuradores do Trabalho. Demonstração da pertinência temática entre os fins institucionais da proponente e a matéria suscitada. Evolução jurisprudencial. Rediscussão de tema que ensejou a edição de súmula, sem acréscimo de fato ou argumento jurídico novo. Agravo regimental a que se dá parcial provimento. (PSV 53 AgR, Relator: DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 12/03/2019, DJ 16/04/2019)". 5 "PROCESSO CONSTITUCIONAL. AGRAVO REGIMENTAL EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 5º, CAPUT E PARÁGRAFO ÚNICO, E ART. 18, DA LEI 11.442/2007. LEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM. ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS MAGISTRADOS DA JUSTIÇA DO TRABALHO - ANAMATRA. ART. 103, IX, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. REPRESENTATIVIDADE NACIONAL. PERTINÊNCIA TEMÁTICA. CORRELAÇÃO ENTRE A NORMA IMPUGNADA E AS FINALIDADES DA ASSOCIAÇÃO AUTORA. PROVIMENTO. DECISÃO MAJORITÁRIA. (ADI 3961 AgR, Relator: ROBERTO BARROSO, Relatora p/ Acórdão: ROSA WEBER, Tribunal Pleno, DJ 30/07/2020)". 6 Beatriz Bastide Horbach, "A gradual supressão da exigência da pertinência temática em controle abstrato". 7 Tal prática acaba por criar pautas de conduta sem a maturação da discussão quanto aos temas tratados, indispensável não apenas para efetiva observância do princípio constitucional da segurança jurídica. O ministro Gilmar Mendes, em decisão liminar proferida na ADPF 323, reconheceu essa prática do TST, absolutamente inconstitucional, na revisão da sua Súmula 277. Segundo o ministro, "Sem precedentes ou jurisprudência consolidada, o TST resolveu de forma repentina - em um encontro do Tribunal para modernizar sua jurisprudencia! - alterar dispositivo constitucional do qual flagrantemente não se poderia extrair o princípio da ultratividade das normas coletivas. Da noite para o dia, a Súmula 277 passou de uma redação que ditava serem as normas coletivas válidas apenas no período de vigência do acordo para o entendimento contrário, de que seriam válidas até que novo acordo as alterasse ou confirmasse. A alteração do entendimento sumular sem a existência de precedentes que a justifiquem é proeza digna de figurar no livro do Guiness, tamanho o grau de ineditismo da decisão que a Justiça Trabalhista pretendeu criar".
É dos tribunais a competência originária para julgar ações rescisórias. Trata-se de regra de competência funcional e, portanto, absoluta. O art. 113, § 2º do CPC/73, continha regra expressa sobre a consequência de vir a ser reconhecida a incompetência absoluta do juízo, quando ainda em curso o processo. A solução era o encaminhamento dos autos ao juízo competente. A regra era clara: "Declarada a incompetência absoluta, somente os atos decisórios serão nulos, remetendo-se os autos ao juiz competente".1 O reconhecimento da falta desse pressuposto processual de validade - competência-, desse modo, não gerava a extinção da ação, mas sua redistribuição ao órgão jurisdicional competente, para nele ser julgada a demanda. Esse, contudo, não era o entendimento, que prevalecia na jurisprudência, no caso de ser reconhecida a incompetência absoluta para o julgamento de ação rescisória. Para essa hipótese - injustificadamente, em nosso entender - a jurisprudência era no sentido de que a ação rescisória deveria ser extinta, sem análise do mérito.2 O STJ, sob o regime do CPC/73, entendia que, se se tratasse de mera indicação equivocada do órgão judicial competente, seria possível determinar-se a emenda da ação rescisória e, após os ajustes necessários, remeter os autos ao juízo competente. Se o erro, porém, estivesse na própria impugnação, dirigida a acórdão que não teria sido o último a decidir o mérito, a ação rescisória deveria ser extinta, por impossibilidade jurídica do pedido ou falta de interesse de agir.3 Ocorre que, via de regra, o que leva a parte a indicar erroneamente o Tribunal competente para julgar a ação rescisória é a dúvida em relação à qual teria sido a última decisão a resolver, efetivamente, o mérito. Portanto, o discrímen do STJ, à luz do CPC/73, não fazia sentido e era causa de inúmeras injustiças.4 Não raras vezes, a dúvida gerada na parte é criada pelos tribunais superiores ao usarem a expressão não conhecer de um recurso - que remete ao juízo de inadmissibilidade - em situações em que, pela leitura do acórdão, verifica-se terem ingressado no juízo de mérito. Outras vezes, a parte depara com decisões parciais de mérito, transitadas em julgado em momentos diferentes. Havendo vários capítulos de decisão, um deles pode transitar em julgado antes, porque desse específico capítulo do acórdão do Tribunal local não foi interposto recurso, e outros, depois, porque deles foi interposto recurso especial conhecido e julgado no mérito. Seriam cabíveis duas ações rescisórias? Apenas uma, absorvendo o Tribunal Superior a competência para desconstituir a parte da decisão proferida pelo Tribunal local? De acordo com a súmula 515 do STF, adotada pelo STJ, "A competência para a ação rescisória não é do STF, quando a questão federal, apreciada no recurso extraordinário ou no agravo de instrumento, seja diversa da que foi suscitada no pedido rescisório". Em regra, quando o recurso especial é conhecido, o acórdão aí proferido, seja de provimento ou desprovimento do recurso, substituirá o acórdão do Tribunal local. Por isso, será do STJ a competência para julgar a ação rescisória, salvo, conforme o enunciado da mencionada Súmula 515, se a violação à norma jurídica, apontada como fundamento da ação desconstitutiva, disser respeito à questão nunca antes ventilada. Nesse caso, não terá havido substituição de um acórdão pelo outro, porque a questão não terá sido apreciada nem mesmo pelo Tribunal local. E se um dos fundamentos da ação rescisória disser respeito à matéria decidida pelo STJ e o outro envolver matéria que não tenha sido objeto de sua decisão?  Prorroga-se a competência do STJ para o exame de ambos os fundamentos? Todas essas eram e continuam sendo situações que podem gerar dúvidas sobre qual é o juízo competente para julgar a ação rescisória. A nosso ver, é absolutamente injustificável a postura dos tribunais, sob o regime do CPC/73, de extinguirem ação rescisória que reputavam não ter sido proposta no juízo competente. Afinal, a imprecisão das decisões, bem como a controvérsia existente na própria jurisprudência e na doutrina não podem prejudicar a parte. O raciocínio que se deve fazer é o mesmo que norteia a incidência do princípio da fungibilidade, que é ditado no interesse da parte.5 Na doutrina, já ao tempo do regime anterior, havia vozes que se opunham à extinção da ação rescisória em razão do reconhecimento da incompetência do Tribunal. Assim, por exemplo, Rodrigo Barioni já sustentava que ao autor deveria ser dada a oportunidade de emendar a petição inicial.6 Na jurisprudência, também, havia algumas poucas decisões em sentido diverso.7 Em boa hora, portanto, o CPC/2015 dispôs, expressamente, no art. 968, § 5º, que, quando reconhecida pelo tribunal sua incompetência para julgar a ação rescisória, o autor será intimado para emendar a petição inicial, a fim de adequar o objeto da ação rescisória. O § 6º do mesmo dispositivo, por sua vez, dispõe que, após a emenda da petição inicial, será permitido ao réu complementar os fundamentos da defesa, para posterior remessa ao juízo competente. E essa, segundo pensamos, deve ser a conduta dos tribunais em qualquer situação: quer se trate de mera indicação equivocada do órgão competente para julgar a ação rescisória; ou de equívoco na indicação da própria decisão cuja desconstituição se requer; quer tenha sido a ação rescisória distribuída junto ao tribunal superior, quando deveria sê-lo no tribunal local, ou vice-versa.8 Em nosso entender, o princípio da instrumentalidade deve ter aplicabilidade plena, não sendo necessária sequer a configuração de dúvida objetiva.  Essa nova regra, introduzida pelo art. 968, §§ 5º e 6º, do CPC/15, aplica-se às ações rescisórias propostas de decisões transitadas em julgado já sob a égide desse novo diploma legal. E quanto às ações rescisórias propostas sob o regime do CPC anterior e ainda em curso, ou propostas quando já em vigor o CPC/15, mas de decisões transitadas em julgado ainda sob o CPC/73? Afastando a possibilidade de intimação da parte para emenda de petição inicial de ação rescisória proposta sob o regime anterior, veja-se a seguinte decisão do STJ: "À ação rescisória ajuizada sob a égide do CPC/1973, em que se reconheceu a incompetência do STJ para processar e julgar o feito, é inaplicável o procedimento entabulado no art. 968, §§ 5º e 6º, do CPC/2015, segundo o qual, reconhecida a incompetência do tribunal para julgar a ação rescisória, deve o autor ser intimado para emendar a inicial, a fim de adequar seu objeto, quando 'a decisão apontada como rescindenda não tiver apreciado o mérito e não se tratar das exceções previstas no parágrafo 2º do art. 966 do CPC'. 3. Hipótese em que o novel regramento processual, que a peticionante deseja ver observado, ainda não vigia ao tempo da decisão indeferitória da inicial."9 Há, contudo, acórdãos no sentido de que, constatada a incompetência absoluta do tribunal perante o qual a ação rescisória foi ajuizada, deve o relator determinar a emenda da inicial para readequação do objeto da ação e a posterior remessa dos autos ao juízo competente para apreciação da demanda, ainda que a decisão rescindenda tenha transitado em julgado sob o regime anterior.10 De acordo com esses acórdãos, opera-se a incidência imediata da regra dos §§ 5º e 6º do artigo 968, às ações rescisórias em curso quando da entrada em vigor do CPC/2015 ou às ações rescisórias propostas já sob a égide do CPC/2015, em que as decisões rescindendas tenham transitado em julgado sob o regime anterior. Assim se decidiu na Ação Rescisória n. 4.797/MG, de que foi relatora a Ministra Isabel Gallotti, que entendeu que, sendo o art. 968, e seus §§ 5º e 6º, norma de natureza procedimental, não há óbice à sua aplicação imediata, nos termos do art. 14 do CPC/2015. De acordo com o Ministro Marco Aurélio Bellizze, no voto que proferiu no REsp. 1.756.749/MS, "(...) 5. Não obstante a presente ação rescisória tenha sido proposta sob a égide do diploma processual revogado, o julgamento de extinção do processo sem resolução de mérito pelo TJMS, em virtude de incompetência, se deu à luz do CPC/2015, de forma a incidir a lei nova e, por conseguinte, o atendimento à providência do art. 968, §§ 5º e 6º, do CPC/2015, por configurar regra de procedimento, que deve ser observada quando houver dúvida fundada acerca da competência, como na hipótese"11. Também o Ministro Luis Felipe Salomão fez relevantes observações sobre a questão, em voto proferido no AgInt nos EDcl no REsp 1.611.431/MT12. Esclareceu que, a seu ver, encontra-se superada a jurisprudência do STJ, segundo a qual seria inaplicável à ação rescisória o § 2º do art. 113 do CPC/73. Tendo sobrevindo regra específica de julgamento da ação rescisória, que, destacou o Ministro, já encontrava guarida na regra geral do § 2º do art. 113 do Código revogado, não se verifica óbice à sua aplicação imediata. Em seu voto se lê que "o equívoco do endereçamento da inicial não caracteriza situação jurídica consolidada, ou seja, não fica cristalizado por força de jurisprudência superada pelo próprio legislador, que deixou claro que a regra geral (de remessa dos autos ao juízo competente quando reconhecida hipótese de incompetência absoluta) sempre abrangera o procedimento atinente à ação rescisória". Fez, ainda, o Ministro Luis Felipe Salomão a distinção que entende haver entre a situação gerada pelo reconhecimento da incompetência absoluta, que envolve questão relativa a procedimento, daquela relacionada à falta dos pressupostos para ajuizamento da ação rescisória, precipuamente suas hipóteses de cabimento. No primeiro caso, opera-se a incidência imediata da lei nova. No outro, incide a lei vigente à época em que a decisão rescindenda transitou em julgado, porque se está tratando da própria configuração do direito à rescisão. Não há, dessa forma, incompatibilidade com o que se decidiu na Questão de Ordem AR 5.931/SP, acerca das hipóteses de cabimento da ação rescisória.  Com efeito, a regra da eficácia imediata da nova norma processual, prevista no art. 14 do CPC/2015, deve ser bem compreendida. No ambiente do processo, a norma que incide é aquela em vigor no momento em que se adquire o direito à prática de um ato13. É a data em que a decisão se tornou recorrível, por exemplo, que determina qual é o recurso cabível. No que se refere à rescisão do julgado, os seus possíveis fundamentos e prazo para o exercício do direito serão aqueles especificados na lei em vigor na data em se operou o trânsito em julgado. A nova norma não pode atingir situações jurídicas constituídas, nem o curso de prazos já iniciados. Mas a situação é diversa quando se trata do reconhecimento da incompetência absoluta. Este não é o espaço para a incursão mais profunda nas regras de direito intertemporal. Mas é indiscutível que a interpretação no sentido da aplicação imediata do art. 968, e seus §§ 5º e 6º às ações rescisórias em curso, de decisões transitadas em julgado sob o regime anterior, é a mais consentânea com os princípios da instrumentalidade e da primazia do julgamento de mérito14. Não se estará, com a sua incidência imediata, alcançando situações consolidadas, dentro do processo. Tanto é assim, que o art. 43 do CPC/2015 (correspondente ao art. 87 do CPC/73) prevê que as normas que alteram a competência absoluta (material ou funcional) incidem imediatamente. Em outras palavras, são capazes de afastar a regra da perpetuação da jurisdição. De rigor, a única interpretação compatível com o que previa o art. 113, § 2º, do CPC/73 já era a que propugnava a  possibilidade de emenda da petição inicial da ação rescisória e seu encaminhamento ao juízo competente. O entendimento diverso era fruto de evidente distorção provocada pela chamada jurisprudência defensiva dos Tribunais. O que fez o legislador do CPC/2015 foi, em seu art. 64, reiterar o comando do mencionado art. 113, § 2º e, ainda, enfatizá-lo, no que se refere à ação rescisória, no art. 968, § § 5º e 6º, para afastar qualquer dúvida sobre a questão. ___________ 1 Com correspondente no CPC/15 ao art. 65, §§3º e 4º. 2 Como ocorreu no seguinte julgamento: "AÇÃO RESCISÓRIA. Acórdão proferido em ação discriminatória. Decisão que foi objeto de recurso, com posterior exame do mérito pelo Superior Tribunal de Justiça. Incompetência absoluta desta Corte para o processamento e julgamento da ação rescisória. Artigo 105, inciso I, "e", da Constituição Federal. Extinção do processo, sem exame do mérito, prejudicado o exame do agravo regimental". (TJSP, Ação Rescisória 0024463-55.2013.8.26.0000, 19º Grupo de Câmaras Direito Privado, j. 09.04.2014, rel. Des. Fernando Sastre Redondo, DJe 11.04.2014). 3 Nesse sentido, veja-se o seguinte acórdão do STJ que distingue "o mero erro no ajuizamento de ação rescisória em razão da competência do erro no ajuizamento em razão da matéria, com diferentes consequências. No primeiro caso, entende-se possível remeter o processo ao Tribunal competente, porquanto o erro está unicamente na indicação do órgão judiciário competente, mantendo-se incólume a inicial que impugna o correto acórdão a ser rescindido. Na segunda hipótese, ao invés, tem-se vedado a possibilidade da mesma remessa, na medida em que a petição inicial, de modo equivocado, insurge-se contra acórdão diverso, ou seja, contra decisão que não se constitui no efetivo acórdão rescindendo, sendo inviável fazer-se a correção do pedido e da causa de pedir articulados na inicial" (STJ, EDcl no AgInt na AR 5.613/RJ, 2ª Seção, j. 08.11.2017, rel. Min. Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª região), DJe 13.11.2017). 4 Conforme já nos manifestamos, em coautoria com Teresa Arruda Alvim, na obra Ação Rescisória e Querela Nullitatis. 2.ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 187 e ss. 5 Idem, p. 191. 6 BARIONI, Rodrigo. Observações sobre o procedimento da ação rescisória. In: NERY JUNIOR, Nelson; ARRUDA ALVIM, Teresa (Coord.). Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e assuntos afins. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, v.10, p. 526. 7 STJ, Ação Rescisória 4582, 1ª Seção, j. 11.05.2011, rel. Min. Benedito Gonçalves, DJe 24/05/2011, de cuja ementa extrai-se o seguinte: "PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO RESCISÓRIA SUCESSIVA. REAJUSTE DE 28,86%. CONCESSÃO DA ANTECIPAÇÃO DE TUTELA AD REFERENDUM DO ÓRGÃO JULGADOR. ART. 34, V E VI, DO RISTJ. NÃO ADMISSÃO DO CORTE RESCISÓRIO NESTA CORTE SUPERIOR. SÚMULA 515/STF. REMESSA DOS AUTOS À CORTE REGIONAL. 1. Submissão ao Colegiado, ad referendum, de liminar concedida em sede de ação rescisória, ajuizada de forma sucessiva à AR 4.564/DF (de competência desta Corte) e que ataca outros vícios supostamente ocorridos no julgamento feito pela Corte a quo. 2. Na hipótese, a rescisória sucessiva vai além dos limites da norma constitucional, pois o acórdão proferido por esta Corte só se manifestou acerca da prescrição, dado que não cabe a este Tribunal rescindir aquilo que não julgou. Evita-se, dessa forma, eventual rescisão per saltum. Incide, na espécie, a Súmula 515/STF: "A competência para a ação rescisória não é do Supremo Tribunal Federal, quando a questão federal, apreciada no recurso extraordinário ou no agravo de instrumento, seja diversa da que foi suscitada no pedido rescisório". Por conseguinte, deve ser afastada a conexão por prejudicialidade desta ação com a AR 4.564/DF. 3. Diante da singularidade do caso, deve ser acolhido o pedido de remessa dos autos ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região, máxime pela propositura da primeira rescisória nesta Corte (AR 4.564/DF), por dúvida plausível acerca do Juízo competente para o julgamento da ação e pela fluência do prazo decadencial, circunstâncias essas que, se não observadas, dificultariam o exercício do direito de ação da autora. 4. Além disso, considerando a verossimilhança das alegações e o fundado receio de dano irreparável à União, em face do poder geral de cautela facultado ao magistrado, mantém-se os efeitos da tutela pretendida até o pronunciamento da Corte Regional. 5. Decisão liminar mantida até nova manifestação pela Corte regional. 6. Reconhecida a incompetência do STJ para o julgamento da ação rescisória, com a determinação de remessa dos autos ao TRF da 1ª Região". 8 Conforme já nos manifestamos em outra oportunidade, em obra em coautoria com Teresa Arruda Alvim. Ação Rescisória e Querela Nullitatis. 2.ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 189. 9 STJ, PET na AR 5.560/PE, 1ª Seção, j. 08.03.2017, rel. Ministro Gurgel de Faria, DJe 04.04.2017. 10 STJ, AR 4.797/MG, 2ª Seção, j. 23.06.2021, rel. Min. Maria Isabel Galotti, DJe 30.06.2021; REsp 1756749/MS, 3ª Turma, j. 24.11.2020, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, DJe 03.12.2020; AgInt nos EDcl no REsp 1611431/MT, 4ª Turma, j. 28.11.2017, rel. Min. Luís Felipe Salomão, DJe 01.12.2017. 11 STJ, REsp 1756749/MS, 3ª Turma, j. 24.11.2020, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, DJe 03.12.2020. 12 STJ, AgInt nos EDcl no REsp 1611431/MT, 4ª Turma, j. 28.11.2017, rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 01.12.2017. 13 Foi o que sustentamos, em coautoria com Teresa Arruda Alvim et. all. em Direito Intertemporal. In: Temas Essenciais do NCPC. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, cap. 48. 14 Conforme salientou o Min. Luis Felipe Salomão, no já mencionado voto que proferiu no AgInt nos EDcl no REsp 1611431/MT, Quarta Turma, j. 28.11.2017, DJe 01.12.2017.
Nos últimos 24 meses, foram distribuídos 2.402 pedidos de recuperação judicial no Brasil1. Em média, portanto, a cada mês que passa o Judiciário  depara com 100 novas recuperações judiciais. Esse cenário preocupante é ainda agravado pelos assoladores efeitos econômicos que a pandemia provocou em nosso país, ampliando o grau de endividamento das empresas que se mantêm no mercado. Ao tempo em que o inadimplemento aumenta e os pedidos de recuperação judicial avançam, a demanda por crédito a taxas mais acessíveis cresce. A conta da intermediação financeira não fecha. Viabilizar a injeção de crédito num mercado de instabilidade econômica e política não é tarefa simples, porém é medida imprescindível para a recuperação da economia nacional. A importância do papel do Judiciário, especialmente num cenário como esse, é indiscutível, vez que a coerência e previsibilidade de suas decisões é fator que reduz as incertezas e riscos e, quando o assunto é crédito, redução de riscos significa redução de custos. Ou seja: mais crédito disponível, a taxas mais atrativas. Todos ganham. Por essa razão, decisões que contribuem para a fortalecimento da segurança jurídica em temas afetos à contratação do crédito devem ser celebradas. É o caso do acórdão prolatado pela 2ª Seção do STJ, no julgamento do RESP nº 1.794.209/SP, publicado em junho deste ano.2 O recurso, inicialmente, havia sido distribuído para a 3ª Turma. Porém, em razão da relevância da matéria em debate, foi, em fevereiro de 2021, afetado para julgamento perante a 2ª Seção. Por maioria de votos,3 entendeu-se que a anuência do titular da garantia real ou fidejussória é indispensável para que o plano de recuperação judicial possa prever a sua supressão ou substituição. O Acórdão, relatado pelo Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, restou assim ementado: RECURSO ESPECIAL. DIREITO EMPRESARIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. PLANO DE RECUPERAÇÃO. NOVAÇÃO. EXTENSÃO. COOBRIGADOS. IMPOSSIBILIDADE. GARANTIAS. SUPRESSÃO OU SUBSTITUIÇÃO. CONSENTIMENTO. CREDOR TITULAR. NECESSIDADE. 1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ). 2. Cinge-se a controvérsia a definir se a cláusula do plano de recuperação judicial que prevê a supressão das garantias reais e fidejussórias pode atingir os credores que não manifestaram sua expressa concordância com a aprovação do plano. 3. A cláusula que estende a novação aos coobrigados é legítima e oponível apenas aos credores que aprovaram o plano de recuperação sem nenhuma ressalva, não sendo eficaz em relação aos credores ausentes da assembleia geral, aos que abstiveram-se de votar ou se posicionaram contra tal disposição. 4. A anuência do titular da garantia real é indispensável na hipótese em que o plano de recuperação judicial prevê a sua supressão ou substituição. 5. Recurso especial interposto Tonon Bionergia S.A., Tonon Holding S.A. e Tonon Luxemborg S.A. não provido. Agravo em recurso especial interposto por CCB BRASIL - China Construction Bank (Brasil) Banco Múltiplo não conhecido. A possibilidade de o credor executar seu crédito em face dos coobrigados da recuperanda havia sido reconhecida, ainda em 2016, quando editada a Súmula nº 581/STJ, segundo a qual "a recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das ações e execuções ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória."  O art. 49, §1º da lei 11.101/2005 (Lei de Recuperação Judicial e Falência - LRJF), inclusive, dispõe que "os credores do devedor em recuperação judicial conservam seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso".  Não obstante a literalidade da lei, é frequente a inclusão, no plano de recuperação, de cláusula extensiva da novação aos coobrigados, não sujeitos ao procedimento recuperacional. É nesse contexto que se destaca a orientação firmada no acórdão do RESP nº 1.794.209/SP. Prevaleceu, perante a 2ª Seção, o entendimento de que, ainda que prevista no plano de recuperação aprovado por maioria, a cláusula que trata da supressão ou substituição das garantias reais e fidejussórias só pode atingir os credores que manifestaram expressa concordância com seu teor em assembleia geral. Na oportunidade, confirmou-se se que a novação decorrente do plano de recuperação judicial - diferentemente daquela disciplinada no Código Civil - não faz desaparecer as garantias reais ou fidejussórias oferecidas por coobrigados em relação a dívidas submetidas à recuperação. Tal posicionamento já havia sido pacificado por ocasião do julgamento do REsp nº 1.333.349/SP, submetido ao rito dos repetitivos (de que derivou o enunciado da citada súmula 581/STJ). Além do entendimento de que a novação da LFRJ é sui generis, restou reconhecido agora que a eficácia da cláusula extensiva de novação sujeita-se à anuência do titular da garantia, sendo vedado impor seus efeitos àqueles credores que deixaram de concordar com tal previsão. A cláusula do plano de recuperação que imponha a todo e qualquer credor a substituição ou supressão das garantias dos devedores solidários, portanto, estará sujeita ao controle de legalidade, devendo o juízo universal afastar seus efeitos em relação aos credores que não manifestaram concordância em assembleia.  A discussão havida em torno da higidez das garantias oferecidas por coobrigados em relação a dívidas sujeitas à recuperação judicial tem grande impacto nas relações creditícias. Atento à relevância do tema, o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva destacou, em seu voto: "Com efeito, é inegável que a segurança jurídica proporcionada pelas garantias em geral tem um grande reflexo no setor econômico do país, visto que o credor, confiante no retorno de seus investimentos, tende a disponibilizar capital mais barato e, como consequência, o número de empréstimos aumenta, atraindo mais investidores.  O cenário de incerteza quanto ao recebimento do crédito em decorrência do enfraquecimento das garantias é desastroso para a economia do país, pois gera o encarecimento e a retração da concessão de crédito, o aumento do spread bancário, a redução da circulação de riqueza, provoca a desconfiança dos aplicadores de capitais, nacionais e estrangeiros, além de ser nitidamente conflitante com o espírito da lei 11.101/2005 e com as novas previsões de financiamento trazidas pela lei 14.112/2020". A preocupação externada pelo Ministro Relator, em seu voto, decorre da irrepreensível consciência de que o Judiciário, mais do que de solucionar conflitos de interesses individuais, fixa pautas de conduta aos jurisdicionados, especialmente por meio dos Tribunais Superiores, que, num contexto macroeconômico, vão influir nos custos de transação. Por isso, não parece exagero afirmar que a conclusão exarada no REsp 1.794.209/SP é um grande passo para sedimentar a segurança jurídica nas questões de direito afetas à contratação do crédito no Brasil. A partir dela, a Corte Superior contribui para que o crédito se torne, cada vez mais, acessível. É verdade que, quando o assunto é recuperação judicial, ainda há muito sobre o que se deve refletir com vistas a melhorar o sistema. Imprescindível, neste campo, a uniformização jurisprudencial. Desejável seria a formação de precedentes vinculantes, num futuro não tão distante. O entendimento firmado por ocasião do julgamento do REsp 1.794.209/SP, contudo, parece ser um passo na direção certa. *Daniela Peretti D'Ávila é mestre em Direito Processual Civil pela PUC-SP. Advogada e sócia do escritório Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados. **Raissa di Carlo Carvalho Oliveira é pós-graduada em Direito Processual Civil pelo Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar. Graduada pela UFPR. Advogada do escritório Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato. __________ 1 Dados extraídos do arquivo "Falências, Recuperações Judiciais e Concordatas - Acumulado Anual" alimentada e mantida pelo Serasa Experian. Disponível aqui. Acesso em 30/07/2021. 2 REsp 1794209/SP, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Segunda Seção, julgado em 12/05/2021, DJe 29/06/2021. 3 Vencidos os Ministros Marco Aurélio Bellizze, Moura Ribeiro e Paulo de Tarso Sanseverino.
O processo civil brasileiro sofre de dores de crescimento. Avança muito em certos pontos e deixa outros para trás. Inevitável, porque assim é o processo de crescimento. Acredito que isso só não aconteça com um processo civil estagnado. O nosso, felizmente, se adapta. O legislador de 2015 criou um sistema de precedentes cuja função é, não exclusiva, mas predominantemente, a de  administrar a delicada questão da litigância de massa. Assim, por exemplo, em face da multiplicação de ações, coletivas ou individuais, que giram em torno de casos idênticos, pode o Tribunal Superior ou mesmo o de 2º grau, selecionar um ou mais recursos para que seja(m) julgado(s), e, assim, formar um precedente vinculante. Criou-se, portanto, um sistema que parece ser capaz de produzir bons resultados, mas que se afasta da nossa tradição - nunca tivemos precedentes vinculantes - e mesmo da tradição do common law - lá os precedentes não nascem vinculantes, não são vocacionados a resolver o problema de litigância de massa e não há a redação de teses. O que são essas teses? São ou devem ser - a essência do precedente. São uma forma de facilitar a compreensão do sentido e da extensão da decisão, para que possa ser operativa, de fato, sua vinculatividade. Algumas teses se parecem com enunciados normativos e outras contêm a ratio. Essa afirmação é oportuna, embora não seja este o espaço adequado para se discutir essa diferença, que, aliás, não é importante para o que aqui se pretende sustentar. Como  se trata de  um procedimento cujo objetivo é gerar uma decisão jurisdicional com forte carga normativa, já que a lei reconhece abertamente que se trata de precedentes vinculantes, é necessário que a formação dessas teses seja precedida de algum debate democrático, o que felizmente vem acontecendo como decorrência da convocação ou da admissão da intervenção de amici curiae e da realização de audiências públicas. Além disso, as partes interessadas e os próprios amici curiae podem intervir também num segundo momento, que é justamente aquele em que se desenha a versão final da tese: o  que com certeza será tido como o parâmetro para que se saiba precisamente qual o  conteúdo do precedente e, portanto, qual o exato teor da decisão que vincula. Pode acontecer que a tese não reflita de modo fiel a decisão  tomada ou não contenha os pressupostos considerados necessários para que se tenha chegado àquela conclusão ou, ainda, não discrimine exatamente os casos aos quais o precedente deve ser aplicado. Os embargos de declaração são um veículo extremamente útil, por meio do qual as partes podem se manifestar pedindo a adequação da tese firmada àquilo que tenha sido efetivamente decidido. Trata se, como se percebe, do uso inortodoxo do recurso de embargos de declaração. De fato, art. 1022 não prevê, em nenhum dos seus dispositivos, a possibilidade do manejo dos embargos de declaração com essa finalidade: de rigor não se trata de omissão, nem de obscuridade, nem de contradição, nem de erro material e, na verdade, nem caberia recurso algum de uma tese, já que a tese não é uma decisão judicial. Como se sabe, recursos podem ser manejados contra decisões judiciais, por isso é que não cabem, por exemplo, contra um voto, mas só contra o próprio acordão. É oportuna, aqui, a lembrança da admissão, em nosso sistema, dos recursos especiais e extraordinários interpostos contra decisão de IRDR: também é inortodoxo admitir-se recurso de decisão sobre tese jurídica, que não resolve propriamente um caso concreto. Assim, parece evidente que o sistema não só permite, como aconselha o uso dos embargos de declaração com essa finalidade, até porque eles acabam se convertendo num poderoso instrumento para tornar o sistema de precedentes mais eficiente, dando-lhe, também, mais legitimidade democrática. São as dores do crescimento: o código criou um sistema interessante de precedentes, que tem o potencial de levar a efeito, de uma forma bastante visível, o princípio da isonomia, racionalizando o trabalho do Poder Judiciário e criando, como é óbvio, mais previsibilidade e segurança jurídica. Esqueceu-se, todavia, o legislador de acrescentar mais um inciso ao artigo 1022, permitindo o uso do recurso pelas partes ou pelos amici curiae para efeito de aprimorar o sistema de precedentes, sendo este um caminho que pode levar ao aprimoramento da versão final da tese. Vale a pena aqui que nos lembremos de que os embargos de declaração sempre foram usados para correção de erros materiais, sem que, antes, houvesse previsão legal expressa. Isso não significa, portanto, que o recurso não possa ser manejado para  fim de auxiliar no modelar da tese : afinal, se o "mais" é possível, será possível, também, o "menos": se é possível o uso dos embargos de declaração para adequação da ementa ao acordão, em todo e qualquer acordão, a fortiori, deve ser considerado possível e desejável o uso dos embargos de declaração para corrigir a adequação entre a decisão tomada por um Tribunal Superior, num recurso repetitivo, que tem força normativa para toda a sociedade, e a tese respectiva.
quinta-feira, 29 de julho de 2021

Perda de tempo do consumidor...é indenizável?

O tema Responsabilidade Civil é um dos mais desafiadores do nosso Direito. Trata-se daqueles temas que devem ser disciplinados de forma extremamente rente à realidade da vida. Portanto, pelo seu latente dinamismo, não é incomum que antigas definições sejam revisitadas sob um diferente prisma ou sejam concebidas novas teorias.1 Passa-se a falar por exemplo, em "novos danos", de que antes não se cogitava! Isto justamente revela que as relações sociais hoje têm diferentes nuances. Passam-se a qualificar como antijurídicas certas situações fáticas anteriormente toleradas pelo direito. Neste contexto se destaca o denominado dano temporal, ou desvio produtivo do consumidor, de que aqui vamos tratar. A percepção do tempo como recurso indispensável a toda e qualquer atividade humana parece bastante óbvia. Mas como reagem os Tribunais em face desta constatação? Como o tempo vem sendo tutelado pelo nosso ordenamento jurídico? Pode se falar em indenização pela perda do tempo? A Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor vem ganhando destaque nas demandas consumeristas. Pode se dizer que com ela, inaugurou-se a possibilidade de compensação pelo dano ao tempo no Direito brasileiro. Mas, afinal, o que é o tempo? Marcos Dessaune observa com razão que "A intangibilidade, a ininterruptibilidade e a irreversibilidade são características do tempo que lhe tornam inacumulável e irrecuperável, ou seja, diferentemente dos bens materiais, trata-se de um recurso que não se pode acumular, tampouco recuperar durante a vida".2 O tempo é o nosso capital mais valioso, a nossa riqueza individual! Possibilita a produção de riquezas, a construção de relações interpessoais, a aquisição de conhecimento, a interação com o meio ambiente. É um recurso produtivo escasso de que dispõe o consumidor em suas relações de troca com os fornecedores.3-4 Para a Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor, a noção de tempo que se considera é aquela pessoal ou subjetiva, como valor ou bem, o mais valioso e verdadeiro capital do homem, a medida suprema da riqueza humana: tempo visto como recurso produtivo limitado, inacumulável e irrecuperável do consumidor. O que se pode concluir, então, sob o aspecto jurídico, é que o tempo pode ser definido como "o suporte indispensável ao exercício e à manifestação da personalidade de cada indivíduo. Como condição de promoção e realização da dignidade humana. Como recurso humano escasso, finito e irreparável e, por essa razão, inviolável."5 Assim, inegável que toda conduta ilícita é capaz de produzir, ao menos, desperdício de tempo daquele atingido pelo ato. Este já seria, em princípio, um prejuízo, em tese, apto a gerar direito à indenização. Mas na relação consumerista, existem desvios tolerados e outros não tolerados, identificáveis caso a caso, sopesando-se a licitude ou ilicitude da conduta do fornecedor, bem como o eventual excesso da conduta. Isso porque, nem todo desvio será ensejador de reparação, vez que muitos são inerentes à vida em sociedade, aos desgastes comuns do dia a dia. Somente aqueles considerados intoleráveis é que podem gerar o eventual ressarcimento. Nos nossos Tribunais, o dever de reparação do dano pelo tempo desperdiçado tem sido discutido e, quando reconhecido, enquadra-se como lesão ao patrimônio imaterial do indivíduo, ou seja, como dano moral.6 De todo o modo, o que se percebe é que a Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor deve ser aplicada com a devida cautela, com a identificação de hipóteses nas quais o consumidor efetivamente despende tempo fora do comum e energias consideráveis para a resolução de determinada questão relativa ao descumprimento contratual. Isso se vê pela recente postura dos nossos Tribunais, ou seja, é o que se observa como fundamento para a negativa da incidência da Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor: "APELAÇÃO. AÇÃO INDENIZATÓRIA. RELAÇÃO CONSUMERISTA. (...) PEDIDO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E FULCRADO NA TEORIA DO DESVIO PRODUTIVO DO CONSUMIDOR. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. (...). Impende seja dito, no tocante à teoria do desvio produtivo do consumidor, que a jurisprudência o Superior Tribunal de Justiça vem modificando seu entendimento anterior, através de uma nova interpretação, segundo a qual referida teoria tem sido incorretamente utilizada para reparar situações comuns de aborrecimentos ou frustações que, apesar de lamentáveis, possuem caráter nitidamente patrimonial, sem que houvesse intensas repercussões no bem-estar do consumidor (resp 1.406.245/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em  26.11.2019). Enfim, para configuração de danos morais exige-se mais do que transtornos e aborrecimentos previsíveis ao cotidiano da vida moderna, são situações que, fugindo à normalidade, interferem intensamente no comportamento psicológico da vítima, causando-lhe aflições e desequilíbrio em seu bem-estar, cuja demonstração inocorreu na fase probatória dos autos. (...)."7 Assim, ainda que seja razoável presumir o tempo desperdiçado pelo consumidor, nem sempre a perda deste tempo será indenizável. A perda de tempo, por si só, não caracteriza situação em que o próprio ato ou fato representaria ofensa a direito da personalidade a configurar hipótese do chamado dano in re ipsa. É preciso que a parte lesada demonstre minimamente de que forma o fato, ou a perda de tempo dele decorrente, gerou efetivo prejuízo, não bastando, tão somente, mera alegação neste sentido. Como se viu, no cenário brasileiro, a Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor, começa a ser discutida. Contudo, não se deve aplicar a referida teoria a todas as situações em que o consumidor venha a perder tempo para solucionar o seu problema junto ao fornecedor do serviço. Há situações em que esse tempo gasto deve ser considerado mero aborrecimento ou simples inadimplemento contratual, devendo ser qualificado no caso concreto. A incidência das normas protetivas do consumidor não afasta, por si só, o ônus mínimo probatório para o reconhecimento da violação a um direito. Assim, pode-se dizer, em conclusão, que deve ter havido efetivo menosprezo do fornecedor (falta de iniciativa para a resolução do problema) e a demonstração da possibilidade de que o tempo desperdiçado poderia ter sido poupado pela empresa (planejamento). A aplicação desta teoria não pode ser transformada em meio que leva ao enriquecimento sem causa. Portanto, devem os tribunais ter muita cautela e serenidade ao aplicá-la. Todo cuidado é pouco! __________ 1 Seguindo as palavras de Bruno de Almeida Lewer Amorim, as "engrenagens do Direito revelam este constante movimento, ora progressivo, ora regressivo, de fatos da vida assumindo a alcunha de fatos jurídicos e de fatos jurídicos voltando a ser apenas fatos da vida. Tudo ao balanço e ao ritmo dos paradigmas científicos e das referências culturais, econômicas e idelológicas de uma dada sociedade em um dado momento histórico". AMORIM, Bruno de Almeida Lewer. Responsabilidade civil pelo tempo perdido. 1. ed. Belo Horizonte: Editora D'Plácido, 2018. p. 43. 2 DESSAUNE, Marcos. Desvio produtivo do consumidor: prejuízo do tempo desperdiçado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 108. 3 DESSAUNE, Marcos. Teoria aprofundada do desvio produtivo do consumidor: o prejuízo do tempo desperdiçado e da vida alterada. 2. Ed. Vitória/ES: Marcos Dessaune, 2017. p. 153-154. 4 Laís Bergstein, destaca a relevância do tempo no universo jurídico: "Se o tempo é um recurso indispensável ao desempenho de toda atividade humana, além de um valor finito, escasso e não renovável, que pode ter relevantes reflexos patrimoniais, ele invoca e passa a merecer a tutela jurisdicional." BERGSTEIN, Laís. O Tempo do Consumidor e o Menosprezo Planejado: O Tratamento Jurídico do Tempo Perdido e a Superação das suas Causas. São Paulo: Editora Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 46. 5 AMORIM, Bruno de Almeida Lewer. Responsabilidade civil pelo tempo perdido. Belo Horizonte: Editora D'Plácido, 2018. p. 65. 6 "Apelação. Prestação de serviços de internet. Ação de declaratória de nulidade de dívida c.c. pedido de danos morais. Falha na prestação de serviços por parte da ré caracterizada. Cobrança indevida por serviços que foram devidamente prestados. Autora que foi privada de tempo relevante para se dedicar ao exercício de atividades que melhor lhe aprouvesse, diante da conduta desidiosa do fornecedor que lhe provocou injusta perda de tempo para solucionar problema de vício do serviço. Aplicação da teoria do "desvio produtivo do consumidor". Danos morais caracterizados. Sentença de parcial procedência parcialmente reformada. Recurso parcialmente provido. (g.n)" TJSP. Apelação Cível 1003285-42.2020.8.26.0047; Relator (a): Pedro Kodama; Órgão Julgador: 37ª Câmara de Direito Privado; Foro de Assis - 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 22/04/2021; Data de Registro: 22/04/2021. 7 TJRJ. 0013667-26.2020.8.19.0203 - APELAÇÃO. Des(a). MARIA HELENA PINTO MACHADO - Julgamento: 17/03/2021 - QUARTA CÂMARA CÍVEL. Também no mesmo sentido: TJRS. Apelação Cível, Nº 70082962473. Julgado em: 12-12-2019.
O art. 1.030 do CPC, determina que, apresentadas as contrarrazões, o presidente ou vice-presidente do tribunal recorrido, poderá inadmitir o recurso especial ou extraordinário: i) por ausência de qualquer dos requisitos de admissibilidade, positivos ou negativos, gerais ou específicos, dos referidos recursos (1.030, V); ii) sempre que o acórdão impugnado esteja em conformidade com tese fixada em recursos repetitivos (1.030, I, b); e iii) quanto ao recurso extraordinário, sempre que discuta questão constitucional à qual o Supremo Tribunal Federal não tenha reconhecido a existência de repercussão geral ou a recurso extraordinário interposto contra acórdão que esteja em conformidade com entendimento do Supremo Tribunal Federal exarado no regime de repercussão geral (1.030, I, a).  O mesmo artigo afirma que contra a decisão de inadmissibilidade prolatada sob os fundamentos expostos no inciso I, caberá agravo interno (1.030, §2º) e que contra a decisão de inadmissibilidade prolatada na forma do inciso V, caberá agravo em recurso especial. Ou seja, contra a decisão de inadmissibilidade, prolatada pelo tribunal recorrido, caberá um ou outro recurso, a depender do fundamento adotado na decisão. Apenas isso já seria suficiente para gerar incerteza jurídica. Afinal, nem sempre as decisões de inadmissibilidade têm sido claras quanto aos fundamentos adotados. Além disso, também é possível que a inadmissibilidade se dê por ambos os fundamentos. O presidente ou vice-presidente do tribunal recorrido poderá, simultaneamente, inadmitir o recurso especial, diante da incompatibilidade com precedente vinculante e, ainda, pela ausência de preparo ou de demonstração efetiva da violação à lei federal.1 Nesses casos, considerando a multiplicidade de fundamentos da decisão, será necessária a interposição de ambos os recursos, como, inclusive, consta no enunciado 77, do CJF: "Para impugnar decisão que obsta trânsito a recurso excepcional e que contenha simultaneamente fundamento relacionado à sistemática dos recursos repetitivos ou da repercussão geral (art. 1.030, I, do CPC/2015) e fundamento relacionado à análise dos pressupostos de admissibilidade recursais (art. 1.030, V, do CPC/2015), a parte sucumbente deve interpor, simultaneamente, agravo interno (art. 1.021 do CPC/2015) caso queira impugnar a parte relativa aos recursos repetitivos ou repercussão geral e agravo em recurso especial/extraordinário (art. 1.042 do CPC/2015) caso queira impugnar a parte relativa aos fundamentos de inadmissão por ausência dos pressupostos recursais". Parece-nos que a interposição simultânea é realmente obrigatória. Isso, por força dos enunciados das Súmulas 283/STF e 126/STJ, que impõem a impugnação de todos os fundamentos aptos a sozinhos manterem a decisão recorrida.2-3 A necessidade de interposição de ambos os recursos, sobretudo à luz da jurisprudência do STJ, justifica-se, também, pelo entendimento da Corte Especial, no sentido de que "a decisão que não admite o recurso especial tem como escopo exclusivo a apreciação dos pressupostos de admissibilidade recursal. Seu dispositivo é único, ainda quando a fundamentação permita concluir pela presença de uma ou de várias causas impeditivas do julgamento do mérito recursal, uma vez que registra, de forma unívoca, apenas a inadmissão do recurso".4 Teresa Arruda Alvim sustenta - na mesma linha do enunciado do CJF - que, nesses casos, são cabíveis ambos os recursos. Apesar disso, em entendimento alinhado com a primazia da resolução do mérito e a ampla sanabilidade de defeitos processuais que vigora no CPC/2015, afirma que, interposto apenas um dos recursos (por equívoco da parte), que aborde fundamentos de inadmissibilidade de ambas as naturezas, a solução não deve ser a inadmissão do recurso, mas a determinação do seu desmembramento.5 Há, ainda, um segundo (e mais grave) problema. Como dito, o art. 1.030, §2º prevê que, contra a decisão que inadmitir o recurso excepcional com fundamento em precedente vinculante, caberá agravo interno, que será julgado pelo órgão competente, a ser determinado pelo regimento interno do respectivo tribunal. A escolha é coerente. Afinal, dependendo dos fundamentos do agravo interno, o julgamento do recurso pode exigir a análise de fatos e provas (para apurar, por exemplo, a distinção entre os casos). Isso apenas pode ser realizado pelo tribunal recorrido. Julgado o referido recurso, porém, o CPC não traz expressamente qual seria o recurso cabível para a parte levar a matéria ao conhecimento do STJ ou do STF. A questão remete diretamente à competência para o exercício do juízo de admissibilidade. Como se sabe, esta deverá, sempre, ser do juízo competente para decidir o mérito. No tocante aos recursos, ainda que a lei admita que o juízo de admissibilidade possa ser exercido pelo órgão a quo, tal circunstância não frustra nem impede a reanálise do tema pelo juízo pelo órgão ad quem. O Min. Luiz Fux, atual presidente do STF, defendendo a duplicidade de juízos de admissibilidade recursal, ressalta que uma de suas finalidades é evitar que o órgão a quo barre o recurso, "para não sujeitar suas decisões a outro crivo, excluindo a chance de o recorrente ver apreciada sua manifestação".6 É justamente o que ocorre com a hipótese do 1.030, I, uma vez que cria obstáculo quase instransponível para o exercício do juízo de admissibilidade pelos tribunais superiores e gera efeito ainda mais lesivo, especialmente considerando as funções dos recursos especial e extraordinário.7 Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero, fazendo a mesma crítica que aqui se põe, defendem a interposição de agravo em recurso especial, ressaltando a inconstitucionalidade da tentativa de supressão de recurso, do próprio exercício do juízo de admissibilidade pelo tribunal competente para julgar o mérito.8 Não parece, porém, que seja possível extrair do art. 1.042 interpretação que autorize a interposição daquele recurso, razão pela qual sustentamos, no caso, o cabimento de novos recursos excepcionais.9 Esses recursos, é importante ressaltar, não devem ser uma repetição do recurso anterior (inadmitido), ou das violações à lei praticadas pelo acórdão inicialmente impugnado. O acordão recorrido, agora, é o que julgou o agravo interno e, é apenas nele, que devem ser identificadas as violações à lei (ou à Constituição) - se existentes. Apesar disso, a jurisprudência tem entendido pelo não cabimento de qualquer recurso. O STJ já se manifestou sobre o tema. Em julgado da Quarta Turma, ressaltou que a decisão que julgar o agravo interno interposto contra decisão de inadmissibilidade é irrecorrível e que, nos termos do voto do Rel. Min. Raul Araújo, "tratando-se de ato judicial contra o qual não cabe recurso, tem a parte, ainda, via excepcional outra, caso entenda ter tido violado direito próprio".10 O cabimento do mandado de segurança foi reiterado recentemente nos autos do AgInt no Recurso em Mandado de Segurança nº 53790/RJ, de relatoria do Min. Gurgel de Faria, julgado em 17/05/2021. Nele, a Primeira Turma consignou que "a irrecorribilidade do acórdão objeto da impetração, que nem sequer admite reclamação, como decidido pela Corte Especial (Rcl 36.476/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 05/02/2020, DJe 06/03/2020), evidencia, no caso concreto, situação de exceção a admitir a via do mandamus". O entendimento, porém, não é uniforme e significaria, em outras palavras, aceitar que lei federal teria retirado a competência do STF e do STJ para o exercício de admissibilidade dos recursos a eles direcionados, o que é inconstitucional. Apenas a própria Constituição Federal pode delimitar a competência dos tribunais superiores, seja para ampliá-la, seja para - principalmente - restringi-la. Assim, evidente que mantida a decisão de inadmissão do recurso especial no julgamento no julgamento do agravo interno, deve ser possível a interposição de novo recurso especial ou extraordinário. Além disso, como várias vezes já decidiu o STF, não se pode negar o cabimento da reclamação, diante da violação a precedente vinculante e da usurpação de competência do tribunal superior, que não pode ser impedido de realizar juízo de admissibilidade sobre os recursos a ele destinados.11 Em todo caso, é importante ressaltar que, considerando a dúvida objetiva acerca do meio adequado para impugnar tais decisões, recomenda-se que o tribunal aplique a convertibilidade. Assim, proposta reclamação ou impetrado o mandado de segurança, a medida deve ser admitida e julgada, especialmente porque, tanto em um quanto em outro caso, há a afirmação de que o tribunal local teria cometido violação gravíssima. Para os advogados e as partes, todavia, o problema persiste. Em um sistema que, embora tenha destacado o princípio da instrumentalidade também em grau recursal (art. 932, parágrafo único, do CPC, por exemplo), tem, na prática punido recursos manifestamente incabíveis, com majoração de honorários recursais; prevê honorários de sucumbência para as reclamações e estabelece competências distintas para o ajuizamento de medidas  que podem chegar ao mesmo resultado (o mandado de segurança, no próprio tribunal; a reclamação, no tribunal cuja competência se busca preservar ou cuja autoridade se pretenda garantir), qualquer escolha que a parte faça, na tentativa de garantir seus direitos, estará exposta a riscos. Riscos que, infelizmente, foram criados pelo legislador e, até agora, não foram eliminados pela jurisprudência. __________ 1 Inadmitir e negar seguimento são sinônimos: ambos dizem respeito ao juízo de admissibilidade (negativo) do recurso. Nesse sentido: ALVIM, Teresa Arruda; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins; RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva; MELLO, Rogério Licastro Torres de. Primeiros comentários ao Código de Processo Civil. 3. ed. rev., atual. e ampl. - São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 1607. 2 Sobre o tema, vide: DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de direito processual civil: o processo civil nos tribunais, recursos, ações de competência originária de tribunal e querela nullitatis, incidentes de competência originária de tribunal. 14. ed. reform. Salvador: Editora Juspodivm, 2017, p. 383-386. 3 Claro que tal entendimento não se aplica quando a parte, no exercício da sua disponibilidade sobre o recurso, opte por recorrer apenas parcialmente da decisão de inadmissibilidade, concordando com o trânsito em julgado do capítulo do acórdão impugnado pelo recurso especial, na forma do art. 1.034, p. ú.. 4 EAResp 831.326/SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, Rel. para Acórdão Min. Luis Felipe Salomão, J. 19.09.2018, DJe 30.11.2018. 5 Os agravos no CPC de 2015. 5. ed. - Curitiba: Editora Direito Contemporâneo, 2021, p. 467. 6 A reforma do processo civil: comentários e análise crítica da reforma infraconstitucional do Poder Judiciário e da reforma do CPC. 2. ed. - Niterói: Impetus, 2008, p. 16-17. 7 Restrição semelhante é encontrada em decisões monocráticas, nas quais o relator, prolator da decisão agravada, inadmite o agravo interno (por exemplo, vide AgInt no Pedido de Tutela Provisória nº 936/SP, Rel. Min. Gurgel de Faria, DJe 23/11/2017). Ao assim fazê-lo, obsta que o colegiado tenha acesso à decisão e ao próprio recurso, inviabilizando o controle sobre seus atos. A questão já foi observada por Athos Gusmão Carneiro, que sinalizou para o risco de criar-se um círculo vicioso. Em suas palavras "O agravo regimental (rectius, agravo interno) interposto contra a decisão de relator deve ser submetido, necessariamente, ao órgão colegiado competente [...]". (Recurso especial, agravos e agravo interno: exposição didática: área do processo civil, com inovação à jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Rio de Janeiro : Forense, 2005, p. 316). 8 Comentários ao Código de Processo Civil : artigos 976 a 1.044. v. 16. Coord. Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart, Daniel Mitidiero. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 262-263. 9 ALVIM, Teresa Arruda; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins; RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva; MELLO, Rogério Licastro Torres de. Primeiros comentários ao Código de Processo Civil. 3. ed. rev., atual. e ampl. - São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 1608. No mesmo sentido: CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2017, p. 554; e LIPIANI, Julia. Como promover a superação dos precedentes formados nos julgamentos de recursos repetitivos por meio dos recursos especial e extraordinário? In: Recursos no CPC/15: perspectivas, críticas e desafios. Coordenadoras Beatriz Magalhães Galindo e Marcela Kohlbach. Salvador: Editora Juspodivm, 2017, p. 145-166. 10 Agravo Interno no TP 473/SP, julgado em 17/08/2017, DJe 08/09/2017. No mesmo sentido, igualmente de relatoria do Min. Raul Araújo: Agravo Interno na Petição 11.856/PE, julgado em 18/05/2017, DJe 01/06/2017. A Corte Especial, embora tratando da jurisdição do STJ, afirmou que o agravo interno é o "único recurso cabível" contra a decisão que inadmite recurso extraordinário, na forma do artigo 1.030, I, "a": (Agravo em Recurso Extraordinário no Agravo Interno no Recurso Extraordinário nos Embargos de Declaração no Agravo Regimental no REsp 1532329/SP, Rel. Min. Humberto Martins, Corte Especial, julgado em 19/04/2017, DJe 03/05/2017). 11 Entendendo pelo cabimento da reclamação: Rcl 30505 AgR, Relator ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 29/06/2018, DJe 03/08/2018; Rcl 31401, Relator Min. ALEXANDRE DE MORAES, julgado em 01/02/2019, DJe 04/02/2019. Em sentido contrário, pelo não cabimento da reclamação: Rcl 38845 AgR, Relatora Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 15/04/2020, DJe 12/05/2020; Rcl 24145 AgR, Relator Min. EDSON FACHIN, Primeira Turma, julgado em 07/10/2016, DJe 24-10-2016; e Rcl 9433 AgR, Relator Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 15/03/2016, DJe 11/04/2016 (nesse julgamento, é importante consignar, restou vencido o Ministro Marco Aurélio, que entendeu pelo cabimento da reclamação). 
No início do mês de abril, a 2ª Turma do STJ afetou o REsp 1.690.138/RS, para que a 1ª Seção consolide seu posicionamento a respeito da "(im)possibilidade de utilização dos Embargos de Declaração para adequação de acórdão a precedente surgido posteriormente ao julgamento".  No caso, a parte opôs Embargos de Declaração contra decisão monocrática que não conheceu seu Agravo Interno em REsp. Para o embargante, o Tema 692 - cuja tese foi adotada pela decisão embargada - estaria prestes a ser revisto pelo STJ, diante do acolhimento da questão de ordem no REsp 1.734.627/SP.  Ao julgar o Tema 692, em 2014, o STJ firmou tese no seguinte sentido: "a reforma da decisão que antecipa a tutela obriga o autor da ação a devolver os benefícios previdenciários indevidamente recebidos", acrescente-se: com base na tutela concedida.  Visando à revisão dessa tese, o Min. Og Fernandes suscitou questão de ordem no julgamento do REsp 1.734.627/SP (Pet 12.482/DF), defendendo que a matéria mereceria "um debate mais ampliado e consequencialista", para que "sejam enfrentados todos os pontos relevantes". A 1ª Seção acolheu, por unanimidade, a questão de ordem. A revisão da tese, porém, ainda não ocorreu. Até o momento, houve apenas a "sinalização" de que o posicionamento do STJ pode vir a sofrer alteração.  O que a parte embargante está pretendendo, no Recurso Especial de n. 1.690.138/RS, recentemente afetado, é que seu recurso seja admitido e processado, porque o precedente, com base no qual se deu sua inadmissibilidade, pode vir a ser revisto.  Em nosso entender, a 1ª Seção não selecionou, para fins de afetação, o recurso mais adequado, uma vez que envolve tese em vias de possível revisão, o que leva à outra discussão, que é se saber se a revisão de precedente opera efeitos retroativos. De qualquer sorte, é importante que o STJ se manifeste a respeito da questão, que é de suma relevância, deixando absolutamente claro seu posicionamento sobre o papel dos Embargos de Declaração também como veículo para efetivamente estimular o bom funcionamento do sistema de precedentes.   Os Embargos de Declaração se prestam a sanar omissão, esclarecer obscuridade ou corrigir contradição. Também, por meio deles, a parte pode suscitar questão de ordem pública ou pedir a correção de erro material, hipóteses expressamente previstas no art. 1.022, I, II e III do CPC/15.  O art. 1022, parágrafo único, ainda, dispõe sobre outras duas causas que justificam a interposição de embargos de declaração, que são a omissão quanto à tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em incidente de assunção de competência aplicável ao caso sob julgamento (inc. I), e a inobservância, na fundamentação da decisão, dos parâmetros fixados no art. 489, § 1º (inc. II).  Rigorosamente, a previsão dessas duas causas nem seria necessária, vez que essas hipóteses se encaixam naquelas dos incisos II do art. 1022. O parágrafo único do art. 1022, porém, como tantos outros dispositivos ao longo do CPC/15, enfatiza a preocupação do legislador em assegurar às partes mecanismos para fazer valer os precedentes, bem como o contraditório, enquanto ciência-influência.   Embora o inc. I, do parágrafo único, do art. 1022 refira-se à tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em incidente de assunção de competência, em nosso entender, por meio de Embargos de Declaração, o julgador poderá ser provocado a se pronunciar também sobre tese fixada em Recurso Extraordinário com repercussão geral reconhecida, IRDR, orientação do plenário ou do órgão especial, bem como no caso de haver declaração de inconstitucionalidade pelo STF.  Segundo pensamos, os Embargos de Declaração são meio adequado para provocar a manifestação do julgador sobre precedente firmado tanto antes de proferida a decisão embargada, quanto posteriormente - desde, é claro, que não tenha havido modulação de efeitos. Embora se trate de situação não tão frequente, a parte pode suscitar, por meio dos Embargos de Declaração, precedentes firmados logo após proferida a decisão embargada, mas antes de esgotado o prazo de 5 dias para interposição do recurso.  Mas não é só! Percebe-se, à luz da jurisprudência do STJ, tendência de se admitir, para o fim de adequação do julgamento da matéria ao que restou pacificado pela Corte no âmbito dos recursos repetitivos -mas não só-, que a parte peça a manifestação do órgão judicial a respeito da orientação jurisprudencial que veio a se firmar após já opostos os Embargos de Declaração.  Ou seja, mesmo em casos em que os Embargos de Declaração foram opostos antes da formação do precedente, o STJ, ao julgar o recurso, tem "aplicado" a tese firmada. Há vários acórdãos, nesse sentido, em recursos, por exemplo, em que a discussão dizia respeito à comprovação do feriado de 2ª feira de carnaval, ou à desaposentação, tema este cuja consolidação se deu pelo STF, em julgamento de questão com repercussão geral.1  Mesmo antes do CPC/15, o STJ já vinha entendendo dessa maneira. Esta seria, por assim dizer, uma função atípica dos Embargos de Declaração, que poderia inclusive levar à produção de efeitos infringentes ao recurso, plenamente justificável e elogiável, pois ao encontro da então já existente preocupação em dar tratamento uniforme aos casos idênticos, privilegiando a segurança jurídica e a igualdade.  Com o atual CPC, a hipótese passa a ser expressamente prevista em lei, embora, em nosso entender já estivesse compreendida na hipótese tradicional de suprir omissão sobre ponto ou questão a respeito do qual devia o juiz se pronunciar de ofício ou a requerimento.  Por certo, ainda que sem provocação da parte, cabe ao órgão julgador ter ciência e se manifestar de ofício sobre a existência de tese que tenha tratado da questão de direito envolvida no recurso de que se originam os embargos de declaração.  A medida se mostra ainda mais relevante porque, de certa forma e em algum grau, minimiza a repercussão negativa de outro posicionamento que vem sendo adotado pelo STJ - este, a nosso ver, absolutamente inaceitável - de não admitir Ação Rescisória para fins de desconstituir decisão de mérito transitada em julgado, proferida em sentido diverso daquele que, posteriormente, veio a se consolidar por meio de precedente (sem modulação de efeitos).  De acordo com o STJ, o ajuizamento da ação rescisória somente se justifica quando, na data em que o acórdão rescindendo foi proferido, a jurisprudência já estivesse consolidada em sentido diverso. Se a consolidação ocorrer após proferida a decisão que se pretende desconstituir, a ação rescisória não tem sido admitida, com base na Súmula 343 do STF.  Se a pacificação da jurisprudência operada após proferido o acórdão rescindendo não autoriza à parte lançar mão de ação rescisória (entendimento esse que, salvo a hipótese de ter havido modulação, como o máximo respeito, não se justifica), não podem os Tribunais Superiores se negar a, ainda em curso o processo, no bojo de Embargos de Declaração, fazer valer o entendimento pacificado pela Corte. Se assim não for, estará havendo denegação da tutela jurisdicional e esvaziamento do propósito que inspirou o CPC/2015, de prestigiar a uniformização da jurisprudência por meio de um sistema de precedentes.  Espera-se, por tais razões brevemente expostas, que no REsp 1.690.138/RS, afetado para julgamento sob o rito repetitivo, o STJ consolide seu posicionamento a respeito da "possibilidade de utilização dos Embargos de Declaração para adequação de acórdão a precedente surgido posteriormente ao julgamento". __________ 1 Vejam-se os seguintes julgados, desde 2017: "Excepcionalmente, o Superior Tribunal de Justic¸a admite a atribuic¸a~o de efeitos infringentes aos embargos de declarac¸a~o, a fim de que o aco'rda~o embargado seja adequado ao decidido em sede de recursos extraordina'rio ou especial submetidos, respectivamente, aos regimes dos arts. 543-B e 543-C do CPC, situac¸a~o que se amolda ao caso dos autos" (STJ, EDcl no AgRg no REsp 1343320/PR, 1ª T., j. 07.12.2017, rel. Min. Benedito Gonc¸alves, DJe 14.12.2017); "Excepcionalmente, o Superior Tribunal de Justiça admite a atribuição de efeitos infringentes aos embargos de declaração, a fim de que o acórdão embargado seja adequado ao decidido em sede de recursos extraordinário ou especial submetidos, respectivamente, aos regimes dos arts. 543-B e 543-C do CPC/1973, situação que se amolda ao caso dos autos. III - No julgamento do RE n. 661.256/SC, o Supremo Tribunal Federal fixou tese nos seguintes termos: "No âmbito do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), somente lei pode criar benefícios e vantagens previdenciárias, não havendo, por ora, previsão legal do direito à 'desaposentação', sendo constitucional a regra do art. 18, § 2º, da lei 8.213/1991" . IV - Embargos de declaração acolhidos, com efeitos infringentes, para dar provimento ao recurso especial do INSS". (STJ, EDcl no AgRg no AREsp 521.789/RN, rel. Min. Francisco Falcão, 2ª T., j. 06/03/2018, DJe 12/03/2018); "Com efeito, a Corte Especial do STJ, recentemente, 'decidiu que a regra da impossibilidade de comprovação da tempestividade, posteriormente à interposição do recurso, não deveria ser aplicada no caso em que se trate de feriado de carnaval. O entendimento foi fixado no REsp n. 1.813.684/SP e, posteriormente, ratificado no julgamento da Questão de Ordem no mesmo recurso, quando se entendeu que a mesma interpretação não poderia ser estendida para outros feriados, que não fossem o feriado de carnaval' (AgInt no AREsp 1.513.078/RN, Rel. Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 10/3/2020, DJe 23/3/2020). Logo, por considerar o Carnaval feriado nacional notório, vislumbro a necessidade de reconsideração das decisões anteriormente proferidas para concluir pela tempestividade do agravo em recurso especial. Ante o exposto, acolho os embargos de declaração, com efeitos modificativos, para cassar a decisão monocrática de fls. 219-220 (e-STJ) e o acórdão do agravo interno de fls. 250-255 (e-STJ), devendo os autos retornarem, posteriormente, conclusos a este signatário para oportuna apreciação do agravo em recurso especial". (STJ, EDcl no AgInt no AREsp 1324506/SP, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, 3ª T., j. 04/05/2020, DJe 08/05/2020). No mesmo sentido, mais recentemente: (STJ, EDcl nos EDcl no AgRg no REsp 1423508/PE, rel. Min. Herman Benjamin, 2ª T., j. 29/04/2020, DJe 07/05/2020); (STJ, EDcl nos EDcl no AgInt no AREsp 1500425/SP, rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª T., j. 24/08/2020, DJe 27/08/2020).
No Brasil, infelizmente os Tribunais Superiores ainda não produzem, como seria desejável, jurisprudência uniformizada e estável. Ao contrário, é muito comum que, em relação a muitos temas, a jurisprudência seja instável, isto é, que haja mudança frequente de orientação sobre muitos assuntos. Não se trata da mudança jurisprudencial saudável e desejável, cujo objetivo é adaptar o direito às alterações sociais, já que estas ocorrem em décadas e, às vezes, até mesmo em séculos. Trata-se, isto sim, de alterações geradas pela mudança da "composição humana" dos Tribunais e, até mesmo, infelizmente, pela mudança de opinião dos Ministros. O sábio legislador de 2015, sabendo disso, criou o instituto da modulação, que tem por objetivo neutralizar o choque que uma mudança radical e repentina de posição de um Tribunal Superior pode gerar na sociedade. A modulação é um instituto que permite aos Tribunais Superiores e, também, a outros Tribunais, em circunstâncias especiais, postergar os efeitos de uma mudança brusca de orientação, de modo a que estes atinjam exclusivamente os fatos ocorridos depois de dita alteração. A modulação deve ocorrer justamente quando a alteração de orientação dos Tribunais ocorre em campos do direito em que, de rigor, essa mudança não deveria ocorrer, que são searas do direito em que os princípios da segurança jurídica e da previsibilidade são tratados de modo muito especial, já que são relevantes para a possibilidade que deve ser assegurada ao jurisdicionado no sentido de planejar a sua conduta. Nestes campos do direito se encaixa, perfeitamente, o direito tributário. Tudo o que se disse, portanto, se relaciona intimamente a um assunto extremamente atual, que diz respeito ao julgamento da tese jurídica relativa à tributação, pela contribuição social previdenciária, do adicional de 1/3 de férias. Já há uma decisão tomada pelo STJ no regime dos recursos repetitivos em 2014 (REsp 1.230.957 - RS), no sentido de que não se deve tributar esse adicional pago pelo empregador. Decidiu o STJ, naquela ocasião, que o 1/3 relativo às férias indenizadas não poderia ser alvo do tributo em questão por expressa vedação legal1; e no que concerne ao adicional atinente às férias usufruídas, firmou-se tese no sentido de que  a referida verba "...possui natureza indenizatória/compensatória, e não constitui ganho habitual do empregado, razão pela qual sobre ela não é possível a incidência de contribuição previdenciária (a cargo da empresa)" (Tema 479 dos recursos especiais repetitivos). Convém sublinhar que essa orientação foi firmada em consonância com jurisprudência do STF relativa ao tema. Veja-se, por exemplo, o AgR no RE 587.941/SC, de relatoria do Ministro Celso de Mello (de 2008): "O Supremo Tribunal Federal, em sucessivos julgamentos, firmou entendimento no sentido da não incidência de contribuição social sobre o adicional de um terço (1/3), a que se refere o art. 7º, XVII, da Constituição Federal. Precedentes"2-3. Tratando-se de precedente vinculante (do STJ), obviamente foi imediatamente aplicado. Entretanto, o tema foi novamente submetido à apreciação do STF por intermédio do RE 1.072.485/PR (Rel. Ministro Marco Aurélio), que originou o Tema 985 da repercussão geral, e, dessa vez, o STF decidiu em sentido contrário à sua própria jurisprudência e à tese firmada pelo STJ por ocasião do julgamento do recurso especial repetitivo de 2014.  Por maioria de votos (vencido o Ministro Edson Fachin), decidiu o Supremo Tribunal Federal que "É legítima a incidência de contribuição social sobre o valor satisfeito a título de terço constitucional de férias"4. Contra esse acórdão foram opostos cinco embargos de declaração, sendo que em quatro deles houve pedido de modulação temporal dos efeitos da decisão do STF5. O julgamento destes embargos declaratórios chegou a ser iniciado no plenário virtual. A votação quanto à modulação estava apertada: cinco votos a quatro para os contribuintes, faltando apenas as manifestações dos Ministros Luiz Fux e Nunes Marques. Foi então que o Ministro Fux, Presidente do Supremo Tribunal Federal, interrompeu o julgamento, determinando que o feito fosse deslocado do plenário virtual para o presencial, que acontece atualmente por videoconferência. Com esse movimento, os votos que foram proferidos durante o julgamento no plenário virtual praticamente deixaram de existir, podendo os Ministros que já votaram votar novamente, e em sentido diferente. Este é um típico caso que, a nós, parece evidente ter de haver modulação. A modulação deve ocorrer sempre a favor do particular, nos casos em que o Estado está envolvido, pois, do contrário, se estaria prejudicando o particular duplamente. O Estado existe para dar tranquilidade ao particular, que não pode ser surpreendido com a mudança das regras no meio da partida. Alteração de orientação de um Tribunal, quando a nova orientação prejudica o indivíduo, deve ser aplicada apenas prospectivamente, nunca retroativamente. O fato de um Tribunal alterar sua orientação, repentinamente, num curto espaço de tempo, consiste, por si só, num venire contra factum proprium, correspondendo, portanto, a uma conduta de má-fé objetiva; e o particular, evidentemente, deve ser poupado dos efeitos negativos deste modo de agir.  Dessa forma, quando a nova posição prejudica o particular, aí sim é que não pode deixar de haver modulação. A modulação, como se disse, deixou de ser o instituto cuja utilização é absolutamente excepcional. Essa figura surgiu no direito brasileiro pela primeira vez na lei 9.868/1999 que diz respeito ao controle concentrado de constitucionalidade. Naquele momento histórico, estava-se diante de uma hipótese absolutamente excepcional: só se podiam modular os efeitos de decisões de procedência de ações em que se pleiteava uma declaração, com efeito erga omnes, no sentido de que uma lei, ou uma certa interpretação de lei, não se compatibilizariam com a Constituição Federal, com o fim  de proteger aquele que confiou no sistema, ou seja, aquele que agiu de acordo com a lei que, presumivelmente, era constitucional até que houvesse uma decisão dizendo o contrário. Atualmente, esse mesmo instituto também está no CPC (art. 927, § 3º), e igualmente tem em vista a proteção da confiança do jurisdicionado, que agiu em conformidade com o direito em vigor no momento de sua conduta. Sabe-se que o direito em vigor não se limita à lei: na verdade, o direito em vigor é a lei, interpretada, num dado momento histórico, pelos Tribunais mais relevantes do Poder Judiciário; portanto,  alguém que agiu em conformidade com a orientação que prevalecia nos Tribunais Superiores a respeito do sentido de determinada regra jurídica não pode ser prejudicado por uma decisão que acaba tendo efeitos, por assim dizer, retroativos. Transpondo o que ora se afirma para o direito tributário: quando não se modula, se considera inadimplente o contribuinte que, ao não pagar o tributo, agiu em estrita observância do direito vigente à época. Ocorre que o sistema jurídico não autoriza esse tipo de situação: a esse respeito dispõem com clareza os dispositivos recentemente acrescentados à Lei de Introdução ao Direito Brasileiro (arts. 22 a 24). Portanto, nos parece inafastável a necessidade de que haja modulação, com o objetivo de não prejudicar o particular e, sobretudo, no caso concreto, de não causar um injusto impacto negativo na vida das empresas. Acrescente-se que, justamente em função da circunstância de não se tratar mais de um instituto tão excepcional quanto podia ser utilizado (lembrando que era admitido apenas no controle concentrado), não tem sentido se pensar, na atualidade, em quorum qualificado. Na verdade, o quorum exigido para decidir a respeito da modulação é o mesmo exigido para a decisão a respeito de dever, ou não dever, haver alteração do entendimento anterior. E mais: mesmo aqueles que ficaram vencidos no que diz respeito à mudança, ou seja, aqueles que entenderam que a orientação não deveria se modificar, porque ficaram vencidos, devem, necessariamente, votar quanto à modulação. É exatamente a mesma coisa que acontece quando se julga uma apelação: os desembargadores que ficaram vencidos na preliminar, devem votar quanto ao mérito. Espera-se, portanto, que em nome da necessidade de se preservar a segurança jurídica, o julgamento seja em breve retomado, e que se decida pela modulação para proteger a confiança que teve o jurisdicionado na pauta de conduta anterior. __________ 1 Lei 8.212/91 - art. 28, §9º, "d" (redação dada pela lei 9.528/97). 2 AgR RE 587.941 AgR, Relator Ministro Celso de Mello, Segunda Turma, DJe 22.11.2008. 3 Em 2007: AgR no AI 603.537, Rel. Ministro Eros Grau, Segunda Turma, DJe 30.03.2007, com destaque ao seguinte trecho da ementa: "CONTRIBUIÇÃO SOCIAL INCIDENTE SOBRE O TERÇO CONSTITUCIONAL DE FÉRIAS. IMPOSSIBILIDADE"). Em 2009: AgR no AI 710.361, Rel. Ministra Cármen Lúcia, Primeira Turma, DJe 08.05.2009, em que na ementa se fez constar a "IMPOSSIBILIDADE DA INCIDÊNCIA DE CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA SOBRE O TERÇO CONSTITUCIONAL DE FÉRIAS". Também em 2009: AgR no AI 712.880, Rel. Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, DJe 19.06.2009, merecendo destaque a seguinte passagem da ementa: "CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. INCIDÊNCIA SOBRE TERÇO CONSTITUCIONAL DE FÉRIAS. IMPOSSIBILIDADE". 4 Reconheceu-se a constitucionalidade da tributação do adicional incidente sobre o 1/3 de férias relativos às férias usufruídas pelo empregado, tendo sido ressalvada da incidência da contribuição a parcela concernente às férias indenizadas, conforme se fez constar no voto condutor do acórdão: "A exceção corre à conta do adicional relativo às férias indenizadas. Nesse sentido, presente a natureza indenizatória, há disposição legal expressa na primeira parte da alínea 'd' do § 9º do artigo 28 da lei 8.212/1991" (Voto do Ministro Marco Aurélio). A mesma ressalva foi feita no voto proferido pelo Ministro Alexandre de Moraes: "Quanto ao terço constitucional de férias indenizadas, há expressa disposição legal (Lei 8.212/1991) excluindo a verba da incidência da contribuição previdenciária, dado seu caráter indenizatório". 5 Requereram a modulação: (1) Sollo Sul Insumos Agrícolas Ltda., que é parte no processo; (2) Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (amicus curiae); (3) Associação Brasileira de Advocacia Tributária - "ABAT" (amicus curiae); e (4) Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário ("IBDP"), (amicus curiae). Apenas a Confederação dos Servidores Públicos do Brasil - CSPB (5), que pediu seu ingresso no feito como amicus curiae, não fez o pedido de modulação.
A lei 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados - LGPD) entrou em vigor em setembro de 2020 parcialmente, pois, somente em agosto de 2021, é que as sanções nela previstas terão vigência. O art. 2º da LGPD, estabelece ser dado pessoal aquele que identifica uma pessoa física ou que torne possível identificá-la. Ou seja, além do nome, telefone, endereço, RG, CPF, por exemplo, são dados pessoais aqueles que, em um certo contexto, podem tornar uma pessoa identificável. Algumas informações como: origem étnica, religião, dado sobre saúde são consideradas pela lei como dados sensíveis, exigindo um tratamento especial. O art. 11 da LGPD estabelece, por exemplo, que o tratamento de dado sensível só pode ocorrer quando o titular consentir de forma expressa e destacada, para fins específicos. Certos dados são considerados dados pessoais pela lei porque são utilizados para formação do perfil comportamental. Um caso verídico muito citado para exemplificar essa espécie de dados é o que envolve a empresa Target, uma das maiores varejistas dos Estados Unidos. A equipe de desenvolvimento de inteligência artificial da empresa notou que havia um certo padrão de consumo das clientes grávidas, tais como: a compra de loções e sabonetes sem essência, além de suplementos alimentares como cálcio, magnésio e zinco. Com essa informação em mãos, a empresa enviava às clientes cupons de descontos e ofertas personalizadas para o período da gravidez em que se encontravam, tendo em vista o modelo preditivo construído. Todavia, houve o envio de cupons para a residência de uma adolescente que, até então, não havia revelado ao seu pai que estava grávida. Foi por meio do recebimento desses cupons que o pai veio a saber sobre a gravidez de sua filha, desencadeando um profundo debate sobre o uso ético das ferramentas de inteligência artificial e análise preditiva de dados comportamentais. Vale salientar que "a rigor, o acesso e tratamento de dados pessoais da população em geral dá causa a repercussões não apenas econômicas, mas afeta também, profundamente, relações sociais e políticas, dado suas interações com temas aparentemente distintos entre si, com a qualidade do debate público, a liberdade de manifestação, a proteção da reserva pessoal e da privacidade, dentre outros temas fundamentais para o desenvolvimento humano."1 A LGPD estabelece regras para realizar o tratamento dos dados pessoais. E o que seria tratamento de dados? Seriam todas as atividades relacionadas ao ciclo de vida de um dado pessoal: coleta, uso, guarda, compartilhamento e exclusão. Qual teria sido o grande catalisador para a promulgação da LGPD no Brasil e, também, na Europa (GDPR2)?  O caso da apropriação de dados realizada pela empresa Cambrigde Analytica, em 2018, que é considerado um dos maiores escândalos no mundo da tecnologia.3 Cambridge Analytica é o nome de uma empresa de marketing que teve acesso a dados de 87 milhões de usuários do Facebook indevidamente, por meio de um teste de personalidade do usuário. A empresa usou essa informação privilegiada para direcionar anúncios no Facebook e fazia parte do SCL Group, que prestava serviços para os departamentos de defesa dos EUA e do Reino Unido. Sua área de atuação era a de "operações psicológicas", ou seja, a técnica de manipulação de opiniões.       Nesse contexto, é que se destaca a decisão paradigmática do Supremo Tribunal Federal, na ADI 6837, de Relatoria da Min. Rosa Weber. Pois houve o rompimento com a forma com que a Corte vinha fazendo a interpretação da proteção constitucional dos dados pessoais. Até então, o STF analisava a proteção de dados sob a ótica do princípio da privacidade. Como liberdade negativa, representando a demarcação da individualidade de um sujeito em face dos outros e do Estado, sendo regida pelo princípio da exclusividade, envolvendo três esferas: 1-) intimidade; 2-) vida privada; 3-) honra e imagem - direito à autodeterminação4. Essa lógica de proteção de dados sob a ótica do direito de privacidade foi quebrada no julgamento da ADI 6837 que tratou da inconstitucionalidade da MP 954/2020. A MP determinava que as empresas de telefonia móvel e fixa compartilhassem com o IBGE sua base de dados de todos os assinantes, contendo nome, endereço, RG e número de telefone, para realização da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio. A justificativa seria o contexto da pandemia, pois ao invés do contato pessoal, a pesquisa seria feita por contato telefônico. A AGU fez alusão a precedentes do STF que tratavam do direito à privacidade, para defender a constitucionalidade da MP 954. Segundo a AGU os dados transferidos pelas empresas de telefonia permaneceriam sob sigilo e, dessa forma, o preceito constitucional da privacidade estaria sendo observado. E mesmo que houvesse vazamento dos dados não haveria violação pois seriam dados cadastrais, como a lista de telefones das "páginas amarelas" que seriam públicas. Foi concedida liminar pela Min. Relatora Rosa Weber suspendendo os efeitos da MP 954/2020. No julgamento para referendar a liminar concedida, a 1ª Turma do STF se manifestou por maioria (com exceção do Min. Marco Aurélio) pela inconstitucionalidade da MP. É certo que, aqui, foi reconhecido um novo direito, considerando-o como atributo da personalidade5, pouco importando se a informação é  pública ou privada. E assim sendo, não há mais informações consideradas irrelevantes em se tratando da pessoa humana, devendo haver um devido processo legal que estabeleça os direitos e deveres no tratamento desses dados. A interferência na esfera pessoal tem que ser proporcional à finalidade, devendo ser a menor possível e garantindo-se a segurança da informação. O STF estabeleceu, assim, um novo paradigma para o tratamento dos dados pessoais, que orientará todos os jurisdicionados na interpretação e aplicação da LGPD. __________ 1 MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. São Paulo: Editora Thomson Reuters Brasil, 2019.P. 159. 2 General Data Protection Regulation (Regulation EU 2016/679). 3 Cambridge Analytica: tudo sobre o escândalo do Facebook que afetou 87 milhões, artigo capturado em 14/03/2021 in https://olhardigital.com.br/2018/03/21/noticias/cambridge-analytica/ 4 Tercio Sampaio Ferraz, "Sigilo de dados: o direito à privacidade e os limites à função fiscalizadora do Estado" in Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 88, pp. 439-459. Rafael Mafei Rabelo Queiroz e Paula Pedigoni Ponce, "Tércio Sampaio Ferraz Júnior e Sigilo de dados: o direito à privacidade e os limites à função fiscalizadora do Estado: o que permanece e o que deve ser reconsiderado"; Internet & Sociedade n.1, v.1, fev/2020, p.64 a 90. 5 Bruno Ricardo Bioni, Proteção de Dados Pessoais, a função e os limites do consentimento, Rio de Janeiro: Forense, 2019.
Um dos aspectos inovadores do atual regime processual é o procedimento destinado à produção antecipada da prova (art. 381 e ss.). A nota mais perceptível, em relação ao regime anterior, foi o desaparecimento do requisito da urgência para sua utilização. A prova passa a ser antecipável não apenas quando exista algum risco de perecimento para produzi-la (inc. I), mas também passa a ter lugar em pelo menos duas outras situações: quando a parte acredita que provar determinado fato poderia abrir caminho para solucionar consensualmente a controvérsia (inc. II); quando essa mesma prova possa ser decisiva para justificar ou evitar a instauração de demanda futura (inc. III). Pode-se dizer que o procedimento perdeu o caráter acessório do regime anterior, ganhando status de direito autônomo. Em termos estruturais, essa ferramenta se assemelha a um híbrido, que mistura as cautelares de produção antecipada de prova e de justificação do CPC/73, com pitadas da discovery do direito anglo-saxão. Dos muitos aspectos que ainda suscitam dúvidas, o que nos interessa aqui diz respeito aos limites daquilo que pode ser objeto da antecipação de prova. De acordo com o CPC, no requerimento inicial o autor já precisa mencionar "com precisão os fatos sobre os quais a prova há de recair". O que se tem visto na prática, porém, é que algumas vezes o procedimento não é instaurado para provar fatos específicos. Não há fato ou fatos previamente definidos como objeto da prova. Pelo contrário. O procedimento é utilizado para explorar todo um contexto ou situação fática, genericamente considerado, com a intenção de nele encontrar fatos que, aí sim, possam justificar a propositura de demanda futura. Por exemplo: a parte justifica que pretende provar, antecipadamente, "a responsabilidade civil" do demandado num determinado episódio. Algo bem diferente e mais amplo do que produzir prova sobre um ou mais fatos, relacionados com aquele episódio e especificamente delineados (os quais, em demanda indenizatória futura, aí sim poderiam provar o dever de indenizar). É como se o procedimento fosse utilizado para "pescar" fatos: caso apareçam, outra demanda seria proposta. Do contrário, tudo se encerraria por ali, sem maiores consequências para o autor da antecipação. Daí a proximidade com abusos já percebidos (e coibidos) na utilização da discovery do direito anglo-saxão. Um deles é o emprego dessa ferramenta para realizar ampla perquirição em relação à parte contrária, na esperança de, por meio dela, descobrir informações que a prejudiquem. Em situações como essa, costuma-se impedir a produção da prova1. Tal prática é conhecida como document hunting ou fishing expedition2. Não por outra razão, o art. 382 do CPC prevê dois requisitos específicos, como condição de processamento da demanda. Cabe ao autor demonstrar as "razões que justificam a necessidade de antecipação da prova", assim como fazer menção precisa aos "fatos sobre os quais a prova há de recair".3 Em outras palavras, isso quer dizer que o procedimento não se presta a inquirições genéricas ou investigações. Seu caráter é objetivo e precisa ser delimitado com a indicação precisa dos fatos sobre os quais recairá a prova. Daí também a severa limitação ao contraditório que o caracteriza. O procedimento não admite defesa nem recurso (art. 382, §4º)4, inclusive porque nessa oportunidade não caberá ao órgão judicial deliberar a respeito do fato em si, tampouco sobre suas consequências jurídicas (art. 382, §2º). Essa análise terá lugar apenas em outro processo. Embora aos interessados até seja facultada a possibilidade de também produzir prova, esta precisa estar relacionada ao mesmo fato (art. 382, §3º). Por aí se percebe que todo o procedimento se estrutura em torno da produção de prova sobre fato determinado. Caso contrário, admitindo-se sua utilização para produzir prova sobre situação fática genérica, o procedimento acabaria se transformado em verdadeira antecipação da fase instrutória da futura demanda. E isso tudo com limitações ao contraditório e ao próprio controle da instrução pelo juiz (que, a partir das causas de pedir e pedidos, delimita a fase instrutória e indefere diligências inúteis). Fosse possível essa amplitude, o procedimento acabaria se convertendo, na prática, num inquérito (e aí materializaria as figuras do document hunting ou fishing expedition). Claramente não é esse seu escopo. Recentemente, aliás, o TJ/SP reconheceu essa impossibilidade e extinguiu procedimento de produção antecipada de prova, em razão da ausência de preenchimento dos requisitos dos artigos 381 e 382, do CPC. Ao perceber o manejo abusivo do procedimento, o tribunal registrou que, naquele caso concreto, era "como se o Autor (aqui Agravado) jogasse com a sorte: apresenta uma situação fática a partir de um relato fantasioso, pede a realização de todos os meios de provas possíveis e espera "pescar" algo por meio do procedimento de antecipação de prova. Caso não encontre, porém, não haverá consequências para si, já que não formulou, propriamente, pretensão a respeito"5. O mesmo tribunal também indeferiu a antecipação da prova porque a pretensão veiculada (ampla prova pericial sobre contratos bancários) poderia ser mais adequadamente formulada por meio de ação ordinária e, o mais importante, "sem qualquer ofensa ao contraditório"6. A partir desse cenário percebe-se que a antecipação de prova exige a prévia delimitação do fato a ser provado. Não apenas por força da literalidade do texto normativo (que é claro, em diversas passagens, em relação a isso), mas, também, pela própria estrutura do procedimento: as limitações procedimentais são viáveis e fazem sentido apenas se houver a prévia e adequada limitação do fato a ser provado. Por isso o procedimento não pode ser transformado em inquérito investigatório. Assim como também não pode ser utilizado para a busca de fatos desconhecidos pelo interessado, como se por meio dele estivesse "pescando" algum elemento de prova para apoiar sua pretensão. A falta da adequada delimitação desvirtua o procedimento, exigindo a ampliação do contraditório (onde o legislador claramente quis limitá-lo) e até antecipando a instrução que deveria ocorrer apenas no bojo da futura demanda (e com os limites lá definidos pelas causas de pedir e pedidos). Em nosso sentir, todos são desdobramentos incompatíveis com a disciplina do CPC. __________ 1 "Judges and prothonotaries may properly exercise their discretion not to compel production of documents that, although technically relevant, would have no benefit to the party seeking production. The court will not allow discovery to be used as a fishing expedition, nor will it require a party to answer a question outside of its means of knowledge (...) Discovery is meant to be an intermediate process between pleading and trial and not an end in itself". BEACH, Greg; PARKER, Marissa; DREW, Catherine. Navigating Discovery/Disclosure in Patent Litigation in Canada, the United States, and the United Kingdom. In Canadian Intellectual Property Review vol. 31, 2016, p. 115. Disponível aqui. Acesso em 26.02.21. 2 O STF reconhece e se opõe a essa prática: "não é possível a geração de RIF por encomenda (fishing expedition) contra cidadãos em relação aos quais não haja alerta emitido de ofício pela unidade de inteligência ou qualquer procedimento investigativo formal estabelecido pelas autoridades competentes". RE nº 1.055.941, Rel. Min. Min. Dias Toffoli, Dje 06/10/2020. 3 "É certo que a necessidade da prova - não apenas da antecipação - depende da exposição de um substrato fático mínimo e coerente com a medida que se quer produzir. A prova, independentemente do momento em que produzida, tem por objeto fatos. Eventual deficiência na narrativa dos fatos que se quer investigar interfere com a antecipação porque, na verdade, prejudica a admissibilidade da prova". YARSHELL, Flávio Luiz. In Breves Comentários ao Novo Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2015. p. 1.031. 4 O dispositivo deve ser interpretado restritivamente, a fim de permitir o controle de questões processuais. Colhe-se, do TJ/SP: "(...) a finalidade da norma é obstar a utilização de defesa ou recurso que envolvam matéria de mérito, por extrapolar a competência do juízo do procedimento de produção antecipada de provas, conforme §2º do art. 382 do NCPC (...) Todavia, não há como se vedar o exercício do contraditório e da ampla defesa, no que diz respeito a temas processuais e condições da ação, por exemplo, que possam prejudicar a própria adequação e validade da via processual" (AI nº 2259025-62.2019.8.26.0000, Rel. Alexandre Lazzarini, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, J. em 14/05/2020, Dje 15/05/2020). Neste mesmo sentido entende Maria Lúcia Lins Conceição: "Esse dispositivo, contudo, deve ser interpretado de forma sistemática com os demais preceitos do NCPC, que garantem o exercício do contraditório. O requerido, por certo, poderá alegar questões de ordem pública, tais como a ilegitimidade das partes, a inadequação do meio de prova pretendido pelo requerente para demonstração do fato (falta de interesse de agir), ou a existência de ação anterior com idêntico objeto, em que a prova já tenha sido produzida". Provas. In: Temas Essenciais do Novo CPC. Revista dos Tribunais, São Paulo. 2016. P. 239 e 240. 5 TJSP, AI n.º 2188216-13.2020.8.26.0000 - 26ª Câmara de Direito Privado. Rel. Des. Felipe Ferreira, Dje 01.02.2021. 6 TJSP. Apelação nº 1009988-29.2017.8.26.0100, Rel.ª Des.ª Cristina Medina Mogioni. DJe 06.12.2017.  
Em março de 2020, a 3ª Turma do STJ julgou dois recursos especiais que traziam importante provocação: a possibilidade de empresas cindendas pleitearem a responsabilização da empresa cindida, por suposto inadimplemento de obrigação originada da cisão. O primeiro, nº 1.829.083/SP, relatado pelo ministro Ricardo Villas Bôas Cueva; e o segundo, nº 1.839.673/SP, relatado pelo ministro Paulo de Tarso Sanseverino.  Ambos foram extraídos de ações indenizatórias propostas por empresas constituídas a partir de uma cisão societária parcial, ocorrida há muitos anos. Na época, parte dos sócios que compunham a sociedade original decidiram dela se desligar, constituindo novas empresas a partir da versão de parte dos ativos da cindida. Entre os ativos vertidos, o principal consubstanciava-se em terreno litorâneo que, embora contasse com expectativa bastante promissora de vir a se tornar um loteamento de luxo, detinha desafios registrais. Basicamente, tratava-se de área bruta, anotada em transcrições imobiliárias, porém pendente de abertura de matrícula junto ao Registro de Imóveis. Cerca de duas décadas após essa cisão societária parcial, as empresas cindendas acionaram judicialmente a cindida, sustentando que, em função das pendências registrais do terreno, não teria sido possível levar a efeito o registro de propriedade perante o cartório competente. Invocando a regra prevista no art. 1.245 do Código Civil, sustentaram fazer jus ao recebimento de indenização, equivalente ao valor de mercado do imóvel vertido na cisão, bem como ao pagamento de lucros cessantes. Depois de tramitar por cerca de 11 anos perante a Justiça Estadual de São Paulo, a questão ascendeu ao Superior Tribunal de Justiça, em 2019. Por ocasião do julgamento dos recursos especiais já citados, a 3ª Turma concluiu que, na cisão societária, "não há espaço para falar em eventual responsabilidade da sociedade cindida por vícios redibitórios, evicção ou suposta falha da documentação de titularidade dominial dos bens vertidos à sociedade cindenda, pois não se trata de alienação de bens". Do voto prolatado, extrai-se que principal fundamento a alicerçar esse entendimento é o de que a cisão societária qualifica-se como ato jurídico sem onerosidade, que tem natureza de fragmentação patrimonial1-2. Trata-se de mera transposição de bens, em que a sociedade receptora sucede a cindida, em seus direitos e obrigações relativos ao patrimônio cindido. Não se trata, a cisão, de operação equiparável a contratos em que as condições do bem são asseguradas. Se assim é, ou seja, estando-se em face de operação que não envolve contraprestações (mas somente realocação de patrimônio entre as empresas cindida e receptora), não é admissível invocar-se o inadimplemento decorrente da cisão. Muito menos, de inadimplemento caracterizável pela dificuldade de transferência, perante o Registro de Imóveis, do imóvel vertido.  Como se extrai do art. 229, parágrafo 1º, da Lei das S/As, quando o ativo é vertido de uma empresa para outra, isso ocorre nas exatas condições em que era detido3-4. Se, enquanto integrou o patrimônio da cindida, o imóvel vertido apresentava pendências de regularização registral, a cindenda o recebeu nas mesas condições, sucedendo as obrigações e direitos a ele inerentes. Na operação que originou os Recursos Especiais referidos, a Corte concluiu que as empresas cindendas sucederam a cindida inclusive no ônus da regularização registral, não sendo admissível o pleito de indenização por inadimplemento da cisão. O voto prolatado pelo Relator no RESP n. 1.829.083 ainda destacou que "os acionistas da sociedade cindenda não podem ser considerados terceiros nessa operação porque já era, anteriormente à cisão, titulares indiretos dos bens vertidos, não podendo alegar desconhecimento quanto à situação dos referidos bens". E é a partir dessa comparação que também ficam claras as razões pelas quais o parágrafo 1º do art. 1.245 do CCB (do qual se extrai que a transferência da propriedade imobiliária se consuma com o registro de imóveis) não ajuda a solucionar a discussão que foi proposta pelas cindendas. Com efeito, o ato de cisão representa o ato de transferência, como o são os documentos particulares para bens móveis e direitos e a escritura pública para os bens imóveis. É isso o que se extrai do art. 234 da Lei das S/As.5 A partir disso, a Corte Superior afastou pleito ressarcitório, concluindo que as sociedades receptoras não tiveram qualquer prejuízo. Por meio de seus sócios, permaneceram titulares de imóvel com pendências de registro: primeiro, quando integrava o patrimônio na cindida e depois, com a dissidência dos sócios, quando o imóvel passou a integrar o patrimônio das cindendas.                A tese de inadimplemento de cisão, portanto, é algo completamente contrário à natureza do instituto - que se constitui negócio jurídico desassociativo, sempre implicando fracionamento patrimonial não oneroso. *Daniela Peretti D'Ávila é mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Advogada e sócia do escritório Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados. __________ 1 Modesto Carvalhosa, em parecer jurídico apresentado nos autos dos referidos Recursos Especiais, esclareceu que a natureza não onerosa da cisão decorre do fato de que "a sociedade cindida nada receberá em compensação pela transferência de parte de seu patrimônio, cabendo aos seus acionistas (e não a ela) a subscrição de ações da sociedade cindenda. Caso se atribuísse uma contrapartida à sociedade cindida não ficaria configurada a cisão, mas sim a alienação de ativos ou a conferência de bens ou direitos em aumento de capital." 2 A esse respeito, em oportunidades anteriores, a Corte já havia registrado que a CISÃO "é forma sem onerosidade de sucessão entre pessoas jurídicas, em que o patrimônio da sucedida ou cindida é vertido, total ou parcialmente, para uma ou mais sucessoras, sem contraprestação destas para aquela." REsp 553.042/SE, Rel. Ministro Cesar Asfor Rocha, Quarta Turma, julgado em 25/11/2003, DJ 14/06/2004, p. 234. 3 Art. 229. A cisão é a operação pela qual a companhia transfere parcelas do seu patrimônio para uma ou mais sociedades, constituídas para esse fim ou já existentes, extinguindo-se a companhia cindida, se houver versão de todo o seu patrimônio, ou dividindo-se o seu capital, se parcial a versão. § 1º Sem prejuízo do disposto no artigo 233, a sociedade que absorver parcela do patrimônio da companhia cindida sucede a esta nos direitos e obrigações relacionados no ato da cisão; no caso de cisão com extinção, as sociedades que absorverem parcelas do patrimônio da companhia cindida sucederão a esta, na proporção dos patrimônios líquidos transferidos, nos direitos e obrigações não relacionados. 4 Ao comentar esse dispositivo, Modesto Carvalhosa registra: "O negócio de cisão acarreta a sucessão ope legis, a título universal, da parcela do patrimônio social transferido para o capital de nova sociedade ou de sociedade já existente. Assim, todos os direitos, obrigações e responsabilidade inerentes a essa mesma parcela do patrimônio transferido são assumidos pelas sociedades beneficiárias, novas ou existentes." Comentários à Lei de Sociedades Anônimas, 4º Volume. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 303. 5 Lei das S/As: ""Art. 234. A certidão, passada pelo registro do comércio, da incorporação, fusão ou cisão, é documento hábil para a averbação, nos registros públicos competentes, da sucessão, decorrente da operação, em bens, direitos e obrigações."
Os sistemas jurídicos são formados por normas, que, na expressiva maioria das vezes, resultam da interpretação de textos do direito positivo. No direito tributário, a norma jurídica é construída pelo intérprete a partir da lei (150, I, da CF), que fornece os elementos essenciais do fato juridicamente relevante para fins tributários e da correspondente obrigação tributária. Portanto, o dever jurídico de pagar tributos decorre não da lei em si (como texto), mas da lei interpretada - ou seja, da norma jurídica tributária. A lei é, sim, fundamental para justificar uma imposição fiscal, mas não é suficiente; o que obriga, efetivamente, é a norma jurídica, fruto da interpretação dos artigos, parágrafos e incisos dos textos legais. Todos têm aptidão para interpretar. Esta habilidade é inerente à nossa natureza.  Porém, a interpretação sobre a qual dedicaremos as próximas linhas é aquela advinda de uma específica "fonte normativa" legitimada pelo direito, o Poder Judiciário1, mais precisamente os tribunais superiores. O STJ e o STF têm a missão constitucional de dar a última palavra sobre o direito infraconstitucional e constitucional, respectivamente. E ao cumprir tal missão, criam normas jurídicas, delimitando os contornos do direito a ponto de modificar o sistema jurídico2. Essa atividade "criativa" do juiz - que, vale registrar, sempre esteve presente (embora muitos ainda teimem em não a enxergar), pois é pressuposto para o exercício da atividade jurisdicional - tem ganhado destaque nos anos mais recentes em razão da modulação3, instituto por meio do qual os tribunais superiores podem alterar o momento relativo à eficácia da carga normativa de suas decisões que interpretam a lei (STJ) ou a Constituição (STF)4. No que tange às questões tributárias, o STF tem lançado mão da modulação, inclusive com maior frequência registrada em 20205. Considerando a crescente utilização do instituto, nos propusemos a analisar, nesta coluna, o modo como o STF tratou dos efeitos temporais da norma jurídica criada a partir do julgamento do RE 628.075/RS - Tema 490 da repercussão geral (acórdão publicado no DJE de 1º/10/20). O tributo em discussão no Tema 490 é o ICMS, e a controvérsia diz respeito à "...possibilidade, ou não, de ente federado negar a adquirente de mercadorias o direito ao crédito de ICMS destacado em notas fiscais, em operações interestaduais provenientes de outro ente federativo, que concede, por iniciativa unilateral, benefícios fiscais pretensamente inválidos"6 7. Muitos contribuintes (certamente milhares) foram autuados pelos Estados em razão da glosa proporcional de créditos (de ICMS) no âmbito da chamada "guerra fiscal". Elevado também foi o número de particulares que propuseram ações judiciais objetivando o cancelamento de autuações dessa natureza, especialmente porque no STJ sempre foi firme a jurisprudência no sentido de que "...nas operações interestaduais, não cabe ao estado de destino exigir do contribuinte a parte do ICMS que deixou de ser recolhido ao estado de origem em virtude da fruição de benefício fiscal não previamente autorizado pelo Confaz"8. No âmbito do STF, houve, em 2010, decisão liminar na AC 2611, de relatoria da Ministra ELLEN GRACIE, no sentido de que: "Há forte fundamento de direito na alegação de que o Estado de destino da mercadoria não pode restringir ou glosar a apropriação de créditos de ICMS quando destacados os 12% na operação interestadual, ainda que o Estado de origem tenha concedido crédito presumido ao estabelecimento lá situado, reduzindo, assim, na prática, o impacto da tributação"9. Em 2011, o Supremo Tribunal Federal afetou a matéria ao rito da repercussão geral (Tema 490, como já destacamos), e em abril de 2020 foi dado início ao julgamento. O ministro Edson Fachin (relator) votou pela impossibilidade do estorno proporcional de créditos de ICMS pelo Estado de destino - confirmando, assim, a jurisprudência maciça do STJ sobre o tema. O Ministro Gilmar Mendes inaugurou divergência, tendo sido acompanhado pela maioria do Tribunal Pleno (restaram vencidos os votos dos Ministros Edson Fachin, Marco Aurélio e Roberto Barroso). Ao final, prevaleceu o entendimento de que "...o estorno proporcional de créditos de ICMS em razão de crédito fiscal presumido concedido por outro Estado não ofende o princípio da não cumulatividade", pois "...o princípio da não cumulatividade em matéria de ICMS deve ser interpretado no sentido de que o crédito a ser dado na operação posterior equivale ao valor efetivamente suportado pelo contribuinte nas etapas anteriores". Em seguida, decidiu-se pela modulação dos efeitos dessa decisão. E foi justamente esse aspecto do acórdão que mais nos chamou a atenção. Inicialmente, se fez o registro que "A modulação de efeitos de decisão ... é poder conferido ao STF, condicionado à presença de interesse social e à necessidade de garantir segurança jurídica aos jurisdicionados", e que "Tal instituto busca evitar que a decisão proferida por esta Corte afete, de forma negativa e relevante, importantes valores sociais, especialmente os princípios da boa-fé e da confiança legítima, que, no caso, respaldam os atos praticados e o eventual tratamento favorável concedido aos contribuintes...". Constou, também, que "...a situação enseja a necessária proteção das expectativas legitimamente criadas...", pois "...a modulação de efeitos da decisão proferida por esta Corte exerce a função de conciliar a validade e a cogência das normas constitucionais com a segurança jurídica dos contribuintes". Em seguida, tratou-se do termo inicial da eficácia da decisão: "...o momento mais adequado para que essa decisão produza efeitos é justamente a data de julgamento da presente ação". Até este ponto, a decisão do STF é acertadíssima, não sendo merecedora de qualquer reparo. De fato, por razões de segurança jurídica, princípio que é estruturante do direito e que condiciona a validade e a eficácia de outras normas que integram o sistema jurídico, era necessário resguardar a (justa) expectativa do contribuinte de que a "guerra fiscal" travada entre os Estados não poderia o expor aos riscos da glosa proporcional de créditos de ICMS. Não só porque os atos concessivos dos benefícios inconstitucionais presumiam-se válidos e eficazes até o julgamento do Tema 490, mas, também - e talvez especialmente -, porque até 2020 as decisões dos tribunais superiores (=normas individuais e concretas, em maior número criadas no âmbito do STJ) eram no sentido de afastar a pretensão do fisco quanto à matéria em exame.10 Porém, ao continuarmos a leitura do acórdão, somos obrigados a dar um passo atrás e reconhecer que, ao fim e ao cabo, a modulação, no Tema 490, não foi tão acertada assim. Após discorrer sobre a necessidade de preservação da confiança do particular frente aos atos do Estado, o voto condutor do acórdão passou a discorrer sobre os riscos do "...aumento do déficit público, nas já combalidas finanças estaduais", destacando "...a informação trazida pelo Estado de São Paulo, na condição de amicus curiae, o qual informa que, caso prevaleça a tese de que seria vedado o estorno proporcional de crédito de ICMS na presente hipótese, isso representaria um risco de devolução de créditos na ordem de R$ 9 bilhões de reais apenas pelo referido Estado". A seguir, passou-se à análise das "...consequências deste julgamento", fazendo-se referência à Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (LINDB) e ao fato de que competiria ao STF "...a proteção dos direitos fundamentais do contribuinte... mas também a defesa das competências constitucionais tributárias e - devo dizer - da arrecadação tributária, peça-chave do conceito de Estado Fiscal, como hoje o conhecemos". E se no tratar da modulação o voto condutor do acórdão havia sinalizado que '...o momento mais adequado para que essa decisão produza efeitos é justamente a data de julgamento da presente ação', a verdade é que, no fim das contas, os efeitos ex nunc da norma recém criada pelo STF foram 'mitigados' para que fossem "...resguardados todos os efeitos jurídicos das relações tributárias já constituídas. Isto é, caso não tenha havido ainda lançamentos tributários por parte do Estado de destino, este só poderá proceder ao lançamento em relação aos fatos geradores ocorridos a partir da presente decisão". O desacerto do tribunal na modulação dos efeitos do acórdão, no caso em análise, está relacionado às consequências jurídicas do consequencialismo econômico adotado (=preservação do erário). E são duas as razões que mais nos preocupam (sem prejuízo de outros aspectos igualmente preocupantes): 1ª) A preservação das relações tributárias já constituídas implica quebra da igualdade tributária. O critério de discriminação adotado não foi a capacidade contributiva (que é o critério tipicamente aplicável aos impostos, como o ICMS, para se fazer valer a igualdade), mas, sim, o "acaso", ou, talvez, a "eficiência" do Estado que cobrou o imposto e a "ineficiência" daquele que não autuou o particular. Em suma: quem teve a sorte de não ter contra si lavrado um auto de infração não precisará pagar a diferença do ICMS em relação ao passado; por outro lado, aquele que teve contra si realizado o lançamento do imposto (decorrente da glosa proporcional de créditos de ICMS) será compelido a pagá-lo ao Estado-credor, mesmo que esteja discutindo a questão há anos, amparado em farta jurisprudência do STJ. Como podemos notar, dois contribuintes com a mesma capacidade contributiva podem ser submetidos a tratamentos distintos. Tudo dependerá da sorte daquele que não foi alvo do Estado, ou revés do malsinado contribuinte que, antes de 2020, foi notificado por meio de auto de infração. 2ª) Modular os efeitos da decisão (=norma) para resguardar a higidez de autos de infração lavrados pelos Estados resulta na aplicação seletiva da segurança jurídica. Neste caso, a ideia de segurança jurídica como previsibilidade e confiança no direito foi efetivada em relação a apenas uma parte da categoria de contribuintes sujeitos à glosa proporcional de créditos de ICMS - precisamente aquela integrada pelos particulares que não tiveram contra si lavrados autos de infração. Os que foram cobrados pelo fisco - e que serão obrigados a pagar o imposto - certamente ficam acometidos de um sentimento de insegurança, desconfiança e injustiça. O julgamento do Tema 490 nos revela que modular inadequadamente os efeitos de uma decisão pode ocasionar a violação de princípios estruturantes do direito, como segurança e igualdade. É um (grave) problema para o qual precisamos estar atentos, a fim de evitar que a modulação deixe de cumprir uma de suas importantes funções, que é a defesa do particular contra o Estado. Continuamos convencidos que a modulação é um dos mais úteis, relevantes e interessantes institutos introduzidos no CPC/15. Mas, além de útil, ela precisa ser justa - o que impõe seu uso sempre em favor da segurança e da igualdade (nunca em seu detrimento). ______________ 1 O Poder Judiciário é fonte legitimada para a criação de normas jurídicas tributárias; porém, não é a única. No IPTU, por exemplo, a norma relativa a este imposto é criada e aplicada pela autoridade administrativa vinculada à Secretaria de Finanças. No ICMS, que é tributo sujeito a lançamento por homologação (art. 150, do CTN), a criação e a aplicação da norma competem ao particular (comerciante ou prestador dos serviços elencados no art. 155, II, da CF), resguardado o direito de a autoridade administrativa criar e aplicar a norma resultante da sua interpretação caso entenda que o pagamento realizado pelo particular tenha sido inferior ao efetivamente devido. Se não houver consenso entre as partes envolvidas na relação tributária quanto à norma criada pela pessoa legitimada, a questão provavelmente se tornará litigiosa. E se esse litígio se instaurar no âmbito do Poder Judiciário, caberá ao juiz criar e aplicar norma jurídica voltada à solução do caso. 2 O juiz não se afigura como mera "boca da lei" (bouche de la loi). Pelo contrário, ele participa do processo de criação do direito, criando normas. Evidentemente que nenhum juiz de nenhum tribunal pode criar ou majorar tributos, pois, de acordo com a Constituição, a lei é pressuposto essencial para a criação da norma jurídica tributária (inclusive aquela que impõe um aumento do quantum debeatur). Porém, e por exemplo: ao decidir sobre aspectos relacionados à base de cálculo de um tributo (v.g., que o ICMS não pode ser incluído nas bases de cálculo da contribuição ao PIS e da COFINS), o STF criou, por meio de precedente vinculante, norma jurídica geral e abstrata que passou a integrar o sistema normativo tributário vigente, participando, assim, do processo de criação do próprio direito. 3 Não por se tratar de instituto novo (mesmo porque sua aplicação remonta à década de 90), mas por haver sido positivada no CPC/15 (art. 927, §3º) e levada em consideração na Lei n. 13.655/2018, que alterou a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB). 4 Por exemplo: ao decidir que uma lei tributária é constitucional, o STF pode modular os efeitos de sua decisão, conferindo efeitos não retroativos (ex nunc) ao seu pronunciamento por razões de segurança e preservação do Estado-de-direito. 5 Em 21/01/2021 foi publicada a seguinte notícia no jornal Valor Econômico: "Em meio à pandemia, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) parecem estar mais sensibilizados com a situação das contas públicas. Passaram a propor com mais frequência a chamada modulação de efeitos para os casos tributários - que impede a aplicação das decisões de forma retroativa. A medida foi adotada em três casos já encerrados e proposta em outros três em andamento, o que preocupa os contribuintes por serem processos de maior impacto".  6 Clique aqui 7 Para entender o ponto central da discussão, imaginemos o seguinte exemplo: i) uma empresa comerciante com sede no "Estado A" adquire, para revenda, mercadoria de um comerciante estabelecido no "Estado B"; ii) na nota fiscal emitida pelo fornecedor está destacado o ICMS no valor correspondente a 12% da operação relativa à compra e venda; iii) consideremos que o "Estado B" tenha concedido um benefício fiscal aos comerciantes sediados no seu território correspondente a um desconto de 50% no valor do imposto, e que este incentivo tenha sido "unilateral" (ou seja, sem aprovação no CONFAZ). Neste caso, será devido, pelo fornecedor, ao "Estado B", o valor correspondente a 6% da operação, muito embora na nota fiscal tenha sido destacado o valor equivalente a 12%; iv) o adquirente, que nada tem a ver com o benefício concedido pelo "Estado B", utiliza os 12% destacados na nota fiscal como crédito para abatimento do ICMS que será devido ao "Estado A" em razão da revenda da mercadoria adquirida, o que faz com fundamento no princípio da não-cumulatividade; v) o "Estado A" não concorda com o creditamento dos 12% (pois, no seu entender, o fornecedor recolheu apenas 6%), e, assim, realiza a glosa proporcional do crédito de ICMS, permitindo que o adquirente se credite apenas do valor correspondente àquilo que foi cobrado pelo "Estado B" do fornecedor, ou seja, 6% (e não 12%). Finalmente: vi) em razão da glosa proporcional, o "Estado A" lavra, contra a empresa adquirente, auto de infração cobrando a diferença do ICMS, acrescida de juros moratórios, multa e correção monetária. 8 No julgamento do AgInt no REsp n. 1.535.946/MG, de relatoria do Ministro Herman Benjamin, se fez constar no acórdão que "O Superior Tribunal de Justiça possui jurisprudência firme no sentido de que, nas operações interestaduais, não cabe ao estado de destino exigir do contribuinte a parte do ICMS que deixou de ser recolhido ao estado de origem em virtude da fruição de benefício fiscal não previamente autorizado pelo Confaz, uma vez que esse impasse federativo deve ser solucionado em ação própria perante a Suprema Corte, não sendo possível atribuir ao contribuinte a responsabilidade tributária pelos eventuais prejuízos à arrecadação decorrentes da denominada 'guerra fiscal"(AgInt na Tut. Prov no REsp n. 1.667.143/RS, Rel. Ministro Gurgel de Faria, DJe 03/08/2018). No mesmo sentido: AgRg no RMS n. 44.350/MG (Rel. Ministro Benedito Gonçalves, DJe 03/12/2014); AgRg no REsp n. 1.312.486/MG (Rel. Ministro Humberto Martins, DJe 17/12/2012); RMS n. 31.714/MT (Rel. Min. Castro Meira, DJe 03/05/2011); REsp n. 1.125.188/MT (Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJe 28/05/2010); e REsp n. 773.675/RS (Rel. Min. Luiz Fux, DJe 02/04/2007). 9 Nesta mesma decisão constou, também, que: "Ainda que o benefício tenha sido concedido pelo Estado de Goiás sem autorização suficiente em convênio, mostra-se bem fundada a alegação de que a glosa pelo Estado de Minas Gerais não se sustenta. Isso porque a incidência da alíquota interestadual faz surgir o direito à apropriação do ICMS destacado na nota, forte na sistemática de não-cumulatividade constitucionalmente assegurada pelo art. 155, § 2º, I, da Constituição, e na alíquota estabelecida em Resolução do Senado, cuja atribuição decorre do art. 155, § 2º, IV. Não é dado ao Estado de destino, mediante glosa, a apropriação de créditos nas operações interestaduais, negar efeito aos créditos apropriados pelos contribuintes" (AC 2611, Rel. Min. ELLEN GRACIE, DJe de 07/05/2010). Referida ação cautelar não chegou a ser julgada pelo colegiado, por se haver reconhecido a incompetência do STF para a apreciação do tema; no entanto, foi mais uma decisão favorável ao contribuinte que, à época, pode ter sido orientadora da sua pauta de conduta (=se creditar do valor integral do imposto destacado na nota, e não apenas do ICMS recolhido pelo seu fornecedor). 10 "Esse, a nosso ver, é o primeiro dos pressupostos para que se proceda à modulação: deve-se, por meio dela, proteger a confiança do particular nos atos do Estado - no caso específico, a confiança do jurisdicionado na pauta de conduta criada pelo Poder Judiciário. (...) Um segundo critério, que nos parece capaz de auxiliar na identificação de casos em que deve haver modulação, é o de se tratar de situação em que o ambiente decisional seja rígido e que, por isso, a nosso ver, em tese, não se recomendaria que a alteração do direito (= da pauta de conduta) se desse por obra do Poder Judiciário. (...) Deve haver modulação quando a mudança de orientação prejudica o particular, e este é um terceiro critério, quando se trata de caso que envolva, direta ou indiretamente, o Estado. Se a nova posição prejudicar o particular, deve haver modulação. Não deve o particular arcar com os ônus decorrentes da incoerência da conduta dos representantes do Estado". (ALVIM, Teresa Arruda. Modulação na alteração da jurisprudência firme ou de precedentes vinculantes. 2. Ed. ver., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 227-238).
No segundo semestre de 2020, residentes de vários Estados brasileiros, relataram o recebimento, pelo correio, de pacotes com sementes vindas da China, sem qualquer solicitação1. O Departamento de Agricultura dos Estados Unidos concluiu que as encomendas podem estar relacionadas a uma fraude conhecida como "brushing", que funciona da seguinte maneira: um vendedor toma posse, indevidamente, de dados pessoais na internet e os utiliza para criar uma conta falsa em algum site de e-commerce, em nome da vítima. Em seguida, efetua a compra de um determinado produto de sua loja virtual e despacha a "encomenda". Quando a "mercadoria" (no caso as sementes) chega na residência do "cliente", o vendedor deixa um comentário positivo no site. E quanto mais avaliações positivas, melhor o ranking dessa loja virtual no site de e-commerce. Esse golpe configura concorrência desleal, pois há utilização de método desonesto para desvio de clientela alheia (art.195, III, lei 9.279/96). Como ocorre nos ilícitos dessa natureza, o ato fraudulento não se revela facilmente, o que dificulta a sua comprovação. No caso narrado haveria a necessidade de uma prova emprestada e transnacional. Em recente julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), foi reconhecida a existência de concorrência desleal porque a ré adquiriu um termo de busca no google, que consistia justamente na marca de sua concorrente. Assim que o consumidor fazia a busca na ferramenta do google, pela marca da concorrente era direcionado a um link de uma loja virtual da ré. O ato ilícito foi comprovado por meio de: i-) atas notariais (art.384, parágrafo único, CPC), que demonstraram o passo a passo até o direcionamento ao site da ré; ii-) a resposta da empresa Google ao ofício enviado pelo Juízo, em que foi informado que, de fato, a ré fez a aquisição do termo de busca que consistia na marca da autora, assim como o número de vezes em que ocorreu a busca por meio daquele termo e o direcionamento ao site da ré2. A dificuldade de comprovação da versão dos fatos em um processo é diretamente proporcional à complexidade desses fatos e, também, da prova a ser produzida. Essas duas circunstâncias (elementos fáticos complexos e produção de provas complexa) estão presentes, na maior parte dos casos envolvendo concorrência desleal. Disso decorre a necessidade de se apurar, a dinâmica dos fatos, quem os praticou, onde foram praticados e o proveito econômico obtido por meio do ilícito, antes do ajuizamento de ação buscando a abstenção da prática de concorrência desleal e compensação por danos (materiais ou morais), ou repressão ao ato ilícito (lucro de intervenção). A parte pode lançar mão de investigações particulares. Porém, é necessário fazer a ressalva de que sem o crivo do contraditório essa prova poderá ser impugnada na esfera judicial. Oportuno mencionar, ainda, que a ata notarial, meio de desjudicializar a prova, tem sido amplamente utilizada. Para coleta de depoimentos, vistorias, comprovação de fatos, certificação de conteúdo de sites, como autorizado pelos arts. 384 e 405, CPC. Essas provas poderiam ser produzidas unilateralmente pela parte (por exemplo, a impressão das páginas do site), mas talvez por uma questão cultural, a certificação de um notário, traz a presunção de legalidade, tornando-a muito popular atualmente. A ação judicial para produção antecipada da prova, de outro lado, mostra-se, também, importante meio para obtenção de provas. Após o resultado dessa ação o autor pode desistir de ajuizar a ação, pois pode concluir que não há elementos suficientes para o seu ajuizamento, ou, ainda, conduzir as partes a um acordo extrajudicial ou judicial (art.381, II e III, CPC). Por esses motivos, a medida tem sido denominada de ação para produção autônoma de prova, pois em alguns casos a ação principal, não será ajuizada. E mesmo que a parte tenha de antemão conhecimento da dinâmica dos fatos e da autoria, aguardar o momento da instrução probatória no processo, poderá significar a perda das evidências, especialmente nos atos ilícitos praticados em ambiente digital. Nesses casos, a produção antecipada da prova servirá para a preservação da prova e garantia do resultado útil do processo. É possível requerê-la para produção de qualquer espécie de prova e mesmo que não haja periculum in mora: testemunhal, pericial, exibição de documentos, vistoria etc. Em julgado recente, o TJ/SP manifestou-se pela limitação do objeto dessa ação, asseverando que esta não poderá ser sucedâneo do procedimento criminal investigatório, pois o art. 381, CPC exige que o autor descreva precisamente os fatos sobre os quais deverá recair a prova. O caso envolvia renomada empresa que presta informações para concessão de crédito, que buscava evidências a respeito da apropriação indevida de dados eletrônicos de sua titularidade, e sobre o proveito econômico decorrente da prática supostamente ilícita. Para tanto foi requerido o exame pericial dos registros em computadores e demais dispositivos de informática, além de registros contábeis. O TJ/SP autorizou a extração de cópia de todo o acervo disponível, determinando que o perito examinasse se as rés acessaram e copiaram a base de dados da autora e como se deu esse acesso. O TJSP vedou que houvesse a quebra do sigilo de dados, por meio do exame de discos rígidos contendo informações contábeis, por exemplo. Permitiu, apenas, a extração de cópia de todo o material que ficaria depositado em cartório, para utilização em momento apropriado (quantificação dos lucros auferidos)3. Por fim, o TJSP decretou o sigilo, impedindo o acesso aos autos pela ré, até a apresentação do laudo pericial. Causa surpresa a decretação de sigilo nessa extensão. Todavia, o fundamento legal para tanto seria o art. 382, parágrafo 4º, CPC, considerado como inconstitucional, por não autorizar a apresentação de defesa e recurso por parte do réu/interessado. Em defesa, o réu poderá requerer a decretação da inconstitucionalidade incidental desse dispositivo, para alegar, por exemplo, o não cabimento da produção da prova, o abuso do direito à produção da prova, o sigilo dos dados, etc. Em decisão proferida pelo TJDF foi permitida a quebra do sigilo de dados armazenados no gmail e google drive, mediante autorização judicial, em investigação de crime de concorrência desleal (art. 195, lei 9.279/96). Segundo o Tribunal não incidiria a vedação da Lei de Interceptações Telefônicas (lei 9296/96) para os crimes apenados com detenção (caso da concorrência desleal), pois o marco civil da internet (lei 12.965/2014) autorizou a quebra do sigilo de dados armazenados, mediante autorização judicial. Fazendo a distinção, portanto, entre dados em fluxo de comunicação e dados armazenados4. Todavia mesmo a prova produzida em processo criminal encontra limites. Por exemplo, na negativa de fornecimento de senha para acessar dados em sistema IOS de aparelho celular (já que o réu não é obrigado a fazer prova contra si). Outro limite seria a alegação de impossibilidade de fornecimento de acesso a segredo industrial. Por exemplo, ao funcionamento de algoritmos protegidos pelo segredo industrial, nos termos do art.20 da LGPD (lei 13.709/2018)5. Nos procedimentos criminais e cíveis envolvendo provas digitais, importante se atentar sempre à cadeia de custódia, cuja definição legal veio com a Lei Anticrime (13.964/19) em 2019 e introdução dos arts. 158-A a 158-F no CPP. Ou seja, deve sempre haver a preocupação com todo o percurso da prova desde a sua identificação até a sua eliminação, com o escopo de garantir a sua integridade. Recomenda-se o exame da ABNT/ISO 27037 de 2014, que descreve as "Diretrizes para identificação, coleta, aquisição e preservação de evidência digital". O tema sobre provas em concorrência desleal, evidentemente desperta o interesse da academia, porém as questões práticas são infindáveis e extremamente desafiadoras, especialmente as que decorrem da evolução do meio digital. *Priscila Kei Sato é doutora em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Professora do Curso de Especialização em Direito Processual Civil da PUC/SP. Membro da AASP. Sócia do escritório Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados. __________ 1 'Brushing', a fraude que pode explicar origem das 'sementes misteriosa', artigo capturado em 30/12/2020. 2 TJ/SP - AC: 10044393920198260562 SP 1004439-39.2019.8.26.0562, Relator: Fortes Barbosa, Data de Julgamento: 30/09/2020, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 01/10/2020. 3 TJ/SP - AI: 22158025920198260000 SP 2215802-59.2019.8.26.0000, Relator: Rebello Pinho, Data de Julgamento: 03/02/2020, 20ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 26/02/2020. 4 TJ-DF 07146192420208070000 - Segredo de Justiça 0714619-24.2020.8.07.0000, Relator: JOÃO TIMÓTEO DE OLIVEIRA, Data de Julgamento: 19/08/2020, Câmara Criminal, Data de Publicação: Publicado no DJE : 01/09/2020 . Pág.: Sem Página Cadastrada. 5 Recentemente o STF reconheceu a constitucionalidade do "compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil - em que se define o lançamento do tributo - com os órgãos de persecução penal para fins criminais sem prévia autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional". (RE 1055941, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 04/12/2019, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-243  DIVULG 05-10-2020  PUBLIC 06-10-2020)Tema 990 pelo STF. (RE 1055941, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 04/12/2019, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-243  DIVULG 05-10-2020  PUBLIC 06-10-2020).
quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Votos para 2021: o fim da jurisprudência defensiva

O ano de 2020 foi marcado por muitas mudanças drásticas e repentinas, que atingiram a todos. Com o Poder Judiciário não foi diferente. Todavia, com uma mobilização rápida e organizada, seus órgãos se adequaram à nova realidade, o que impediu a interrupção na prestação da tutela jurisdicional. Seus servidores merecem nosso reconhecimento pelo seu empenho, bem como a OAB por estar atenta à observância das garantias constitucionais e prerrogativas dos advogados. Mas uma tendência que se mostrou mais forte neste ano e que merece toda nossa atenção - e preocupação - é o recrudescimento, em especial nos tribunais superiores, da chamada jurisprudência defensiva. Pensávamos que o CPC/2015, com o devido prestígio que deu aos princípios da instrumentalidade e da cooperação, seria uma barreira suficientemente forte e efetiva para afastar de vez essa prática indesejável dos nossos tribunais. Imaginávamos que o tom da jurisprudência seria marcado pelo aproveitamento dos atos processuais, a fungibilidade e a sanabilidade dos vícios no processo, ainda que graves, inclusive nos tribunais superiores, tal como expressamente previsto nos arts. 76 e 932, parágrafo único do CPC. Isso porque, como um dos subscritores desta nota já afirmou anteriormente, "'simples' mudanças legislativas, no entanto, não são capazes, por si só, de ensejar grandes alterações. As mudanças efetivas provêm, principalmente, da atuação concreta dos Tribunais Superiores"1, que devem - acrescentamos - ao interpretar a lei, influir positivamente na concretização dos instrumentos previstos pelo legislador de 2015. Mas, infelizmente, não é isso o que se viu. No julgamento do REsp 1.813.684/SP, por exemplo, a falta de comprovação do feriado local no momento da interposição do recurso foi tida como vício insanável - já escrevemos a esse respeito em outra oportunidade neste Migalhas2. No Agravo Interno na Ação Rescisória 6.597/DF, a 2ª Seção decidiu que "havendo intimação eletrônica e publicação no Diário da Justiça Eletrônico, prevalece a data prevista nesta última", em contrariedade ao art. 270 do CPC que dá preferência ao ato de comunicação por meio eletrônico3. Nessa tendência formalista, a Corte Especial, no julgamento do Agravo Interno nos Embargos de Divergência em AREsp 1.238.270/RS, decidiu que a falta da juntada da certidão de julgamento do acórdão paradigma, no ato de interposição dos Embargos de Divergência, é vício insanável, resultando na impossibilidade de correção do vício e, como consequência, na inadmissibilidade do recurso. De acordo com o STJ, a comprovação da divergência, que é um dos requisitos de admissibilidade dos Embargos de Divergência, deve se dar, cumulativamente, com a "juntada de certidões; (b) apresentação de cópia do inteiro teor dos acórdãos apontados; (c) a citação do repositório oficial, autorizado ou credenciado nos quais eles se achem publicados, inclusive em mídia eletrônica; e (d) a reprodução de julgado disponível na rede mundial de computadores, com a indicação da respectiva fonte na internet" (g.n.). Segundo entendemos, o STJ não trilhou o melhor caminho em nenhuma dessas três situações. Especialmente no que se refere à demonstração da divergência, nos Embargos de Divergência, a exigência da juntada da certidão vai diretamente de encontro com o que dispõe o art. 1.043, §4º do CPC, segundo o qual a divergência se provará "com certidão, cópia ou citação de repositório oficial4 ou credenciado de jurisprudência. ou com a reprodução de julgado disponível na rede mundial de computadores" (g.n.). A Corte Especial do STJ criou uma restrição ao conhecimento do recurso que o próprio legislador não impôs, e, como se sabe, segundo recomendam as máximas da interpretação, a limitação ao exercício de direitos deve ser interpretada restritivamente.5 Além disso, a juntada de certidão é, em verdade, só mais um meio de comprovação da divergência jurisprudencial. As informações que constam na certidão - nome do relator, órgão julgador, dia de julgamento, resultado . - em regra, também podem ser extraídas do cabeçalho do acórdão, da ementa, do voto, do dispositivo. A certidão nada mais é do que a "ementa" dessas informações, ou seja, uma "compilação" desses dados, subscrita pela secretaria do Tribunal. Se a mesma informação consta de outro documento juntado pelo recorrente, ou pode ser facilmente obtida pelo simples acesso à internet - o que, pelo princípio da cooperação, pode ser feito pelo próprio serventuário responsável pela triagem de admissibilidade do recurso - o não conhecimento do meio de impugnação é medida extrema, de injustificável rigor formalista. Quando menos, deve-se proporcionar à parte a oportunidade de juntar aos autos o documento faltante. O rel. min. Jorge Mussi entendeu, contudo, que a falta da juntada desse documento não se enquadraria na categoria de vício formal, afastando, assim, a aplicação do art. 932, parágrafo único do CPC, que determina ao relator, antes de inadmitir o recurso, que conceda o prazo de 5 (cinco) dias para regularização de vício ou complementação de documentação exigível. O relator observou que a ausência de juntada da certidão de julgamento "constitui claramente vício substancial, resultante da não observância do rigor técnico exigido na interposição do presente recurso". Em nosso entender, configuraria falta de rigor técnico interpor o recurso de embargos de divergência sem apontar divergência alguma, ou juntando acórdãos de tribunais locais, o que não era o caso. A respeito do que sejam os vícios formais, a doutrina esclarece que são aqueles que se reportam à forma, "que pode referir-se ao ato processual em si mesmo (v.g. a forma da sentença); ao conjunto de atos processuais (forma requerida para a validade de outro ato); e à colocação do ato no curso do processo, ou seja, à oportunidade e lugar em que o ato deve realizar-se"6. A falta da juntada da certidão de julgamento, quando muito, poderia ser enquadrada como defeito formal, atraindo, assim,  a incidência do art. 932, parágrafo único, do CPC.  A gravidade do vício - caso a falta de certidão possa assim ser caracterizada - é absolutamente desproporcional à importância do ato que foi repelido pelo STJ, na hipótese, a interposição dos Embargos de Divergência, recurso voltado a corrigir a desarmonia interna nos próprios Tribunais Superiores e a manter a jurisprudência uniforme e estável, garantindo previsibilidade e segurança jurídica. O ano de 2020, para dizer o mínimo, está sendo absolutamente atípico. Do começo ao fim... pois a pandemia continua. Mas, ainda que o caos nos tenha rondado, sobrevivemos e iniciaremos 2021 com a esperança de que tudo melhore, e que todos possamos ter, nesse novo ano que se inicia, um pouco mais de paz de espírito. Para nós, que operamos com o Direito, isso passa pelo fim da jurisprudência defensiva e da visão do processo como um campo minado de armadilhas. __________ 1 João Ricardo Camargo. O novo desenho estrutural dos Embargos de Divergência no STJ traçado pelo Código de Processo Civil de 2015. In: Revista de Processo, vol. 272, p. 294. 2 Disponível aqui. 3 Esse entendimento, todavia, não é pacífico no STJ. Em sentido contrário, dando prevalência à intimação eletrônica sobre a intimação por Diário de Justiça Eletrônico, vejam-se os seguintes acórdãos: AgInt nos EDcl no AREsp 1.430.159/RJ, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, 3ª T., j. 8.10.2019; EDcl no AgInt no AREsp 1.281.774/AP, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, 3ª T., j. 16.3.2020; EDcl no AgInt no AREsp 1.343.230/RJ, rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª T., j. 18.6.2019. AgInt nos EDcl no AREsp 1.343.785/RJ, rel. Min. Raul Araújo, 4ª T., j. 18.6.2019. 4 Segundo a Instrução Normativa 1/2017, os repositórios oficiais da jurisprudência do STJ são os seguintes: "Os repositórios oficiais da jurisprudência do STJ são os seguintes: I - Revista Eletrônica da Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça; II - Revista de Súmulas do Superior Tribunal de Justiça; III - Revista do Superior Tribunal de Justiça; IV - Superior Tribunal de Justiça - Publicações eletrônicas; V - Coleção Especial de Jurisprudência do STJ - Publicação eletrônica; VI - Revista do Tribunal Federal de Recursos; VII - Revista Trimestral de Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal". 5 Esclarece Tercio Sampaio Ferraz Jr., com toda a razão, que a interpretação restritiva "supõe que o legislador racional, por coerência com os valores que o ordenamento agasalha, deseja uma imposição de sentido rigoroso". Introdução ao estudo do direito. 10ª ed., S. Paulo: Atlas, 2018, p. 257. 6 Roque Komatsu. Da invalidade no processo civil. S. Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991, 2019.
Estávamos todos em compasso de espera, com grande ansiedade, quanto à definição do STF sobre estar ou não em harmonia com nossa Constituição Federal, o art. 16 da LACP. O julgamento do RE 1.101.937/SP deveria ocorrer, se não tivesse sido tirado de pauta, no próximo dia 16 de dezembro.  No julgamento deste recurso, o STF deverá esclarecer ser ou não constitucional a regra no sentido de que a coisa julgada nas ações civis públicas ocorre erga omnes nos limites da competência territorial do órgão prolator da decisão. Já houve inúmeras idas e vindas, principalmente do STJ, no que diz respeito a essa definição. Muitas vezes, aliás, o artigo foi afastado sem que se tenha dito que seria inconstitucional.   Trata-se de tema de evidente relevância para o país, sobre o qual os tribunais superiores precisam estabilizar de uma vez por todas sua jurisprudência, imperativo de segurança jurídica.   A jurisprudência quanto a este tema vem oscilando de modo inadmissível ao longo do tempo.  No âmbito do STJ, por cerca de uma década (2001 a 2011), o posicionamento adotado foi no sentido de aceitar a literalidade do dispositivo antes referido e restringir a eficácia subjetiva da sentença coletiva aos limites territoriais do órgão prolator. Em 2011, no entanto, no julgamento do REsp n. 1.243.887/PR, sob o regime dos recursos repetitivos, houve uma guinada na jurisprudência daquela Corte, que alterou bruscamente seu entendimento, fixando tese no sentido da eficácia nacional. O acórdão transitou em julgado em 2016.  A partir daí, foram vários os Tribunais locais que aderiram a esse posicionamento.  Ocorre, entretanto, que, nesse REsp n. 1.243.887/PR, a afetação foi restrita (ou seja, o tema que ensejou a afetação) ao "foro competente para a liquidação individual da sentença coletiva", tendo a decisão, portanto, ido além do tema afetado, o que foi reconhecido em outros acórdãos do próprio STJ, que continuaram considerando em pleno vigor o art. 16 da lei 7.347/19851". O que se disse sobre o art.16, no REsp n. 1.243.887/PR, foi, inequivocamente, um obiter dictum. Diante desse quadro de indefinição e por que a questão é, verdadeiramente, de índole constitucional, revela-se imprescindível a manifestação do STF. A relevância de que se reveste o assunto além de ser imensa, é multifacetada:  social, jurídica, econômica e política. Ainda que em cognição sumária, para análise da concessão da liminar, o STF já se pronunciou sobre a constitucionalidade do mencionado dispositivo legal. Na ADI nº 1.576-1, o STF indeferiu a medida cautelar requerida pelos demandantes no que concernia à suspensão da eficácia do art. 3º da Medida Provisória nº 1.570/1997 (convertida na lei 9.494/1997), por entender que o art. 16 da lei 7.347/1985 não viola a ordem constitucional.2 Também em outra oportunidade, o STF reconheceu a natureza constitucional da matéria e a repercussão geral em recurso em que estava em discussão "a extensão dos efeitos de sentença proferida em ação coletiva ordinária proposta por entidade associativa de caráter civil". Foi o que ocorreu no RE 612.043-RG/PR, que reconheceu a constitucionalidade do art. 2º-A da Lei 9494/1997, para declarar que os beneficiários do título executivo, no caso de ação proposta por associação, são aqueles residentes na área compreendida na jurisdição do órgão julgador, que detinham, antes do ajuizamento, a condição de filiados e constaram de lista apresentada com a peça inicial. Ou seja, o acórdão reconheceu a constitucionalidade de norma que fixa critério temporal e territorial para fins de delimitação da eficácia subjetiva da coisajulgada em ação coletiva. Embora sob outra perspectiva (agora, do art. 16 da lei 7.347/1985), o STF é chamado a se pronunciar sobre a imposição de limites à eficácia subjetiva da sentença coletiva, tema de indiscutível envergadura.         Ainda que as decisões acima mencionadas não possam ser consideradas precedentes vinculantes em sentido estrito, não há dúvida de que ambas demonstram a índole constitucional do tema relacionado à limitação da eficácia subjetiva da coisa julgada em ação coletiva. Mais ainda, sinalizam no sentido da absoluta idoneidade do critério territorial para tanto, ou seja, são reveladoras de que se trata de tema constitucional, revestido de repercussão geral, e de certo modo, também a inclinação de pensamento da Corte, que, a nosso ver, é fruto de uma visão extremamente racional do problema. São fundamentalmente três as críticas feitas ao critério fixado no art. 16 da lei 7.347/1985, de limitação à eficácia subjetiva da coisa julgada nas ações coletivas: afirma-se que o legislador teria "confundido" conceitos processuais, quebrando a boa técnica processual; que tal critério acabaria por esvaziar a tutela coletiva, privando-a da sua eficácia plena; e que praticamente geraria o caos, estimulando a propositura de infinitas demandas coletivas. Deve-se, todavia, sublinhar que, embora a coisa julgada seja uma das expressões, no plano jurisdicional, da segurança jurídica, a CF deixa à lei ordinária a função de traçar os contornos do instituto. Basta dizer que o CPC criou a ação rescisória, que jamais foi tachada de inconstitucional. A expressão "eficácia erga omnes", contida no art. 103 do CDC, é usada para indicar que determinado ato atingirá "todos". No caso de uma decisão judicial, significa que atingirá muito mais do que as partes fisicamente presentes no processo, diferentemente do que ocorre nos procedimentos comuns individuais. Significa que transcenderá as partes litigantes, para atingir uma coletividade.  O art. 16 da lei 7347/1985 estabeleceu até onde se opera a transcendência, sendo certo que, ao afirmar que determinado ato gera efeitos erga omnes, não significa, necessariamente, que "atingirá todo o país". O entendimento em sentido contrário, que, à primeira vista parece atender às necessidades da nossa sociedade, na verdade acaba por gerar situações caóticas. Isto por que, como não são bons( rectius, são equivocados)  os critérios para detectar a  litispendência, o que acaba por ocorrer é a multiplicidade de ações idênticas, em vários Estados, todas com eficácia  para todo o país, (erga omnes - de forma ilimitada) , com o risco evidente de se produzirem toneladas de liminares e de sentenças  contraditórias.                       Para fixar a abrangência da eficácia subjetiva da coisa julgada, o legislador, então, elegeu critérios de natureza territorial, emprestados das regras de competência. O que há é um empréstimo e não uma confusão...Sua intenção foi, claramente, a de limitar o alcance subjetivo das decisões proferidas nas ações civis públicas, isso até mesmo em função das dimensões continentais do nosso país.   O art. 16 da lei 7.347/1985 estabelece contornos de razoabilidade ao efeito transcendente (ou erga omnes) das ações coletivas, evitando que, nas mãos de um único juiz singular, de qualquer parte do país, às vezes até mesmo por meio de uma mera LIMINAR, se possa, por exemplo, paralisar as atividades de uma empresa em todo o país, e afinal, fique o destino de questões relevantes, de abrangência nacional. Dentre os direitos que recebem tratamento coletivo, aqueles que mais se coadunam, para fins da limitação da eficácia subjetiva, com o critério da limitação da eficácia da tutela a partir dos limites desenhados pela competência territorial, são os direitos individuais homogêneos, por serem direitos DIVISÍVEIS, de titulares perfeitamente determináveis [IDENTIFICÁVEIS]. Na sua essência, não são direitos coletivos, mas são direitos apenas acidentalmente coletivos, diferentemente dos difusos e coletivos stricto sensu. A limitação da eficácia subjetiva da coisa julgada, nas ações coletivas, é a que mais se ajusta ao princípio federativo (e com as garantias da competência e territorialidade), fundamento constitucional da organização político-administrativa do Estado brasileiro, nos termos do artigo 1º da Constituição Federal, tanto que, foi baseado nisso que o STF rejeitou a medida liminar da ADI nº 1576.     Por ocasião desse julgamento, os Ministros, que então integravam o Supremo Tribunal Federal, afirmaram que a limitação de eficácia da sentença proferida em ação coletiva TINHA SIDO ÓBVIA, e não apenas pertinente, porque a falta de limitação da eficácia erga omnes implicaria "inversão total do critério da competência e da territorialidade", corolários do princípio federativo (art. 1º da CF). Seria, em alguma medida, como equiparar o juízo singular ao STF, pois a este caberia proferir decisão com efeitos para o país inteiro! É evidente a ausência de racionalidade jurídica que está por trás desta posição.3 O art. 16 da lei 7.347/1985, ainda, prestigia o princípio do juiz natural, pois a atribuição de eficácia nacional à sentença proferida em ação coletiva, tal como sustentam aqueles que apregoam a inconstitucionalidade daquele dispositivo legal, traz o grave risco de permitir a ESCOLHA do juiz que, com efeito erga omnes, decidirá o caso, prática que se costuma chamar de forum shopping e que não deve ser estimulada. O argumento de que a regra de prevenção, prevista no art. 2º, parágrafo único, da lei 7.347/1985 impediria a referida prática, não se sustenta, uma vez que a primeira demanda já pode ter sido proposta com base nessa estratégia, atraindo para esse juízo as demais ações. A se manter o entendimento pela eficácia nacional da sentença coletiva, nem seria o caso de reunião das ações, pela conexão, mas de verdadeira litispendência.Ou seja, as demais ações deveriam ser extintas pela identidade de pedido, causa de pedir e partes.  Isso porque todos esses legitimados agem no interesse das mesmas comunidades, dos mesmos sujeitos. Encontram-se, por assim dizer, numa mesma posição jurídica. Por isso, haverá litispendência.  Ao contrário do que se apregoa, a limitação de eficácia disposta no art. 16 da LACP não "inviabiliza" os processos coletivos. Ao contrário, torna essas ações mais confiáveis.  A outorga de legitimidade a determinados órgãos para agirem em defesa de direitos difusos, coletivos e até individuais, desde que decorrentes de origem comum, bem como a possibilidade de a coisa julgada atingir quem não tenha sido parte, fisicamente, do processo, promoveram a facilitação do acesso à tutela jurisdicional de questões que, de outra forma, dificilmente seriam levadas pelos interessados, individualmente, ao conhecimento do Poder Judiciário, seja por sua pequena expressão econômica, dificuldade de comprovação ou outra razão. A previsão de limites à transcendência da coisa julgada não compromete esse papel desempenhado pelas ações coletivas.  Quanto ao risco de a incidência da regra do art. 16 da LACP acabar gerando a propositura de mais ações coletivas e desuniformidade de tratamento...na verdade esse risco já existe! Não é apenas um risco, mas uma realidade que desacredita o sistema das ações coletivas no Brasil. Ademais também existe em relação à tutela jurisdicional individual. Mas este argumento perdeu força diante dos instrumentos, trazidos e aprimorados pelo CPC de 2015, voltados especificamente à formação de precedentes e a evitar que os órgãos fracionários do Poder Judiciário decidam diferentemente sobre o mesmo tema, no mesmo momento histórico.  O incidente de resolução de demandas repetitivas, novidade do CPC/15, é um deles. A repercussão geral e o regime de julgamento dos recursos repetitivos - que já se encontrava inserido em nossa ordem processual desde 2006, por meio da lei Federal 11.418 - é outro exemplo.  A existência de ações em vários Estados pode até levar a certas incoerências em um primeiro momento, mas depois, permite que haja, nos tribunais superiores - únicos que têm competência para produzir precedente vinculante com eficácia erga omnes, em todo o território nacional - um debate muito mais qualificado. Racionalidade acima de tudo, é o de que precisamos para lidar com este tema, que, quando tratado com paixões, leva a soluções inadequadas.  O empobrecimento da discussão e o risco de se decidir de maneira prematura, a prevalecer o entendimento pela eficácia nacional da sentença coletiva, é inegável.   O tema que iria ser decidido dia 16 de dezembro pelo STF é, de fato, daqueles que despertam paixões. Paixões podem até ser boas nas nossas vidas pessoais mas, no direito, com a mais absoluta certeza, não nos guiam para os melhores resultados.  __________ 1 REsp 1.114.035/PR, j. 07.10.2014, Rel. p/ acórdão, Min. João Otávio Noronha, e EDcl no REsp 1.272.491, sob relatoria do Ministro Og Fernandes, julgado em 08/10/2019. 2 Em seu voto, o Min. Marco Aurélio salientou, "tenho a mudança de redação como pedagógica, a revelar o surgimento de efeitos erga omnes na área de atuação do Juízo e, portanto, o respeito à competência geográfica delimitada pelas leis de regência. Isso não implica esvaziamento da ação civil pública nem, tampouco, ingerência indevida do Poder Executivo no Judiciário". 3 O art. 92, § 2º da CF reforça esse entendimento, ao dispor que somente o "Supremo Tribunal Federal e os Tribunais Superiores têm jurisdição em todo o território nacional".