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Lei do ficha limpa não pode valer para as próximas eleições, nem alcançar condenações anteriores a sua publicação

A LC 135, a "ficha limpa", amplia extensamente o rol de inelegibilidades. Exemplo: de 2 hipóteses originais no inciso I, passa-se a 17, numa conta arredondada pra baixo! A maioria cuida de condenações judiciais por ilícitos.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Atualizado em 13 de agosto de 2010 09:42


Lei do ficha limpa não pode valer para as próximas eleições, nem alcançar condenações anteriores a sua publicação

Fábio Barbalho Leite*

A LC 135, a "ficha limpa", amplia extensamente o rol de inelegibilidades. Exemplo: de 2 hipóteses originais no inciso I, passa-se a 17, numa conta arredondada pra baixo! A maioria cuida de condenações judiciais por ilícitos. Exemplo: a nova letra "l" do referido inciso I ("os que forem condenados à suspensão dos direitos políticos, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito, desde a condenação ou o trânsito em julgado até o transcurso do prazo de 8 anos após o cumprimento da pena;").

Duas questões sobre a lei: 1) ela se aplica às próximas eleições e 2) ela se aplica a processos em curso quando da sua publicação (isto é, a fatos ocorridos antes da publicação da lei)?

A resposta é única: não. A razão está em duas regras imprescindíveis para uma sociedade civilizada e democrática. O art. 16 ("A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra ate 1 ano da data de sua vigência.") e o art. 5º, XXXIX ("Não há crime sem lei anterior que o defina; nem pena sem prévia cominação legal") da CF/88.

O primeiro guarda princípio de segurança jurídica necessário a ética e legitimidade do processo eleitoral: a de não se permitir que a maioria parlamentar produza surpresas legislativas na iminência de eleições. Aí, não se admitem flexibilizações. Até crianças o intuem, não aceitando que nenhum amiguinho venha com regra nova num jogo de botão. O TSE (vencido o Min. Marco Aurélio), porém, disse (Consulta do Sen. Arthur Virgílio PSDB/AM) que regras que dispõem sobre o estado de elegibilidade não alteram o processo eleitoral. O TSE alegou homenagear o princípio da segurança jurídica (!), aplicando precedente do STF, que teria dito algo assim sobre eleições no Conselho Federal da OAB. Bem, já é temerário o raciocínio de transpor um solitário precedente do STF sobre a eleição num clube para reger as eleições do país... Pior, o TSE agride a lógica numa contradição ululante: diz que protege a segurança jurídica permitindo a surpresa jurídica!... Em rigor, a decisão do TSE joga contra a ética e a legitimidade do processo eleitoral.

A lei do ficha limpa também não alcança fatos anteriores a sua publicação, é inaplicável aos processos em curso quando de sua publicação. Veja-se o teor da referida letra "l" do inciso I, art. 1º da lei. Essa regra atribui a conseqüência da inelegibilidade - restrição de direito - a um fato ilícito - o cometimento de improbidade administrativa com ganho pessoal e prejuízo do patrimônio público. É inegável tratar-se de uma sanção: a atribuição pelo Direito de uma consequência negativa ao cometimento de um ilícito (uma conduta proibida pelo Direito). Como o conceito de sanção pertence à Teoria Geral do Direito, é o mesmo em todos os ramos jurídicos, inclusive o direito eleitoral.

A regra constitucional da irretroatividade da norma sancionatória - CF, art. 5º, XXXIX - é cláusula pétrea (não pode ser afastada sequer por emenda constitucional), tal é sua importância para a caracterização do Estado Democrático de Direito (organização política da sociedade em que prevalece a vontade popular, que é porém refreada pelo reconhecimento de um insuperável rol de proteções jurídicas ao indivíduo). Esse canto da sereia do clamor das ruas e da manchete do dia seguinte ainda não nos fez retroceder de todo para antes de Beccaria. É ainda legítimo esperar-se que a norma sancionatória não retroaja seja para tipificar como ilícito ato ocorrido no passado e que, á luz da norma então vigente, lícito era; seja para aumentar ou de qualquer forma agravar a sanção quanto a fato ocorrido no passado, ao tempo em que a norma sancionatória dispunha sanções, sob qualquer aspecto, menos gravosas.

O TSE (ressalvas dos Mins. Marco Aurélio e Marcelo Ribeiro) decidiu (Consulta do Dep. Ilderlei Cordeiro PPS/AC), porém, que a lei do ficha limpa aplica-se a processos existentes quando de sua publicação. O TSE argumentou que a regra da inelegibilidade protege a sociedade, logo, não é sanção e pode aplicar-se a fatos ocorridos antes da publicação da lei!... Ora, se fosse correto esse entendimento, o princípio da irretroatividade da norma sancionatória não valeria nem para o direito penal - afinal de contas, o direito penal serve à proteção da sociedade, não é ?... Certamente o Taliban se entusiasmaria com esse novo princípio jurídico inventado pelo TSE.

Se a magistratura apenas ecoar o clamor das ruas, torna-se desnecessária. Bastarão as praças e seus homens de pedras nas mãos. Será mais barato (por que gastar com magistratura?) e mais sincero. Só não será evidentemente um Estado de Direito. A Constituição serve justamente de refreio ao poder e o maior poder numa democracia é o povo. Mas povo sem contenção não forma democracia (esta requer um estatuto de proteção do indivíduo) - só totalitarismo. Nas respostas as duas consultas referidas acima, o TSE falhou enquanto magistratura. Agora, é confiar na capacidade de o Supremo Tribunal Federal fazer valer a Constituição e lembrar-nos todos de seus arts. 5º, XXXIX e 16.

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*Sócio do escritório Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques, Advocacia

 

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