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WikiLeaks, Carta Magna da Barbárie

Ao propor este novo tipo de jornalismo, totalmente irresponsável e estranho à autocensura, o WikiLeaks e seu criador regridem ao estágio hobbesiano primitivo do "homo homini lúpus" (o homem é lobo para o homem, e não "do" homem como se traduz imperfeitamente).

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Atualizado em 20 de dezembro de 2010 16:55


Wikileaks,
Carta Magna da Barbárie

Gilberto de Mello Kujawski*

Quanto mais a mídia agita a questão do megavazamento produzido pelo WikiLeaks, maior a confusão dos jornalistas. Julian Assange é personalidade discutível, um "homem-bomba", como já foi chamado, fazendo companhia aos maiores terroristas da história. Porque é de um terrorista que se trata.

Na aparência, Assange não faz mais do que compartilhar com a imprensa mundial o acervo de informações secretas que consegue. Seria apenas um liberador dos segredos que o Estado, a diplomacia e instituições públicas e privadas insistem em não divulgar aleatoriamente. Quanta generosidade, quanta coragem! Mas na realidade, aquele esperto australiano não passa de um sequestrador de informações, que mantém em cárcere privado, à sua disposição, para divulgá-las, vazá-las, conforme suas conveniências políticas e pessoais.

A palavra "leak" significa rombo, buraco, qualquer tipo de extravasão, como hemorragia, hemoptise, derrame, talvez até ejaculação precoce. Ironicamente, esse "valente australiano" que aparece como campeão da liberdade de expressão, na verdade, não passa de um grande sequestrador de informações reservadas, (obtidas por meios escusos?) que acumula em seu arquivo, à espera de ocasião para vazá-las de maneira oportunista na sua guerra declarada contra Estados, instituições e empresas.

Este é o outro lado da moeda, que escapa à consideração dos mais empolgados pelos lances teatrais daquele prestidigitador de auditório.

Assange está aclamado como o próprio cruzado da liberdade de expressão. Mas a dúvida que sua conduta desperta não diz respeito à liberdade de expressão, que é indiscutível, intocável e irretocável, não cabendo censura prévia nem posterior, e muito menos de conteúdo. A premissa de que a mídia PODE publicar o que quiser, porém, não significa que ela DEVE divulgar, cegamente, o que lhe cai nas unhas. O tal "dever de publicar", proclamado por certo jornalista, aliás dos mais completos, da Folha de S.Paulo, não constitui nenhum imperativo incondicional, sim que está condicionado por certos trâmites irremovíveis: a notícia "deve" ser publicada ou não, levando em conta o caráter explosivo do material informativo, que pode desencadear reações incontroláveis na sociedade, no mercado, nas instituições; além disso, este será o "momento" propício à publicação? Por exemplo, em casos de sequestro, quando a divulgação do fato pode colocar em risco a segurança e a vida da vítima?

Portanto, não é da liberdade de expressão que se trata, e sim da responsabilidade que deve acompanhar, necessariamente, a indiscutível e irredutível liberdade de expressão. Vale a pena o paralelo com o uso da palavra que fazemos em sociedade. Teoricamente, posso falar tudo o que me dá na cabeça, sem filtro nem reserva alguma. Minha língua é livre, solta e irreverente. Qual seria o resultado? Muitas sensibilidades sangrariam, muita injustiça seria cometida, a sociedade degeneraria em bandos soltos de boquirrotos declarando guerra uns aos outros, e a concórdia social, aquela disposição de conviver com o próximo e suas diferenças, ficaria seriamente abalada.

Em poucas palavras, chama-se civilização a convivência social sob o império das normas. Normas legais, morais, sociais, políticas, econômicas, trabalhistas, científicas, estéticas. As normas funcionam mediante trâmites, que são o curso regular, a sucessão ordenada de passos para a consecução de algo. O trâmite da norma legal é o processo; da norma moral, o tratamento do outro como pessoa, um fim em si mesma, e não como coisa; da norma social, a cordialidade, a boa educação; da norma política, a harmonia entre o interesse do indivíduo e o da sociedade; da norma econômica, a segurança e a clareza dos contratos, etc., etc.

Por volta do ano de 1900, certos grupos de sindicalistas franceses inventaram a maneira e a palavra "ação direta". A ação direta contrapõe-se à ação legal, é a proposta da classe trabalhadora atingir seus objetivos sem a tramitação, a mediação das leis, passando por cima destas. Desde então, generalizou-se para outros setores o espírito da ação direta. Ou seja, a imposição da própria vontade mediante a violência, em desrespeito a todo tipo de trâmites e de mediação. O modelo da ação direta implantada no conjunto da sociedade foi o fascismo. O fascista, segundo Ortega, é um novo tipo humano que "não quer dar razões nem quer ter razão, mas, simplesmente, mostra-se disposto a impor suas opiniões sem nenhuma justificativa" (Ortega y Gasset, La rebelión de las masas, 1930).

Toda a convivência social vai caindo sob este novo regime no qual se suprimem as instâncias indiretas, intermediárias, assinala o pensador espanhol. No direito suprime-se a obediência à lei; na política o Executivo submete o parlamento aos seus caprichos; na sociedade e na economia vale a lei do mais forte; no trato social elimina-se a boa educação, na literatura domina a panfletagem ideológica; nas relações sexuais desprezam-se os trâmites da sedução e da conquista progressiva. O respeito ao outro e a si mesmo já era.

A proposta do WikiLeaks corre na mesma linha: a completa supressão dos escrúpulos de ordem legal, política, social, moral, econômica e estética na edição das informações. Para começar, Assange declara, com a mais escandalosa indiferença que "a política do WikiLeaks é a de não saber a procedência dos documentos que recebe" (O Estado de S.Paulo, 18-12-2010).

Para o homem-bomba não interessa se a fonte do documento é ou não idônea, se veicula um fato ou um boato, nem quais as consequências que irá produzir no mundo real. Segredos de Estado, como a confidencialidade diplomática, são implodidos, tornando a diplomacia impossível.

A ordem, reproduzindo a expressão aquele jornalista da Folha, Fernando Rodrigues, é : "se uma notícia vaza, a mídia tem o dever de publicá-la". Assim mesmo, a notícia em toda sua crueza, sem consideração de oportunidade, de conveniência humana, moral, social ou política. "Publique-se o vazamento e que o mundo pegue fogo e se acabe", seria o novo mandamento extremista do WikiLeaks, reformulando aquele velho "fiat justitia pereat mundus". Será demais falar em terrorismo?

Onde ficam o segredo de Estado e de Justiça, o segredo de polícia durante a investigação, o segredo médico, de confessionário, o segredo profissional, empresarial, esportivo?

Ao propor este novo tipo de jornalismo, totalmente irresponsável e estranho à autocensura, o WikiLeaks e seu criador regridem ao estágio hobbesiano primitivo do "homo homini lúpus" (o homem é lobo para o homem, e não "do" homem como se traduz imperfeitamente). E assinam a Carta Magna da Barbárie que estava faltando em tempos de tamanha crueza, egocentrismo e irresponsabilidade como é o nosso.

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*Ex-promotor de Justiça. Filósofo e ensaísta





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