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Lugar Comum

Assim como se todos os poros do amanhecer só funcionassem nas axilas. E a cidade nos seus restantes, dormente. Entre um resto de lua ainda visível em despedida rápida ali pelo rumo do poente e os primeiros raios de luz querendo começar o dia sopra uma brisa atlântica.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Atualizado em 25 de abril de 2011 15:36

Lugar Comum

Edson Vidigal*

Como se a manhã nas beiras das calçadas, nas paralelas das ruas, só tivesse axilas.

Assim como se todos os poros do amanhecer só funcionassem nas axilas. E a cidade nos seus restantes, dormente.

Entre um resto de lua ainda visível em despedida rápida ali pelo rumo do poente e os primeiros raios de luz querendo começar o dia sopra uma brisa atlântica.

É possível imaginar o vento em sua força matinal fazendo ondas. A brisa é atlântica, porém contaminada.

Como se a cidade fosse um único elevador superlotado em que as pessoas quase se espremendo entre as outras comprimindo os ombros e protegendo as axilas da contaminação.

Não há nada mais desagradável conquanto inevitável que a atmosfera contaminada por aquela catinga de sovaco no sobe ou desce num elevador lotado.

A cidade como se fosse um vagão único de elevador e todos nós pedestres lá dentro tem amanhecido assim e se mantido assim fedorenta, suja, impermeável em sua sujidade, infensa até mesmo aos banhos das chuvas.

De tudo exala fedor. Do esgoto com tampa quebrada. Do ralo entupido rejeitando enxurradas.

Exala um fedor que parece se encompridar por léguas dos sacos plásticos com o lixo orgânico que os cães sem donos e os ratos da noite escarafuncharam atraídos por aquela acidez mais que úrica dos restos dos caranguejos mortos por asfixia nas panelas ferventes e devorados a cacetadas nas vésperas.

Esse fedor como se expelido de algum spray de concentrados de abandono, de descaso, de insensibilidade, de maneiras anacrônicas de ver e lidar, inspira indignação, revolta e também tristeza.

Essa sujeira refletindo ocasionalmente pequenas mazelas visíveis no cotidiano da cidade serve para provar a nós mesmos quanto nos acomodamos e nos acovardamos diante da arrogância do caos. Urge rugir!

Urge rugir, cidadãs, cidadãos, moças, rapazes, meninada, juventude, companheiras, companheiros, camaradas!

Aceitar essa anemia das inércias contaminando as manhãs, inundando de tristeza a parceria das flores, surrupiando de cada amanhecer o sopro de vida que a brisa atlântica insiste em nos trazer, silenciar, silenciar achando que nada por aqui tem mais jeito, que só a ira do Senhor num tsunami implacável lavará a nossa honra e nos libertará, é negar vigência à lei de Deus - faz por ti, que eu te ajudarei.

Temos que ver inexoráveis, nessas violações todas, as possibilidades à nossa frente.

A questão agora não é se eu pudesse, eu quereria. Temos que querer, sim. E querendo, poderemos, sim.

De que adianta o Atlântico nos mandar essa brisa entremeada com tantos recados das marés, saudações matinais das ondas quebradas nas areias alvas das praias, se daqui a pouco, a continuar assim, nesse calendário de espertezas manjadas e descasos anacrônicos, nem poderemos mais ver de perto as praias?

Está na hora, gente, de soltarmos os pés seguindo em frente sem medo, em liberdades e compromissos.

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*Ex-Presidente do STJ e Professor de Direito na UFMA

 


 

 

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