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A sociedade anônima no projeto de Código Comercial

Espalha-se pelo país, nos meios políticos, empresariais e profissionais, salutar debate sobre a necessidade de um novo Código Comercial. Na verdade, discute-se não somente o quanto se justifica, hoje, a atualização desta codificação. Alguns acadêmicos, legisladores e profissionais do direito avançam já no detalhamento da estrutura e conteúdo do novo Código.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Atualizado às 10:35


A sociedade anônima no projeto de Código Comercial


Fábio Ulhoa Coelho*

Espalha-se pelo país, nos meios políticos, empresariais e profissionais, salutar debate sobre a necessidade de um novo Código Comercial. Na verdade, discute-se não somente o quanto se justifica, hoje, a atualização desta codificação. Alguns acadêmicos, legisladores e profissionais do direito avançam já no detalhamento da estrutura e conteúdo do novo Código.

Nelson Eizirik, dileto amigo e ilustre jurista, é um dos que se apresentou ao debate, por meio de instigante artigo, veiculado no Migalhas, em que enfrenta as duas questões básicas postas pelo movimento em torno do Código Comercial: "precisamos de um novo Código Comercial?" e "que Código?".

A primeira questão diz respeito à oportunidade da elaboração de um diploma o quanto possível sistematizado e completo para a disciplina das relações entre os empresários. Eizirik expressa, aqui, uma dúvida sobre a pertinência da proposta, sem se posicionar contra, nem a favor. Sua dúvida, que é também a de outros juristas, gravita em torno da teoria dos microsistemas.

A segunda questão suscitada pelo movimento em torno do Código Comercial e igualmente enfrentada por Eizirik relaciona-se à abrangência que deve ter a Codificação. Para ele, o Código não deveria tratar da sociedade anônima. A disciplina atual, abrigada em diploma específico de excepcional qualidade (a lei 6.404/76 - clique aqui), seria já satisfatória, não se justificando alterações de monta. Tampouco o entusiasma a simples transposição dos dispositivos para o corpo sistematizado do Código. Aqui, Eizirik não tem nenhuma dúvida. Está plenamente convencido da impropriedade que resultaria de um novo Código Comercial cuja abrangência alcançasse a disciplina das companhias.

O objetivo desta breve manifestação é posicionar-me diante das duas questões eruditamente apontadas por Eizirik; questões que, como se verá, fundem-se em alguma medida, em torno da teoria do microsistema. É certo que essa teoria demanda uma discussão bem mais complexa, que procurarei sintetizar nesta manifestação, acentuando seus principais lineamentos.

A teoria dos microsistemas foi desenvolvida há cerca de trinta anos pelo civilista italiano Natalino Irti. Trata-se de teoria voltada especificamente para a experiência legislativa da Itália. Lá, e somente lá, em 1942, foi aprovado um Código Civil (clique aqui) com um larguíssimo âmbito de aplicação, compreendendo, além das matérias típicas do direito civil, também as da empresa e as do direito do trabalho. Ao defender a alteração da função primordial do Codice Civile, passando de norma "geral" para norma "residual", Irti tem em vista constante e exclusivamente o direito de seu país. Por força da ideologia fascista, então reinante na Itália, e, a rigor, em razão do uso do direito privado na busca da reafirmação da identidade nacional, o Código Civil italiano tem abrangência única, verdadeiramente extensa. Assim, Natalino Irti não propôs uma teoria para todos os direitos, nem mesmo para todos os direitos de filiação românica. Tem em perspectiva somente o direito peninsular.

Por outro lado, a teoria dos microsistemas, de Irti, é incongruente sob o ponto de vista lógico e incompatível com a teoria contemporânea dos sistemas (Luhmann). Trata-se de uma formulação logicamente inconsistente e teoricamente anacrônica.

A incongruência lógica advém do enunciado de que o microsistema possuiria repertório próprio, além do partilhado com o polisistema. Ora, se assim é, o microsistema contém o polisistema (e nunca poderia ser, sob o rigor da lógica, contido por este). A premissa adotada por Irti simplesmente não se sustenta, quando se trata a questão rigorosamente pela lógica.

Por outro lado, sob o ponto de vista da contemporânea teoria dos sistemas, o direito tem sido entendido como um sistema autopoiético. Significa dizer que ele próprio se define, enquanto se estrutura e se produz, independentemente do meio circundante. Esta característica é denominada, por Luhmann, de "completude funcional". Pois bem, a noção de um microsistema não tem, neste contexto, sentido nenhum. O "micro" reporta uma nítida relação de "tamanho" com outro sistema, que é necessariamente externo a ele. Não há como conciliar-se esta relação com a noção de completude funcional. Se um (micro)sistema depende de (macro)sistema para se definir, ou ele não é sistema, ou não é autopoiético. De um modo ou de outro, quem acompanha a evolução da teoria dos sistemas, não pode senão afastar a dos microsistemas como um anacronismo.

Mas, para prosseguir no debate, é necessário, malgrado sua seriedade, "por entre parêntesis" estas três objeções (uma teoria para o direito italiano, sem congruência lógica e desatualizada). Cabe operar-se, no plano da argumentação, com a noção difundida e intuitiva de microsistemas: um diploma fundamental (Código, estatuto ou lei) que estrutura uma área do direito, que se insere em outra ou outras áreas de maior espectro. Por exemplo: o direito do consumidor, estruturado pelo Código de Defesa do Consumidor, constitui um microsistema, dentro do direito privado.

Pois bem, nesta noção difundida e intuitiva da categoria em foco, não há como negar que o direito comercial é, desde a sua origem, um microsistema do direito privado. Os seus desdobramentos (societário, cambiário, etc) são algo como um micro-microsistema. Em tal perspectiva, e já entrando na segunda questão suscitada por Eizirik, o Código Comercial é o diploma estruturador do microsistema de direito comercial, enquanto algumas leis estruturam os micro-microsistemas do direito comercial.

Noto que nem todos os desdobramentos da área precisam ou devem se estruturar como um micro-microsistema. A propriedade industrial, os procedimentos de falência e recuperação e a sociedade anônima (mas não todo o direito societário) são exemplos de capítulos do direito comercial que convêm estruturar em micro-microsistemas. A conveniência de estruturação de alguns dos sub-ramos do direito comercial em micro-microsistemas nada diz da conveniência, ou não, de estruturação do direito comercial como um microsistema no direito privado.

Tudo se resolve, no final, numa pontual questão de política legislativa, que aponte a melhor solução para um determinado país, em certo momento de sua trajetória histórica; ou seja, como é melhor organizar os sistemas, microsistemas e micro-microsistemas legislativos no Brasil, neste início do século XXI. Se na Itália, durante o processo de integração econômica com os demais países europeus, alguém vislumbrou uma "era da decodificação", isto não significa que o nosso país, ao entrar numa etapa singular de sua história, ocupando uma nova posição na economia global, deva se privar da estruturação de sua ordem jurídica que lhe pareça mais adequada. Colômbia, em 1995, e Ukrânia, em 2003, aprovaram novos Códigos Comerciais, somente para citar dois exemplos de países, em que a elite jurídica não toma apressadamente por universal qualquer coisa que se fale nas academias européias de direito.

O PL 1572/2011 (clique aqui), apresentado pelo Deputado Vicente Cândido, que institui o novo Código Comercial, adotou, o modelo de sistematização do direito comercial acima indicado. Quando aprovado, ele conviverá, de um lado, com o Código Civil, pondo-se em relação a este como um microsistema; e conviverá, de outro, com a lei da propriedade industrial (lei n. 9.279/96 - clique aqui), com a lei falimentar (lei 11.101/05 - clique aqui) e com a lei das sociedades por ações (lei n. 6.404/76 clique aqui), que não serão revogadas. Estas serão, em relação ao Código Comercial, estruturadoras de micro-microsistemas.

Estando o direito comercial, hoje, no Brasil, reclamando urgente sistematização, um Código Comercial cumpre melhor esta função do que uma série não sistematizada de diplomas legais específicos de seus desdobramentos. A economia brasileira precisa de uma codificação que enuncie os princípios próprios do direito comercial, para que as relações entre empresários deixem de ser consideradas e julgadas à luz de princípios "sistemicamente alienígenas", como são os do direito civil e os do direito do consumidor.

Acolhendo, contudo, as consistentes ponderações no sentido da conveniência de se manterem as sociedades anônimas ao abrigo da atual lei, o Projeto de Código Comercial disciplina apenas aspectos não previstos na Lei 6.404/76, como, por exemplo, a composição da mesa das assembleias, a responsabilidade de seus integrantes, o poder de controle exercido por não acionistas, o exercício do voto atento ao cumprimento da função social da empresa, etc. O Projeto de Código Comercial em tramitação na Câmara dos Deputados é, portanto, plenamente compatível com a manutenção do atual tratamento legislativo dispensado às sociedades anônimas.

Dedico este artigo ao meu sogro, Carlos Augusto Moreira Filho.

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*Advogado e professor titular da PUC-SP





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