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Dízimo e coação moral

Gustavo de Castro Afonso

Quando a pessoa não exerce seu livre arbítrio na hora de efetuar o pagamento do dízimo pelo receio de sofrer as sanções religiosas peculiares de seu credo, está sendo coagida moralmente.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Atualizado em 14 de setembro de 2011 10:00

Gustavo de Castro Afonso

Dízimo e coação moral

O termo dízimo é derivado do latim decima, que traz a ideia de décima parte, ou, como é geralmente conhecido, 10% (dez por cento). Em linhas gerais, cultiva-se a ideia de que o praticante desta ou daquela religião colabore com o respectivo templo religioso por meio da entrega da décima parte de seus rendimentos, ou, excepcionalmente, de qualquer quantia que se disponha ou possa ofertar.

Pelo próprio senso comum do termo e tratando-se, na maior parte dos casos, de ato de disposição voluntária voltado à colaboração com o templo religioso do qual faz parte a pessoa, não há dúvidas de que o dízimo pode ser classificado como uma doação - a par de seu singular significado histórico ou religioso.

O problema surge quando a vontade do doador, manifestada no seu ato de disposição, não é levada a efeito de forma natural, ou seja, quando sofre interferência de outrem, somente praticando o ato por justo receio de sofrer as consequências que o terceiro lhe impôs, ainda que exclusivamente no campo psicológico.

Em outras palavras, a pessoa coagida moralmente não exerce efetivamente seu livre-arbítrio; embora, como dito, a ela se coloque a "opção" entre realizar ou não determinado ato, a violência psicológica é tão ampla e profunda que anula, por completo, a sensatez e a manifestação da vontade.

A possibilidade de sua ocorrência na prestação do dízimo existe quando, por exemplo, o doador, premido pelo receio de sofrer as sanções religiosas peculiares de seu credo, pratica um ato que, não fosse a coação moral, não praticaria. É bem verdade que a linha que separa a liberdade religiosa e a de disposição do indivíduo é tênue; o que se percebe, em defesa dos donatários, é a alegação de que a pessoa doa apenas porque quer, ou seja, de que ela não é obrigada a fazê-lo.

Nesse contexto, se o fiel é exortado a colaborar com a sua igreja ou templo sem que haja qualquer interferência anormal no seu estado psicológico, vale dizer, sem que lhe sejam feitas ameaças de futuras e sérias dificuldades por conta da falta da doação deste ou daquele valor ou bem, o ato será perfeitamente legítimo; todavia, se a abordagem incutir na pessoa o temor de receber graves penas, futuras ou presentes, suplícios de qualquer ordem ou mesmo a ocorrência de situação vexatória e humilhante - consideradas as características pessoais de cada um, caso a caso - a doação estará irremediavelmente viciada.

Logo, ainda que donatário e doador aleguem que o ato decorreu de livre e espontânea vontade, pautado na liberdade religiosa, o ordenamento jurídico não se coaduna com a ocorrência do vício de consentimento, consubstanciado na coação moral.

Enfim, não se pode condenar, em absoluto, a figura do dízimo; ao contrário, sua prática possibilita a garantia da liberdade religiosa e de crença, prevista na Constituição Federal, além de configurar uma doação como qualquer outra; o que se reprime - e para isto a jurisdição deve bem cumprir o seu papel - é a ilicitude da postura daquele que, exercendo alguma influência no ânimo do doador, nele vem a incutir o temor grave e irresistível, consubstanciado na reprimível coação moral, pois aí, nesse momento, o direito deve entrar em cena, reequilibrando a situação jurídica a favor de quem, em casos tais, foi flagrantemente prejudicado, em observância ao princípio da dignidade da pessoa humana.

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*Gustavo de Castro Afonso é advogado e sócio do escritório Smaniotto, Cury, Castro & Barros Advogados Associados

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