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Mecanismo revisional nos contratos internacionais: cláusula hardship

Bruno Dias Carvalho, Izabella Pardinho Reis e Eugênia Aguiar Siqueira

Os autores tratam das alternativas para restabelecimento do vínculo em situações de desequilíbrio, com vistas a evitar o simples encerramento da relação contratual.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Atualizado às 08:29

Bruno Dias Carvalho

Izabella Pardinho Reis

Eugênia Aguiar Siqueira

Mecanismo revisional nos contratos internacionais: cláusula hardship

O progressivo desenvolvimento da economia mundial ocasionou o aumento da complexidade das relações comerciais e culminou na consequente alteração da forma de persecução do regozijo dos interesses individuais. Assim, a transposição das fronteiras, flexibilização e dinamização do processo de circulação de bens e serviços e o influxo das atividades negociais, consequências do efeito globalizante, acarretou no acompanhamento pelos instrumentos contratuais do movimento de internacionalização dos interesses envolvidos nas negociações mercantis.

Os contratos internacionais podem ser caracterizados pelos aspectos subjetivos: a) nacionalidade, b) domicílio das partes contratantes; ou objetivos relacionados ao objeto da contratação: a) local de celebração, b) local de execução do instrumento.

A internacionalização dos contratos acarretou na incidência de elementos estranhos à relação, quando comparados às tratativas anteriores predominantemente internas e regidas por um único sistema jurídico. Passaram, portanto, a serem aplicadas à relação contratual as particularidades do próprio comércio internacional, relevada ainda a coexistência de sistemas jurídicos diversos.

Ademais, haja vista a dinamicidade das contratações de cunho internacional fez-se necessária a criação de instrumentos regulamentadores em âmbito supranacional, harmonizadores da incidência de diversos sistemas jurídicos. Assim, a contratação internacional não se restringe à normatividade do Estado como única fonte reguladora, sendo evidente o papel dos órgãos internacionais.

Neste sentido, considerando os instrumentos reguladores de âmbito supranacional, ressalta-se a lex mercatoria que constitui o conjunto de princípios, regras e instituições cujo foco cinge-se nos relacionamentos internacionais e na observância das exigências da atividade mercantil, abrangendo usos, costumes e princípios gerais do Direito.

Depreende-se dos princípios da lex mercatoria, que a interpretação e elaboração dos contratos internacionais deve pautar-se nos princípios gerais da boa-fé e na regra do pacta sunt servanda. Ressalta-se ainda que a boa-fé é imprescindível à vida social, contudo, seu conteúdo varia no espaço e no tempo.

Do princípio da boa-fé decorre a regra do pacta sunt servanda, que vincula o cumprimento do contrato conforme pactuado de comum pelas partes, evidenciando assim seu caráter cogente, com o intuito de conceder segurança aos contratantes quanto à necessidade de observância estrita e adimplemento das obrigações pactuadas. Destarte, o descumprimento das obrigações pela parte enseja a aplicação das penalidades contratuais, bem como das consequências previstas na legislação aplicável.

Pela análise literal do preceito do pacta sunt servanda o contrato era visto como instrumento final representativo da vontade das partes durante toda a sua vigência, ainda que esta fosse diferida. Contudo, o avanço e aumento da complexidade nas tratativas mercantis internacionais demonstraram que em um contrato bilateral de trato sucessivo, o equilíbrio contratual que deveria perdurar durante toda sua vigência, pode ser alterado por circunstâncias supervenientes e imprevisíveis de forma a turbar o caráter sinalagmático das prestações previamente avençadas e comprometer o regular cumprimento das obrigações pelas partes.

A consolidação desse entendimento demonstrou a necessidade de evolução e fomento das modalidades contratuais para resguardar os interesses primários das partes quando da contratação e imputação das obrigações e responsabilidades, estas mensuradas considerando o panorama vigente na data de assinatura do instrumento. Destarte, para que o cumprimento de um contrato de trato sucessivo seja possível é necessária a cooperação mútua durante todo o vínculo contratual e, sobretudo, quando da ocorrência das situações supervenientes.

Cumpre salientar que apesar do contrato ser considerado como instrumento de manifestação da vontade das partes cujo cumprimento é assegurado pela regra do pacta sunt servanda, sua força vinculativa não se equipara à lei, sendo que as condições previamente estabelecidas podem ser alteradas de comum acordo pelos contratantes, sem necessidade preeminente da ocorrência de circunstâncias que alterem o equilíbrio contratual, haja vista a liberdade para contratar e a autonomia das partes.

No entanto, considerando que o objeto do presente estudo cinge-se no mecanismo revisional dos contratos internacionais, mormente a cláusula hardship, serão analisadas as alternativas para restabelecimento do vínculo em situações de desequilíbrio, com vistas a evitar o simples encerramento da relação contratual.

Dentre as alternativas revisionais admissíveis, salienta-se primeiramente a incidência da cláusula rebus sic stantibus segundo a qual se reconhece que nos contratos de execução diferida, as partes permanecem vinculadas ao seu cumprimento conforme a regra da pacta sunt servanda, desde que as condições previamente estabelecidas à época de sua celebração permaneçam inalteradas.

Contudo, com a evolução do entendimento atinente ao desequilíbrio contratual por alterações supervenientes, foi acrescentada à cláusula rebus sic stantibus a ideia de imprevisibilidade das circunstâncias turbadoras, passando a ser reconhecida como Teoria da Imprevisão.

Assim, conforme esta teoria, para configuração do desequilíbrio contratual não basta apenas a ocorrência de uma situação fática posterior à celebração do instrumento, mas também que esta seja imprevisível pelas partes quando da contratação e que a onerosidade da prestação decorrente do desequilíbrio tenha como consequência o benefício exagerado à outra parte, alterando assim o caráter sinalagmático do contrato.

Todavia, haja vista que em alguns ordenamentos jurídicos não há previsão no que tange à revisão contratual por desequilíbrio decorrente de circunstância superveniente com base na aplicação da cláusula rebus sic stantibus ou da Teoria da Imprevisão, surgiu a necessidade de se determinar regras internacionais que assegurem a possibilidade de adaptação contratual nestes casos, de forma a manejar riscos imprevisíveis, evitando-se a insegurança jurídica na contratação e reduzindo-se litígios daí decorrentes, motivo pelo qual foi criada a cláusula hardship.

A cláusula hardship pode ser considerada como mecanismo internacional para manutenção da relação contratual, vez que visa à preservação do equilíbrio contratual por meio da renegociação e consequente adaptação do contrato à nova realidade que venha a ser enfrentada durante a execução das obrigações sucessivas. Há, assim, o deslocamento da discussão contratual do âmbito normativo estatal para o âmbito negocial, vez que a hardship não se atém aos ordenamentos jurídicos aplicáveis, mas sim à determinação contratual.

Muito embora seja um conceito fluído, vez que sua construção é contratual, a cláusula hardship recebeu atenção do mercado internacional dada a sua importância nas negociações, o que possibilitou sua regulamentação nos Princípios do UNIDROIT, que se destinam a estabelecer regras gerais para os contratos internacionais do comércio.

Assim, uma vez consolidada, os requisitos para sua caracterização condicionantes da sua invocação e cabimento foram construídos doutrinariamente, quais sejam: (i) alteração fundamental do equilíbrio contratual decorrente de fato superveniente que onere sobremaneira uma das partes, mas que não gere a impossibilidade de execução das obrigações. Nesse ponto, é importante destacar que a alteração fundamental se manifesta de duas formas distintas, partindo da interpretação oficial acerca dos princípios do UNIDROIT, sendo, primeiramente, manifestada pelo aumento substancial no custo da obrigação ou, em segundo lugar, pela relevante diminuição no valor da execução recebida, ou seja, da perda da utilidade econômica; (ii) imprevisibilidade, vez que o acontecimento não poderia ter sido mensurado quando da contratação, não constituindo, portanto, risco normal do negócio inerente à atividade comercial; (iii) exterioridade e inevitabilidade, razão pela qual o fato não pode decorrer, direta ou indiretamente, da ação ou omissão de qualquer das partes.

Portanto, uma vez caracterizado o evento turbador pelos elementos ora descritos, aplicável se mostra a cláusula hardship, no intuito de se renegociar e adaptar o contrato de forma a permitir a manutenção da execução contratual. Entretanto, cumpre salientar que os riscos imprevisíveis nas contratações internacionais não são manejados única e exclusivamente pela cláusula de hardship. Isso porque, esta se aplica a situações cuja alteração seja fundamental, mas que não torne impossível a execução de seu objeto e sim, apenas onerosa.

Há ainda, um segundo instituto aplicável às situações imprevisíveis e inevitáveis que ocasionem a impossibilidade total ou parcial da execução contratual e não a simples onerosidade das prestações, denominada cláusula de força maior. Apesar das diferenças dos eventos que a caracterizam reconhecidos pelos ordenamentos jurídicos de cada país, a cláusula de força maior possui a idéia central de permitir a exoneração do cumprimento de determinada obrigação em razão do impedimento total ou parcial causado por circunstância superveniente, imprevista e inevitável.

Ademais, ainda que amplamente utilizada, não só nas contratações internacionais, a cláusula de força maior é delineada, em suma, pelo redator do contrato, que pode optar por prever taxativamente as situações caracterizadoras de força maior, enumerar a título ilustrativo as principais situações, ou ainda, deixar o conceito genérico de forma a ser interpretado pelas partes ou pelo juízo optado, seja judicial ou arbitral. Na prática, é corriqueira a previsão do dever de notificar pela parte lesada pelo evento de força maior no menor tempo possível, para que as partes contornem a adversidade e estabeleçam as consequências da duração do evento, podendo optar pela renegociação ou rescisão do instrumento.

Assim, ambas as cláusulas trazem em seu bojo o propósito de determinar formas de readaptação ou de rescisão contratual diante de riscos imprevisíveis, cuja exposição é ainda mais constante em contratos internacionais de trato sucessivo e de longa duração. Entretanto, infere-se que a cláusula hardship constitui compromisso expresso de renegociação firmado entre as partes, contudo, sua aplicação não é automática no que tange ao início das tratativas para reequilíbrio contratual, devendo a parte lesada comunicar à outra sobre a ocorrência do evento.

Neste sentido, insta diferenciar o compromisso estabelecido na cláusula hardship como obrigação de meio ou de fim. O tema, apesar de controverso, encontra respaldo majoritário no entendimento de que a cláusula hardship constitui obrigação de meio, não sendo, portanto, imprescindível o êxito na renegociação, mas apenas o esforço das partes em reequilibrar o contrato.

Desta feita, inserida a referida cláusula no instrumento contratual, a recusa da parte em realizar as tratativas necessárias para a renegociação caracterizaria descumprimento contratual, ensejando aplicação das penalidades contratuais e possível rescisão do instrumento, sem prejuízo da indenização por perdas e danos conforme previsto na legislação brasileira.

Há de salientar que a negativa da parte em renegociar o contrato em virtude da não configuração dos motivos que ensejam a invocação da cláusula hardship não configuraria automaticamente o descumprimento contratual. Neste caso, dependendo do disposto no contrato, a solução da controvérsia por ser atribuída a árbitro ou juiz, que decidirá pela configuração ou não do evento.

Lado outro, importante apontar os aspectos relativos à execução do contrato durante a renegociação do instrumento conforme preceito da cláusula hardship. Predomina o entendimento de que a renegociação não enseja a suspensão do contrato, visto que não constitui medida que faculte o descumprimento contratual. Entretanto, haja vista a autonomia da vontade das partes, é possível prever expressamente a suspensão do cumprimento de suas obrigações durante as tratativas e omisso o instrumento quanto à medida a ser adotada, por força do pacta sunt servanda, infere-se que as partes permanecem vinculadas às suas obrigações. Além disso, os princípios UNIDROIT no item 6.2.3, alínea "2" dispõem que "o pedido de renegociação por si só não confere a parte lesada que se desvincule da execução".

Considerando o cumprimento das obrigações durante o período das negociações e concluídas estas com êxito, os efeitos da readaptação retroagirão ao início do desequilíbrio compensando dessa forma a parte lesada.

No que tange à realização da renegociação, as partes podem chegar a um consenso alterando os termos contratuais e restabelecendo o equilíbrio das prestações sinalagmáticas ou as partes podem não entrar em acordo, possibilitando o prosseguimento do contrato nos termos previamente acordados, intervenção de terceiros para solucionar a avença ou rescisão da relação travada. Ressalta-se que a intervenção de terceiros deve ser expressamente prevista no instrumento, não sendo possível sua sujeição automática para resolução da controvérsia. Da mesma forma, estas deverão prever a forma desta intervenção e a qualidade do terceiro, juiz ou árbitro.

Pelo exposto, a manutenção do vínculo contratual pelos mecanismos revisionais explanados, especialmente a cláusula hardship, tem como objetivo resguardar os interesses econômicos de viabilização da atividade empresarial e, ainda, manter indenes os objetivos das partes quando da formação do instrumento, evitando assim a rescisão dos mesmos e possibilitando sua repactuação. Por este motivo, a aplicação destes mecanismos atenua o reconhecimento da força obrigatória dos contratos, ressaltando a nova roupagem do princípio do pacta sunt servanda.

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*Bruno Dias Carvalho, Izabella Pardinho Reis e Eugênia Aguiar Siqueira são integrantes do escritório Tostes & Coimbra Advogados

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