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A presunção de inocência nos crimes sexuais contra vulnerável

Partindo do relato de um caso do TJ/RS, que absolveu réu acusado de estuprar uma menina de 12 anos porque ela não era mais virgem quando das relações sexuais, o promotor de Justiça aposentado explica o quê o CP prevê para crimes contra a dignidade sexual e afirma que cada caso deve ser analisado detalhadamente, pois muitas vezes a realidade da lei é severa demais e carrega uma carga exagerada de conteúdo condenatório.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Atualizado às 09:12

Eudes Quintino de Oliveira Júnior

A presunção de inocência nos crimes sexuais contra vulnerável

A 7ª câmara do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul ratificou a decisão absolutória proferida pela justiça de primeira instância que absolveu um réu acusado de estuprar uma menina de 12 anos. O sustentáculo da decisão foi que a menor não era mais virgem quando das relações sexuais, que foram consideradas consensuais, em razão da aliança afetiva entre ambos.

A lei é um instrumento necessário e indispensável para a manutenção da ordem social. O ideal seria que o homem vivesse em um mundo sem a necessidade de se submeter a um sistema externo de regras que impõem limitações a seus impulsos. Diante da impossibilidade, a lei surge como o parâmetro coercitivo para a manutenção da convivência harmônica.

O decreto-lei 2.848, de 07 de setembro de 1940, que instituiu o Código Penal, sofreu profundas alterações introduzidas recentemente pela Lei 12.015, de 07 de agosto de 2005, principalmente nos crimes contra a dignidade sexual. Novas figuras típicas foram inseridas na formatação penal, dentre elas a junção dos delitos de estupro e atentado violento ao pudor. Pela nova lei incriminadora o núcleo do tipo vem revelado pelo verbo constranger, como era anteriormente, porém, "alguém" e não mais a mulher. Ficou definido da seguinte forma: "Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso". O "alguém" passa a ser o homem ou a mulher.

Ao lado do estupro convencional, o legislador criou outro, denominado "estupro de vulnerável". Consiste na prática de conjunção carnal ou outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos ou contra pessoa que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.

Vulnerável, termo de origem latina, vulnerabilis, em sua origem vem a significar a lesão, corte ou ferida exposta, sem cicatrização, feridas sangrentas com sérios riscos de infecção. Houaiss , por sua vez, assim define: "que pode ser fisicamente ferido; sujeito a ser atacado, derrotado, prejudicado ou ofendido". Demonstra sempre a incapacidade ou a fragilidade de alguém, motivada por circunstâncias especiais. A mitologia grega relata que Tétis, mãe de Aquiles, untou o corpo do filho com ambrosia e manteve-o sobre o fogo. Após, mergulhou-o no rio Estige com a intenção de fazê-lo invulnerável. Segurou-o, porém, por um calcanhar que não foi tocado pela água, e, dessa forma, ficou desprotegido. Foi morto por Páris, que o atingiu com uma fechada no calcanhar vulnerável.

Assim, lentamente, a palavra vulnerabilidade foi ganhando espaço nas ordenações brasileiras. A lente do legislador voltou seu foco para a perspectiva do fraco, aquele que, por razões das mais diferenciadas matizes, não reúne condições iguais à do cidadão comum, tendo como fonte de referência a figura do homo medius. As relações entre os homens envolvem juízos de valor, exigindo uma exata postura garantidora de direitos iguais para aqueles que necessitam uma proteção diferenciada. Sem essa garantia, não há que se falar em preservação da igualdade. O equilíbrio só é possível em razão da compensação provocada. Por isso que alcançou a mulher no âmbito doméstico, o usuário de drogas e agora aquele que for vítima de conjunção carnal ou outro ato libidinoso, desde que seja menor de 14 (catorze) anos ou, nas exatas palavras do Código Penal, "alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência" (§ 1º do art. 217-A).

A decisão proferida pelo Tribunal do Rio Grande do Sul não se apresenta como a primeira cunha metida nesta questão. O Supremo Tribunal Federal, de forma reiterada vem entendendo que o consentimento da ofendida para a conjunção carnal e mesmo sua experiência anterior, não elidem a presunção de inocência para a caracterização do crime de estupro.

Apesar de que, em sentido contrário, ainda da mesma Corte Suprema, registra-se a decisão proferida pelo ministro Marco Aurélio.

Percebe-se que, apesar do conflito existente, a decisão do Tribunal gaúcho guarda coerência quando encampou na fundamentação absolutória a experiência anterior da menor e o envolvimento amoroso que mantinha com o acusado. Cada caso deve ser analisado detalhadamente, com as lentes da experiência e da vida. Muitas vezes a realidade da lei é severa demais e carrega uma carga exagerada de conteúdo condenatório.

É a diferença entre a lei e a realidade. A lei não é um instrumento pronto para ser aplicado de forma imediata, como uma vestimenta prêt-à-porter. Exige um estudo aprofundado, uma adequação acertada, pois é do atrito das realidades que se encontra a justiça, assim como do atrito das pedras brota o fogo.

É certo que, no momento atual, em razão das radicais transformações dos costumes, é temeroso dizer que uma adolescente menor de 14 anos seja desconhecedora das práticas sexuais. Conhece sim e muitas vezes já vem praticando com frequência, até mesmo em se prostituindo com a conivência dos pais para ajudar no sustento da casa.

Além da faixa etária proibitiva, deve-se levar em consideração o grau de afeto, pois se as relações sexuais mantidas foram em decorrência da aliança afetiva, seria condenar aqueles que se gostam. E pode até ser que advenha filho do relacionamento sexual.

Mas, a regra geral da reprovação estabelecida pelo critério exclusivamente legal deve ser interpretada de uma forma mais racional e também de acordo com a realidade local e social. Por isso que a lei emprega a palavra presunção no sentido de uma suposição que se tem por verdadeira, mas não jure et de jure e sim juris tantum. Do contrário, estariam abertas as portas para a aplicação da responsabilidade objetiva no Direito Penal.

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* Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado e reitor da Unorp

 

 

 

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