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Quando a lei "não pega"

A nova lei atendeu ao reclamo social, porém, pecou pelo seu preciosismo.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Atualizado em 30 de março de 2012 14:18

A lei tem por finalidade balizar as condutas das pessoas que vivem em comunidade para que seja possível atingir uma harmonia social. Para tanto, não só traça as normas do permissivo, como também traz as sanções para os transgressores. A lei, em suma, é aquilo que o poder encarregado ordena vez que há uma transferência da autorização popular pelo voto, como ordena o texto constitucional ao anunciar que todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos.

Há leis que caem na graça popular e transitam sem qualquer incidente com relação a sua execução e a restrição que traz nem sempre é vista como violação da liberdade. Pelo contrário. Trata-se de uma ferramenta eficiente e garantidora da paz social. A lei antifumo "pegou" e não encontra qualquer obstáculo, quer seja por parte dos cidadãos, quer seja por parte do Estado, por ser conveniente, oportuna e necessária. A lei tem um papel regulador no fenômeno social justamente para buscar uma concepção de sociedade justa.

A recente decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), em votação apertada (5 votos a 4) definiu que ninguém será levado à prisão por dirigir embriagado, a não ser que haja demonstrativo probatório pelo bafômetro ou exame de sangue, ficando sem qualquer valia o exame clínico de constatação e a prova testemunhal. Isto porque a lei exige, para a configuração do ilícito, um grau mínimo de seis decigramas de álcool por litro de sangue. Tal valor não pode ser apurado pela testemunha e nem pelo exame clínico.

A conhecida lei seca veio para coibir o excesso de acidentes e mortes provocados por pessoas embriagadas ao volante. Contou também com o apoio popular que, maciçamente, difundiu aos quatro ventos suas virtudes elegendo-a como dispositivo regulador e pacificador do trânsito. Veio com um arsenal de condutas criminosas tipificadas e providências administrativas, todas de caráter punitivo.

Levando-se em consideração que o Brasil é um dos países que apresenta um índice elevadíssimo de morte no trânsito, parte provocada por ingestão de bebida alcoólica, o código que regulamenta a matéria, por si só, que datava de setembro de 1997, não atingiu os objetivos propostos e a ideologia do laissez-faire provocou uma acomodação social, com inúmeras famílias chorando seus mortos e pleiteando uma reformulação legislativa mais severa.

A nova lei atendeu o reclamo social, ajustou-se no rigorismo mundial de combate ao binômio álcool-direção, trouxe instrumentos e mecanismos de execução compatíveis com a realidade brasileira, porém pecou pelo seu preciosismo, em verdadeiro confronto com direito consagrado na Constituição Federal. Não se trata aqui de avaliar se a lei é justa ou não e, sendo injusta, justificaria a não obediência. A lei, mesmo sendo injusta, encontra-se no mesmo nível de legalidade das demais e deve ser questionada judicialmente a sua coerência, por se apresentar fora dos parâmetros constitucionais. Quando se elege o feitor das leis a ele se confere poder para assegurar as garantias da justiça básica, como sendo, segundo o ensinamento de JOHN RAWLS, as da liberdade política - liberdade de expressão e reunião - e a liberdade de participar das atividades públicas e influenciar por meios constitucionais, o curso da legislação.

O princípio do direito ao silêncio não compreende somente a zona de intimidade do infrator, mas, também, o alargamento das fronteiras defensivas, não permitindo, desta forma, que produza provas contra si mesmo, quando é convidado a testemunhar o próprio opróbrio, como diz Tomás de Aquino. A lei de trânsito prevê, com arrepios de inconstitucionalidade, que o eventual infrator será penalizado se recusar a se submeter a testes de alcoolemia, exames clínicos, periciais ou outros em aparelhos homologados pelo CONTRAN. E a penalização é idêntica à prevista para quem for flagrado dirigindo sob a influência de qualquer outra substância psicoativa.

A Carta Constitucional estende os braços para o princípio da presunção da inocência, que guarda estreita vinculação com a regra do nemo tenetur se detegere, direito assegurado nas constituições democráticas, conforme se constata da norte-americana no instituto do privilege against self-incrimination. O exercício desse direito não pode ser visto como uma penalização, um suplício, um antídoto da liberdade consagrada. E a liberdade do cidadão somente pode ser limitada em nome de outra liberdade mais prevalente, no critério estabelecido por seres iguais e livres, com liberdade de escolha.

Em outras palavras: se o cidadão se recusar a fazer o teste do bafômetro ou exame de sangue, no pleno exercício de um direito confirmado constitucionalmente, será penalizado sumariamente. Se ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, o cidadão que assim age, acobertado pela lei maior, na esfera do exercício de sua defesa, será considerado infrator e como tal penalizado penal e administrativamente. É um contrassenso legislativo e uma afronta ao direito ao silêncio a autoridade de trânsito lavrar o auto de infração, que desencadeará a somatória de sete pontos na Carteira Nacional de Habilitação do eventual infrator, a apreensão de seu veículo e a suspensão do direito de dirigir por um ano.

Incumbe ao Estado, por meio de seus agentes persecutórios, demonstrar a prática de um ilícito pelos meios probatórios admissíveis nas regras jurídicas e não coagir o eventual infrator a consentir na realização de provas invasivas, prostrando-o diante de sua própria cidadania. É o aniquilamento de direitos obtidos com muito custo pela população brasileira.

Aí, então, a lei "não pega", por culpa exclusiva do legislador que desatendeu as exigências previstas na própria Constituição.

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* Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de justiça aposentado, mestre em Direito Público, doutor em Ciências da Saúde e reitor da Unorp






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