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O julgamento da interrupção de gestações de fetos anencéfalos sob uma perspectiva filosófica

Subjacente aos argumentos orais e jurídicos sobre a questão, há todo um subterrâneo filosófico que deve ser trazido à luz.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Atualizado em 16 de abril de 2012 14:16

Há poucos dias, vivenciamos aquilo que o atual presidente do Supremo Tribunal Federal denominou como a mais importante decisão da história da Corte: a liberação da interrupção de gestações de fetos anencéfalos. Tanto no julgamento, quanto na repercussão deste na mídia, percebemos a predominância de argumentos científicos e morais sobre a questão, principalmente quando o tema era o significado de vida.

Com estas breves palavras sobre o tema, não pretendo criticar a predileção pelo discurso científico ou moral, até porque a maioria das pessoas que se valeram dele o fez de maneira razoável e lúcida, considerando os limites que toda argumentação tem. A intenção é propor uma reflexão de filosofia do direito sobre o tema, buscando com isto enriquecer nosso horizonte jurídico, pois consideramos que, subjacente aos argumentos sobre a questão, há todo um subterrâneo filosófico que deve ser trazido à luz.

Considerando que, mesmo para os argumentos morais e/ou jurídicos, como dignidade da vida humana, autonomia e integridade física e psíquica, o que notamos foi a construção destes sobre um entendimento pré-estabelecido sobre o que seria a vida a partir de conhecimentos fornecidos pela ciência, podemos afirmar sem receio que houve uma supremacia do discurso científico na argumentação jurídica.

Tendo em vista esta supremacia, indico de maneira pontual três linhas de pensamento importantes para analisarmos a relação entre Filosofia e Ciência. De um lado, temos Martin Heidegger, filósofo do século XX que se opunha não só ao que a ciência, mas também o pensamento em geral, tinha se tornado: uma técnica. Como contraponto a este processo, propunha um retorno às origens da filosofia. Neste aprendizado com os gregos, a filosofia se recomporia à sua pergunta fundamental, o ser, e se harmonizaria com o conhecimento, inclusive o científico, mas sempre se colocando como original a ele. Esta visão é bastante criticada, pois hoje se considera impossível uma perspectiva totalizante da filosofia, os tempos mudaram e o papel da filosofia não é mais o mesmo.

Outra linha é a dos cientistas que escrevem obras filosóficas. E, considerando o século XX, os exemplos mais famosos são Henry Poincaré, que em O Valor da Ciência, afirma que "o pensamento não é mais que um clarão em meio a uma longa noite". Também Ilya Prigogine, que em O Fim das Certezas, conclui que "as leis não governam o mundo, mas este tampouco é regido pelo acaso".

Por último, temos a filosofia da ciência, que se alinha estreitamente à ciência, enriquecendo-se com esta. Neste sentido, grandes filósofos que se dedicaram especificamente a ela no século XX merecem destaque para ilustrar esta relação. Thomas Kuhn, Karl Popper, Paul Feyerabend, Gaston Bachelard e tantos outros, mostram-nos que, apesar de muitas vezes divergirem, a ciência não é produtora de verdades universais ou eternas. Popper, por exemplo, questiona o uso do termo "verdade" ao se tratar do conhecimento humano, entendendo que, mesmo que estivéssemos em posse dela, jamais poderíamos saber, e prefere dizer que uma teoria científica apenas se sobrepõe à outra por ser melhor, não por ser verdadeira. Interessante notar que esses filósofos muitas vezes se valem da história para mostrar as mudanças de paradigmas e a filosofia intrínseca à ciência. Outro filósofo importante para o tema, que não chegou a ser um "filósofo da ciência", é Hans-Geord Gadamer, que escreveu um livro (O Caráter Oculto da Saúde) tratando especificamente das ciências médicas. Gadamer compara a atividade do médico ao do jurista, que na fusão entre teoria e prática, faz uso da hermenêutica para decidir nos casos concretos.

Se por um lado a filosofia da ciência nos mostra que a verdade científica é relativa, por outro não a desacredita como ainda sendo um bom argumento numa discussão como a dos anencéfalos. Em outras palavras, no âmbito de um debate jurídico, a fragilidade da ciência não deve ser usada de modo a depreciar os argumentos científicos. Isto porque esta mesma fragilidade se estende sobre todo o conhecimento humano, até mesmo sobre a filosofia, sendo este um dos temas principais de Espinosa, Kant e Nietzsche ao afirmarem a limitação da consciência humana. Por outro lado, aprendemos com a filosofia da ciência que este argumento não deve ser entendido como superior por ser verdadeiro, enxergando em suas fragilidades um subterrâneo filosófico e moral que muitas vezes se esconde sobre o solo de uma "verdade científica". Em um universo denso de verdades morais, científicas, religiosas etc., é curioso notar que, talvez, nossas decisões jurídicas com base nelas sejam, no fundo, uma opção pelo que consideramos como o melhor dentro de certo contexto.

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* Ari Marcelo Solon é professor de Filosofia do Direito da USP e advogado do escritório França Ribeiro Advocacia

** O artigo foi escrito com o auxílio de Isabelle Strobel, aluna de Direito da USP e pesquisadora do tema Justiça, Verdade e Narrativa.

Franca Ribeiro

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