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Os Jogos Vorazes e o Direito Concorrencial

O advogado apresenta uma análise do filme "Jogos Vorazes" sob o ângulo do Direito Concorrencial.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Atualizado em 8 de maio de 2012 13:44

O filme Jogos Vorazes, tradução do original Hunger Games e baseado na obra de Suzane Collins (que tem todos os ingredientes para ser um grande sucesso depois de bruxos e vampiros), inspirado em certa medida na lenda de Teseu e o Minotauro, pode ser apreciado sob diversos ângulos certamente não imaginados pela sua autora, e um deles é o do direito concorrencial, com o qual procurarei fazer uma aproximação, dentro das limitações que naturalmente se apresentam. Este fato é evidente, tendo em conta que a trama do filme não permite uma identificação plenamente razoável com os institutos de direito antitruste. De qualquer maneira penso que o exercício seja bastante interessante.

A história se passa em uma sociedade totalitária, na qual se dá o controle absoluto da maioria expressiva dos mais pobres (representados por 99% da população e consequentemente sem educação, saúde e demais benefícios da sociedade que os brasileiros carentes conhecem à exaustão) exercido pela minoria dos mais ricos (1%), controle este fundado na força e na manipulação. Os fatos que levaram a esta situação não ficaram muito claramente delineados no filme, relacionados com guerra e destruição dos fundamentos da civilização anterior.

Os pobres são divididos em 12 distritos, que devem fornecer anualmente, cada um deles, dois representantes entre 12 e 18 anos de idade para que participem de uma competição mortal entre si, na qual somente pode restar um sobrevivente, que será devidamente coroado como o herói de sua série. O objetivo declarado é o do entretenimento da classe dominante. No fundo, trata-se de um mecanismo de perpetuação no poder e satisfação da classe favorecida por meio do velho truque do Panis et Circences iniciado no velho Coliseu romano, hoje substituído, entre outros exemplos, pelo lixo domiciliar, vendido pelas TVs abertas.

Uma personagem mais velha encarna o controle absoluto e sob suas ordens operam os executivos do programa político operado por meio dos referidos jogos. A heroína é uma jovem que voluntariamente se oferece para a substituição da irmã mais nova que havia sido sorteada e, com ajuda externa não explicada claramente, de quem e por que, ela termina por assumir um papel relevante fora do roteiro programado, o qual resulta ao final não na sobrevivência de um dos participantes, mas de dois, dela e de outro membro do mesmo distrito.

Procuremos dentro deste contexto brevemente relatado, fazer um paralelo com o direito concorrencial, pensando em termos de um determinado mercado e de empresas que nele atuam.

Avulta em primeiro lugar que a posição de domínio é incontrastável, a qual permite interferir no mercado sem o receio de consequências de qualquer espécie, situação semelhante, em parte, ao recente avanço do governo argentino sobre uma empresa petrolífera espanhola. Mas talvez o melhor exemplo seja o do capitalismo de Estado vigente na China, que se manifesta em uma área territorial muito restrita daquele país, submetendo-se o resto do povo ao domínio pleno da ditadura chinesa.

Abaixo do Chief Executive Officer encontram-se executivos que apenas cumprem ordens com certa liberdade de atuação, mas sujeita inexoravelmente a resultados positivos, dentro do programa em andamento, sob pena de afastamento imediato, no caso representado pela morte física do diretor desastrado (se a moda pega por aqui, tal como também na mesma China, a coisa ficaria muito feia).

Em segundo lugar, ressalta uma absoluta assimetria de informações entre os participantes dos jogos e os seus organizadores (controladores). Claro, isto se dá em detrimento dos jogadores e no favorecimento desmesurado dos últimos. A este respeito, a distribuição da informação também é mínima em relação aos diretores que só conhecem o script básico, e é praticamente nula quanto aos membros dos distritos submetidos ao comando superior.

De outro lado, não há limites em relação aos recursos colocados à disposição dos controladores, que têm conhecimento de tudo o que ocorre entre os controlados e que podem interferir no mercado dos jogos, usando os mais variados recursos, manipulando-o permanentemente e até mesmo mudando as regras do jogo conforme os seus interesses em cada momento.

Organizado o grupo de jogadores, estes são preparados separadamente para que, em tese, assumam melhores condições de serem vencedores, tornando-se um deles o único sobrevivente no mercado. Aos antigos vencedores de cada torneio é assegurada a sua utilização futura como os assessores que treinarão os novos participantes, tal como acontece com os diretores executivos de empresas. Estes muitas vezes são premiados no final de suas carreiras de sucesso, quando se dá o seu afastamento das funções executivas, substituídas por participações em conselhos consultivos muito bem remunerados, conforme tenha sido determinado pelo CEU. Esses ex-executivos, senhores de informações relevantes, recolhidas no seu tempo de jogadores, assumem o encargo de treinamento dos novos participantes. Neste papel sua responsabilidade é de meio e não de resultado.

Os jogos se iniciam de forma extremamente brutal em volta da disputa dos recursos extremamente escassos, essenciais à sobrevida dos jogadores, disponibilizados pelos organizadores. Algumas daquelas empresas morrem de imediato, não conseguindo chegar ao verdadeiro início do papel que pretendiam exercer, ou seja, o de sobreviver no mercado pelo maior período de tempo que fosse possível e, na melhor das hipóteses, nele sair vencedor.

A heroína, que havia sido orientada na fase de treinamento, esperou o melhor momento para buscar a sua parcela de insumos, havendo superado com sucesso os riscos iniciais. Segue-se uma luta inclemente pela disputa do território e dos recursos, sendo interessante notar que se formaram dois cartéis, um de natureza claramente voluntária, com maior número de participantes e outros de certa forma acidental e sequencial no tempo, com a mudança de parceiros conforme o desaparecimento de um e a sua substituição por outro. Claro que qualquer cartel nasce de uma vontade deliberada dos integrantes, mas no nosso caso eu desejei mostrar que os cartéis minoritários nasceram como estratégias de defesa contra o principal.

O fato da cartelização daquele mercado poderia levar um intérprete a considerar tratar-se de um fenômeno que faria parte do DNA dos participantes de disputas empresariais e de sobrevivência dos que nele atuam, na defesa dos seus próprios interesses e sem considerar os efeitos para os que ficam de fora e, ainda, sem qualquer preocupação com os consumidores dos seus produtos e/ou serviços.

É interessante notar que no primeiro dos cartéis formados no filme em questão seus participantes pareciam estar alheios ao fato de que depois do aniquilamento dos inimigos comuns, a luta fratricida se daria entre eles mesmos, resultando na sobrevivência de apenas um, deles, conforme previsto nas regras do jogo. Acresce que o membro do mesmo grupo da heroína havia inicialmente ingressado no primeiro cartel, aparentemente como forma de protegê-la, tal como faria uma empresa integrante de um grupo de composição não revelada, quanto a uma terceira externa ao acordo, a ser favorecida por meio da transmissão de informações privilegiadas.

Um segundo cartel se forma entre a heroína e uma das participantes em uma relação de afinidade que a segunda apresentou perante a primeira, o qual terminou pela morte da mais fraca, como sempre violenta.

Em um momento futuro os dois membros do mesmo distrito se unem ostensivamente em outro cartel paralelo na luta contra os demais, notando-se de parte a parte um espírito de sacrifício pessoal que não condiz com a realidade dos negócios, sempre dirigida pelo interesse egoísta de cada empresa.

Em um dado momento é anunciada uma mudança nas regras do jogo, tendo sido permitido que passasse a haver a possibilidade de dois sobreviventes, desde que pertencessem ao mesmo distrito. Isto provocou uma reviravolta nas estratégias dos jogadores, com evidente aumento dos custos de transação, tendo em conta que se as regras foram mudadas uma vez, isto poderia acontecer de novo, como efetivamente ocorreu duas outras vezes, pelo restabelecimento da exigência de um único sobrevivente e posterior retorno à primeira exceção estabelecida. Como se verifica, era um mercado despido de qualquer segurança, ausente nele o pressuposto da ordem jurídica estável, tal como já nos ensinou Natalino Irti.

De todos os fatores expostos resultou que a heroína e seu companheiro terminassem os jogos como a dupla de vencedores. Mas foi encerrada apenas aquela série, mantendo-se toda a estrutura dos jogos íntegra nas mãos do controlador, afastado o problema do diretor inepto, como resultado de uma demissão também mortal.

Ausente qualquer concorrente daquele controlador, o mercado continuaria funcionando indefinidamente nas mãos do seu monopolista absoluto. Observe-se que, pelas circunstâncias presentes, as barreiras à entrada de novos organizadores se revelavam a completa inviabilidade de mudanças, tendo em conta que o grupo dos pobres manipulados, segundo os elementos disponíveis para análise, não tinha qualquer condição de ocupar qualquer espaço de competição.

Desta forma, o Diretor de Relações com o Mercado, à frente da exibição dos jogos não precisava ter qualquer preocupação com a perda do seu cargo.

Quem sabe, no futuro, será aberta alguma brecha nesse até então impenetrável monopólio?

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* Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é professor de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP e consultor do escritório Mattos Muriel Kestener Advogados

Mattos Muriel Kestener Advogados

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