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A inefável função social do contrato e o projeto de Código Comercial

Recentemente, vieram à luz os enunciados aprovados pela 1ª Jornada de Direito Comercial, sob os auspícios do CJF. Como os enunciados em questão não são jurisprudência, o receio é de que sirvam para induzir os magistrados.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Atualizado em 14 de novembro de 2012 12:19

Recentemente vieram à luz os enunciados aprovados pela 1ªJornada de Direito Comercial, sob os auspícios do Conselho da Justiça Federal, debaixo da coordenação-geral do Ministro Ruy Rosado. Foram elaborados 57 enunciados sobre as mais diversas áreas do Direito Comercial, não se sabendo muito bem que funções exercerão, uma vez que não se cuida, evidentemente, de súmulas de qualquer natureza. Ao menos espero que não sejam tomados a tal título pelos julgadores. Outra coisa a se estranhar é a sua paternidade, pois a missão institucional do CJF é tão somente a de "exercer, de forma efetiva, a supervisão orçamentária e administrativa, o poder correcional e a uniformização, bem como promover a integração e o aprimoramento da Justiça Federal", tal como se encontra em sua página na internet. Como os enunciados em questão não são jurisprudência, o receio é de que sirvam para induzir os magistrados a utilizá-los em suas decisões do que resultará, no final, para a sua construção e consolidação como tal, com grave defeito de origem. Isto porque, tendo em conta os milhões de processos que precisam ser decididos, há um perigo real de que se convertam em atalhos para as sentenças.

Outra coisa, tal enunciado - como todos os seus irmãos - foi proferido no âmbito da competência da Justiça Federal. Daí vai que as diversas justiças estaduais também poderiam criar os seus próprios enunciados relativos a tal função social do contrato, muito provavelmente diferentes do original federal. E aí teríamos um caos na jurisprudência das diversas cortes que somente seria sanado com uma oportuna manifestação do STJ e, quem sabe, até do STF, caso se considere que haveria uma questão constitucional envolvida com o cerceamento indevido da liberdade do exercício de uma atividade econômica pelos empresários.

Por outro lado, o enunciado 26 dessas Jornadas tem a seguinte redação: "O contrato empresarial cumpre sua função social quando não acarreta prejuízo a direitos ou interesses, difusos ou coletivos, de titularidade de sujeitos não participantes da relação negocial".

O primeiro ponto a considerar está no fato de que esse enunciado estava, naquele evento, dentro do campo das obrigações empresariais, contratos e títulos de credito, cujo coordenador científico foi o Prof. Fábio Ulhôa Coelho. Ora, aqui se coloca uma crítica de natureza pessoal (não personalíssima). Como se sabe, o ilustre professor Fábio é o autor de um projeto de Código Comercial que ora se acha em discussão nos meios jurídicos e no Congresso Nacional, encontrando-se, ele desde então, em uma verdadeira cruzada por todo o país na defesa de suas ideias. Quanto a isto nada a opor. Vivemos em uma democracia. No entanto, não posso concordar com a situação de conflito de interesses em que ele tem sistematicamente se colocado desde a elaboração do seu texto, sua apropriação pelo Ministério da Justiça e subsequente transformação em projeto de lei de Código Comercial, como agora ocorreu em relação à Jornada de que se trata. Em sua posição de coordenador científico, verifica-se que o enunciado 26, acima transcrito é nada mais nada menos do que a reprodução pura e simples do art. 316, parágrafo único do anteprojeto solitário daquele mesmo autor. Conflito de interesses é um tema que todo aluno de Direito Comercial aprende logo na segunda unidade dessa disciplina, quando estuda a teoria geral das sociedades e, especialmente, a sociedade anônima.

Vamos ao mérito.

Toda vez que eu ouço falar em função social, eu sei que, no plano da atividade empresarial, tanto o empresário quanto o consumidor vão ter de tirar a carteira do bolso, pois uma continha será apresentada a ambos, inexoravelmente. Ou será que algum ingênuo pode pensar que criar uma nova responsabilidade patrimonial pelo inadimplemento da obrigação de atendimento à função social do contrato não custará nada para ninguém? E quando o empresário tiver de pagar pela quebra da tal função social, o efeito será imediato no custo do produto ou do serviço que ele disponibiliza no mercado, a cargo do consumidor, no final da cadeia, aquele precisamente que seria o objeto da proteção dessa nova visão da função social. Almoço de graça nem no famoso "pindura", pois quem paga o pato (ou qualquer outro prato) é o dono do restaurante.

Segue-se a necessidade da interpretação daquele enunciado, dentro de um significativo âmbito de conceitos abertos, sempre imprecisos (e consequentemente de aplicação insegura), que passa pelo conteúdo do contrato empresarial; de que tipo de prejuízo ele se refere; de quais seriam esses direitos ou interesses, difusos ou coletivos ali referidos; e quem seriam os sujeitos não participantes da relação negocial. Trabalho para mais de metro, como diria alguém.

Pior de tudo, essa nova figura de responsabilidade que o malfadado projeto de Código Comercial pretende impingir à atividade empresarial, se por acaso vier a ser aprovado, se intrometerá indevidamente em áreas do direito que já são devidamente tuteladas, quando se pensa na ocorrência de externalidades negativas e de efeitos de segundo ordem, decorrentes da atividade empresarial. Porque, afinal de contas, é disto de que se trata.

Tudo mundo sabe que a atividade empresarial de um lado traz benefícios diretos e indiretos para o próprio empresário, para seus sócios, seus colaboradores, e para a sociedade como um todo. Mas frequentemente também surgem efeitos indesejáveis inerentes à própria atividade, que não podem ser afastados. Se uma usina hidroelétrica produz o benefício da energia limpa, ninguém desconhece os efeitos danosos ao meio ambiente, à produção que anteriormente se exercia na área a ser coberta pelo lago formado como resultado do represamento do rio, e às comunidades que moravam na mesma área. Uma fábrica gera produtos necessários à economia e, ao mesmo tempo, dejetos que devem ser tratados para a preservação do meio ambiente. A antiga máquina a vapor ao mesmo tempo em que transportava pessoas e carga, muitas vezes causava incêndios às plantações adjacentes à linha férrea, provocada pelas minúsculas brasas expelidas por suas chaminés. Sem contar os ataques dos índios e dos ladrões.

A mesma atividade empresarial é capaz de gerar danos para os consumidores, seja individual, seja coletivamente, que devem ser reparados.

Ora, as externalidades negativas e os efeitos de segunda ordem originados da atividade empresarial já são objeto de tutela jurídica plenamente adequada, o que se faz por meio de micro sistemas próprios, como acontece com o do meio ambiente e o do direito do consumidor. Assim, se pergunta, o que mais restaria proteger, a título de descumprimento da função social do contrato, que pudesse ser passível de alcançar terceiros estranhos às relações negociais do empresário?

Há um grande engano quanto aos fenômenos de que se trata, originado do desconhecimento da ordem jurídica como um todo, aliado a uma concepção negativa da atividade empresarial, própria de economias socialistas estatais, todas elas falidas.

Para mim, como tenho reiteradamente afirmado, o empresário exerce precisamente a sua função social extremamente benéfica à sociedade a partir do momento em que resolve arriscar o seu capital, colocando-o em um empreendimento de risco pelo exercício de uma atividade lícita. A regra do jogo está no fato de que se ele está sujeito a perder tudo o que investiu no caso de sua empresa der errado, do outro lado, existe a perspectiva de lucro, do qual se aproveitam ao lado dele o Estado (via cobrança de uma verdadeira caudal de impostos que se abate sobre o empresário), os empregados e toda a comunidade na qual a empresa atua.

Neste plano, falar de função social do contrato implica em criar mais um ônus claramente indevido para o empresário, diante de um universo desconhecido de titulares dos direitos decorrentes da imposição daquela, frente a uma penalização que pode se revelar em um montante impossível de pagar senão à custa da vida da própria empresa e, aí sim, é que terá sido detonada a sua função social.

Eu particularmente não compreendo como, já passada a primeira década deste milênio, ideias tão estranhas a uma economia de mercado ainda possam fazer parte do nosso pensamento econômico-jurídico. Nem os chineses agem mais assim. Talvez a Albânia, se ainda exista. Certamente é o caso da Coréia do Norte. Estaremos então em boa companhia se, não somente enunciados como este vingarem, mas se for aprovado o próprio projeto de Código Comercial que ora se discute, prenhe de pérolas como a que aqui se criticou.

Quando me encontrava na preparação da minha dissertação de mestrado, lá pelo meio da década de setenta do século passado, o Dr. George Marcondes Coelho de Souza, então meu chefe na Procuradoria Jurídica do Banco Central do Brasil em São Paulo, me emprestou um livro precioso que li com grande proveito e prazer. Tratava-se da obra Le Parfait Nègociant, de Jacques Savary. Aprendi naquela época que, no reinado de Luiz XIV tornava-se necessário redigir leis comerciais de âmbito nacional para ocupar o lugar da legislação esparsa então vigente, característica do antigo regime feudal. Nesse contexto, o Ministro Colbert nomeou Jacques Savary para fazer parte do conselho responsável pelas reformas exigidas. Comerciante de grande sucesso e profundo conhecedor do comércio, Savary foi o responsável pela elaboração da Ordenança de 1673, um dos pilares do futuro Código Comercial Francês de 1807, grande monumento legislativo que subsiste até hoje, atualizado para o tempo presente.

Naquela oportunidade verificavam-se circunstâncias especiais, completamente distintas das em que se pretende impingir ao Brasil um Código Comercial tão repleto de defeitos que dele praticamente nada pode ser aproveitado, como diversos juristas de renome que não este escriba têm cansado de demonstrar. O Código Savary não foi oportunista porque se revelava então extremamente necessário legislar no campo mercantil. Foi elaborado sob a batuta de um empresário e grande conhecedor da vida comercial, assessorada por um competente conselho de sábios para, somente depois, converter-se em lei. Em 1675 Savary publicou sua famosa obra, escrita sobre a base das memórias de sua participação no preparo daquela famosa ordenação.

Não é o que acontece no caso brasileiro, infelizmente.

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* Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa

é professor de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP e consultor do escritório Mattos Muriel Kestener Advogados

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