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Judiciário versus Legislativo - Um embate desnecessário

Ao decidir, no caso do mensalão, que os parlamentares condenados perderão seus mandatos, o STF "usurpa uma competência do Legislativo" e provoca uma "crise desnecessária e imprópria".

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Atualizado em 18 de dezembro de 2012 17:13

De acordo com a constituição brasileira, cabe ao Supremo Tribunal Federal julgar criminalmente os congressistas, mas a perda do mandato dos parlamentares, consequente de uma condenação judicial deve ser decidida, em votação secreta, pela maioria absoluta dos representantes populares da casa a qual pertença o deputado ou senador criminoso.

É o que está escrito no artigo 55 da Constituição Federal que diz que, no caso do inciso VI (parlamentar que sofre condenação criminal em sentença transitada em julgado) "a perda do mandato eletivo será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada a ampla defesa".

Argumentam alguns que o inciso IV, do mesmo artigo constitucional (suspensão de direitos políticos) não permitiria juízo político do Parlamento, de modo que a perda do mandato seria inexorável.

Ocorre, entretanto, que o princípio da especialidade, que informa as regras de hermenêutica, faz com que a decisão judicial criminal condenatória de parlamentar se submeta ao inciso VI, e não ao inciso IV, que se refere várias hipóteses de suspensão de direitos políticos, tais como a incapacidade civil absoluta, o cancelamento de naturalização, etc (cf. art. 15 da Constituição Federal).

De resto, conforme o texto constitucional, que não pode ser transformado em letra inútil, a condenação criminal não terá efeitos imediatos no caso de haver um mandato eletivo constituído, posto que este só pode ser extinto em decisão legislativa.

Assim é que, por ordem da Justiça, o parlamentar deve ser recolhido à prisão se a isto chegou a condenação, mas o seu mandato resta intocado até que o parlamento, por uma de suas casas, julgue a conveniência e a oportunidade da perda respectiva.

Por mais estranho que isso possa parecer aos olhos de muitos daqueles que querem saciar sua sede de justiça (jurídica ou política), é exatamente o que está escrito na constituição, porquanto a Carta prescreve que na hipótese de condenação criminal, malgrado o juízo técnico jurídico, cabe um julgamento político pelos representantes do povo, legitimados pelo voto, para efeitos da eventual perda do mandato do parlamentar criminoso.

Erra aquele que considerada esta norma uma proteção exclusiva do mandatário, pois o dispositivo em apreço serve, antes, aos representados que outorgaram mandato ao parlamentar que acabou por ser condenado. Este último vai para a cadeia se assim o determinou a condenação; mas é o parlamento que decide se o preso continua ou não na sua função representativa.

O sistema tem sua lógica. Cabe ao parlamento decidir se determinado condenado mantém ou não a legitimação representativa, malgrado sua pena criminal. Não são raros, aliás, os casos de condenação criminal que deixam intocada a legitimação representativa de um eleito, convindo lembrar que a Constituição não foi escrita apenas para julgar os delinquentes do mensalão.

No contexto desse julgamento, contudo, e a despeito da clareza do texto constitucional, o Supremo Tribunal Federal criou uma crise desnecessária e imprópria: antes mesmo de comunicar seu veredito à Câmara dos Deputados - e aguardar a decisão que fosse tomada por este Poder - resolveu impor, ao Congresso Nacional, uma força que não é sua: decidiu que os parlamentares condenados por crime perderão seus mandatos com o mero transito em julgado da sua decisão, o que, no nosso sentir, usurpa uma competência do Legislativo e arranja uma hipótese de cassação de mandato eletivo que não está contemplada pelo art. 55 da Constituição Federal.

Mas esta não é a primeira vez que o Supremo Tribunal Federal relativiza a soberania do mandato eletivo e as garantias constitucionais de sua proteção e intangibilidade (restritas aos casos do art. 55 da Constituição Federal). Há cinco anos atrás, o mesmo Supremo Tribunal Federal assentou, sem nenhuma previsão legal, e sem intervenção do Parlamento, que deve perder o mandato o representante popular que se desfilia do partido pelo qual se elegeu, por suposta e presumida "infidelidade partidária".

Sem se dar conta de que aquela decisão sobre a "infidelidade partidária" guardava um silencioso câncer que destruiria a força de um mandato popular, a maioria dos Ministros do Supremo Tribunal Federal tergiversou com a clareza do art. 55 da Constituição Federal e admitiu que uma decisão da Justiça falasse mais alto do que o texto constitucional.

Não se deixa de anotar, aliás, que dentre os ministros do Supremo que admitiram a cassação de mandato por desfiliação partidária perfilaram-se até mesmo alguns daqueles que hoje defenderam, na minoria derrotada, a tese de que só a Câmara poderia decidir pela perda do mandato por condenação criminal.

Ao tempo daquela decisão sobre as desfiliações partidárias, como se sabe, havia uma boa quantidade de migrações partidárias abusivas e fisiológicas, o que fez com que ninguém achasse ruim que se aniquilasse essa garantia ao mandato popular em nome da defesa de uma suposta fidelidade partidária.

Mas foi ali que se plantou a ideia de que o art. 55 da Constituição Federal não deve ser levado tão a sério quanto nos ensinaram nas Academias.

Já no cenário das recentes condenações criminais alguns ministros disseram em minoria, com toda razão, que o mandato eletivo é intocável pelo Judiciário, que só pode decretar a sua perda quando o decretar a Justiça Eleitoral.

Ora, mas se o mandato é assim intangível - com o que concorda o signatário -, como puderam Suas Excelências admitir, lá nos idos de 2007, que os mesmos fossem cassados em razão de uma simples migração partidária - que sequer crime configura - e sem que essa perda de mandato fosse decidida pela Câmara ou pelo Senado?

O que nos deixa perplexos, a despeito de uma linha ou outra, é a desorientação hermenêutica que impera nos dias de hoje.

Convenha-se: a Justiça pode e deve julgar crimes e, sobretudo, deve garantir que os criminosos sejam recolhidos ao cárcere, mas a legitimação representativa de um mandato, exceção feita às hipóteses do processo eleitoral, só pode ser desconstituída no singular juízo político que é exclusivo do parlamento, composto de representantes populares eleitos.

O comportamento sinuoso da jurisprudência do Supremo, que aparenta assumir as vontades políticas populares sem a devida legitimação representativa do voto, está a transformar em errático e inseguro o nosso País.

Uma coisa é certa, esta crise que se desenha nos dias de hoje talvez não existisse se não tivéssemos sido complacentes com as regras constitucionais naqueles momentos passados em que desejamos reparar erros numa só "canetada". Fizemos uma concessão indevida, e agora colhemos o fruto do nosso próprio comportamento subversivo.

Assusta ver que a própria comunidade jurídica não quer pagar os preços cobrados pela democracia. Hoje o Supremo se sente na obrigação de atender às expectativas que ele próprio criou e, do outro lado, a Câmara dos Deputados se vê agora na obrigação de lutar pelas manutenção das suas prerrogativas. Qualquer que seja a solução, as duas instituições sairão arranhadas. Tudo isto poderia ser evitado se o STF apenas mandasse prender os parlamentares que condenou ao cárcere - façanha que já estava do tamanho adequado às altas competências da nossa Corte Suprema.

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Ricardo Penteado é advogado, especialista em direitos políticos e eleitoral, sócio do escritório Malheiros, Penteado, Toledo e Almeida Prado - Advogados.

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