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Anarquia italiana

A vitória de Berlusconi na Itália e a ameaça de ingovernabilidade no país são apresentadas sob o prisma da histórica anarquia italiana.

terça-feira, 5 de março de 2013

Atualizado em 4 de março de 2013 14:32

Falar em "anarquia italiana" parece pleonasmo, a tal ponto ela parece constitutiva do gênio italiano.

Goethe, no diário de seu livro Viagem à Itália (1786-1788) relata certo episódio que ilustra ao vivo e em cores a vocação para a anarquia, que constitui ao mesmo tempo a desgraça e a graça da cultura italiana.

Como viajava na companhia de um capitão italiano de marinha, este que via o poeta sempre quieto e pensativo, interpelou-o de chofre: "Por que o senhor não para de pensar? O homem nunca deve pensar, pensando envelhece. O homem não tem que se ligar numa coisa só, porque aí ele enlouquece: bisogna aver mille cose, una confusione nella testa, tem que ter mil coisas, uma confusão delas na cabeça".

A Itália sempre foi um país meio anárquico, não se sabe se por causa da tardia unificação, datada só do século 19, demorando a vencer os particularismos regionais e culturais da península, com as diferenças pronunciadas entre o Norte e o Sul, dificultando o avanço da democracia; o fato é que a lei das minorias com frequência se sobrepõe ao interesse do país como um todo. Caso da máfia, por exemplo. Para entender a "cosa nostra" e outros grupos mafiosos é preciso partir desta primeira constatação: a máfia se constitui da perversão dos valores patriarcais tradicionais: a família, a autoridade do chefe do clã, o respeito aos mais velhos, os usos comunais, o culto da honra (principalmente no tratamento dos filhos com o pai), os símbolos religiosos, a coragem e a impassibilidade do caráter, tudo isso está na base da máfia, só que repassado de violência sem limites, frequentemente teatral, de tirania doméstica implacável, de transgressão sistemática dos direitos e das leis estatais, de cinismo e da irresponsabilidade moral levada às raias da insanidade mental ("io sono innocente, eccelenza!").

Mas a questão é saber se a Itália terá salvação. Com a vitória senatorial de Berlusconi e seu desempenho alarmante na Câmara de deputados, a tão falada ameaça de ingovernabilidade assombra cada vez mais de perto o futuro do país. Berlusconi quebra o padrão de fingida austeridade de todo capo que se respeita. Com sua figura de gozador da vida, parecendo estar sempre saindo do banho, imaculadamente lavado, principalmente do menor laivo de pudor e de humanidade, il Cavaliere domina de novo a cena política italiana, parecendo um boneco de cera, vazio por dentro.

Que fazer? Wolfgang Münchau, do "Financial Times", publicou um artigo recente com a seguinte manchete: "Aliança da esquerda e Berlusconi é opção para sair do impasse" (Folha de S.Paulo, 27/2/2013). Max Weber ensina que ninguém consegue fazer política eficiente sem o pacto com o diabo. Nossos estômagos se embrulham. Mas é preciso levar em conta a Realpolitik, palavra alemã inventada por Mefistófeles. No entanto, Maquiavel, italiano até a medula, poderia dizer que é possível fazer o pacto com o diabo sem vender a alma. Daria o exemplo de Obama. Este fez pacto com os bancos (o diabo) e deu certo. No auge da crise, Obama protegeu os bancos. Estes responderam bem, começaram a pagar, reduziram o déficit e os americanos estão saindo da crise. E nem por isso o presidente americano está devendo a alma ao diabo. Menos sorte teve Lula, que fez seu pacto com um diabo velho e decadente, saiu perdendo e agora tem que pagar ao Tinhoso.

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* Gilberto de Mello Kujawski é procurador de Justiça aposentado, escritor e jornalista





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