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Ônus sem bônus

No serviço público, e no Judiciário em particular, vê-se com muita frequência, servidor de mais em um órgão e de menos em outro.

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Atualizado em 27 de agosto de 2013 15:18

A segurança, a remuneração e outras vantagens, conferidas pelo Estado ao funcionário público, indicam ao jovem o caminho mais seguro para a garantia de emprego: submeter-se a concurso público.

Abandona-se o lazer por algum tempo, deixa-se certas atividades para outro momento e dedica-se aos cursinhos, aos estudos; depois de alguns meses ou anos, às vezes, obtém-se a aprovação e alcança-se o objetivo traçado.

Ultrapassou-se os inconvenientes do edital do concurso e eis que chega a hora para apresentar os documentos exigidos,  submeter-se aos exames médicos, nomeação e posse.

Entusiasmado, orgulhoso, o servidor está na comarca!

Passa pela primeira decepção, porque a expectativa de preparo para o exercício da função não acontece; não há qualquer curso de formação ou treinamento para a importante atividade que vai exercer.

Uma casa velha, estragada, com telhado antigo, com goteiras na época das chuvas, gambiarra na parte elétrica, sem higiene, desprovida de salas indispensáveis para a atividade, abriga o fórum; os móveis, computadores não oferecem condições para o trabalho. O pior de tudo é que falta gente e, nem na assunção do cargo, o novo servidor encontra o chefe, na figura do juiz de Direito.

Informam-lhe que a comarca está sem juiz há mais de cinco anos; o quadro de servidores sempre foi defasado, um funcionário ao invés de dez; exatamente nesse cartório, o escrevente vai trabalhar. Seu colega, o escrivão, está em vias de aposentar-se.

De qualquer forma, é ali que o servidor terá de acomodar-se.  

O tempo mostra que, mesmo sem o chefe, o povo procura a Justiça: chega um para reclamar a invasão de suas terras, outra para requerer alimentos para os filhos, um outro para ser ressarcido de danos verificados pela ação do banco local.

Poucos meses depois, o juiz substituto baixa portaria, designando o escrevente para o cargo de escrivão, diante da aposentadoria do titular.

No serviço público, e no Judiciário em particular, vê-se com muita frequência, servidor de mais em um órgão e de menos em outro; salários altos para uns e pequeno para outros; vantagens exageradas para os primeiros e perseguição para os segundos; descuido de frequência ao trabalho para uns e exigência imotivada para outros.

O escrevente, contrariado e depois de esclarecer ao juiz seu total desconhecimento da atividade de escrivão, assume o cargo; na justiça é assim, cada servidor faz o que aprendeu por si próprio ou através dos ensinamentos do colega que chegou antes, mas que também não teve aprendizado técnico algum.

A única experiência situa-se no fato de ter acompanhado por poucos meses o trabalho do colega que não queria, mas aposentou-se face ao seu estado de saúde. Se na função de auxiliar do escrivão já sentia dificuldades, imagine-se para assumir a direção de um cartório com mais de 4.000 processos.

Suas dúvidas são dirimidas pelos colegas que trabalham há mais tempo em outros cartórios e pelos advogados da comarca.

A motivação inicial começa a esvair-se, mesmo porque não tem ninguém como chefe para ouvir sua amargura.

O escrevente já sabe que não será fácil para obter a remuneração pelo desvio da função, pois é comum para o servidor receber o ônus sem apossar do bônus.

Tem um colega, na comarca, que adoeceu, foi afastado por médico de município vizinho, mas enfrentou obstáculos para licenciar-se por mais tempo, apesar de continuar doente. Para solucionar a situação, a lei exige-lhe o deslocamento para a capital a fim de submeter-se à junta médica do Tribunal, correndo por sua conta os gastos de deslocamento e hospedagem. E que dizer da viúva de um oficial de justiça que recebe mensalmente a importância de R$ 12 (doze reais), mas para regularizar teria que contratar advogado e só depois a previdência passaria a remunerar a pobre mulher. O marido, antes de morrer, assegurou-lhe a pensão, mas a esposa, idosa e descrente de tudo, vive com a esmola do povo. E mais: o novo servidor ainda não sabe que a lei não lhe assegura meios para ser promovido.   

A queixa maior da classe não se situa na boa ou má remuneração, mas no tratamento que lhe é dispensado pelos superiores; só encontra cobranças, sem ninguém para ouvir suas dificuldades no cumprimento dos encargos recebidos. Estraga a saúde, complica a vida doméstica, sacrifica o lazer e ainda é cobrado pela comunidade e pelo juiz. Nem se fala das sindicâncias do CNJ. 

Não tem ninguém para administrar as tarefas do servidor público e muito menos para estagnar o tratamento desigual, não em função da produtividade, mas somente pelo apadrinhamento, prática centenária nos serviços públicos.

As direções dos tribunais não se conscientizaram de que seu patrimônio maior situa-se nos servidores, lembrados somente para cumprir essa ou aquela meta, dificilmente atendido, quando reclama instrumentos para o trabalho.

O Judiciário, na Bahia, não presta bons serviços à comunidade, porque não tem juízes, mas quando a comarca conta com o juiz, não dispõe de promotor, quando tem um e outro falta o defensor e quase sempre não há fórum nem servidores nos cartórios.    

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* Antonio Pessoa Cardoso é desembargador do TJ/BA e corregedor das comarcas do interior

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