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Liberdade de expressão ou de pesquisa?

O autor discorre sobre a questão das biografias não autorizadas, estabelecendo um paralelo entre liberdade de expressão e liberdade de pesquisa ou investigação.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Atualizado às 09:20

A própria denominação "biografia não autorizada" carrega um cheiro suspeito de infração, como tudo o que é praticado sem a devida autorização. A expressão em causa deveria dar lugar a outra: "biografia independente" (de autorização).

Este é um primeiro indício de como a polêmica em torno da questão está mal colocada. Outro sintoma, ainda mais grave, é este: o que se discute é a liberdade de "expressão", ou será algo anterior, a saber, a liberdade de pesquisa ou investigação? A liberdade de expressão pressupõe a liberdade de investigação. Portanto, o que está em jogo é menos a liberdade de expressão do que a franquia, sem reserva alguma, do território da pesquisa, no qual não existiria nenhum tipo de zona ou domínio proibido.

A liberdade de expressão nunca é absoluta e sem ressalva, como fica evidente nos casos de ofensa à honra, calúnia, difamação, injúria, e outras hipóteses previstas no Código Penal ou legislações afins. Ao passo que o exercício da pesquisa sobre qualquer tema ou fato, ou pessoa não conhece restrições em lei, ou na religião, ou na ética.

Em suma, a liberdade de pesquisa é anterior e muito mais ampla do que a liberdade de expressão. A liberdade de pesquisa ou investigação constitui o fio condutor da biografia, movendo o biógrafo nesta ou naquela direção.

Num Estado democrático e laico como o brasileiro e tantos outros no Ocidente, não há limites de espécie alguma para a liberdade de investigação. O biógrafo tem licença de consultar todas as fontes disponíveis que possam contribuir para aperfeiçoar seu retrato do biografado, fontes oficiais ou oficiosas, públicas ou privadas, acessíveis ou reservadas, e até secretas ou confidenciais.

Pois bem, dentre as fontes obrigatórias que alimentam a reconstrução de qualquer percurso biográfico com dados essenciais e não descartáveis está a pessoa do biografado enquanto estiver viva e no gozo de sua memória e demais faculdades mentais. A pessoa do biografado, enquanto disponível para consulta, é fonte primária, autêntica e de consulta obrigatória para sua própria pesquisa. Melhor do que ninguém ela sabe, de saber vivido, em primeira mão, tudo o que com ela se passou desde a infância e nas etapas sucessivas de seu percurso existencial. Sob nenhum pretexto pode-se dispensá-la de fornecer seu depoimento. Seria uma situação absurda investigar outras fontes subsidiárias, por vezes até ocasionais, e ignorar a fonte principal, constituída pelo sujeito da ação e da paixão biográfica, suporte de todas as predicações a ele atribuídas, aquele que diz: é de mim que estão escrevendo e querendo saber tudo o que fiz, deixei de fazer, pensei, senti, projetei e me aconteceu.

Como deixar de ouvir o biografado, se ele é o primeiro testemunho dele mesmo e está disponível para ser ouvido? Afinal, com a pessoa do biografado, em diálogo franco e sincero, o biógrafo pode cotejar todos os dados colhidos em outras fontes, confirmar sua procedência ou descobrir sua improcedência, corrigir erros e inexatidão de informações, enriquecer seu acervo documental com dados que ignorava e que somente o biografado conhece, etc. etc.

Completada a pesquisa, inclusive com a audiência do protagonista da narração, terminada a redação do texto, contratada a publicação da biografia, aí é que tem início outra fase, na qual se vai discutir a liberdade de expressão. O biografado pode recusar sua licença para a publicação do texto na íntegra ou em parte. Não se diga que não lhe compete este direito. Afinal, é dele que se está falando, e ele tem todo o direito de insurgir-se contra alguma alegação caluniosa, ofensiva, constrangedora ou indiscreta, ou simplesmente errônea. Deixar passar em branco, calar-se seria consentir. A liberdade de expressão ou de opinião é universal, vale igualmente para todos. Então como negar ao biografado que se manifeste contrário à divulgação de algo que lhe diz formalmente respeito? A liberdade de opinião vale para o biógrafo, o editor, o público, a crítica, e não vale para o biografado, o autor e depositário de tudo o que ele fez, ou não fez, e lhe aconteceu?

O ilustre advogado Manuel Alceu Affonso Ferreira, figura respeitável de jurista, a quem admiro e respeito, publicou em Migalhas um vasto e apaixonado arrazoado no qual cita a frase de René Ariel Dotti a propósito do livro "Z": "Um acontecimento não pode pertencer simultaneamente à História e à vida privada: o tribunal elegeu a História!" ("Proteção da Vida Privada e Liberdade de Informação - Possibilidades e Limites", RT, 1980, p.206).

Como assim, "um acontecimento não pode pertencer simultaneamente à História e à vida privada"? Vamos, então, ignorar que a privacidade é uma construção histórica, que está inserida no corpo da história, como um departamento seu? Por acaso não existe o direito privado, a vida privada em contraste com a vida pública? A privacidade foi uma construção lenta e laboriosa da civilização europeia, fonte do estilo de vida mais civilizado, inspiração para a arte ocidental na pintura, na música, na literatura, na arquitetura, alicerce da cultura sob múltiplas formas.

Existe uma coletânea preciosa de livros que junta no título as palavras "história" e "vida privada", leitura deliciosa que recomendo ao autor daquela frase. Refiro-me à "História da Vida Privada", em cinco volumes, coleção dirigida por eminentes historiadores franceses, Philippe Ariès e Georges Duby, editada em português pela Companhia das Letras (1992).

Em busca de solução

O debate das biografias recebeu um tom apaixonado, intransigente e radicalizado nas suas oposições. É 8 ou 80, ninguém tem a cabeça serena para propor um meio termo, como se as duas propostas contrárias fossem inconciliáveis. Será que os dois oponentes não têm razão? Recordando o que dissemos, a liberdade de pesquisa é ilimitada. Nenhuma fonte pode ser ignorada ou rejeitada. Por isso o pesquisado, o biografado, fonte primária e original da investigação, tem direito indiscutível de ser ouvido e inquirido, se estiver vivo e em boas condições mentais. Encerrada a pesquisa e redigido o texto é que começam os problemas da liberdade de expressão ou opinião. O veto do biografado à publicação de sua história deve ser respeitado, ou se sobrepõe a ele o interesse coletivo do público, da mídia, da crítica e dos centros de saber, como universidades, institutos especializados, academias, etc.? De que forma conciliar o interesse público com o interesse privado nessa tormentosa questão das biografias?

O Código Civil em seus artigos 20 e 21, é taxativo na exigência expressa de autorização para a divulgação de escritos, a transmissão de palavras, a publicação e utilização da imagem da pessoa, salvo os casos citados em lei. E o artigo 21 reza, terminantemente, "a vida privada da pessoa natural é inviolável".

A opção pelo politicamente correto repele qualquer restrição à propalada liberdade de expressão ou opinião, argumentando que num Estado democrático ela é ilimitada. Mas enquanto durar a vigência daqueles dois artigos do Código Civil, o único recurso à disposição dos inconformados é gritar de todas as formas contra eles. Gritar não é argumentar. Já dizia Leonardo da Vinci dove si grida non è vera scienza.

A única solução possível enquanto não muda a lei seria procurar um acordo entre as partes para superar o conflito. Anuncia-se na Internet que a Câmara estuda a possibilidade de um entendimento pelo qual na segunda edição de uma biografia contestada seria autorizada a retirada dos trechos impugnados da obra no caso de um juizado especial entender que o biografado tem razão. Em meu modo de ver, este projeto seria, no máximo, meia solução. Pois a segunda edição de qualquer livro é sempre incerta. Depende de muitos fatores imprevisíveis e incontroláveis.

O acordo eficaz teria que ser ratificado antes do primeiro lançamento do livro, perante um tribunal especial no qual compareceriam ambas as partes. Os trechos não aprovados pelo biografado seriam, de comum acordo, expurgados ou alterados já na primeira edição. Esta sim, seria uma solução conciliatória que poderia ser aperfeiçoada e formalizada em termos de lei de modo a acomodar o interesse público com o interesse privado sem prejuízo de nenhum dos dois, combinando-se justiça com lucidez.

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* Gilberto de Mello Kujawski é procurador de Justiça aposentado, escritor e jornalista.

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