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Processo e futebol: cada cabeça, uma sentença

Tomando por base o imbróglio envolvendo as ações de torcedores da Portuguesa e do Flamengo contra decisão do STJD no Campeonato Brasileiro, levanta-se o questionamento: como compatibilizar decisões contraditórias?

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Atualizado em 21 de janeiro de 2014 14:15

Nas últimas semanas, estivemos assistindo ao que pode vir a ser uma guerra de liminares entre torcedores sobre o desfecho do Campeonato Brasileiro do ano passado. Sem prejuízo de vários processos em que a liminar não foi concedida, há notícias de duas liminares concedidas em favor de Portuguesa e Flamengo pela Justiça do Estado de São Paulo (que rebaixariam o Fluminense para a Série B) e outras duas liminares em sentido contrário na Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que manteriam o Fluminense na Série A, rebaixando a Portuguesa.

O fato de torcedores irem à Justiça comum questionar julgamentos da Justiça Desportiva é um fato novo, amparado pelo artigo 34 do Estatuto do Torcedor (lei 10.671/03): "É direito do torcedor que os órgãos da Justiça Desportiva, no exercício de suas funções, observem os princípios da impessoalidade, da moralidade, da celeridade, da publicidade e da independência".

Os torcedores de Portuguesa e Flamengo, alegando direito próprio atribuído pelo Estatuto do Torcedor, pedem a invalidação dos julgamentos da Justiça Desportiva, com base no artigo 36 do mesmo Estatuto ("São nulas as decisões proferidas que não observarem o disposto nos artigos 34 e 35") e o efeito reflexo disso é a devolução dos quatro pontos que foram retirados desses clubes pelo STJD.

Não estou inteiramente convencido de que o Estatuto do Torcedor tenha conferido legitimação tão ampla a qualquer torcedor, mas a reflexão que aqui proponho passa ao largo dessa discussão e se concentra em outro problema: como compatibilizar essas decisões contraditórias? Afinal, é óbvio que um mesmo time não pode estar rebaixado em São Paulo e ser mantido na Série A no Rio de Janeiro, e assim por diante.

Admitamos, então, que qualquer torcedor tenha legitimidade ampla para ingressar com ação na Justiça comum com base no artigo 34 do Estatuto do Torcedor. Estará esse torcedor não apenas veiculando seu direito individual, mas de toda a coletividade de torcedores de determinado clube.

Trata-se de situação incindível, que poderia muito bem ser considerada como um direito coletivo stricto sensu ou até difuso. Indivisível porque, como já disse, um mesmo clube não pode ser rebaixado para um torcedor e mantido na Série A para outro. A solução será necessariamente a mesma para todos. E se esse torcedor ingressa em juízo para veicular direito seu e de outros torcedores ao mesmo tempo, trata-se de legitimação extraordinária.

(Não vou entrar aqui na discussão doutrinária se a legitimação para as ações coletivas é extraordinária ou autônoma. Não é esse o ponto).
Nem mesmo o simples fato de o torcedor veicular também um direito próprio afastaria o caráter extraordinário dessa legitimação. Basta lembrarmos do exemplo da ação popular - legitimado é qualquer cidadão -, sem que se duvide que se trata de um instrumento de tutela coletiva.

Onde quero chegar? É que, nas ações coletivas, a aferição de eventual litispendência ou conexão (ou seja, causas idênticas ou relacionadas) deve ser feita à luz da coletividade toda interessada e não da parte formal no processo. Por exemplo, numa ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público e outra idêntica proposta por uma associação, teríamos flagrante litispendência, ainda que se entenda que, nas ações coletivas, a consequência seja a mesma da conexão, vale dizer, a simples reunião das ações civis públicas idênticas, sem a extinção sem resolução de mérito da segunda ação proposta.

O mesmo regime deve ser considerado para todas essas ações propostas por torcedores país afora. Há evidente relação de conexão ou mesmo de litispendência entre elas, com o risco de que sejam proferidas decisões contraditórias.

A solução para tanto parece estar na reunião de todos os processos no juízo prevento, que deverá ser estabelecido de acordo com as regras previstas no CPC e, ainda, das regras de competência para ações coletivas no artigo 93 do CDC, considerando tratar-se de matéria com repercussão evidentemente nacional. A prevenção, assim, somente poderá ser firmada em uma das capitais dos Estados ou no Distrito Federal.

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* Andre Vasconcelos Roque é doutorando e mestre em Direito Processual pela UERJ. Professor de cursos de pós-graduação.




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