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Entre a lei e o afeto

"O afeto é um sentimento que brota do calor humano e nenhuma lei tem o poder de revelá-lo por meio de suas palavras frias e distantes da realidade."

domingo, 26 de janeiro de 2014

Atualizado em 24 de janeiro de 2014 16:39

A lei, numa definição simplificada, sem o rigorismo metodológico, é um instrumento que tem por finalidade, de forma objetiva e concreta, regular as relações entre as pessoas, assim como, com a evolução da própria sociedade, a quem deve servir, adaptar-se às necessidades sempre dinâmicas da natureza da humana. Por menor que seja seu conteúdo normativo, carrega sempre um dispositivo de mudança.

Porém, apesar de trazer uma regra mandamental, vem despojada de sentimento. A lei é ordem e uma boa lei é uma boa ordem, já sentenciava Aristóteles. É um corpo sem alma e cabe ao intérprete fazer o ajustamento adequado, cum grano salis e a necessária dose de bom senso. É um bólido que deve ser teleguiado por técnicos que tenham conhecimento de sua potencialidade: se não for feito o ajustamento do alvo, o impacto em local não apropriado pode ser desastroso.

Se o operador do direito terminar a leitura do texto legal e aplicá-lo ao caso concreto, estará simplesmente realizando uma operação sistemática, praticamente matemática, sem levar em consideração a elasticidade escondida nas palavras da lei. É como se visse somente a silhueta de uma obra de arte, sem ter contato com toda sua extensão, que lhe dará a beleza proclamada. Aplica o texto frio e gélido, sem qualquer riqueza de conteúdo, como pretendia Justiniano com seu Corpus Juris. Se, porém, contornar o biombo que o esconde e ingressar no cerne da norma, descobrirá a riqueza nela contida, possibilitando alcançar situações que até mesmo originariamente não estavam contidas na mens legis. E a ciência hermenêutica propõe não só a compreensão de um texto, mas vai muito além, até ultrapassar as barreiras para atingir seu último alcance. "Quando, argumenta com toda autoridade Ferraz Júnior, dizemos que interpretar é compreender outra interpretação, (a fixada na norma), afirmamos a existência de dois atos: um que dá a norma o seu sentido e outro que tenta captá-lo"1.

A introdução remete ao julgamento do STJ no processo que pretendia decretar a perda do poder familiar da mãe biológica e anular, consequentemente, o registro da paternidade. Isto porque o pai registral teria realizado pagamentos de medicamentos e aluguéis à mãe biológica, quando ela se encontrava aos sete meses de gestação. O TJ/PR deu provimento ao pedido e determinou a busca e apreensão da criança, com seu encaminhamento ao abrigo para ser submetida à adoção regular.

O ministro Luis Felipe Salomão, relator do processo do STJ, fez ver que, apesar de incorreta a atitude da mãe biológica e do pai registral, a criança não pode ser prejudicada e a questão deve ser analisada de acordo com o seu interesse.

Segundo os ditames legais, correta a decisão que determinou a busca da criança e seu encaminhamento para a adoção regular. Porém, a decisão do STJ carrega um plus diferenciador porque avaliou o sentimento humano revelado pelo afeto, que não admite contraprova e nem mesmo pode ser alterado pela lei dos homens. O afeto é um sentimento que brota do calor humano e nenhuma lei tem o poder de revelá-lo por meio de suas palavras frias e distantes da realidade. Cabe ao julgador fazer a correta adequação do sentimento humano e torcer o braço férreo da lei para ampará-lo. Couture já apontava em seus mandamentos que a Justiça deve ser o destino natural do direito.

No caso ora analisado, a criança, que já contava com um estágio de convivência de quase cinco anos, abruptamente foi retirada do lar acolhedor e internada em abrigo, nada acolhedor, por melhor que seja. Ainda de acordo com a vontade da lei, a criança seria inserida em outra família, totalmente estranha a ela e, por melhor que seja, colidiria com a noção de afeto recebido anteriormente. No afã de proteger demasiadamente o processo de adoção, e até mesmo com certa razão em virtude de interesses escusos e espúrios envolvidos no ato, a lei tem como abrigo a figura do casal devidamente cadastrado e a ele confia a criança, desprezando muitas vezes qualquer convivência anterior. É o ato de fechar os olhos e aplicar o fiat justitia, sem se preocupar, no entanto, com o pereat mundus.

"Se a criança vem sendo criada com amor e se cabe ao Estado assegurar seus direitos, o deferimento da adoção é medida que se impõe", enfatizou o ministro Salomão2. Em processo do STF, que teve o ministro Moreira Alves como relator, de forma cristalina, sintetiza a necessidade não só legal, mas também social e psíquica de manter a criança na casa em que se encontra bem:

"O menor, de regra, deve ser mantido onde está, desde que aí se encontre bem. A troca do meio ambiente deve ser evitada o quanto possível, para não causar prejuízo psíquico à criança"3.

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1 Ferraz Júnior, Tércio Sampaio. A ciência do direito. São Paulo : Atlas, 2006, p. 72.

2 Criança nascida de barriga de aluguel ficará com pai registral

3 R/T 586/234.

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* Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, com doutorado e pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp - Centro Universitário do Norte Paulista.

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