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Muito barulho por nada - Como complicar a explicação

A ANVISA prevê a elaboração de uma nova resolução para permitir a intercambiabilidade entre os medicamentos de referência e aqueles conhecidos como similares.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Atualizado às 08:30

A ANVISA vem fazendo, em conjunto com o Ministério da Saúde, grande estardalhaço midiático sobre a publicação de uma Consulta Pública (CP 01/14) que submete às sugestões de interessados o texto de uma nova RDC - Resolução da Diretoria Colegiada cujo objetivo é permitir a intercambiabilidade1 hoje permitida apenas entre medicamentos de Referência2 e medicamentos Genéricos3 também entre os medicamentos de Referência e os medicamentos conhecidos como Similares.

Explico: com a promulgação da lei 9.787/99 que alterou a lei 6.360/764, foi criado no Brasil o Medicamento Genérico definido como aquele que é bioequivalente ao medicamento de referência (original) e com este intercambiável. Como consequência, a ANVISA emitiu a Resolução RDC 010/01 posteriormente revogada pela RDC 084/02; revogada pela RDC 135/03 por sua vez revogada pela RDC 16/07 atualmente em vigor (notem como é fácil a vida da indústria farmacêutica) para regulamentar a comercialização dos medicamentos genéricos. Assim, ficava autorizado o farmacêutico, a substituir o medicamento prescrito pelo médico pelos respectivos genéricos (ou vice-versa) desde que não expressamente proibido pelo médico na própria prescrição.

Além disso, era necessário regular algumas "jabuticabas" existentes no mercado farmacêutico brasileiro, especialmente a conhecida como "medicamento similar". Como até o ano de 1999 não existia no Brasil o conceito de medicamento genérico (entre outras razões pela falta de uma legislação que permitisse a patente de medicamentos), o mercado brasileiro era suprido, basicamente, por dois tipos de medicamentos: os originais (que para registro precisavam submeter um grande número de documentos, inclusive os resultados dos estudos clínicos de fase I, II e III), e os similares que não precisavam apresentar nem estudos clínicos nem estudos de bioequivalência ou equivalência terapêutica com medicamentos originais por eles "copiados". Portanto, não havia nenhuma necessidade de demonstração de que os similares tinham a mesma eficácia e/ou segurança dos medicamentos de referência, ou seja, aqueles de que eram "cópias".

Para corrigir o que se tornou uma falha da regulamentação e considerando que o registro de um medicamento no Brasil deve ser renovado a cada cinco anos, a ANVISA publicou a Resolução RDC 134 de 29 de maio de 2003 que entre outras medidas, determinou que os medicamentos até então registrados na ANVISA como similares deveriam complementar seus respectivos registros documentando com informações e estudos que comprovassem qualidade, eficácia e segurança, da seguinte forma:

(a) Na primeira renovação do registro do após a publicação da RDC 134/2003 apresentar estudo de equivalência farmacêutica5 em relação ao respectivo medicamento de referência6

(b) Na segunda renovação do registro após a publicação da RDC 134/2003 apresentar comprovação de bioequivalência /biodisponibilidade relativa em relação ao produto de referência.

Portanto, até o final desse primeiro semestre quando deverá ser publicada a "nova Resolução RDC" resultante da CP 01/14, certamente haverá decorrido mais de dez anos desde a publicação da RDC 134/03. Portanto, todos os medicamentos similares já deverão ter cumprido as exigências de atualização dos respectivos registros apresentando com estudos de bioequivalência/ biodisponibilidade relativa ou tiveram seus registros cancelados pela ANVISA.

Portanto, na forma da lei vigente, atualmente existem, hoje, no mercado farmacêutico Brasileiro:

Medicamentos de referência;
Medicamentos genéricos (bioequivalentes aos de referência) e
Medicamentos similares (também bioequivalentes aos de referência)

Nesse cenário, os medicamentos similares podem ser chamados (erroneamente7) de genéricos com nome comercial e conceitualmente, podem ser tão intercambiáveis quanto os medicamentos genéricos (sem nome comercial) conforme definidos por lei.

Ora, o artigo 3º, inciso XXIII da lei 6.360/76 (alterada pela lei 9.787/99) define o "Produto Farmacêutico Intercambiável" como sendo o equivalente terapêutico8 de um medicamento de referência. Desta forma, medicamentos intercambiáveis na forma da lei, são os medicamentos bioequivalentes.

Como todos os medicamentos existentes no mercado já são (ou serão), como manda a regulamentação, produtos de referência ou seus respectivos genéricos (com ou sem marca) a "nova RDC", pelo menos no que se refere à intercambiabilidade dos medicamentos similares, parece ser totalmente desnecessária.

O investimento de recursos humanos e fundos na preparação da CP 01/14 talvez pudesse ter sido evitado com uma análise um pouco mais técnica do cenário.

Esta situação só se explica, mas não se pode aceitar, (1) como decorrência da cultura cartorial do Brasil que admite que atos administrativos tenham mais força do que a legislação e (2) como instrumento de propaganda que vende como imenso benefício para a população uma grandiosa nova ideia que na verdade foi resultado da correção de procedimentos ocorrida há mais de dez anos.

Vale observar ainda alguns aspectos no mínimo confusos da proposta de resolução. Apesar das exigências para que os medicamentos similares comprovem bioequivalência com os respectivos medicamentos de referência, observa-se falha técnica no artigo 2º segundo que determina que:

"será considerado intercambiável, o medicamento similar cujos estudos de equivalência farmacêutica, biodisponibilidade relativa / bioequivalência e bioisenção tenham sido apresentados, analisados e aprovados pela ANVISA"

A redação desse artigo 2º dá a entender que seria possível a existência no mercado Brasileiro, de medicamentos similares que ainda não tenham comprovado bioequivalência, o que apenas seria possível em completa violação aos ditames da RDC 134/03, em especial ao artigo 8º e seu parágrafo único.

Outro aspecto relevante e confuso na operacionalização do que determina a proposta de resolução refere-se às embalagens dos medicamentos similares intercambiáveis, isto é, caso seja publicada na forma como está apresentada a CP 01/14, a embalagem desses medicamentos deverá estar identificada como medicamento similar intercambiável, por meio da impressão de um logotipo específico para essa finalidade.

Com base no exposto nesse artigo, atualmente todos os medicamentos similares comercializados no país são tecnicamente intercambiáveis por serem equivalentes farmacêuticos aos respectivos medicamentos de referência.

Em resumo, caso seja esta a determinação da "Nova RDC" teremos no mercado Brasileiro, pelo menos em teoria, os genéricos que são intercambiáveis por definição; similares intercambiáveis que terão identificação específica nas suas embalagens e os similares "não intercambiáveis" que de acordo com o cronograma de adequação dos registros, estabelecido pela RDC 134/2003, não deveriam mais estar sendo comercializados.

Parece de fato uma situação potencialmente difícil de ser compreendida pela maior parte dos consumidores, além de resultar em enormes e injustificados custos adicionais aos produtores desses similares.

Outro aspecto que chama a atenção na proposta de resolução, que também poderá gerar alguma confusão refere-se à regulamentação de preços dos medicamentos. O artigo 10 da CP determina que a entrada dos medicamentos similares intercambiáveis no mercado depende do estabelecimento "de novo preço de entrada no mercado" a ser definido em legislação específica.

Esta regulamentação não é feita por leis, mas por resoluções emitidas pela Câmara de Regulação do Mercado Farmacêutico - CMED que hoje exerce regulação por meio da Resolução CMED 2/2004 (alterada pela Resolução CMED 4/05).

A atual regulação de preços de medicamentos determina que os preços de entrada no mercado, da grande maioria dos medicamentos similares, estão regulados pelo artigo 9º da Resolução CMED 2/04.

Art. 9º O Preço Fábrica permitido para o produto classificado na Categoria IV não poderá ultrapassar o preço médio das apresentações dos medicamentos com o mesmo princípio ativo e mesma concentração disponíveis no mercado, na mesma forma farmacêutica, ponderado pelo faturamento de cada apresentação

Já o preço de entrada no mercado, dos medicamentos genéricos estão regulados pelo artigo 12º .

Art. 12 O Preço Fábrica permitido para o produto classificado na Categoria VI não poderá ser superior a 65% do preço do medicamento de referência correspondente.

O preço fábrica citado na regulamentação é o máximo permitido. Da mesma forma se apresenta o Preço Máximo ao Consumidor que é o Preço Fábrica acrescido dos impostos e da margem do comércio.

Por outro lado, considerando que os medicamentos similares já são (tecnicamente) intercambiáveis, a inclusão dessa informação na rotulagem não parece ser motivo que justifique algum tipo de alteração na regulamentação dos preços na forma como ela existe hoje.

Aliás, a única alteração razoável para essa regulamentação seria a sua total e completa revogação, pois ela apenas cria distorções no mercado impondo uma espécie de "cartelização regulamentar".

Este tipo de regulação de preços serve apenas para fomentar a criação de um preço que pode, por exemplo, nunca ser praticado, mas que é mantido como uma espécie de salvaguarda se não houver um ajuste razoável nos preços máximos permitidos.

Em uma rápida visita a uma farmácia me deparei com os seguintes preços de medicamentos: (observadas a mesma apresentação e concentração)

Nome Genérico: Omeprazol
Preço do Genérico: R$ 106,00
Preço de um Similar: R$ 33,00
Nome Genérico: Sinvastatina
Preço do Genérico: R$ 62,00
Preço de um Similar: R$ 39,00

Como será uma nova regulamentação para determinar os preços de entrada no mercado dos medicamentos similares intercambiáveis?

Afinal, para que uma "nova resolução para medicamentos similares intercambiáveis"? Para eventualmente marcar um momento político que potencialmente gere bons dividendos?

Não seria mais simples, econômico e eficaz que as autoridades sanitárias fizessem uma intensa e extensa campanha pública para esclarecer à população que os similares também são intercambiáveis?

Mais uma vez fica demonstrado que a simplicidade e praticidade passam longe da administração pública no Brasil e que nada é mais importante do que gerar um aparente benefício para a população.

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1 Produto Farmacêutico Intercambiável - equivalente terapêutico de um medicamento de referência, comprovados, essencialmente, os mesmos efeitos de eficácia e segurança;

2 Medicamento de Referência (ou Inovador, de Marca, ou Original)
Produto comercializado há bastante tempo no mercado, com o qual outros medicamentos pretendem ser intercambiáveis. Para esses medicamentos houve a necessidade de investimento em pesquisa e sua eficácia, segurança, qualidade e biodisponibilidade, são comprovadas e reconhecidas pela autoridade sanitária nacional.
Quando o inovador ou referência não possuir registro no País, considera-se referência o produto líder de mercado, com eficácia, segurança e padrões de qualidade comprovados.

3 Medicamento Genérico
Produto igual ou comparável ao de referência (ou inovador ou original ou de marca) em quantidade de princípio ativo, concentração, forma farmacêutica, modo de administração e qualidade, que pretende ser com ele intercambiável. É geralmente produzido após expiração ou renúncia da patente e de direitos de exclusividade, comprovando sua eficácia, segurança e qualidade através de testes de biodisponibilidade e equivalência terapêutica. O medicamento genéricos é designado conforme a DCB ou, na ausência, a DCI.

4 Estabelece o Sistema de Vigilância Sanitária no Brasil

5 Equivalentes farmacêuticos: são medicamentos que contêm o mesmo fármaco, isto é, mesmo sal ou éster da mesma molécula terapeuticamente ativa, na mesma quantidade e forma farmacêutica, podendo ou não conter excipientes idênticos.

6 O medicamento de referência era determinado pela ANVISA por meio de uma avaliação técnica criteriosa dos medicamentos comercializados no país

7Erroneamente, pois a definição de medicamento genérico não é apenas o medicamento sem nome comercial equivalente a um medicamento de referência. A definição considera principalmente a existência ou não do reconhecimento de patentes de medicamentos

8 Equivalentes terapêuticos- são medicamentos que contêm o mesmo composto terapeuticamente ativo, devendo, portanto, produzir o mesmo efeito terapêutico e a mesma potencialidade de efeitos adversos. Devem ser seguros, eficazes e bioequivalentes. Podem diferir em algumas características, como cor, sabor, configuração, agentes conservantes e envase.

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* Marcos Lobo De Freitas Levy é advogado do escritório A. Lopes Muniz Advogados Associados.

* Silvia V. Fridman é farmacêutica.

 

 

 

 

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