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Aborto por vontade da gestante, por Eudes Quintino

Aborto por vontade da gestante

A sociedade brasileira não vê o aborto com as lentes da saúde pública.

domingo, 30 de março de 2014

Atualizado em 28 de março de 2014 11:25

A comissão encarregada da elaboração do anteprojeto do Código Penal, além de preservar os casos legais, acrescentou outras hipóteses de liberação de aborto: a) se a gravidez resulta de violação da dignidade sexual, ou do emprego não consentido de técnica de reprodução assistida; b) quando o feto padecer de graves e incuráveis anomalias que inviabilizem a vida extrauterina, devidamente atestado por dois médicos; c) por vontade da gestante até a 12ª semana da gestação, quando o médico ou psicólogo constatar que a mulher não apresenta condições psicológicas de arcar com a maternidade, como, por exemplo, o uso de entorpecentes.

A proposta legislativa tramita em período eleitoral e vai provocar, com toda certeza, fácil combustão nos debates dos candidatos à presidência da República, como aconteceu na eleição passada, principalmente com relação ao abortamento por vontade da gestante como causa de exclusão do crime, desde que seja o procedimento realizado até a décima segunda semana da gestação, além de contar com a manifestação de médico ou psicólogo que ateste a incapacidade da gestante para arcar com a maternidade.

O tema, como é sabido, envolve posições inquebrantáveis, permitindo que várias vozes falem ao mesmo tempo, cada uma delas defendendo interesses relacionados com a saúde, psicologia, sociologia, religião, Direito, ética e outras tantas. Quando do julgamento da ADPF, que solicitava uma definição judicial a respeito do abortamento de feto anencefálico (consistente na má formação fetal, com a ausência da caixa craniana e dos hemisférios cerebrais, responsáveis pela sua morte antes ou logo após o parto), a decisão da mais alta Corte do país foi favorável por oito votos contra dois. E parece que foi do agrado da população.

Mas a nova proposta que se apresenta vai travar debates acirrados e, ao que tudo indica, a vontade popular será manifestamente contrária à pretensão do anteprojeto. A sociedade brasileira não vê o aborto com as lentes da saúde pública, como o Uruguai, Cuba e Porto Rico, que recentemente aprovaram lei permissiva da interrupção da gravidez, em qualquer situação, desde que seja realizada até a 12ª semana de gestação. Apega-se, pelo contrário, à tradição e à religião como escudos inquebrantáveis. Basta observar nas manifestações populares a respeito do tema que há um comedido respeito à intangibilidade do princípio da vida humana, que cria uma barreira instransponível para aceitação da proposta abortiva pela vontade da gestante. E pesa muito na conceituação popular quando a conduta de impedir o nascimento é da própria mãe, responsável pela tutela do feto, que pratica a primeira traição a um ser fisicamente ligado e dependente dela; da lei que autoriza o ato; da medicina, que tem por obrigação lutar pela vida.

O embrião humano, uma spes hominis, depositário do material genético de seus pais, detentor do direito à vida como qualquer outro, goza da prerrogativa de nascituro a ele conferida pelo Código Civil e não merece uma condenação intrauterina, se não deu causa para tanto. A vida é um bem indisponível e, na realidade, não pertence a uma ou outra pessoa e sim à própria humanidade, que a administra de acordo com os preceitos da dignidade humana.

O Conselho Federal de Medicina foi convidado para se manifestar a respeito e entendeu que deve prevalecer a autonomia da vontade da mulher, em razão do princípio da Justiça. Isto porque, de um lado as mulheres de classe mais abonada conseguem interromper suas gravidezes com segurança e do outro as pobres sofrem as consequências de abortos mal feitos, observando que é a quinta causa de mortalidade materna no Brasil.

A relevância do tema é tamanha que, em rápido encontro entre o papa Francisco e o presidente Barack Obama, quando o assunto veio à tona, a rota de colisão foi inevitável. Principalmente com referência à reforma implantada no sistema de saúde americano que obriga empregadores a incluir seguros de saúde com cobertura das despesas com métodos de contracepção.

Resta, agora, aguardar os debates no Brasil pelos candidatos à presidência da República, que certamente serão inquiridos a respeito. Seja lá qual for o resultado vai trazer dividendos para o esclarecimento da população e para mensurar a própria pretensão do anteprojeto do Código Penal, no tocante ao aborto por vontade da gestante.

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* Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, com doutorado e pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp - Centro Universitário do Norte Paulista.



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