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A presunção de inocência ainda vigora?

Apesar daqueles que ainda teimam em enxergar o processo penal com os olhos dos inquisidores da Idade Média, o princípio da presunção de inocência insiste em sobreviver como princípio constitucional, como princípio do Estado democrático de direito.

terça-feira, 7 de abril de 2015

Atualizado em 6 de abril de 2015 11:09

Alguém já disse que a história do processo penal é a história do poder. A história do processo penal, segundo Antonio Scarance Fernandes, "é marcada por movimentos pendulares, ora prevalecendo ideias de segurança social, de eficiência repressiva, ora predominando pensamento de proteção do acusado, de afirmação e preservação de suas garantias".

Para os processualistas críticos Rubens R. R. Casara e Antonio Pedro Melchior a história do processo penal é distinguida pelo sofrimento e pela violência imposta pelo Estado às pessoas que são selecionadas pelo sistema penal e acabam sendo vítimas deste sistema (investigadas, acusadas e/ou condenadas) por terem violado as normas penais. Segundo os eminentes professores, "há, no processo penal, sempre um drama, episódios de conflito e manifestações de poder, anseios de liberdade e desejos de punição".

Certo é que, com o desenvolvimento do Estado, da sociedade e da própria democracia, o processo penal deixou de ser apenas e tão somente instrumento de realização da pretensão punitiva do Estado, para se transformar na contenção do poder punitivo estatal e em instrumento de proteção do individuo e da tutela dos direitos e garantias fundamentais. Instrumento de proteção da liberdade que, por si só, se justifica. Neste diapasão, encontram-se os princípios fundamentais e garantistas do processo penal: devido processo legal (penal), contraditório, ampla defesa, presunção de inocência, imparcialidade do juiz, da igualdade entre as partes, etc.

O princípio da presunção de inocência remonta ao direito romano. Na Idade Média o referido princípio foi afrontado em razão, principalmente, dos procedimentos inquisitoriais que vigoravam na época, chegando mesmo a ser invertido, já que a dúvida poderia levar à condenação. Contudo, o princípio da presunção de inocência foi consagrado na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, refletindo uma nova concepção do direito processual penal. Uma reação dos pensadores iluministas ao sistema persecutório que marcava o antigo regime, no qual a confissão - "rainha das provas" - era obtida através da tortura, de tormentos e da prisão.

No que pese a celebre polêmica entre Vicenzo Manzini, que chegou a sustentar que o princípio constituía uma extravagância derivada de velhos conceitos, nascidos dos princípios da Revolução francesa, levando aos mais exagerados e incoerentes excessos as garantias individuais, e Francesco Carrara, o qual, nos dizeres de Simone Schreiber, "partia da premissa de que o processo penal tinha como finalidade própria e específica a proteção dos inocentes frente à atuação punitiva estatal. Sua concepção de processo penal era construída em torno da ideia da presunção de inocência", não há dúvida de que o princípio da presunção de inocência foi consagrado na Constituição da República Federativa do Brasil. A Constituição Federal, no título que trata dos direitos e garantias fundamentais, em seu art. 5º, LVII, proclama que: "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória", sendo certo que os tribunais superiores vêm tratando, na maioria das vezes, como sinônimos a "presunção de inocência" e a "presunção de não culpabilidade".

Segundo Lugi Ferrajoli, o princípio da presunção de inocência é correlato do princípio da jurisdicionalidade (jurisdição necessária). Para Ferrajoli "se é atividade necessária para obter a prova de que um sujeito cometeu um crime, desde que tal prova não tenha sido encontrada mediante um juízo regular, nenhum delito pode ser considerado cometido e nenhum sujeito pode ser reputado culpado nem submetido a pena". Mais adiante o respeitável jurista italiano assevera que o princípio da presunção de inocência é um princípio fundamental de civilidade "fruto de uma opção garantista a favor da tutela da imunidade dos inocentes, ainda que ao custo da impunidade de algum culpado". Na Itália, informa ainda Ferrajoli, com o advento do fascismo, a presunção de inocência entrou em profunda crise. Os freios contra os abusos da prisão preventiva deixaram de existir em nome da "segurança processual" e da "defesa social", sendo considerada a mesma indispensável sempre que o crime tenha suscitado "clamor público".

Segundo Rubens Casara e Antônio Melchior, a concretização do princípio da presunção de inocência se dá em três dimensões diversas:

a) a dimensão do tratamento ao indiciado ou réu (regra de tratamento), na qual todos os acusados devem ser tratados como inocentes até que advenha uma condenação resultante de uma sentença penal irrecorrível;

b) a dimensão probatória (regra de juízo). Enuncia uma regra probatória que se exprime através da máxima do in dubio pro reo, ressaltando que "o ônus de provar o fato delituoso (típico, ilícito e culpável) é uma consequência natural do dever legal de propor a ação penal";

c) a dimensão de garantia (regra de Estado), a qual impõe ao Estado que todo investigado ou réu seja tratado dignamente, compatível com seu estado de inocente.

Por tudo, apesar da existência de cerca de 200 mil presos provisórios, da banalização da prisão preventiva e da sua conversão em antecipação da pena, das prisões para obtenção de confissões e delações, da proposta estarrecedora do juiz Sérgio Moro e do presidente da Ajufe Antonio Cesar Bochonek de que "a melhor solução é a de atribuir à sentença condenatória, para crimes graves em concreto, como grandes desvios de dinheiro público, uma eficácia imediata, independente do cabimento de recursos", e apesar daqueles que ainda teimam em enxergar o processo penal com os olhos dos inquisidores da Idade Média, o princípio da presunção de inocência insiste em sobreviver como princípio constitucional, como princípio do Estado democrático de direito. Estado democrático de direito, que não se satisfaz simplesmente com a democracia formal, mas, sobretudo, um verdadeiro Estado democrático de direito que efetivamente garanta os direitos fundamentais e onde prevaleça a maximização da liberdade e a minimização do poder punitivo estatal.

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*Leonardo Isaac Yarochewsky é advogado criminalista da banca Leonardo Isaac Yarochewsky Advogados Associados e professor de Direito Penal da PUC-MG.



 

 

 

 


 

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