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Estilingue é arma?, por Eudes Quintino

Estilingue é arma?

Chegou a vez do estilingue ir para o banco dos réus a fim de se submeter a julgamento perante a sociedade.

domingo, 12 de abril de 2015

Atualizado em 10 de abril de 2015 15:19

Está sendo discutido em recurso que tramita perante o TRF da 4ª região se o estilingue pode ser considerado arma de caça ou não. Isto porque, uma loja de brinquedos de Santa Maria/RS foi multada pelo Ibama por comercializar estilingue de uma determinada marca, considerado pelo órgão como arma de caça, perseguição e destruição da fauna silvestre. O proprietário interpôs agravo de instrumento que foi provido e suspendeu a penalidade imposta até o julgamento final da ação.

As coisas realmente mudam, como dizem os americanos. Muitos fatos novos, repetitivos, no entanto, em razão da conscientização política e social, vão se amoldando às novas regras e, consequentemente, passam a receber uma carga avaliativa diferente. Basta ver o cloreto de etila, utilizado livremente como lança-perfume nos carnavais de antigamente, hoje se apresenta como substância entorpecente, assim classificada na Portaria da Anvisa; a cola de sapateiro, que carrega a substância Tolueno, comercializada antes sem qualquer restrição, teve sua venda proibida pela mesma Agência para menores de 18 anos.

E agora chegou a vez do estilingue ir para o banco dos réus a fim de se submeter a julgamento perante a sociedade. Confesso que ao ler a notícia, num instante retornei ao meu passado e tive que me sintonizar de acordo com o pensamento da época. A criançada carregava o estilingue amarrado ou enrolado na calça ou calção, na distante imitação dos filmes de faroeste. Não se falava em arma e ninguém policiava seu porte. Até as escolas não se incomodavam com sua ostentação. E o mais importante é que cada um fazia o seu, de forma artesanal, com muito esmero. O recomendado era um galho forquilhado de goiabeira ou jabuticabeira, devidamente raspado onde se prendiam as tiras elásticas, preferencialmente da borracha de câmaras de ar, e no meio se alojava a malha de couro para acomodar os pedregulhos ou mamonas que seriam arremessados. Para deixá-lo mais estiloso bastava envolver a forquilha com fitas adesivas coloridas.

Em alguns lugares o estilingue, cuja origem vem do inglês sling, era conhecido por atiradeira, funda e aí me faz lembrar a passagem bíblica em que o pequeno Davi retirou uma pedra de seu alforje e com a funda a arremessou contra o gigante Golias, abatendo-o. Chico Buarque prefere bodoque na música João e Maria. Mas, seja lá o nome que for, causou-me estranheza considerar o estilingue uma arma de caça. Se, por exemplo, você estiver diante de uma onça pintada em pleno pantanal mato-grossense de nada lhe valerá a não ser dar uma autoestilingada para correr o mais rápido possível. Mas, por outro lado, tem poder para atingir um pássaro no galho de uma árvore.

Nesta hipótese, é arma de caça. E aí, ainda na retrospectiva, é forçoso concluir que a molecada da minha época andava armada, mesmo sem qualquer calibre e abatia lá os pombos, as rolinhas, alvos fáceis pelo tamanho e pardais, que saltitavam de galho em galho, dificultando uma mira mais segura para o arremesso, geralmente utilizando pedregulhos retirados das margens dos riachos. Outras vezes, com menor potencial ofensivo, a mamona, carregada em pequeno saco, era disparada, mas dificilmente atingia o alvo, em razão da sua leveza. Também tinha a competição para acertar as pequenas latas de massa de tomate da marca Elefante, vermelhas, colocadas sobre um suporte de madeira. E a molecada se divertia.

O assunto me faz lembrar também que em Direito, genericamente, todo instrumento utilizado para ofender ou se defender e que tenha condição de ferir ou matar, é considerado arma. O bastão de selfie, por exemplo, é uma arma, da mesma forma que um celular. A própria lei 9.437/97, por não trazer a definição de arma, deixa entender que carrega implicitamente uma norma penal em branco e contempla somente três categorias: as armas de fogo de uso permitido, as de uso proibido e os artefatos e acessórios de uso proibido. Pelo que se tem até agora, estilingue não é artefato ou acessório de uso proibido.

A intenção, no entanto, é retirá-lo do quarto de brinquedo e apreendê-lo como arma de caça. Lembro a crônica de Fernando Sabino em que um garoto exibiu jubilante seu bodoque a outro mais velho, que lhe tomou e nunca mais lhe devolveu, ostentando a autoridade de escoteiro, justamente para evitar a caça aos passarinhos. Mas, observo, como bom e inofensivo praticante, que jamais desrespeitei a fauna silvestre. Até que tentei. Um dia, na praça em frente à escola, procurava boa posição para abater uma rolinha quando, inesperadamente, minha professora de Português me pilhou em flagrante. Passou o sermão merecido e suas palavras até hoje ficaram gravadas. Dizia ela que se você tivesse a coragem de abater um pássaro era o primeiro passo para abater um homem.

Então, resta aguardar a decisão para saber qual será a conceituação jurídica do estilingue. Se for realmente considerado arma de caça, sua venda será proibida no comércio, mas seu reinado permanecerá vivo nas lembranças de todos aqueles que orgulhosamente ostentaram seus bodoques sem terem lançado qualquer pedra perdida, como ocorre hoje com as balas perdidas.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, com doutorado e pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp - Centro Universitário do Norte Paulista.

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