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O inquérito civil é contraditório?

O inquérito civil vem se mostrando como um instrumento eficaz na apuração e também na composição de lesões potenciais ou efetivas aos interesses transindividuais.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Atualizado às 08:21

Cada vez mais presente no cotidiano jurídico, o inquérito civil vem se mostrando como um instrumento eficaz na apuração e também na composição de lesões potenciais ou efetivas aos interesses transindividuais, cuja importância e notoriedade aumentam a largos passos ao longo dos últimos anos.

Não há que se confundir o inquérito civil com o policial. Esse, presidido por delegado de polícia, se presta a colher elementos probatórios para esclarecimento de infração penal, dizendo respeito à apuração da autoria e materialidade delitivas.

Já o inquérito civil, segundo leciona o ilustre jurista Hugo N. Mazzilli, tem natureza de procedimento administrativo de investigação prévia, presidido por membro do MP, e tem a finalidade de definir se há elementos suficientes que justifiquem a propositura de ação civil pública referente a alguma lesão a um interesse transindividual.

No mais, o inquérito civil vem expressamente previsto no artigo 8º, §1º, da lei 7.347/85 (lei da ação civil pública - LACP), além de constar, ainda, na lei 8.069/90 - ECA; lei 8.078/90 - CDC; lei 7.853/89 - Pessoas Portadoras de Necessidades Especiais; lei 8.625/93 - Orgânica Nacional do MP e pela lei complementar Federal 75/93 - Orgânica do MP da União.

Com efeito, entende a maioria da doutrina e também da jurisprudência que o inquérito civil se configura como procedimento administrativo e não processo administrativo, porque não tem por finalidade resolver alguma questão de que dependa ato decisório da Administração Pública. Como já dito, o inquérito civil se presta a colher elementos que possam justificar eventual ajuizamento de ação civil pública e, como tal, apresenta-se como instrumento preparatório.

Apenas a título de esclarecimento, cumpre observar interessante debate que emergiu na doutrina: a LACP menciona apenas o MP como apto a presidir o inquérito civil. Isto é, dentre todos os legitimados a propor a ACP, o MP é o único que pode instaurar e presidir o inquérito civil.

Porém, diante de posterior alteração legislativa, foi conferida à Defensoria Pública a possibilidade de ajuizar ação civil pública, mediante ampliação do rol de legitimados do artigo 5º, LACP.

Diante do silêncio legislativo quanto à presidência do inquérito civil, surge o interessante fato novo quanto à possibilidade da Defensoria Pública de instaurar referido procedimento administrativo, já que é legitimada para propor ACP e "quem pode o mais; pode o menos". Entretanto, este não é o objetivo do presente estudo, motivo pelo qual não será aprofundado o relevante debate.

De qualquer modo, seguindo o raciocínio proposto, tem-se que o inquérito civil é, também, inquisitorial. Ou seja, não existe a figura de um acusado, pois a finalidade do inquérito civil não é punitiva, mas sim investigatória, assemelhando-se ao inquérito policial.

Nesta linha de raciocínio, possuindo nítida natureza inquisitorial, o inquérito civil apresenta regras próprias para instauração, instrução e conclusão. Desta forma, toda sua ordenação fica concentrada nas mãos de uma única autoridade, seu presidente, que irá executar as medidas probatórias que julgar necessárias (expedição de ofícios, elaboração de laudos, ouvir pessoas etc).

Portanto, denotada referida natureza, espanca-se a contraditoriedade real e indispositiva, como propunha no processo penal Rogério Lauria Tucci. Inicialmente, não se pode perder de vista que o inquérito civil não é instrumento hábil a aplicar sanções, pois circunda no terreno de colheita de provas preparatórias. Para tanto, deve ser ajuizada ação civil pública competente que, dependendo do material probatório disponível, pode dispensar a instauração do inquérito civil para seu ajuizamento.

Desta feita, levando-se tudo o acima exposto, o STF posiciona-se de maneira tranquila quanto à não incidência do contraditório no inquérito civil:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ADMINISTRATIVO. DESNECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA NO INQUÉRITO CIVIL DOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. PRECEDENTES. RECURSO PROVIDO.

(...) A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido de que as garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório não são aplicáveis na fase do inquérito civil, pois este tem natureza administrativa, de caráter pré-processual, que se destina à colheita de informações para propositura da ação civil pública, não havendo, portanto, que se falar em réu ou acusado, nessa fase investigativa. (...)1

Por fim, destaca-se o termo de ajustamento de conduta (TAC), que nada mais é do que um instrumento de extrema eficiência na resolução e, principalmente, na prevenção de lesões a interesses transindividuais.

O TAC se configura como um documento assinado pelo presidente do inquérito civil - MP - e pelas partes interessadas que se comprometem a cumprir determinadas medidas condicionantes propostas pelo MP, de forma a compensar o dano causado ou prevenir que ele aconteça.

Como exemplo, cita-se um TAC ambiental: imagine-se um enorme empreendimento, cujo dano potencial ao meio ambiente possa vir a ser de grande monta. O MP, tendo notícia por qualquer meio, instaura o competente inquérito civil para apurar os possíveis danos que possam ocorrer, antes mesmo da implantação do empreendimento.

Uma vez delimitados, o MP convoca os responsáveis pelo empreendimento e propõe medidas condicionantes que, se aceitas e cumpridas, evitam o ajuizamento da ACP. Por outro lado, caso recusadas ou descumpridas, ensejam a propositura da ação, além de medidas cautelares, como a suspensão das licenças ambientais, por exemplo.

Mesmo nesse caso, não se fala em contraditório, porque os responsáveis não são obrigados a aceitar o TAC, já que podem discutir o que desejarem em juízo. Somente na esfera judicial é que há que se respeitar o contraditório, até porque somente ali é que serão impostas verdadeiras sanções. Em sede se inquérito civil, tem-se no máximo a possibilidade de sugestão de condicionantes para agilizar a proteção a interesses transindividuais, mas jamais será usado como meio de aplicação das sanções legalmente previstas.

Portanto, conclui-se que o inquérito civil não se vê atingido pelo princípio do contraditório, já que todos os elementos ali colhidos serão analisados em juízo e, aí sim, submetidos ao basilar princípio. Caso, porém, não se invoque a esfera judicial, a parte que se sentir prejudicada poderá se valer da justiça para frear abusos, mas jamais para invocar a necessidade de contraditar as provas, justamente pela natureza inquisitiva do inquérito civil.

Conforme se observa, a ACP, apesar de não ter atingido a maioridade processual, fincou definitivamente suas raízes no direito pátrio para fazer com que os direitos fundamentais de todas as gerações possam ser plenamente exercidos pelos cidadãos que fazem parte do Estado Democrático de Direito. E o MP recebeu a incumbência constitucional de utilizar tal instrumento para apurar e combater lesões a interesses que transbordam a esfera do direito individual e que reclamam uma atuação rápida e eficiente.

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1 RExt 981.455/PR
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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde, advogado e reitor da Unorp - Centro Universitário do Norte Paulista.

*Antonelli Antonio Moreira Secanho é advogado, bacharel em Direito pela PUC/Campinas e pós-graduação "lato sensu" em Direito Penal e Processual Penal pela PUC/SP.

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