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Direito transitório, jurisprudência e a insegurança que nos aguarda

O direito processual transitório é mais complexo do que realmente aparenta.

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Atualizado em 27 de agosto de 2015 13:47

Em 1974, Galeno Lacerda publicou pioneira obra sobre direito processual transitório, através da qual delineava soluções a problemas que a entrada em vigor do atual Código de Processo Civil poderia trazer aos feitos pendentes.

Passados 41 anos da edição desse importante estudo, somos apresentados a um novo Código de Processo Civil (doravante denominado simplesmente NCPC) que, ao entrar em vigor, renovará o grande problema enfrentado pelo ilustre autor em sua obra histórica: qual lei deve ser aplicada aos feitos pendentes?

A resposta, em um primeiro momento, parece estar disposta no art. 1046, NCPC ["Ao entrar em vigor, este Código, suas disposições se aplicarão desde logo aos processos pendentes (...)"] e seus incisos, que adotou a mesma teoria do isolamento dos atos processuais que já vigora no atual art. 1211, CPC.

Seria certa a aplicação da lei nova a processos instaurados anteriormente à sua vigência, respeitada a eficácia dos atos processuais realizados, a serem analisados e valorados de acordo com a lei de seu tempo, de modo a garantir os direitos processuais adquiridos das partes (art. 6º, LICC e art. 200, NCPC).

Ou seja, em tese, a novel norma processual tem aplicação imediata aos feitos pendentes; contudo, "não pode atingir situações processuais já constituídas ou extintas sob o império da lei antiga, isto é, não pode ferir os respectivos direitos processuais adquiridos", como acentua GALENO LACERDA (LACERDA, Galeno, O novo direito processual civil e os feitos pendentes, Rio de Janeiro: Forense, 1974, p. 13).

A prática de foro, contudo, tem demonstrado que o direito processual transitório é mais complexo do que realmente aparenta.

Basta rememorarmos as diversas decisões conflitantes proferidas pelo Tribunal de Justiça de São Paulo e pelo Superior Tribunal de Justiça entre os anos de 2007 e 2009, acerca da aplicação do direito intertemporal no âmbito das Leis nºs 11.232/2005 e 11.382/2006, que, dentre outras alterações, reformaram a execução de títulos judiciais e extrajudiciais.

Algumas câmaras do Tribunal Bandeirante, baseando-se em critério radical da teoria da unidade processual, entenderam que "tendo sido iniciada a execução, descabe alterar o regime processual para aplicar disposição de lei nova" (AI 0036960-48.2006.8.26.0000, Rel. Des. Gilberto Pinto dos Santos, DJ. 15/2/07). Nessa direção é o voto condutor da lavra do des. Fernando Melo Bueno Filho, proferido nos autos do Agravo de Instrumento 0062309-53.2006.8.26.0000 (DJ. 5/3/07), em que se decidiu que "os processos de execução já iniciados, permanecem sob a regência das normas processuais anteriores". Esse posicionamento foi referendado posteriormente por decisão proferida no AI 0343441-46.2009.8.26.0000, Rel. Des. Teixeira Leite, DJ. 16/7/09.

A 3ª turma do STJ, ao julgar o REsp 962.362, foi ainda mais incisiva, ao afastar a incidência das novas regras da ação de execução de todas as sentenças condenatórias transitadas em julgado anteriormente à entrada em vigor da lei 11.232/05, "por simples falta de previsão à época" (Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJ. 24/3/08), o que foi ratificado no REsp 978.746-RS (igualmente relatado pelo Min. Humberto Gomes de Barros e publicado no DJ. de 24/3/08).

Curiosamente, a mesma 3ª turma do STJ, que imunizou a aplicação da lei 11.232/05 às decisões transitadas antes de sua vigência, modificou seu entendimento ao julgar o MC 14.258-RJ (Rel. Min. Nancy Andrighi, DJ. 24/11/08), passando a defender que a multa do art. 475-J, CPC, poderia ser aplicada em todas as execuções em andamento, ainda que de forma retroativa, mediante avaliação individualizada do juízo de primeiro grau.

Adotando fundamentação similar à teoria das fases processuais, o Des. Roberto Mac Cracken, decidindo pedido de penhora online em ação de execução de título executivo extrajudicial, ajuizada no início de 2006, sustentou que "no caso, o início dos atos de constrição judicial tiveram início sob a égide do Código de Processo Civil, sem as alterações determinadas pela lei 11.382/06. Assim, o exaurimento dos atos de constrição judicial deverão ser promovidos pela sistemática legal vigente antes da entrada em vigor da nova lei, inclusive se atentando às orientações doutrinárias e jurisprudenciais aplicáveis à espécie" (TJ/SP, Agravo de instrumento 0026941-46.2007.8.26.0000, DJ. 16/8/07).

Finalmente, uma última corrente jurisprudencial do Tribunal Paulista orientou-se no sentido de que a nova lei processual tem aplicação imediata, mas o ato iniciado sob a égide da norma revogada, uma vez não consumado, não pode ser por ela alcançado, adotando-se expressamente a teoria da unidade dos atos processuais (Vide AI 0046768-43.2007.8.26.0000, Rel. Des. José Reynaldo, DJ. 17/10/2007; AI 0101187-13.2007.8.26.0000, Des. Rel. Paulo Alcides, DJ. 9/10/07; AI 9043954-02.2007.8.26.0000, Des. Rel. Vito Guglielmi, DJ. 29/11/07; AI 0038523-43.2007.8.26.0000, Rel. Des. Matheus Fontes, DJ. 21/8/07, dentre outros).

Ainda dentro desse norte jurisprudencial, ressalvou-se que permaneceriam regulados pela legislação revogada todos os atos e incidentes iniciados após a entrada em vigor da lei nova, mas ancorados diretamente em fatos ocorridos na vigência da legislação revogada (Agravo de instrumento 0021563-12.2007.8.26.0000, Des. Rel. Amado de Faria, DJ. 8/8/07; Agravo de instrumento 0042921-33.2007.8.26.0000, Des. Rel. Candido Alem, DJ. 30/10/07; Apelação 9194408-23.2009.8.26.0000, Rel. Des. Spencer Almeida Ferreira, DJ. 30/9/09; e Apelação 0079112-38.2011.8.26.0000, Rel. Des. Itamar Gaino, DJ. 21/1/09).

A título de exemplificação, se procedida a citação e nomeação de bens à penhora anteriormente à lei 11.382/06, todos os atos diretamente ligados a elas devem seguir o rito da lei antiga, inclusive os embargos que, naquela oportunidade, tinham efeito suspensivo, sob pena de ofensa direta ao inciso XXXVI do art. 5º, CF, e ao art. 6º, LICC, conforme excerto de voto da lavra do Des. Renato Rangel Desinano, proferido no Agravo de Instrumento 0038556-33.2007.8.26.0000 (DJ. 14/6/07).

Isso porque, o recebimento dos embargos não poderia ser considerado como um ato processual isolado, uma vez que é consequência de outros praticados sob a égide do regime anterior (citação e nomeação de bens à penhora), de modo que, ainda que tivesse ocorrido sob a vigência da lei nova, deveria respeitar as disposições anteriores.

A experiência, quanto à aplicação das leis 11.232/05 e 11.382/06 aos feitos pendentes, nos leva a identificar tendência jurisprudencial de aplicar imediatamente a nova lei processual, imunizando de sua influência, todavia, os atos já consumados e também aqueles iniciados sob a égide da norma revogada, mas ainda não perfeitos.

Trata-se, a nosso ver, da interpretação mais adequada ao princípio tempus regit actum, extraída a partir da conjugação dos arts. 6º, LICC, 200 e 1046, NCPC.

Ainda assim, os diferentes caminhos trilhados pela jurisprudência recomendavam um melhor detalhamento das regras de direito transitório, a fim de diminuir a possibilidade de existirem múltiplas vertentes jurisprudenciais, que criam gravíssima insegurança a advogados, juízes e jurisdicionados.

Há segurança para contar os prazos processuais na forma do art. 219, NCPC, sabendo-se da existência de julgados que adotaram a teoria da unidade processual aos feitos em andamento? Da mesma forma, como proceder quanto à nova sistemática de ajuizamento da reconvenção (art. 343, NCPC) e dos embargos infringentes (art. 942, NCPC)?

A preocupação não é infundada. Basta verificar que ainda se discute, por exemplo, a tempestividade dos embargos à execução opostos na vigência da atual sistemática, por devedor citado sob a égide da norma revogada (v.g. TJ/SP, Apelação 0003942-12.2007.8.26.0320, Des. Rel. Cardoso Neto, j. 30/9/13 e TJSP, Apelação 0116166-50.2007.8.26.0009, Rel. Des. Morais Pucci, j. 18/9/14).

Esse cenário de águas turvas parece indicar que enfrentaremos as mesmas mazelas combatidas por ocasião das reformas de 2005 e 2006.

Que Galeno Lacerda, mais uma vez, nos acuda.

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*Diego Santiago y Caldo é advogado da banca Pacífico, Advogados Associados.

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