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Crise, a crise, a crise e as soluções do Direito Comercial

Para os efeitos deste comentário há outro plano de análise além do resultado das querelas políticas em andamento. Significa dizer que papel (se existe algum) o Direito Comercial poderá exercer se e quando essa tripla crise puder ser superada de alguma forma.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Atualizado em 29 de janeiro de 2016 09:56

Por que indicar três crises e não falar delas simplesmente no plural? Ora, para reforçar uma ideia no sentido de que são basicamente três, individuais entre si, mas que produzem efeitos conjuntos e em cascata.

A primeira crise é a moral. Pode-se arriscar a afirmação de que, não preocupados com outras plagas, ela é endêmica no Brasil. Ter consciência pesada entre nós somente se for o resultado do uso de um chapéu mais encorpado. Dorme-se tranquilamente depois de se ter praticado o maior dos crimes, qualquer que seja a sua natureza. E se o crime aparece, o autor é sempre o outro. Nesse sentido, o sucesso do instituto da delação premiada somente se deu porque é o último recurso do criminoso apanhado na rede da Justiça. Em termos práticos, se a pena virá mesmo, melhor reduzi-la indicando um peixe maior.

Desse ponto de vista somos um povo com grande inclinação imoral ou amoral. No primeiro caso o agente está consciente da desonestidade dos seus atos e os pratica nessa condição, assumindo os riscos correspondentes. Muitas vezes a imoralidade é apresentada como uma simples transgressão contestadora à ordem vigente e, assim, socialmente aceita. Uma verdadeira instituição. Afinal de contas, é preciso que a sociedade evolua.

Amoral é aquele que não tem qualquer senso de ética, de pudor, de bons costumes, de respeito ao próximo. O mundo para o amoral é heliocêntrico, sendo ele o eixo em volta do qual evoluem todas as coisas e todos os outros, que existem para o exercício do seu interesse exclusivo e pessoal. Está acima do bem e do mal. A lei o serve, não reconhecendo ele o seu primado. Não precisamos ir muito longe para percebermos a existência de uma plêiade de amorais em nosso meio, infelizmente.

A outra crise, decorrente da primeira é a política. Moralmente ou amoralmente corrupta, e não somente em relação aos "trezentos picaretas do Congresso", mas extensiva a todos os legisladores, segundo avaliação dos brasileiros em geral. Entre as instituições do País a classe política é aquela que mereceu as piores notas nos rankings das instituições pátrias. E o eleitor nesse contexto não pode reclamar porque, no fundo, é cúmplice, dado que ele exerce o seu direito de voto quase que invariavelmente segundo o critério do "quem promete mais" (prometer, porque dar mesmo que é bom, depois se transforma invariavelmente em uma promessa não cumprida sobre a qual não há direito de reclamar). O eleitor está sempre à procura de um Salvador da Pátria, encarnado em um candidato, depositando (melhor, digitando) o seu voto nos termos da conhecida Lei de Gérson ("O negócio é levar vantagem em tudo!").

Haverá solução? Diz-se que a democracia é o menos ruim entre todos os regimes de governo. Que seja! Mas entre nós ela poderia ser um pouco menos ruim ainda, desde que adotássemos, segundo penso, um verdadeiro parlamentarismo e o voto distrital misto, a partir de uma representatividade efetiva, de forma a regular melhor o sistema de freios e contrapesos constitucionais que anda meio à deriva.

Isto porque, entre outros motivos, a representatividade do eleitor foi fraudada pelo Governo Geisel, quando a regra foi mudada para o favorecimento da Arena em eleições, naquela época o partido governamental, quando se deu maior poder de voto aos Estados do Norte/Nordeste que, assim, passaram a eleger proporcionalmente mais deputados federais do que o resto do País. Essa regra se eternizou. Um retorno ao modelo original com a aplicação de certo índice de correção na proporcionalidade faria com que a representação dos eleitores naquela Casa se tornasse um retrato adequado de seu poder.

Sob esse aspecto há uma grande confusão. Os deputados federais representam diretamente os eleitores, segundo o número daqueles, independentemente (em termos) de qual seja o seu domicílio eleitoral. Já os Estados da Federação são representados pelos senadores. Por isto não se pode dizer que haja desequilíbrio na representação eleitoral quando os estados mais populosos têm naturalmente o direito a um número maior de deputados federais.

A terceira crise é a econômica. Nunca dantes no Brasil se viu tamanho estrago em tão curto espaço de tempo. Aqui se juntou a fome com a vontade de comer. De um lado a inflação cada vez mais crescente, ladeada por uma tributação lancinante, que opera como as chibatadas nas costas de um condenado: a nova chibatada aumenta a dor das anteriores. Do outro os empresários, quase tetraplégicos na sua atividade de produzir e fazer circular a riqueza. No meio os trabalhadores, perdendo os seus empregos ou, no mínimo, aceitando a redução da jornada com a consequente perda de parte do seu salário. Essa situação é o pior dos mundos, chamada de estagflação, cuja solução depende praticamente de um milagre a partir do funcionamento das instituições (que ainda não foram contaminadas) para fazer-se um freio de arrumação e se dar um choque nas causas do triunvirato devastador. Mas como o eleitor é impaciente, tais medidas costumam ser abortadas pela futura mudança do governo na primeira eleição que se segue, desde que os candidatos, como sempre, prometam benesses imediatas sem que venham a cumpri-las depois de eleitos. Sob esse ponto de vista eleitor parece ter menos do que a capacidade de memória do que aqueles primeiros disquetes de papelão dos antigos (bem antigos) computadores.

O observador percebe que, ao menos, estão atuando adequadamente no exercício das suas funções a Polícia Federal, o Ministério Público Federal e a Justiça Federal (que têm até heróis com nome e rosto). Desconfia-se sensivelmente do STF, em vista das circunstâncias que, constitucionalmente, cercam a indicação do seu corpo de ministros, suscetível a uma escolha que se avalia como política, tanto do lado da Presidência da República, quanto do exame dos candidatos feito pelo Senado. Infelizmente tal modelo político de escolha se estendeu ao STJ e ao TST, indício que se caracteriza pela longa demora no preenchimento de cargos vagos pela aposentadoria dos antigos titulares.

Nesse cenário complexo foram deflagrados pedidos de impedimento da Presidente da República, ao lado da busca do afastamento do Presidente da Câmara dos Deputados. Há outros pedidos em andamento, nem tanto na berlinda, é fato conhecido. Como se sabe, os problemas na área política são muito mais abrangentes e não é possível imaginar quem ainda será apanhado (ou quem não será) na rede das denúncias a cargo do Ministério Público Federal. Cada dia trás uma surpresa nova, mais trepidante do que a sequência de cenas de filmes do tipo "Missão Impossível".

Para os efeitos deste comentário há outro plano de análise além do resultado das querelas políticas em andamento. Significa dizer que papel (se existe algum) o Direito Comercial poderá exercer se e quando essa tripla crise puder ser superada de alguma forma, de maneira a que voltem a soprar ventos favoráveis à economia, com a retomada institucional dos negócios. A alternativa é o caos. E o caos poderá ser pintado de verde ou de vermelho. Em um confronto muito improvável, penso que o verde será uma cor predominante em relação ao vermelho. E isto nenhum brasileiro em sã consciência deseja. Voltaríamos cinquenta anos no tempo.

Suponhamos, portanto, um recomeço, segundo o modelo de uma Fênix econômica, renascendo de suas próprias cinzas. Destroçadas pela recessão muitas das empresas que ainda tenham sobrevivido, mas em agonia, necessitarão de reforço no seu arsenal de guerra, representado por ativos novos, em dinheiro, em bens e em serviços. Do ponto de vista do Direito Comercial haverá um forte apelo aos institutos da concentração empresarial (fusão, incorporação, aquisição de ativos, aquisição do controle societário), com um papel relevante dos micro sistemas de direito societário e concorrencial. Será preciso verificar se a legislação existente contra o abuso de poder econômico e os órgãos que nela atuam terão flexibilidade suficiente para agasalhar soluções atípicas em meio a uma crise gigantesca, em favor de um exame menos rigoroso da concentração e dos seus efeitos econômicos e jurídicos. Ainda que sejam soluções momentâneas, esse período de tempo deverá ter a duração necessária para a consolidação das empresas que tiverem participado de processos dessa natureza.

Nossos tipos societários estarão à altura das necessidades vindouras, capazes de a elas se adaptarem? Não, pelo menos no que diz respeito à sociedade limitada, que foi profundamente violentada pelo Código Civil de 2002, o qual estraçalhou a sua índole contratual para colocar no lugar um frankenstein misto de sociedade empresária e não empresária.

Pode acontecer também maior grau de concentração bancária como forma de defesa contra a inadimplência de uma quantidade extremamente sensível de tomadores de crédito. Nesse momento o colchão do capital social mais fortalecido será uma defesa mais eficiente para que seja afastado o risco de uma quebra individual, capaz de gerar risco sistêmico. Estarão o CADE e o BCB à altura para enxergarem a medida ótima do tamanho de um banco para que possa enfrentar um cenário tão negativo? Esse é um papel a ser exercido no âmbito do Direito Bancário. E veja-se que a quebra de um banco vem do nada, como sabem agora os credores do Banco BTG Pactual. Se ali havia problemas, eles estavam perfeitamente escondidos.

Além do que, será que não se reconhecerá essencial a proteção da indústria nacional contra a invasão de empresários estrangeiros, favorecida pela taxa de câmbio e pela recessão interna, que já determinaram uma relevante queda dos preços dos ativos brasileiros? Se e em que medida poderá ser deixado de lado o critério da eficiência em favor da concessão de mínimas condições para o fortalecimento das empresas nacionais? E em que setores? Será isto válido? Direito Concorrencial, será a sua vez de entrar em xeque.

Ao instituto da recuperação judicial (e, eventualmente extrajudicial) poderá ser reservado importante papel no renascimento de empresas, a partir de uma real perspectiva de sucesso do plano correspondente, que não poderá ser julgado pelo critério do preenchimento da função social da empresa, em detrimento daqueles guardados na lei. O segredo, mais uma vez, será o das fontes de dinheiro novo a custo suportável, o que geralmente representa uma contradição no funcionamento das empresas em recuperação, pois geralmente os juros das operações de funding em tais circunstâncias são mais caros do que aqueles presentes nas empresas saudáveis, tendo em vista uma estatística relevantemente desfavorável do sucesso dos planos aprovados. Por outro lado, chamado cram down não poderá ser uma medida empurrada goela abaixo dos credores que negaram a aprovação do plano para que possa ser atendida alegada função social da empresa ou a necessidade de preservação de empregos. Estas afrontas ao sistema legal têm tão somente retardado um processo inevitável de falência.

O instituto do contrato será utilizado como ferramenta para a regulação de interesses de partes voltadas para a realização de novos negócios, nos mais variados campos e segundo as suas modalidades nominadas e inominadas. Infelizmente o contrato tem passado por crises de identidade externas e internas. Externamente quando subordinado expressamente aos princípios da boa-fé objetiva, da probidade e da função social que, quando inadequadamente aplicados, geram distorções causadoras de ineficiência e de frustração dos objetivos pretendidos, além de ser uma porta aberta ao oportunismo.

Do ponto de vista interno, o contrato tem sido atacado pela adoção de uma tutela que busca definir previamente todas as implicações passíveis de ocorrência durante o período de sua execução, acrescidas de um tratamento extenso dos direitos e das obrigações correspondentes. O modelo usual é o da assinatura de um memorando de entendimentos, que pode ou não ter a natureza jurídica de um pré-contrato. Vencidas as condições estabelecidas segue-se a assinatura do contrato principal, que se organiza em um preâmbulo (no qual são estipulados os objetivos pretendidos). Este é seguido de uma enorme série de definições (voltadas para a tentativa de dar clareza quanto ao entendimento das normas adotadas), finalizando com o corpo de direitos e obrigações propriamente ditos (também reguladas segundo o caudal um verdadeiro Amazonas de regras de se seguem umas às outras).

O resultado do modelo acima citado é o do sensível aumento dos custos de transação, quase sempre ineficaz porque nem o melhor corpo de advogados regiamente pago será capaz de cercar com qualidade todos os problemas que poderão surgir no futuro. Esquece-se que contratos de duração continuada sempre apresentam a natureza de incompletos. Não é raro também que cláusulas do preâmbulo, das definições e da parte principal do contrato briguem umas com as outras, levando à necessidade de sua interpretação e integração dentro de um trabalho exercido a cargo do julgador.

E, por falar em julgador, em boa parte dos contratos de valor mais significativo e de maior complexidade, tem sido adotada a solução por arbitragem, considerada mais apta do que o Judiciário para casos dessa natureza. Em obras muito complexas tem sido utilizado o dispute board, instituto prévio a uma demanda entre as partes, formado por profissionais experientes na área do contrato em andamento. Estes atuam durante todo o tempo de sua execução, procurando chegar a soluções rápidas, que permitam a continuidade da construção de uma obra civil de grande porte (por exemplo), cuja paralisação para a busca de uma sentença causaria danos irreparáveis.

Como se verifica, de maneira geral o Direito Comercial estará apto a absorver e a regular satisfatoriamente os abalos causados pela atual crise, a partir do momento em que os negócios possam vir a ser retomados com regularidade, dentro de um universo previsível, no qual os direitos e obrigações possam ser assumidos pelos agentes econômicos, certos que poderão atingir os objetivos pretendidos.

Será necessário, claro, a existência de um mercado consumidor, mas que consuma de forma responsável, evitando o super endividamento. E neste passo o Governo não tem ajudado em nada, oferecendo presentes de gregos a compradores compulsivos, como aconteceu com o uso do cartão de crédito para os empréstimos consignados e - o que se fala agora - na abertura para os recursos do Fundo de Garantia. Ao fim e ao cabo, a perda de equilíbrio nessas fontes levará o consumidor a perder o que possuía e o que ainda viria a possuir quando de sua aposentadoria.

Antes disto, não adianta fazer qualquer apelo ao instinto animal dos empresários porque quando o inimigo está por perto, naquele reino cada um procura a sua toca ou árvore onde abrigar-se.

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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é professor Sênior do Departamento de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.


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