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Advogado criminalista com A maiúsculo

Totalitarismos e ditaduras somente se perpetuam quando os advogados desistem de lutar.

sexta-feira, 1 de julho de 2016

Atualizado às 09:51

Sumário
1. Guardião da democracia
2. Guardião das esperanças
3. Guardião da legalidade
4. Guardião da segurança pública
5. Convite
Bibliografia

A Constituição Federal, em seu art. 133, estatui que "o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei".

A Lei 8.906/94, em seu art. 2º, aduz que "o advogado é indispensável à administração da justiça", prestando serviço público e desenvolvendo função social. Tais postulados são reforçados no Código de Ética e Disciplina.

Todas essas normas, em tese, se revelam importantes; entretanto, muitas vezes, resta difícil compreender o que significam, na prática.

1. Guardião da democracia

Primeiramente, imperioso lembrar que, em regimes ditatoriais, o profissional que, de plano, passa a ser perseguido é o advogado. Com efeito, ainda que não seja ele próprio um inimigo do sistema, minar o advogado constitui forma de fragilizar a defesa dos dissidentes.

Diante de qualquer medida totalitarista, ou arbitrária, relativamente a um advogado, imediatamente relembro o livro referente à lei penal chinesa, em que se narra o terrível fato de advogados passarem eles próprios à condição de réus, apenas por terem defendido seus clientes, tomados por criminosos por serem dissidentes.

"Só que neste período sopravam já os ventos daquilo que viria a ser a chamada revolução cultural, que oficialmente vai de Maio de 1966 até Outubro de 1976. Este período, na vertente jurídica, é caracterizado não só por uma banalização, mas mesmo por uma hostilidade ao direito, considerado pelos corifeus da revolução cultural como instrumento dos direitistas para poupar os contra-revolucionários à justiça. Os tribunais são afastados do processo de aplicação da justiça ou nele interferem na prática como meros observadores. Com efeito, os termos jurídicos de negligência, culpa, tentativa, erro, etc. transformam-se em subterfúgios reaccionários. Surgem de novo os julgamentos populares, maus-tratos para obtenção de confissões, condenações sem prova. Regressa-se ao sistema de desigualdade perante a lei dado que os visados pertencentes às sete categorias consideradas indesejáveis, na prática nem tinham quem os defendesse. Não só porque se acabou com os advogados de defesa mas também porque quem os defendesse se exporia a ser considerado contra-revolucionário" (PEREIRA, 1996, p. 32).

Nota-se que, até em nome da democracia, resta imprescindível zelar pelas prerrogativas dos advogados, dado que essas prerrogativas não lhes pertencem, sendo inerentes aos clientes.

No que concerne à advocacia criminal, a preocupação para com a preservação das prerrogativas se revela ainda mais justificada, quer em virtude de a liberdade, um dos bens mais preciosos, estar em jogo; quer em razão de ser justamente nessa seara que as perseguições políticas ocorrem, dado que comportamentos neutros passam a ser tomados como criminosos, com o objetivo de estigmatizar aqueles que ousam ser críticos.

Uma breve análise da história evidencia que assim ocorreu na Alemanha nazista, onde constituía crime todo e qualquer comportamento que ferisse o são sentimento do povo alemão; na Rússia comunista e em todos os outros exemplos de totalitarismos, não importa se de direita, ou de esquerda; civil, ou militar (ARENDT, 2000).

Mas não se faz necessário voltar ao passado para constatar esse tipo de perseguição. Nos dias atuais, a vizinha Venezuela tem recorrido a tal expediente, com o fim de neutralizar seus opositores, sejam opositores formalmente ligados à política, ou não.

De fato, Leopoldo López, que concorreu à presidência da República pela oposição, está preso há mais de um ano e acabou condenado a mais de 13 anos de encarceramento, apenas por ter convocado manifestações em que houve pessoas feridas. O governo o acusa de uma espécie de terrorismo, quando há denúncias de que os próprios governistas infiltram pessoas para agredir (até mesmo a tiros) os manifestantes.

Ao lado dos perseguidos que estão formalmente na política, há presos políticos menos conhecidos, que se encontram em prisões subterrâneas, sem uma acusação formal. Nesse diapasão, já não são poucos os relatos da existência de uma prisão subterrânea, "carinhosamente" batizada Tumba, onde foram colocados manifestantes jovens, que só ouvem o barulho do metrô, que passa a poucos metros de distância.

Dado que grande parte do Ministério Público e do Poder Judiciário, naquele país, está instrumentalizada, apenas o recurso aos organismos internacionais resta aos advogados venezuelanos que, ainda bravamente, lutam contra o sistema; como, aliás, lutaram os colegas brasileiros, homenageados no livro Coragem: A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo.1 Os advogados também tiveram papel fundamental na abolição da escravidão, sobretudo mediante o ajuizamento das ações de liberdade, que conferiram vida livre a muitos homens e mulheres, já antes da Lei Áurea.

Totalitarismos e ditaduras somente se perpetuam quando os advogados desistem de lutar.

Acerca da cooptação do Poder Judiciário e do Ministério Público, na Venezuela, imperioso lembrar o episódio envolvendo a fuga do promotor de justiça Franklin Nieves, que foi obrigado a forjar a acusação contra o líder oposicionista Leopoldo López.

Nota-se que a participação dos advogados em contextos tais se revela fundamental. Daí a necessidade de ficar muito atento com relação às prerrogativas profissionais.2 Totalitarismos e ditaduras somente se perpetuam quando os advogados desistem de lutar, ou quando são asfixiados em seu papel natural e, no Brasil, constitucional.

2. Guardião das esperanças

Tal qual o médico está obrigado a lutar pela defesa da vida de seu paciente; o advogado está obrigado a lutar pela liberdade, do corpo e da mente, do seu cliente.

Por tal razão, trate-se de um perseguido político, trate-se de um criminoso propriamente dito, tem-se que o maior desmando que um advogado pode cometer é trair o seu constituinte; em linguagem pouco jurídica, vendê-lo.

Não importa o que o indivíduo efetivamente fizera, ou fora acusado de ter feito, o advogado pode até rejeitar a causa, por questões de foro íntimo; porém, uma vez aceitando-a, jamais poderá mal defender quem lhe depositou a confiança, por não se conformar com o ato praticado.

Igualmente, inadmissível que um advogado receba pelo trabalho e não o preste, prejudicando e iludindo o cliente. Com efeito, dói, na alma, sempre que tenho notícia de que um preso juntou todos os seus pertences, pediu ajuda a familiares, muitas vezes, pessoas humildes, para pagar o advogado e este, uma vez na posse do dinheiro, desapareceu, sem tentar obter a prometida liberdade.

Ainda mais revoltante é o fato de o profissional aceitar representar uma pessoa, fazer esta pessoa crer que está realmente preocupado com sua defesa, mas, na verdade, ter por objetivo principal controlar o próprio cliente, com o intuito de preservar alguém mais importante, ou mais rico; algumas vezes por algum interesse pontual, outras por estar recebendo das duas partes mesmo.

O Código de Ética pune esse tipo de comportamento. O próprio Código Penal capitula os crimes de estelionato, apropriação indébita, tergiversação, ou patrocínio infiel, dentre outros, que poderiam muito bem ser atribuídos a profissionais que não honram a Carteira da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Por óbvio, a punição ética e/ou penal de profissionais que lesam sua nobre missão auxilia a prevenir reiterações; entretanto, a melhor forma de prevenção sempre será sensibilizar para os males que poderão advir do fato de o advogado trair um ser humano, em seu momento de maior fragilidade.

Importante frisar que não se está, de maneira nenhuma, pretendendo transformar a defesa em uma atividade fim. Como bem se sabe, o advogado sequer está autorizado a garantir resultados; além disso, qualquer profissional que atua na área penal reconhece que o curso de uma investigação e de uma ação penal é sempre tenso, não sendo raros os momentos de embate entre advogado e cliente.

No entanto, até mesmo quando diverge de seu constituinte, o advogado deve assim proceder imbuído do objetivo de bem defendê-lo.

Em outras palavras, o advogado pode até errar, como erram todos os seres humanos; pode escolher um caminho que, mais adiante, vem a se revelar o menos adequado; porém, jamais poderá nortear seus passos visando a fins alheios aos interesses de seu cliente.

A título de exemplo, pense-se na hipótese de um advogado orientar seu cliente a fazer uma colaboração premiada. Sua obrigação é estudar os autos e a legislação, conhecer o máximo possível os fatos e, por fim, ponderar, avaliando os riscos envolvidos, qual situação é potencialmente menos onerosa ao seu cliente.

Procedendo dessa forma, terá honrado seu contrato, ainda que, depois, ele próprio venha a concluir que teria sido melhor proceder de outra forma. O que o advogado nunca poderá fazer é, ao avaliar o contexto, pensar mais em um terceiro do que em seu próprio cliente, seja impedindo-o de fazer uma colaboração, que lhe seria vantajosa; ou, pior, orientando-o a fazer o acordo, preservando alguém, em especial.

Em suma, o que mais um profissional tem a entregar ao seu cliente é a honestidade de sua dedicação; a garantia de que fará o melhor que está ao seu alcance. Da certeza de que tal dever não será traído nasce a esperança.

No que concerne aos honorários, tem-se que, ainda que os receba de outrem (um parente, empregador, ou ex-empregador do cliente), não submeterá os interesses do seu constituinte àquela pessoa física, ou jurídica, responsável pelos pagamentos.

Com efeito, na seara dos crimes empresariais, até em virtude do alargamento de tipos penais, tornam-se mais comuns inquéritos e processos em que funcionários figuram no polo passivo.

Nesses casos, salvo raras exceções, as próprias empresas contratam os advogados que farão a defesa de seus funcionários. Em sendo compatível, o advogado trabalhará pelo bem da pessoa física defendida e da pessoa jurídica contratante. No entanto, diante da mais ínfima incompatibilidade, o interesse da pessoa física defendida há de prevalecer, sendo aconselhável, inclusive, fazer constar cláusula em tal sentido, no contrato de prestação de serviços.

Ademais, é muito importante que o profissional, quando contratado pela empresa empregadora, ou ex-empregadora, de seu cliente, converse com a pessoa diretamente defendida e verifique se ela está confortável com a situação. Isso porque a confiança é essencial na relação advocatícia.

Decorre do exposto, portanto, que, além de as prerrogativas serem muito importantes, como garantia do próprio Estado Democrático de Direito, o comportamento transparente do advogado para com seu cliente é inerente ao exercício desse múnus público. Uma vez constatados vícios, estes devem ser punidos, sob pena de macular-se a própria confiabilidade da profissão.

3. Guardião da legalidade

Apesar de o advogado estar obrigado a colocar os interesses de seu cliente à frente das vontades do próprio cliente, resta imperioso recordar que tal profissional não deve passar dos limites impostos pela lei, sob pena de ele próprio vir a ser responsabilizado por crimes bastante graves, como são, por exemplo, a corrupção ativa e o pagamento por falso testemunho, ou falsa perícia.

Com efeito, infelizmente, não é raro o advogado, em especial o criminalista, ser procurado com demandas inadequadas e até ilícitas. O clima de impunidade que graça no país finda por estimular a crença de que a advocacia se confunde com dar "um jeito" em toda e qualquer situação.

O médico tem a incumbência de buscar salvar a vida de seu paciente; entretanto, não está autorizado, nem pela lei, nem pela ética, a tirar órgãos vitais de uma outra pessoa para tanto.

Do mesmo modo, o advogado tem o dever de bem defender seu cliente, sobretudo no que tange a sua liberdade; todavia, não está autorizado, nem pela lei, nem pela ética, a passar por cima de todos os valores, para tanto.

Poucos são os debates em torno da inegável concorrência desleal praticada pelo profissional corrupto.

Para seu próprio bem e para o necessário resgate da legalidade, é muito importante que o profissional do Direito saiba se impor, primeiramente, esclarecendo a quem o procura com esse tipo de pleito o que efetivamente significa advogar; e, principalmente, negando-se a reduzir a profissão à prática de crimes.

As questões éticas e legais envolvidas, salvo melhor juízo, sequer carecem de aprofundamento. Porém, resta interessante trazer um argumento a mais, a reforçar a necessidade de coibir esse tipo de comportamento, qual seja a concorrência desleal.
Vejamos.

Muitos são os dispositivos que objetivam evitar a captação e o desvio de clientes entre advogados. Com frequência, renovam-se discussões referentes à possibilidade de os advogados fazerem algum tipo de publicidade, ou mesmo exercerem funções que, em alguma medida, os colocariam em situação favorável, relativamente aos colegas.

Intrigantemente, poucos são os debates em torno da inegável concorrência desleal praticada pelo profissional corrupto.

De fato, o profissional honesto, que estuda as leis, a doutrina antiga e atual, nacional e estrangeira, que busca acompanhar a jurisprudência dos tribunais, fica prejudicado quando um colega decide resolver os problemas de maneira pouco cartesiana.

Para o cliente menos sensível aos males acarretados pela corrupção, muitas vezes, parece compensar pagar para resolver rapidamente, do que investir no trabalho dedicado e longo do advogado.

Alguns, com o fim de se eximirem de responsabilidades, vão alegar que tudo devem fazer pelos seus clientes; outros, mais práticos, podem argumentar que as coisas sempre funcionaram dessa forma. Todavia, com o passar do tempo, a institucionalização desse tipo de comportamento aniquila a própria advocacia. Afinal, se não resta mais importante estudar, pesquisar, conhecer as leis e os precedentes, qualquer negociante pode assumir o papel de defensor.3 No longo prazo, a qualidade na formação dos profissionais restará comprometida, pois não valerá a pena investir em aprimoramento. E da mesma forma que advogados tecnicamente capazes estimulam melhor justiça; advogados medíocres fomentam prestação jurisdicional medíocre e injusta.

Esses são apenas alguns dos males decorrentes da corrupção. Há outros, como as casas de show que se queimam, as barragens que cedem, os brinquedos de parques de diversões que despencam, as pontes que ruem, e assim por diante. Por força desse cenário desalentador, em 26 de dezembro de 2013, publiquei o artigo Corrupção Mata, no jornal Folha de S.Paulo. À época, talvez, o texto não tenha sido completamente compreendido; entretanto, depois das revelações da Operação Lava Jato, pode vir a ser melhor interpretado.

Constata-se, portanto, que, seja pela sociedade, seja pela preservação da própria carreira, ou mesmo pela manutenção de um mínimo de lealdade na concorrência, todo advogado haveria de combater e denunciar a corrupção.

Importante consignar que não é só a corrupção que enseja concorrência desleal. O tráfico de influência também haveria de ser seriamente combatido.

Com efeito, quem já não soube de colegas que, tão logo o cliente coloca os pés em seus escritórios, começam a relatar suas amizades com juízes, desembargadores e ministros, dos tribunais e do governo?

Algumas dessas proximidades são inventadas, em contexto típico da venda de fumaça, tão bem narrada nos manuais mais tradicionais; outras são verdadeiras, mas nem por isso haveriam de ser alardeadas.

Seja a intimidade alardeada real, ou imaginária, por certo, na mente do cliente em potencial surge a ideia de que o profissional que se autopromove poderá solucionar seu problema de maneira mais rápida e efetiva que aquele advogado discreto que age de acordo com os imperativos da ética.

Os clientes não têm conhecimento e força para coibir esse exibicionismo, antiético e até criminoso, muito ao contrário, se encantam. A advocacia, entretanto, não só pode, como deve, se levantar contra esses indivíduos, que, no mínimo, tripudiam de seus colegas.

Quem já não passou a tarde esperando para ser atendido em um tribunal e viu, atônito, um colega passar e entrar, sem bater na porta e sem ser anunciado; refestelando-se por gozar de tamanha liberdade?

Um leitor menos criterioso pode bradar que a autora desta breve reflexão não passaria de uma invejosa, afinal, toma por antiéticos colegas que nada fazem de mal, além de utilizar o poder que conquistaram.

Respeita-se tal opinião, como todas as demais. Ocorre que esse pensamento deita raízes na cultura brasileira que precisa ser revista, qual seja a cultura da esperteza, e não a da civilidade e do mérito.

Infelizmente, em um país em que, para afastar acusações por corrupção, altos funcionários assumem dar e terem dado consultorias para empresas que vendem seus produtos e serviços para o Estado, pode parecer exagero coibir condutas como as anteriormente descritas. Nada obstante, em uma sociedade em que se pretende ser o merecimento o fator de ascensão, tais práticas somente servem para desestimular o estudo e o trabalho. Ao fim e ao cabo, todos perdem.

4. Guardião da segurança pública

Além de zelar pela manutenção da democracia, por conseguinte, pelas prerrogativas da classe e pela legalidade, bem como honrar a confiança que o cliente lhe conferira, cumpre indagar qual o papel do advogado diante de um cliente que, efetivamente, praticou um crime.

Obviamente, tem-se que o advogado jamais poderia entregar seu cliente, pois, fosse assim, aniquilaria a própria profissão.

A esse respeito, aliás, está muito na moda uma indevida pretensão de relativizar o dever de sigilo do advogado, por força da legislação referente à lavagem de dinheiro. Com efeito, sob o argumento de que, ao lado de contadores e auditores, os advogados são "gate keepers" (porteiros, ou guardiões), doutrinadores e julgadores têm alardeado um suposto dever de delatar os próprios clientes, sobretudo se o trabalho desenvolvido for de consultoria, e não o conhecido como contencioso; havendo até quem sustente que o advogado poderia responder criminalmente pela pretensa omissão.

Em estudo anterior, tivemos a oportunidade de esmiuçar essa indevida pretensão, defendendo que o dever de sigilo se estende ao advogado consultivo, sendo certo que o profissional somente poderá ser responsabilizado por lavagem, no exercício de suas atividades, se ele próprio praticar a lavagem para o cliente, em operações sofisticadas, indevidamente tratadas por proteção patrimonial.4

Em outras palavras, em nenhuma hipótese, o simples fato de defender um cliente (contencioso), ou de orientá-lo relativamente a sua situação jurídica (consultivo), poderá ensejar responsabilidade administrativa, ou penal, por lavagem de dinheiro para o advogado. No entanto, caso ele extrapole seu papel e passe ele próprio a constituir empresas inexistentes, a receber valores em suas contas bancárias, a pretexto de honorários, devolvendo-os posteriormente, ou efetuando pagamentos sob a orientação do cliente, poderá sim, como qualquer outro profissional, vir a ser responsabilizado, inclusive, criminalmente, por lavagem de dinheiro.

Muito embora o crime de lavagem de dinheiro tenha ganhado muita relevância nos últimos tempos, nesta oportunidade, não se objetiva detalhar referida matéria, o intuito é destrinçar um pouco mais o que, afinal, em um contexto mais amplo, poderia significar a expressão: "gate keeper".

Os mais açodados tomam-na como um dever de o profissional colaborar com a justiça, entregando seu cliente lavador. Eu, por outro lado, vislumbro na expressão um dever de colaborar com a manutenção da ordem, mas não por meio da entrega de um cliente, o que julgo um acinte à profissão, e sim com o exercício da possibilidade de fazê-lo mudar de rumo.

Com efeito, com frequência, relembro de frases constantes de texto jornalístico da lavra do falecido Márcio Thomaz Bastos, no sentido de que não caberia a ele julgar o próprio cliente.5

Como todos sabem, Márcio Thomaz Bastos foi um dos maiores advogados criminalistas que este país já teve e referido texto foi muito marcante para mim. Em parte, cumpre concordar com o autor, pois, realmente, não cabe ao advogado julgar o seu cliente, como, aliás, não cabe a nenhum ser humano julgar o outro.

Nesse sentido, como já dito, o advogado até pode recusar uma causa; porém, jamais negar ao constituinte a melhor defesa. Em outras palavras, não julgar significa unicamente defender com todas as forças e dedicação.

Para o advogado, os clientes confessam o que não contam sequer ao padre.

No entanto, diferentemente do constante dos ensinamentos de Thomaz Bastos, penso que o advogado não deve ser neutro diante do que foi feito e do que pode vir a ser feito. Não julgar não pode significar anuir.

Para o advogado, os clientes confessam o que não contam sequer ao padre. Como bem ponderava Manoel Pedro Pimentel, em Advocacia Criminal (1965), livro de leitura obrigatória para quem quer militar na área penal, na primeira reunião, o cliente nunca conta tudo, entretanto, conforme vai ganhando confiança, vai adicionando novos fatos, em regra, essenciais para o bom desenrolar da defesa.

Diante desse quadro, em que medida o advogado pode mesmo ser considerado um "gate keeper"?

Salvo melhor juízo, utilizando essa condição privilegiada para fazer com que o cliente mude o rumo de sua vida, mormente se estiver diante de alguém que não praticou um crime como um ato isolado.

De fato, somente o advogado criminalista, pelas peculiaridades da profissão, tem como mostrar ao cliente que o crime não compensa; que ele pode investir sua inteligência em atividades lícitas. Nenhum outro profissional terá melhores condições para tentar colocar um basta em uma carreira criminosa. E, por isso, ainda que indiretamente, o advogado finda sendo um aliado da Justiça e da segurança pública. Ele defende o cliente do crime praticado, mas imprime seus esforços para retirá-lo do caminho do ilícito. Por óbvio, esta não é uma obrigação legal, porém, pode muito bem ser uma incumbência moral.

Ao defender, não julga, mas não deve fugir de reconhecer no ato praticado um mal que não deve ser repetido.

Um dos maiores riscos que corre o advogado que milita no crime é perder a noção entre o que é certo e o que é errado. Este é o primeiro passo para o próprio profissional (e não só o cliente) sair do rumo.

Por mais que se defenda o homicida, o estuprador, o pedófilo, o corrupto, o latrocida, o sonegador, o estelionatário, dentre outros, o advogado deve ter claro que esses comportamentos são indevidos e, por isso, deve também deixar isso bastante nítido a seus clientes.

Esse comprometimento moral tem ônus. Não são poucas as pessoas que procuram um advogado com o fim de serem tuteladas delas próprias; querem ouvir que são vítimas de um sistema. Não raras vezes, quando o profissional aponta os erros cometidos, crimes inclusive, é visto como inconveniente, como alguém que apenas atrapalha os negócios; em casos limites, uma condução ética pode implicar perda de clientes e dificuldade para conseguir novos. Neste particular, arcar com esses ônus, ou não, finda sendo uma questão de escolha pessoal.

Ao ver da subscritora, o verdadeiro significado da expressão "gate keeper" é justamente a possibilidade de usar o acesso privilegiado que tem ao cliente para buscar convencê-lo a fechar as portas para o crime.

Em certa medida, o advogado pode fazer as vezes do porteiro, citado por Dante Alighieri, em sua Divina Comédia (2002, p. 181), que, ao permitir aos visitantes continuar viagem rumo ao paraíso, aduz que a passagem pelo portão há de fazer progredir seus passos no caminho do bem.

Lembro-me de ter atendido um rapaz bastante jovem e inegavelmente inteligente, que havia perpetrado uma fraude de grandes magnitudes, na empresa para a qual trabalhava.

À época, ele deixou bastante claro que estava consultando vários profissionais, com o fim de decidir quem contratar; solicitou uma proposta de honorários e, quando descobriu que eu havia solicitado montante um pouco superior ao cobrado por um colega do sexo masculino, disse que preferia contratá-lo.6

Mas o ponto não é esse. Mesmo não sendo contratada para o caso, dado que aquele jovem tinha vindo ao meu escritório, confiando situação tão delicada a mim, julguei que seria meu papel, de advogada e de cidadã, tentar mostrar a ele que, começando dessa forma, ele não poderia ter um futuro feliz.

Com esse intento, indaguei por qual razão, afinal, um rapaz tão inteligente, no lugar de se dedicar ao seu cargo e ao aprofundamento nos estudos, decidira trilhar pelo caminho do crime. A resposta foi que este segundo caminho seria mais curto e o outro, além de muito longo, não era garantido.

Eu passei, pelo menos, mais duas horas mostrando a ele que pessoas que escolhem esse caminho mais curto, mesmo quando bem-sucedidas, raramente têm sossego; enquanto as que vão pela trilha mais longa possuem uma situação mais sólida, não apenas no campo financeiro, mas na vida.

Confesso não saber se minha "ladainha" surtiu efeito, mas, em outras situações, penso ter sido bem-sucedida; ademais, mesmo quando o objetivo não é alcançado, o sentimento de não ter incorrido em omissão reconforta.

As consequências de fraudes perpetradas em empresas talvez não sejam tão visíveis; porém, pense no colega que atende um assaltante, ou um traficante. Ao procurar intervir para fazer com que o cliente (por vontade própria) reveja seu modo de vida, poderá estar, literalmente, salvando vidas.

Abordar tais questões é sempre muito difícil, pois se generalizou o entendimento de que qualquer preocupação ética estaria relacionada a moralismo.

Não se está a falar de moralismo, mas de Moral. E advogados, com A maiúsculo, devem se preocupar com a preservação da Moral, pois da preservação da Moral depende também a manutenção da República, que não pode ser apenas de fachada.

5. Convite

Pois bem, com a crise Moral que se abateu sobre o país, a banalização da acusação de moralista findou fazendo com que os profissionais, inclusive os do Direito, passassem a se envergonhar por ter preocupações éticas.

Nesse contexto, as várias carreiras jurídicas perdem-se apenas em discussões classistas, em regra, referentes a direitos e rendimentos. Essas causas, por óbvio, são importantes, mas poucos são os questionamentos concernentes aos deveres.
Por outro lado, o advogado com A maiúsculo deve estar atento, pois, com frequência, a supervalorização do corporativismo tem o fim de desviar a atenção dos verdadeiros problemas.

Fomentar a solidariedade entre os vários membros de uma carreira é importante, pois somente eles conhecem a dor de seu mister; porém, instigar o corporativismo acaba por construir uma postura de agressividade, avessa à avaliação dos vários cenários, sob uma perspectiva macro.

A história do Brasil está repleta de exemplos de advogados que sacrificaram seus próprios interesses, visando aos direitos de seus constituintes e da nação. A própria OAB e as várias associações profissionais tiveram papel fundamental em lutas que, não fossem elas, muito provavelmente, não teriam sido travadas. O país está carente de pessoas e organizações com esse tipo de comprometimento.

O convite que ora se faz é que, pelo menos, reflitamos a respeito.

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1. Organização de José Mentor, publicado em março de 2014, pela OAB-SP.

2. Muito embora, a princípio, o Brasil seja uma democracia, não resta descabido lembrar que o Partido dos Trabalhadores, que governa o país há mais de 15 anos, apoia o governo venezuelano, havendo, em muitas oportunidades, elogiado o seu viés supostamente democrático.

3. Importante lembrar que o advogado criminalista, com frequência, é contratado para requerer instauração de inquéritos e para funcionar como assistente da acusação. Nesses casos, o cuidado deve ser redobrado, pois, ao acusar, compromete a liberdade de outrem; sendo, por isso, imperioso que avalie se, realmente, há provas suficientes, não se submetendo a mera vontade de quem o contratou, na condição de vítima.

4. Conferir: Janaina Conceição Paschoal, 2014, p. 237-258.

5. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/48600-serei-eu-o-juiz-do-meu-cliente.shtml>.

6. Não é este o momento adequado para tratar do tema, mas já tive oportunidade de expor à Comissão da Mulher Advogada situação que, apenas tardiamente, constatei. A remuneração às mulheres não é menor que aquela paga aos homens apenas nas relações de emprego. Também as profissionais liberais sofrem essa indevida diferenciação. Muitas foram as vezes que, diante de propostas bastante razoáveis de honorários, ouvi o candidato a cliente dizer que outro profissional cobraria menos e, do contexto, ficou bastante claro que o diferencial seria o sexo. Seria como se a mulher estivesse obrigada a trabalhar, exclusivamente, por amor. Desde que constatei tal estado de coisas, nego-me, terminantemente, a trabalhar de graça e, confesso, aconselhei as colegas da Comissão a procederem da mesma forma, pois a sociedade precisa aprender a respeitar e valorizar o trabalho da mulher, como ocorre com qualquer outro profissional.

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Bibliografia

ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Tradução de Fábio M. Alberti. São Paulo: Nova Cultural, 2002.

ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo: anti-semitismo, imperialismo, totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

PASCHOAL, Janaina Conceição. Corrupção Mata. Folha de S.Paulo. 26 dez. 2013. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/145303-corrupcao-mata.shtml>. Acesso em: 2 fev. 2016.

______. Lei 12.683/12 - Mais um capítulo na Ingerência Indevida. In: SILVEIRA, Renato de Mello Jorge; RASSI, João Daniel (Org.). Estudos em homenagem a Vicente
Greco Filho. São Paulo: LiberArs, 2014. p. 237-258.

PEREIRA, Júlio A. C. Comentário à lei penal chinesa. Maia: Livros do Oriente, 1996.

PIMENTEL, Manoel Pedro. Advocacia Criminal: Teoria e Prática. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1965.

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*O artigo foi publicado na Revista do Advogado, da AASP, Ano XXXVI, de Abril de 2016, nº 129.

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*Janaina Conceição Paschoal é advogada e professora de Direito Penal pela USP.

AASP

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