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Judiciário: descompasso com a realidade

Não há acórdão sem sentença, e como consequência não há desembargador sem juiz, não há gabinete, sem cartório. Essa entretanto não tem sido a realidade do Judiciário.

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Atualizado em 17 de agosto de 2016 14:17

O Legislativo e o Executivo recebem o poder do povo, através das eleições, enquanto o poder reservado para o Judiciário é emanado da própria Constituição, que determina a seleção de seus membros através de concurso de provas e títulos ou por meio de escolha na formação do quinto constitucional.

Os magistrados, como representantes do Judiciário, são competentes para solucionar os conflitos, instruindo e julgando as ações judiciais nas comarcas e nas varas. Essa atividade demanda tempo, porque envolve advogado ou a defensoria pública, representando as partes; o promotor, na condição de fiscal da lei; o servidor para auxiliar o juiz em todas as fases do processo e as testemunhas, enumeradas pelas partes; para concluir seu trabalho, o juiz dirige audiências, perícias e outras diligências; depois de ultrapassadas essas etapas surge o que os advogados e partes buscam: a SENTENÇA. Aí, se não houver recurso, inicia-se outra atividade do juiz, a execução, ou seja, garantir à parte vencedora o direito assegurado pela decisão.

Se a parte vencida ou mesmo vencedora manifestar interesse de nova análise da demanda, o juiz transfere para o Tribunal, onde estão assentados os desembargadores, para continuar com o trabalho. O desembargador é o magistrado que passou pelas comarcas e varas e foi promovido para o Tribunal, estudando, analisando, reformando ou mantendo a ação desenvolvida pelo juiz. As tarefas de um e outro são profundamente dessemelhantes, porque a incumbência da 2ª instância resume-se tão somente em revisar o que foi feito. Em regra, não há diligência.

Registre-se a excrescência na formação dos tribunais: advogados e representantes do Ministério Público, que nunca julgaram e não passaram pela prática nas comarcas e varas, assumem a condição de desembargador, através do que se chama de quinto constitucional, ou seja, um quinto de todos os tribunais recebem advogados e promotores, selecionados pelos seus pares, pelo Tribunal e nomeado pelo governador do Estado. De um dia para o outro o advogado torna-se desembargador, mesmo sem conhecimento técnico e, às vezes, sem experiência de vida, apesar das exceções nesse cenário. Aliás, esse costume é tão predatório que no quadro de ministros do STF existe apenas um magistrado. Os outros 10 (dez) componentes originaram-se da Advocacia, da Procuradoria ou do Ministério Público.

Desta forma, toda a atividade no processo é resultado do trabalho do juiz; o desembargador só labuta nos autos se houver recurso e ainda assim com pouca ocupação, consistente na análise e revisão do que foi construído pelo magistrado de 1º grau. Todavia, a atenção para oferecer espaço bem decorado de trabalho, com um batalhão de servidores é direcionada para os gabinetes; o juiz exerce sua missão em salas, com alguma constância, em casas velhas, que servem de fórum e dispondo de apenas um assessor.

A conclusão do que se disse acima é que para os desembargadores exercerem sua função torna-se necessária a existência de sentenças, pois sem sentenças não há trabalho para os desembargadores. Mas a tradição e a cultura inverteram os papeis e o juiz carrega o pesado fardo de instruir o processo com a minima estrutura e o desembargador apenas abre o fardo com a máxima estrutura.

Então, não há acórdão sem sentença, e como consequência não há desembargador sem juiz, não há gabinete, sem cartório. Necessária sentença para aparecer acórdão.

Essa entretanto não tem sido a realidade do Judiciário que prioriza a presença de desembargador sem maior preocupação com o quadro de juízes.

Na Bahia, a realidade, através dos anos, mostra que as comarcas e varas nunca estiveram com seus respectivos titulares, diferentemente do que se registra no quadro dos tribunais, onde jamais um cargo de desembargador fica sem o titular por muito tempo. E quando isso ocorre, ainda que seja por dias, é convocado um juiz para substituir a falta do desembargador no Tribunal.

E como a Bahia tem enfrentado essa situação de falta de juízes e de servidores? Fechando comarcas e varas, não fazendo concurso para juiz e para servidores, apesar das aposentadorias em massa; por outro lado, não se tem descuidado de aumentar o número de desembargadores, criando inclusive filial, com quadro completo de servidores nos gabinetes, bem decorados, construindo um majestoso salão do Pleno do Tribunal e deixando as comarcas em casas velhas ou fóruns com gambiarras, goteiras e falta total de higiene.

Essa é a ocorrência que tem desafiado as diretorias que se sucedem no Tribunal de Justiça da Bahia.

O mais enigmático, entretanto, é constatar-se a descontinuidade do trabalho na direção do Judiciário; uma diretoria conquista, através de lei, a instalação de uma comarca em cada município, a outra além de não prosseguir com a implantação de comarcas nos municípios, não nomeia juízes e termina desativando ou agregando as comarcas criadas; nesses últimos quatro anos, desafiaram a lei e desativaram 41 comarcas e 53 varas judiciais, sob o único fundamento de dificuldades orçamentárias.

A Câmara Especial do Oeste, composta por 8 desembargadores foi a invenção de desembargador sem juiz. Registre-se, mais uma vez, não se insurge contra as filiais do Tribunal no interior, mas é-se contra sua introdução, sem se preocupar primeiro com o provimento das comarcas e varas.

O Tribunal de Justiça, na reforma da Lei de Organização Judiciária que já está em discussão deveria colocar um dispositivo, como fez o Rio de Janeiro:

"Art. 11 - .
§ 2º - Ficam mantidas as atuais comarcas do Estado, ainda que não alcancem os indices estabelecidos neste artigo".

Essa providência faz-se necessária a fim de oferecer segurança aos jurisdicionados, aos servidores e aos advogados. Não é justo continuar com as interrupções de planejamento que se tem vivido na Bahia. A Lei de Organização Judiciária diz claramente que "a cada município corresponde uma Comarca", mas o Tribunal, sem maiores estudos, inopinadamente, desativa ou agrega comarcas e varas, desfazendo o que se fez em benefício do cidadão.

Não se tem conhecimento da desativação de qualquer município e muito menos de delegacias de polícia; dessa forma, não se deve fechar fóruns, porque a justiça, como já disse, Bertold Brecht, é o pão do povo.

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*Antonio Pessoa Cardoso é desembargador aposentado e advogado do escritório Pessoa Cardoso Advogados.

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