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Estupro sem contato físico?, por Eudes Quintino e Antonelli Secanho

Estupro sem contato físico?

Assim, como tudo em Direito, principalmente com relação aos novos crimes contra a dignidade sexual, acredita-se que o fato concreto é que deve nortear a interpretação, e jamais o fato isoladamente considerado.

domingo, 21 de agosto de 2016

Atualizado em 19 de agosto de 2016 13:02

Recentemente, o STJ decidiu que não há que se exigir, necessariamente, o contato físico entre o agente e a vítima para que o crime tipificado no artigo 217-A, do Código Penal, denominado "estupro de vulnerável", se configure.

Com efeito, a 5ª Turma do Tribunal da Cidadania acolheu um entendimento que encontra amparo na maioria da doutrina, no sentido de que a contemplação, desde que com a finalidade lasciva, já é suficiente para a caracterização do referido crime, o que afasta a exigência de contato físico entre a vítima e seu algoz1.

Deste modo, não se pretende fazer uma análise deste decisum, mas sim questionar-se as hipóteses, em tese, que poderiam se adequar a um juízo de subsunção.

A catalogação do crime de estupro no Código Penal de 1940 experimentou radical transformação com o advento da lei 12.015/2009, tanto com relação à ampliação dos sujeitos ativo e passivo, como pela inclusão das figuras delituosas previstas no delito de atentado violento ao pudor.

Há uma premissa básica que não se pode, jamais, ser deixada de lado: qualquer que seja o ato praticado pelo agente, deve ser constatada sua especial finalidade: a satisfação da lascívia. Em outras palavras, o agente precisa, necessariamente, procurar satisfazer seu desejo sexual, sensualidade exacerbada, sua libido.

Então, este é o paradigma que deve servir de suporte para a subsunção do fato ao tipo penal do artigo 217-A, do Código Penal.

Partindo desta premissa, tem-se que, de fato, não se revela necessário o contato físico para que o agente demonstre, com a certeza exigida, que pratica atos a fim de satisfazer sua lascívia (atos libidinosos). Necessário se faz ressaltar que a conjunção carnal é uma espécie do gênero "atos libidinosos". Não por outra razão, nossa lei penal fala em "praticar ato libidinoso diverso da conjunção carnal", como forma de prever a modalidade de estupro também para quem pratica qualquer ato que, diverso da conjunção carnal (sexo vaginal), satisfaça sua lascívia2.

Nesse passo, há entendimento pacífico em nossos tribunais que o beijo lascivo (já se definiu como sendo o beijo de "parar a rua") pode caracterizar este crime, deste que acompanhado de elementos que indiquem procurar o agente satisfazer sua lascívia. Ou seja, desde que fique comprovado que o agente praticou um ato libidinoso.

Do mesmo modo, outros atos, considerados mais "simples" que um coito, diversos da conjunção carnal, podem perfeitamente indicar este especial fim de agir. Na citada decisão do STJ, o agente levou uma menina, menor de 14 anos, ao motel, e a obrigou a se despir, sem, contanto, seguir no caminho ignóbil da prática sexual forçada.

Desta forma, revelam-se infindáveis as hipóteses em que fatos concretos possam caracterizar esta espécie de crime.

Por outro lado, não se pode perder de vista que algumas situações, em que pese a repugnância do ato, podem desautorizar a incidência da norma penal.

Isso porque, um fato isolado, desconectado do elemento psíquico-volitivo dirigido para o especial fim de agir, pode perfeitamente refletir apenas uma conduta imoral, mas não antijurídica; ou, então, a ínfima ofensividade da conduta, apta a configurar alguma modalidade das chamadas contravenções penais, como a importunação ofensiva ao pudor, por exemplo.

Outrossim, se o agente, de modo sorrateiro, ou até mesmo em tom de brincadeira, coram populo, sem a malícia necessária, toca as nádegas ou o seio da vítima, ainda que, repita-se, por mais repugnante que a ação se revele, ausente o solus cum sola in solitudinem recomendado pela doutrina, parece não ser suficiente para caracterizar a lascívia do agente, que o faria responder por um crime cuja pena mínima é de 8 anos de reclusão, sujeito ainda à imposição de regime inicial fechado para o cumprimento da pena, de acordo com a situação do caso concreto.

Ademais, o princípio da proporcionalidade obriga ao intérprete que faça uma valoração, como o próprio nome determina, proporcional entre a gravidade da conduta, a lesão à vítima e às hipóteses abstratamente previstas em nossas leis. Repita-se, não se propõe, de maneira alguma, que pequenos abusos, corriqueiramente praticados, especialmente em meios de transporte público, contra as vítimas do sexo feminino, e também contra crianças, passem desapercebido pelas autoridades e permaneçam impunes.

O que se faz necessário observar é a intenção do agente. E, a partir daí, seguir-se o caminho da responsabilização, caso as circunstâncias concretas o indiquem.

Assim, como tudo em Direito, principalmente com relação aos novos crimes contra a dignidade sexual, acredita-se que o fato concreto é que deve nortear a interpretação, e jamais o fato isoladamente considerado. Isto é, uma observação, um beijo, uma apalpada, podem denotar a finalidade do ato libidinoso, mas também podem claramente afastar a aplicação da lei penal.

Tudo, ou nada, irá depender do filtro utilizado pelo intérprete, apto a coar os elementos normativos que podem fazer incidir nossa legislação.

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1 STJ: Estupro de vulnerável pode ser caracterizado mesmo sem contato físico.

2 A alteração do Código Penal, que unificou os crimes de estupro e de atentado violento ao pudor, não faz parte do presente estudo.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp.







*Antonelli Antonio Moreira Secanho
é assistente jurídico no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, bacharel em Direito pela PUC/Campinas e pós-graduação "lato sensu" em Direito Penal e Processual Penal pela PUC/SP.



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