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Autonomia reprodutiva e o aborto, por Eudes Quintino

Autonomia reprodutiva e o aborto

A distância entre a anencefalia e a microcefalia é de ser ponderada juridicamente, sem qualquer açodamento, com a participação de vozes múltiplas da sociedade, para que não fiquem expostas outras causas de abortamento não previstas em lei.

domingo, 11 de setembro de 2016

Atualizado em 9 de setembro de 2016 12:29

A Associação Nacional dos Defensores Públicos (ANADEP) ingressou com Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) perante o Supremo Tribunal Federal, pleiteando o direito das gestantes infectadas pelo vírus da zika a praticar o aborto, além de conferir proteção continuada às crianças com síndrome congênita do zika, uma que a lei vigente prevê somente a proteção às portadoras de microcefalia.

O procurador-Geral da República ofertou parecer encampando juridicamente a pretensão, com o embasamento no Direito reprodutivo da mulher, da sua saúde física e psíquica, além de sugerir a realização de audiências públicas para colher o pensamento da sociedade. Enfatizou: "A autorização legal para interrupção de gravidez em caso de estupro visa proteger a mulher em estado de evidente e excepcional sofrimento e desamparo (o chamado aborto humanitário ou ético). Idêntico nível de desamparo e sofrimento estaria presente no caso de infecção pelo vírus zika, situação que resulta de falha do poder público. A interrupção da gestação no caso de infecção por zika também seria aborto ético ou humanitário, na medida em que protegeria a mulher que sofre por ato omissivo do estado"1.

É indiscutível que o tema, complexo pela sua própria natureza, envolvendo não só o pensamento jurídico, como também interesses da área da saúde, grupos partidários e refratários à proposta, do pensamento religioso e demais tendências, reacende debates encobertos pelas cinzas das recentes e constantes discussões e provoca reações de todas as ordens, com inúmeros desdobramentos. Daí que tratar de tão relevante tema é tarefa difícil para encontrar um denominador que seja pacífico e que traga um razoável consenso. E o próprio procurador-Geral da República, antevendo o terreno movediço, recomendou ao Supremo Tribunal Federal a realização de audiências públicas, oportunidade em que serão colhidas as manifestações de todos os seguimentos sociais.

No mês de abril de 2012, os ministros da mais alta Corte do país, julgaram procedente, contabilizando oito votos a favor e dois contrários, o pedido de liberação do abortamento de feto anencéfalo, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54, tendo como arguente a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde - CNTS. O suporte legal, dentre outros, residiu na dignidade da pessoa humana e o direito fundamental da gestante de realizar a antecipação voluntária terapêutica do parto de feto anencefálico, quando assim diagnosticado por médico habilitado, tendo como parâmetro biológico o critério da morte encefálica.

Pretende-se, na nova ação ajuizada perante a Corte Suprema, aplicar o mesmo entendimento, desta feita permitindo às mulheres grávidas afetadas pelo vírus zika, que se encontram com grande sofrimento mental, a interrupção da gravidez. É indiscutível a insegurança da mulher grávida diante de um quadro que retrata a ineficiência do poder público de combater os criadouros do aedes aegypti, principalmente nas regiões mais carentes, com população mais vulnerável e, consequentemente, com incidência maior da doença. Tanto é que a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas já fez apelo às nações afetadas para que autorizem o aborto, assim como incentivem os métodos contraceptivos.

Mas, ao que tudo indica, a viabilidade da pretensão deduzida agora perante o STF carrega um plus diferenciador daquela da ação julgada com referência ao feto anencéfalo, em que há a inviabilidade do embrião em razão da ausência parcial do encéfalo e má-formação do tubo neural. Nos casos de microcefalia, pelo contrário, o embrião carrega chance de vida (spes vitae), não é caso de patologia letal, embora possa apresentar dificuldades cognitivas, motoras, de aprendizado, em consequência da má-formação cerebral, exigindo cuidados especiais.

Em interpretação mais condizente com o teor da decisão já proferida pelo Supremo Tribunal Federal, é de se entender que a antecipação terapêutica do parto, somente poderá ocorrer quando o feto padecer de graves e incuráveis anomalias que inviabilizem a vida extrauterina, que é o caso da anencefalia.

A distância entre a anencefalia e a microcefalia é de ser ponderada juridicamente, sem qualquer açodamento, com a participação de vozes múltiplas da sociedade, para que não fiquem expostas outras causas de abortamento não previstas em lei.

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1 Janot defende aborto para grávidas infectadas pelo vírus da zika.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp.




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