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O perigo da mordaça

O MP há de se acautelar com relação ao seu modus operandi, porquanto não tem agido com bom senso que exige o seu mister. Sempre que isso não ocorre vêm à baila as chamadas "leis da mordaça", que com certeza trarão um retrocesso para a instituição.

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Atualizado em 30 de setembro de 2016 09:24

O MP há de se acautelar com relação ao seu modus operandi, porquanto não tem agido com bom senso que exige o seu mister. Sei que é muito difícil alcançar o ponto de equilíbrio e sempre que isso não ocorre vêm à baila as chamadas "leis da mordaça", que com certeza trarão um retrocesso para a instituição.

Com efeito, tem sido comum, entre outros exemplos, o fato do representante do MP local ingressar com ação civil pública, objetivando a obrigação de fazer dos municípios, que consiste na adequação de cargos em comissão criados por leis municipais ao artigo 37, incisos II e V, da CF, vale dizer, que retratem atribuições de chefia, direção e assessoramento, com a correta descrição de suas atribuições.

Tais ações, travestidas de declaração de inconstitucionalidade, são processadas em primeiro grau, usurpando as funções do procurador geral de Justiça, a quem compete o ajuizamento das demandas de controle abstrato de inconstitucionalidade das leis. Geram, comumente, Termos de Ajuste de Conduta-TAC lavrados entre as partes sob o manto do judiciário, homologados pelo juízo e, por vezes, referendados pelo Conselho Superior do MP do Estado de São Paulo; cumpridos, dão ensejo à extinção do processo e seu consequente arquivamento, também referendado pelo Conselho Superior do MP; não obstante, mais à frente, o presidente da câmara municipal e/ou o chefe do executivo são surpreendidos com o ajuizamento, pelo procurador geral de Justiça, de ação de declaração de inconstitucionalidade de leis que foram editadas, repita-se, sob a orientação do promotor de primeiro grau, em cumprimento aos suso mencionados TACs, como se o ajuste celebrado em primeira instância, homologado pelo magistrado e referendado pelo Conselho Superior do MP, fosse um chiste.

Em prazo de menos de uma semana, dois casos foram julgados pelo Órgão Especial do TJ do Estado de São Paulo, onde tenho assento como desembargador decano: a ADIn nº 2249029-79.2015.8.26.0000, relator o desembargador João Carlos Saletti, julgado em 14 de setembro de 2016 e a ADIn nº 2036749-26.20168.26.0000, de minha relatoria, julgado em 21 de setembro de 2016. Em ambos, a procuradoria geral de Justiça ingressou com ação direta de inconstitucionalidade de leis que criaram cargos de livre provimento e comissão nos idos dos anos 90, que foram objeto de adequação por meio de termos de ajuste de conduta lavrados nos moldes descritos no parágrafo antecedente.

No julgado sob minha relatoria, por votação unânime, foi afastada a pretensão de inconstitucionalidade da lei que criou cargos de livre provimento em comissão, em cumprimento ao ajuste celebrado entre a Câmara Municipal de São Manuel e a i. promotoria de justiça local, em homenagem ao postulado da segurança jurídica.

Com todas as vênias, à vista de casos como tais que vêm se repetindo em que reclama a procuradoria geral de Justiça a inconstitucionalidade de leis editadas há 10, 15, 20 ou 25 anos ? como no caso de São Manuel?, o que, diga-se en passant, é usual nos feitos de autoria da instituição citada, tenho como necessária a seguinte reflexão.

O MP, como é de trivial sabença, é uno e indivisível, o que equivale a dizer que seus membros se substituem sem solução de continuidade.

Consoante lição de Hugo Nigro Mazzilli,1:

'Diz a CF que são princípios institucionais do MP a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional (art. 127, § 1º).

5.1. Unidade e indivisibilidade

Comecemos com a análise dos dois princípios institucionais do MP, instituídos pela CF : a unidade e a indivisibilidade.

O que significa dizer que o MP é uno e indivisível?

Essas expressões, oriundas da tradição do MP francês, são frequentemente invocadas na doutrina e até na jurisprudência dos tribunais, mas muitas vezes de forma confusa e enigmática. Significaria a unidade que o MP é um só órgão, com uma só direção (chefia)? Significaria a indivisibilidade que o ofício do MP é único (uma só função) e está centralizado nas mãos do chefe do Parquet? Significaria, ainda, a indivisibilidade que o Chefe do MP poderia exercer diretamente qualquer função do MP (avocatória) ou, então, designar livremente qualquer membro da instituição para que o faça, o que garantiria a possibilidade de substituição recíproca entre os membros do MP (designação ou delegação)?
(...)

No seu art. 127, § 1º, a CF apenas transpôs, para seu texto, alguns princípios que já vinham sendo aplicados pela doutrina para referir-se ao MP nacional:

a) Unidade é o conceito que o MP é um só órgão, sob uma só direção (regra válida para cada MP). Mesmo sua chefia, porém, é antes administrativa que funcional, pois seus membros gozam de independência no exercício de suas funções.

b) Indivisibilidade é o conceito de que os membros do MP, ainda quando se sucedam nos mesmos autos, estão a exercer a mesma função, podendo, assim, ser substituídos uns pelos outros, mas não arbitrariamente, mas sim e apenas na forma estabelecida por lei."

Em relação à indivisibilidade, aliás, adverte Marcelo Zenker2 que:

"É de se registrar que, em instâncias diferentes, pode perfeitamente haver a atuação de mais de um órgão e divergência de opiniões entre um membro e outro, como explica Carlos Roberto de Castro Jatahy:
[...] o princípio da indivisibilidade não implica a vinculação de pronunciamentos dos agentes do MP no processo de modo a obrigar que um membro da instituição que substitui outro observe a mesma linha de pensamento de seu antecessor:

Ora, não fosse possível a mudança de opinião do MP em um mesmo processo, em caso de eventual recurso, o órgão de segundo grau funcionaria como um mero repetidor da pretensão recursal deduzida pelo membro do Parquet que atuou perante o juízo a quo, o que seria inadmissível. Aliás, a atuação do órgão de segundo grau é uma clara demonstração de que pode perfeitamente haver mais de um órgão do MP atuando em um mesmo processo sem qualquer afronta aos primados do princípio da indivisibilidade.

Insta ressaltar que essa posição em nada estimula o confronto jurídico entre membros do MP, e nem importa em qualquer prejuízo de caráter processual, até porque o que se defende é que jamais pode haver coincidência entre as fases procedimentais em que se daria o posicionamento divergente dos órgãos da instituição."

Respeitado entendimento contrário, ouso dissentir, seja pelos consectários que norteiam a instituição acima mencionada, seja em razão da segurança que deve permear as relações jurídicas, alçada a princípio geral do direito, sempre que os representantes do parquet iniciem ação com o mesmo objeto.

É perfeitamente possível entendimento diverso entre instâncias, mormente quando se tratar de fala ministerial oriunda de recurso; todavia, quando como nos casos citados, o MP é autor da ação, a meu sentir, tal não deveria ocorrer, embora, repisa-se, tal procedimento é perfeitamente lícito; isso por que a insegurança jurídica exsurge quando vem a lume um termo de ajustamento de conduta (TAC) que passa pelo crivo do promotor de Justiça da origem e pelo magistrado de primeiro grau, sendo certo, inclusive, que mencionado ajuste vem a ser referendado, nos termos do que preleciona a lei, pelo Egrégio Conselho Superior do MP do Estado de São Paulo (composto por 11 procuradores de Justiça). Ora, o que salta aos olhos é que depois de tanto entendimento em determinado sentido, coroado, repita-se, pelo representante da instituição, pelo magistrado da origem, como também pelos 11 procuradores de Justiça que compõem o Conselho Superior da instituição ministerial, venha um escoteiro procurador de Justiça e, malgrado os entendimentos anteriores, propõe a ação com o mesmo objeto.

Ainda que se diga, que teria a procuradoria de Justiça legitimidade para tal desiderato ? e efetivamente o tem?, forçoso é convir que tal conduta inegavelmente traz em seu bojo a chamada insegurança jurídica, circunstância essa que não se coaduna com o espírito do parquet e soa, para mim, como despreparo técnico equivalente a erro grosseiro.

Observo que os membros do MP são contemplados em concurso público de provas e títulos e, ainda que nos dias atuais, por força de mudança das regras que balizam os certames, aboliu-se a fase da entrevista do candidato ? pedra de toque para o "sentir" de seu preparo emocional para abraçar a carreira?, não se pode deixar de exigir que ao lado de sua tecnicidade esteja sua percepção de legalidade, pois, ausente tal percepção, o MP atua em uma zona fronteiriça entre esta e o abuso de direito.

A percepção de legalidade nada mais é que a consciência a quem o operador do direito deve contas.
Consoante escreve Walter Paulo Sabella3:

"Outros doutrinadores destacam que os órgãos do MP devem contas de seus atos à constituição, às leis e à sua consciência, interditando-se aos seus superiores hierárquicos a expedição de ordens a respeito de como agir nos processos em que oficiam. No desenho conceitual traçado por esses últimos, dois aspectos merecem considerações: um, por sua mais adequada completude, e outro por possível impropriedade terminológica:

1. É de maior abrangência o conceito por consignar que a atuação funcional do membro do MP se sujeita não apenas à sua consciência, mas à constituição e às leis. Aliás, nesta ordem: Constituição, leis e, por fim, consciência. E procede esse enfoque, pois por maior que seja a liberdade de consciência do promotor de Justiça, não se estende ela ao ponto de entrar em colisão com as disposições constitucionais e infraconstitucionais, salvo a hipótese de incompatibilidade vertical destas últimas com as primeiras. Mas, como a inconstitucionalidade não se presume ou, por outras palavras, como o que se presume é a constitucionalidade, resulta, também por isso, a adequação da ordem sequencial dos comandos aos quais se sujeita o promotor de Justiça, ou seja, constituição, leis, consciência.

Quando se diz que a subordinação do promotor se estabelece exclusivamente em relação aos ditames de sua consciência, ainda que a afirmativa possa ganhar em vigor estilístico, o fato é que ela perde em rigor jurídico, por induzir a uma compreensão demasiado elástica de seu livre arbítrio. Mostra-se preferível o modo como os doutrinadores mais minuciosos põem foco no princípio, pois destacam a essencialidade da consciência individual como guia de conduta funcional, mas explicitam a extensão em que o livre decidir se exercita, ou seja, com observância aos marcos limitadores dos comandos constitucionais e legais."

Tomando de empréstimo a lição suso colacionada e os fatos aqui narrados, é certo afirmar que as duas condutas, de primeiro e segundo graus, conflitam-se, ferindo postulados sagrados, como o da segurança jurídica que, no dizer de Celso Antônio Bandeira de Mello, "não pode ser radicado em qualquer dispositivo constitucional específico. É, porém, da essência do próprio direito, notadamente de um Estado Democrático de Direito, de tal sorte que faz parte do sistema constitucional como um todo. Enquadra-se, então, entre os princípios gerais de Direito."
4

Como acentua Hugo Nigro Mazzilli5,

"Certo, porém, que há e deve mesmo haver limites para a independência funcional. A primeira a impô-los é a constituição, que prevê a independência funcional como princípio institucional do MP (art. 128, § 1º), mas ao mesmo tempo comete-lhe deveres ligados à defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127 caput). Assim, por exemplo, não pode legitimamente o órgão do MP invocar a independência funcional para violar a seu bel-prazer a ordem jurídica ou para obter fim incompatível com a defesa do regime democrático, ou ainda para preterir a defesa de interesses sociais e individuais indisponíveis. (...)Admitir limites à independência funcional não significa negá-la, e sim assegurar seu efetivo exercício dentro de padrões legais, fundados em supostos éticos e lógicos, sob pena de, não o fazendo, subvertermos as premissas e a destinação institucional do MP. Por isso que o inc. V do art. 41 da lei 8.625/93, referindo-se às prerrogativas dos membros da instituição, sublinha sua inviolabilidade pelas opiniões que externar ou pelo teor de suas manifestações processuais ou procedimentais, nos limites de sua independência funcional. Se fosse absolutamente ilimitada a independência funcional, também seria ilimitada a possibilidade de abuso.

Em si mesma a liberdade, um dos postulados básicos da democracia, sujeita-se também a limites previstos em lei. Não fosse assim, sob o manto da liberdade e da independência funcional, o promotor ou o juiz poderiam arbitrariamente negar cumprimento à própria CF, que é o fundamento não só da ordem jurídica como até mesmo de suas investiduras; ou então poderiam sustentar, sem a menor razoabilidade, apenas fundados em abstrações ou especulações genéricas, qualquer quebra da ordem jurídica. A liberdade e a independência funcionais existem. Mas não se pode invocar levianamente uma ou outra apenas para justificar posições estritamente arbitrárias e meramente pessoais.

Assim, não pode haver liberdade para violar a lei, sob pena de cairmos numa petição de princípios: se em nome de um conceito absoluto de liberdade eu não pudesse cercear pessoa alguma, então eu também não poderia cercear nem mesmo quem violasse a liberdade... Ora, essa interpretação, ainda que pudesse ser sustentada em nome da liberdade irrestrita, importaria em negá-la ao final."

Nos casos acima citados, a inobservância do respeito a tratativas já sedimentadas me faz indagar se é esta a independência funcional que o MP busca. Evidente que não!

Tenho que isso resulta, por primeiro, do abandono a critérios centenários de avaliação nas bancas examinadoras, hoje disciplinados pelo Conselho Nacional do MP que, em nome da transparência, cria mecanismos de avaliação viciados, que contaminam o certame e, mais à frente, a atuação do promotor de Justiça.

Este sistema, que pseudo-atende à chamada "Constituição Cidadã", desatende o objetivo final de todo o trabalho da instituição ministerial e da magistratura, qual seja, o jurisdicionado.

Por tal razão, mudanças têm que acontecer, como vêm acontecendo em países europeus que alteraram critérios de responsabilidade civil para promotores públicos e magistrados. Na Itália, por exemplo, em 27 de fevereiro de 2015, houve a aprovação de nova disciplina da responsabilidade civil dos magistrados6, incluídos os promotores públicos pela lei 18; alterando a lei 117, de 13 de abril de 1988, chamada lei Vassalli, houve mudança de procedimento para o ordinário (antes se resolvia em audiência única), legitimando o requerente a buscar do Estado o ressarcimento de eventual dano causado por conduta lesiva do agente público. Instaura-se, neste caso, um subprocedimento e utilizando-se de critérios de conveniência, o magistrado é declarado suspeito e se abstém de julgar a causa, posto que passa a ser parte no processo.

O artigo 2º da lei Italiana 18/15, diz que aquele que venha a sofrer prejuízo injustificado como resultado de um comportamento, de um ato ou uma ordem judicial postas em prática pelo magistrado com dolo ou negligência grave no exercício de suas funções ou para negação da Justiça pode "tomar medidas contra o Estado para obter o prejuízo financeiro e até mesmo o não patrimonial (dano moral, por exemplo)".7

Não podemos olvidar que a lei de responsabilidade civil dos magistrados italianos foi editada após a operação "Mani Pulite", pois houvesse sido editada anteriormente, certamente haveria cerceamento do direito de jurisdição e atribuição dos agentes públicos, na medida em que o que inicialmente se afigura como controle dos atos praticados com desvio de finalidade, pode significar uma mordaça à atividade jurisdicional.

Com o tempo e se não houver comedimento na atuação ministerial ?e esse comedimento é significativo de agir dentro da mais estrita legalidade, sem alardes, sem se tornar um refém da mídia?, corremos o risco, em mar de calmaria, de modificação legislativa na calada da noite, que venha a cercear o direito dos representantes do MP, impedindo-os de levar a efeito os seus misteres.

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1 Ministério Público. 4ª edição. SP: Malheiros Editores, p.42.

2 "Temas Atuais do Ministério Público. Reflexos Processuais nos Princípios Institucionais da Unidade da Indivisibilidade - Revisitando as Atribuições dos Órgãos de Execução do Ministério Público Brasileiro." Salvador: Editora JusPODIVM, os. 156 e 164

3 "Independência Funcional e Ponderação de Princípios". Revista da APMP, ano XIII, nº 50, Maio e Agosto de 2009.

4 Apud "Segurança Jurídica no Administrativo". Disponível in
www.ambitojuridico.com.br. Acesso em 27/09/2016.

5 "OS LIMITES DA INDEPENDÊNCIA FUNCIONAL NO MINISTÉRIO PÚBLICO". Disponível In
https://www.mazzilli.com.br/pages/artigos/limitesindep.pdf. Acesso em 27/09/2016.

6 De acordo com o sistema jurídico daquele país, tanto o Ministério Público (magistratura de pé), como os juízes (magistratura sentada), fazem parte da Magistratura, tendo em vista que ambos são chamados de Magistrados (Magistrati), circunstância esta que não ocorre no Brasil. Aqui esses mencionados operadores do direito são membros de carreiras distintas e devem agir, cada um deles, no estrito limite de suas atribuições e competências.

7 Note all'art. 2: Si riporta il testo dell'articolo 2 della citata legge 13 aprile 1988, n.117, come modificato dalla presente legge: «Art. 2. Responsabilita' per dolo o colpa grave.- 1. Chi ha subito un danno ingiusto per effetto di un comportamento, di un atto o di un provvedimento giudiziario posto in essere dal magistrato con dolo o colpa grave nell'esercizio delle sue funzioni ovvero per diniego di giustizia puo' agire contro lo Stato per ottenere il risarcimento dei danni patrimoniali e anche di quelli non patrimonial.

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*José Carlos Gonçalves Xavier de Aquino é desembargador do TJ/SP.

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