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O STF e o medicamento de alto custo

Não é o espírito de compaixão que deve ordenar a intervenção estatal e sim a identidade que cada um conserva, que é a identidade relacional com o Estado, em que o cidadão é um ser participante de uma realização corporativa.

domingo, 2 de outubro de 2016

Atualizado em 30 de setembro de 2016 13:37

Era inevitável, em razão da intensa judicialização da saúde que foi se alastrando por todos os tribunais do país, a efetiva participação do Supremo Tribunal Federal para decidir a respeito de fornecimento de medicamentos considerados de alto custo, que não sejam oferecidos pelo SUS ou que não sejam registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O clima de expectativa vem num crescendo e várias manifestações populares foram deflagradas em apoio à causa, que ganhou espaço de destaque na imprensa nacional.

Tanto é que o relator, ministro Marco Aurélio Mello, alterou o voto apresentado anteriormente para acrescentar a possibilidade da importação de medicamentos não fabricados ou comercializados no Brasil, sem registro na ANVISA. O ministro Luís Roberto Barroso defendeu a liberação por decisão judicial em situações excepcionais, desde que atendidos determinados requisitos. O ministro Edson Fachin, por sua vez, sugeriu parâmetros mais rígidos para o fornecimento de medicamentos, elencando também condições para o deferimento. O ministro Teori Zavascki solicitou direito de vista e o julgamento foi suspenso, sem previsão de nova sessão.

Trata-se, na realidade, de um tema delicado, que deve ser analisado sob diversos ângulos, com prudência e cautela. De um lado, a saúde como direito insofismável do cidadão, figurando como dogma constitucional. De outro, a responsabilidade da União, Estados, Distrito Federal e Municípios como entes responsáveis pelo fornecimento de medicamento de custo elevado, sem registro na agência de controle que, pelas reiteradas decisões judiciais, vêm superando a reserva orçamentária para tanto.

Mas a dimensão constitucional vai muito além da obrigação do Estado de patrocinar medicamentos considerados de alto custo e ingressa no campo dos direitos humanos e se finca no princípio da dignidade humana universal, compreendendo uma rede de proteção ilimitada, amparando direitos já conquistados assim como outros derivados do próprio dinamismo social.

Para tanto, buscando um encaminhamento abrangente e mais condizente com o espírito humanitário, recomenda-se a fundamentação filosófica da Bioética. Referida ciência, dentre os princípios que a propulsiona, apregoa o da isonomia, o da igualdade, ou da Justiça, que vem atrelado umbilicalmente ao da beneficência (primum non nocere).

Por este pensamento, se determinada pessoa fizer uso de certo medicamento que produziu o resultado desejado, beneficiando-a, outra, em situação idêntica, seja lá qual for sua condição econômica, merece ser aquinhoada com o mesmo tratamento. A saúde, vista desse patamar, é um direito e não um favor, deferindo-se aos iguais condições iguais, sem discriminação. Cesare Beccaria já observava que as vantagens da sociedade devem ser repartidas entre todos os seus membros.

A Constituição Federal não ungiu cidadãos de primeira e segunda classes e nem criou uma base utópica protetiva, aparelhando as pessoas com os mesmos potenciais. Toda pessoa humana contém, na sua imensa grandeza, o sentido próprio do universo, assim como é depositária de todo o valor da humanidade Se todos são iguais perante a lei, o regramento isonômico não permite outra interpretação a não ser um posicionamento inequívoco em defesa da vida. Não há que se falar em defesa da "pessoa" e sim em defesa da vida, que é o bem mais caro, indisponível, devidamente entronizado num cenário de proteção estatal.

Apesar de todo o avanço da biotecnologia, disponibilizando medicamentos até para as doenças graves e raras, não só para prolongar a vida, mas conferindo ao seu detentor a qualidade condizente com sua dignidade, nem toda população tem acesso aos benefícios, criando uma abissal distorção e um impacto social altamente negativo.

Não é o espírito de compaixão que deve ordenar a intervenção estatal e sim a identidade que cada um conserva, que é a identidade relacional com o Estado, em que o cidadão é um ser participante de uma realização corporativa. Se a convivência é uma parceria com o propósito de solidariedade, esse sentido deve encontrar a expressão máxima na obrigação estatal de tutela da vida humana e não na figura abominável do Leviatã de Hobbes, que afugenta, aterroriza e intimida o cidadão.

Assim, a impressão que se tem, no caso discutido perante a Suprema Corte, se for diagnosticada a doença, rara ou não, com a prescrição médica indicando a utilização de medicamento que tenha ou não registro na ANVISA, que seja produzido por outros países, devidamente homologado pelos principais órgãos reguladores internacionais, dentre eles o Food and Drug Administration (FDA), dos Estados Unidos e a European Medicines Agency (EMA), da União Europeia, negar o benefício ao cidadão é caminhar pela contramão de direção da dignidade humana.

O artigo 24, letra 'c', da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, assim determina: "Os Estados devem respeitar e promover a solidariedade entre Estados, bem como entre indivíduos, famílias, grupos e comunidades, com atenção especial para aqueles tornados vulneráveis por doença ou incapacidade ou por outras condições individuais, sociais ou ambientais e aqueles indivíduos com maior limitação de recursos".

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp.


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