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O controle judicial da discricionariedade técnica e a lista de substâncias entorpecentes da Anvisa

Não seria possível, por meio de decisão judicial, a retirada de substâncias contidas na "Listas de Substâncias Entorpecentes, Psicotrópicas, Precursoras e Outras sob Controle Especial" elaborada pela Anvisa?

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Atualizado em 16 de novembro de 2016 08:14

Introdução

O tema do controle judicial da discricionariedade técnica da Administração Pública - uma das formas mais típicas de ativismo judicial - é expresso atualmente em milhares ações com os mais variáveis objetos, que vão desde concursos públicos e normas da ANATEL à concessão de medicamentos não incluídos em listas elaboradas pela ANS.

Diante desse fato, proporemos a seguinte reflexão: não seria possível, por meio de decisão judicial, a retirada de substâncias contidas na "Listas de Substâncias Entorpecentes, Psicotrópicas, Precursoras e Outras sob Controle Especial" elaborada pela ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária)?

Não adentraremos na questão da (i) legitimidade do controle judicial do mérito dos atos administrativos. Simplesmente nos valeremos de um fato - o deferimento em massa de diversos pedidos que questionam a fundamentação técnica utilizada por agências reguladoras - para avaliarmos a pergunta elaborada no parágrafo acima.

Discricionariedade administrativa e discricionariedade técnica

Antes de levarmos adiante o tema proposto para análise, imprescindível esclarecer - embora de forma sintética - o que se entende por discricionariedade administrativa e discricionariedade técnica.

Conforme ensina Maria Sylvia Zanella di Pietro1, há discricionariedade administrativa:

"quando a lei deixa à Administração a possibilidade de, no caso concreto, escolher entre duas ou mais alternativas, todas válidas perante o direito. E essa escolha se faz segundo critérios de oportunidade, conveniência, justiça, equidade, razoabilidade, interesse público, sintetizados no que se convencionou chamar de mérito do ato administrativo".

Interessante notar que a eminente professora insiste na distinção entre lei e direito; vale dizer, repisando o trecho acima: "escolher entre duas ou mais alternativas, todas válidas perante o direito". Isso significa que o ato administrativo deve obedecer não só a lei em sentido estrito e formal, mas todo o conteúdo axiológico explícito e implícito no ordenamento jurídico.

Diante desse fato, ampliou-se e tornou-se mais complexo o campo de controle judicial do mérito dos atos administrativos, vez que destes não mais se requer a atuação conforme a lei, tão somente, mas conforme valores e princípios.

A discricionariedade técnica, por sua vez, relaciona-se diretamente às agências reguladoras. Entes técnicos por excelência, as agências reguladoras tem como incumbência a edição de uma série de normas administrativas, baseadas em critérios técnicos e científicos. Quando a lei se utiliza de conceitos indeterminados (perigo à saúde, atos nocivos à concorrência, produto tóxico, drogas etc.), cabe à agência reguladora, por meio da discricionariedade técnica, definir esses conceitos.

Novamente nos socorremos das precisas palavras de Maria Sylvia Zanella di Pietro2, ao diferenciar discricionariedade administrativa de técnica:

"No caso da discricionariedade técnica essas alternativas não existem, porque o conceito utilizado é de natureza técnica e vai ser definido com base em critérios técnicos extraídos da ciência. Daí a importância da especialização própria das agências reguladoras".

Percebe-se, assim, que o termo "discricionariedade" na discricionariedade técnica é um tanto quanto impróprio, já que o fundamento do ato administrativo é técnico/científico, passível, portanto, de controle judicial. Tal expressão, inclusive, é criticada por grande parte da doutrina, que creem mais adequado o termo "exercício técnico do poder delegado".

O controle judicial da discricionariedade técnica

Vez que o ato administrativo praticado pela agência reguladora que delimita conceitos indeterminados previstos em lei é embasado por critérios técnicos/científicos, e não por um juízo de conveniência e oportunidade, verifica-se a possibilidade de se discutir sua fundamentação em sede judicial.

De fato, não é incomum que isso ocorra, principalmente na área das telecomunicações e de outros serviços públicos.

No campo da saúde, facilmente se encontram decisões judiciais que, sob a fundamentação de que o rol de medicamentos editados pela ANS é meramente uma cobertura mínima obrigatória, não afastando eventuais remédios comprovadamente mais efetivos, condenam a Administração Pública a prestá-los ao demandante, sem atenção alguma, na grande maioria dos casos, à capacidade orçamentária do ente condenado.

O que nos interessa no presente artigo, porém, é analisar a possibilidade de decisão judicial retirar substância da "Listas de Substâncias Entorpecentes, Psicotrópicas, Precursoras e Outras sob Controle Especial" editada pela ANVISA.

Com efeito, dispõe o inciso II do artigo 2º da lei 9.782/99 que compete à ANVISA "normatizar, controlar e fiscalizar produtos, substâncias e serviços de interesse para a saúde". De outro lado, afirma o parágrafo único do artigo 1º da lei 11.343/06 que "para fins desta Lei, consideram-se como drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União".

Uma das formas pelos quais essa normatização, controle e conceituação de "drogas" se dá, é por meio da já citada lista, atualizada periodicamente por meio de resolução, momento em que diversas substâncias passam a integrar seu Anexo I, enquanto poucas o deixam.

Embora trate-se de uma agência reguladora que, em tese, deveria se pautar por critérios técnicos, verifica-se que a realidade é mais complexa. A ANVISA, nessa atividade, complementa uma norma penal em branco - já que acaba por definir o que se entende por "droga" -, dando-lhe concretude e impactando a política criminal do Estado.

No entanto, já que se trata de um ato embasado na discricionariedade técnica, nada impede, a princípio, a existência de demanda judicial que vise contestar a fundamentação utilizada pela ANVISA para a inclusão/exclusão de determinada substância. Valendo-se de perícia e laudos técnicos, o demandante poderia elidir a presunção relativa de legitimidade do ato administrativo e, caso o juiz convencesse-se do alegado, anularia o ato que incluiu referida substância.

Essa, pelo menos, é a lógica, caso nos apoiemos apenas em questões de direito administrativo.

Contudo, conforme afirmamos alhures, a lista elaborada pela ANVISA é um complemento à política criminal do Estado, que se apoia em eixos não só estritamente legais, mas também valorativos.

Dessa forma, imperioso que o magistrado, ao se debruçar sobre estas questões, não se sustente unicamente em conceitos de direito administrativo, mas atente-se às causas que delegaram à ANVISA, em primeiro lugar, o poder de conceituar "drogas".

Caberia, portanto, que a decisão considerasse não apenas os aspectos técnico-administrativos envolvidos, mas princípios de ordem mais ampla, como a supremacia do interesse público (embora sua existência seja posta em dúvida por minoria doutrinária) entre outros.

Em pesquisa perfunctória, percebe-se que o Judiciário ainda não foi instado, pelo menos de forma relevante, a dirimir discordâncias entre particulares e a ANVISA no que tange a Lista de Substâncias Controladas. Com a atual intensificação, contudo, de certos movimentos que alegam o potencial medicinal de certas substâncias entorpecentes, ou mesmo sua inocuidade, podemos notar que o tema não tardará a ser de grande relevância em futuro próximo.
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1 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade Técnica e Discricionariedade Administrativa.
2 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade Técnica e Discricionariedade Administrativa.
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*Otávio Bueno da Fonseca Filho é advogado do escritório De Vivo, Whitaker e Castro Advogados.

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