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Patente de sobremesa (?)

Louve-se a perspicácia do relator ao desmascarar o artificio do restaurante Paris 6 ao tentar apropriar-se a titulo exclusivo do formato (receita) de uma sobremesa sobejamente conhecida.

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Atualizado às 09:32

Ementa

PROPRIEDADE INDUSTRIAL - Ação declaratória cumulada com pedido de indenização - Sentença que julgou parcialmente procedente a demanda, para declarar a inexistência de obrigação da autora de se abster de utilizar a palavra "gateau" em sua sobremesa denominada "Freddie Gateau", e de servir tal produto com visual e utensílios especificados na inicial, bem como para julgar improcedente a reconvenção - Insurgências de ambas as partes que não merecem prosperar - Requerida que, mediante pedido de marcas mistas e nominativas com as expressões "Grand Gâteau Paris 6" e "Grand Gâteau P6" buscou, de maneira oblíqua, obter a exclusividade de um invento, consistente em receita culinária - Receita que não se enquadra nessa categoria, nem atende aos requisitos legais exigíveis - Inexistência, ademais, de "trade dress" ou conjunto de imagem na sobremesa da ré passível de proteção - Simples colocação de sorvete e creme sobre um petit gateau não é dotado de originalidade e nem pode ter exclusividade - Pedido de indenização por danos morais formulado pelos autores que tampouco merece acolhida - Imputação, pela ré, das práticas de violação de direito marcário e concorrência desleal que consistiu em mero exercício regular de direito - Sentença mantida - Recursos não providos. (TJSP A. Civel n°1114716 - 29.2014.8.26.0100 S. Paulo)

Irreprochável o acordão da 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJ/SP, Rel. Francisco Loureiro, cuja ementa vai acima transcrita.

Litígios de propriedade intelectual entre restaurantes têm surgido com maior frequência, sugerindo a criação de um Restaurant Law, ao lado do novel Fashion Law, tão badalado nos dias atuais.

Quem não se lembra das disputas envolvendo a sobremesa chocolamour? Ou a questão mais recente do Restaurante Antiquarius evolvendo receitas?

Pois o presente acordão aborda problema relativo a marcas (gateau e marcas figurativas que exibem a sobremesa), a alegada concorrência desleal (tradedress) ou, até, o "invento" da sobremesa.

Alguns trechos do relatório do acordão, da lavra do des. Francisco Loureiro, bem esclarecem o litígio:

Fê-lo a r. sentença, basicamente sob o fundamento de que as partes possuem estabelecimentos em locais completamente diversos, não concorrendo diretamente entre si, além do que não é possível à requerida querer monopolizar uma receita de conhecimento público, impedindo que outras pessoas a reproduzam.

No mérito, aduz, a ré em síntese, que a sentença recorrida não deve prevalecer, pois ela detém e controla os direitos sobre o Restaurante Paris 6, que oferece a famosa sobremesa "Grand Gâteau Paris 6", consistente num "bolo colocado em um pequeno recipiente conhecido como "ramequin", com um sorvete inserido na diagonal, tudo acondicionado em um prato maior, com calda e demais ingredientes no topo".

Afirma a recorrente que, diferentemente do que constou da sentença recorrida, não objetiva patentear a sobremesa, mas sim proteger as marcas e conjunto visual de seus produtos.

Do "decisum" os trechos que nos interessam são os seguintes:

A requerida, além de refutar as teses dos demandantes, propôs reconvenção visando justamente a impedi-los de reproduzir ou imitar as marcas "Grand Gâteau Paris 6" e "Grand Gâteau P6", ou violar o conjunto de imagem de sua famosa sobremesa, e obter reparação dos prejuízos de ordem patrimonial e extrapatrimonial suspostamente sofridos.

Diferentemente do que alega a requerida, não pode ela impedir, com base em suposta proteção conferida a marcas depositadas e conjunto de imagem, que a sociedade autora ou terceiro qualquer produza e ofereça à venda sobremesa semelhante à sua, consistente num pequeno bolo servido com sorvete e calda.

A análise do conjunto probatório constante dos autos revela que a ré buscou registrar junto ao INPI marcas mistas e nominativas com as expressões "Grand Gâteau Paris 6" e "Grand Gâteau P6", a fim de obter de maneira oblíqua exclusividade inexistente de receitas culinárias.

Apesar de a requerida negar seu intento de patentear a sobremesa em questão como invenção, uma simples análise da prova dos autos e das manifestações da parte revela que seu real objetivo ao depositar o registro de marcas mistas e nominativas de sobremesa foi conseguir exclusividade de um invento, sendo que a receita culinária em questão não se enquadra nessa categoria, nem atende aos requisitos:

... "engenho, de um ato de criação intelectual especialmente arguto".

No caso em tela, a receita culinária desenvolvida pela ré não consiste em verdadeira invenção, pois não preenche qualquer dos requisitos acima especificados: não é nova ou original, pois mero desdobramento de receita mundialmente conhecida, decorre de maneira evidente do estado da técnica, pois consiste em ligeira variação de fórmula já sabida, além do que não é passível de aplicação industrial.

Ainda assim, a fim de proteger sua "criação" e conferir exclusividade à receita culinária que denominou "Grand Gâteau Paris 6", buscou a requerida o depósito de marcas mistas e nominativas com a mesma expressão junto ao INPI. No entanto, como já dito, trata-se de desvirtuação do sistema que não se pode admitir.

Beira ao absurdo que a ré queira impedir a autora ou terceiros de servir um pequeno bolo num pote com um picolé na diagonal, calda e ingredientes diversos, ao argumento de que se trata de conjunto de imagem original e singular.

Admitir a tese da ré recorrente significaria, por via oblíqua, conferir exclusividade de execução de uma receita absolutamente singela e difundida, consistente de colocar sobre um petit gateau sorvete e creme.

Dizendo de outro modo, seria, pela via transversa do trade dress, dizer que somente a ré recorrente pode preparar a sobremesa.

Seria patentear o que não é patenteável, usando a roupagem do conjunto imagem.

Louve-se a perspicácia do relator ao desmascarar o artificio do restaurante Paris 6 ao tentar apropriar-se a titulo exclusivo do formato (receita) de uma sobremesa sobejamente conhecida.

A propósito do tema já o artigo 8° do Código da Propriedade Industrial de 1945 dispunha:

Não são privilegiáveis:

[...]

5°) a justaposição de órgãos conhecidos, a simples mudança de forma, proporções, dimensões ou de materiais, salvo se daí resultar, no conjunto, um efeito técnico imprevisto.

O fato é que, na hipótese, não estamos diante de um importante desenvolvimento tecnológico, mas sim de um artificio mercadológico disfarçado de patente de invenção.

(Propriedade Intelectual, Newton Silveira, Editora Manole, 2014, p.128).

A propósito de propriedade industrial, Paris 6 é A1 Comércio de Alimentos e Bebidas Ltda e FREDDIE RESTAURANTE é Gelateria e Forneria Ltda de Guarulhos e não o famoso e antigo Restaurante FREDDY de São Paulo (que possui sua marca registrada no INPI sob n° 827622325).

______________

*Newton Silveira é advogado, mestre em Direito Civil, doutor em Direito Comercial e professor senior na pós-graduação da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Newton Silveira, Wilson Silveira e Associados - Advogados.

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