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A recusa de tratamento médico, por Eudes Quintino

A recusa de tratamento médico

A cultura do povo brasileiro apresenta dogmas inquebrantáveis a respeito da vida e a própria Constituição Federal conferiu a inviolabilidade necessária para a preservação do direito à vida.

domingo, 5 de março de 2017

Atualizado em 3 de março de 2017 09:34

Uma mãe invocou a tutela jurisdicional em desfavor do próprio filho com o objetivo de obrigá-lo a se submeter a sessões de hemodiálise, vez que é portador de uma doença que impede o funcionamento normal dos rins. O filho, com 22 anos de idade, que já se negou a realizar o procedimento de transplante em duas oportunidades, entende que a recusa ao tratamento é direito seu.

A Justiça de Goiás, após analisar a pretensão, determinou a realização de perícia médica que resultou conclusiva no sentido de que o filho tinha plena capacidade de entendimento, porém com imaturidade afetiva e emocional, o que determinou sua interdição parcial, com a consequente autorização da hemodiálise1.

Todas as vezes em que um tema com perfil bioético como o relatado bate às portas da Justiça, em razão da inusitada articulação, provoca sempre muitos questionamentos relacionados com a própria complexidade do homem e de sua determinação com relação à vida e à morte.

A cultura do povo brasileiro apresenta dogmas inquebrantáveis a respeito da vida e a própria Constituição Federal conferiu a inviolabilidade necessária para a preservação do direito à vida. Assim, diante destas ponderações, é mais adequado entender que a mãe esteja agindo de forma correta e até mesmo providencial, pois pretende conferir a necessária assistência médica ao filho. Porém, já não é mais detentora da legitimidade para pleitear benefícios em favor dele, em razão de sua maioridade e capacidade para a realização dos atos da vida civil. Mas, não se pode negar também que é difícil aceitar uma conduta passiva da mãe diante da recusa do filho em se cuidar, antevendo até graves consequências.

O imbróglio ganha proporção maior quando vem à tona o princípio da autonomia da vontade do paciente, um dos basilares da bioética, consagrado de forma definitiva no Código de Ética Médica, (resolução CFM 1.931, de 17 de setembro de 2009), que confere a total liberdade de manifestação ao paciente diante das opções médicas apresentadas para o enfrentamento de uma determinada doença, cabendo a ele aceitar uma delas ou a todas recusar, de acordo com seus critérios de conveniência.

O homem, na imensidão dos direitos humanos conquistados, ingressou numa esfera protetiva individualizada, de tal forma que o profissional da área da saúde, que fez o juramento hipocrático, dentre eles o de lutar pela prevalência da vida humana, vê-se obrigado a se curvar diante da manifestação de qualquer direito assegurado ao paciente. O paternalismo, que durante muitos anos imperou na ars curandi, passa agora pelo crivo da Justiça e somente poderá levar adiante o propósito profissional se não ferir as camadas protetivas da cidadania.

Estabelece-se, desta forma, um patamar de Justiça na colidência existente entre a intervenção médica, que seria a recomendada para a moléstia, e a negativa do paciente em autorizá-la, de acordo com a sua capacidade de autogoverno. Com a precisão acadêmica que lhe é peculiar, Gracia, enaltecendo o direito do paciente, enfatiza: "Este é quem tem de dizer o que considera bom para si, não o profissional. Não se pode fazer as pessoas felizes à força. Ou melhor, há que deixar que cada um viva de acordo com sua ideia de felicidade"2. Quer dizer, a decisão do paciente é tão importante que supera até mesmo a recomendação médica, baseada no princípio da beneficência, para a realização de um determinado procedimento que possa produzir resultados satisfatórios, como também a súplica familiar para minar a resistência ao tratamento.

No caso examinado, a Justiça agiu com a cautela necessária. De um lado foi confirmado que o paciente reúne todas as condições de discernimento com relação à sua conduta, embora apresente, por outro, imaturidade afetiva e emocional, circunstância que, por si só, autorizou a medida pleiteada. É racional para entender a gravidade do caso, mas, ao mesmo tempo, ignora o esforço familiar para reverter seu quadro clínico para que possa obter um resultado satisfatório e equilibrar sua saúde.

Mas não se pode dizer que o filho esteja infringindo qualquer conteúdo legal. Pelo contrário. A Constituição Federal, no capítulo dos direitos e deveres individuais e coletivos assevera que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei". A legislação brasileira, que preza a vida como um bem indisponível e merecedor de toda tutela estatal, por sua vez, não estimula a prática do suicídio e muito menos permite a realização do suicídio assistido. Mas, respeita a decisão da pessoa humana diante da recusa de se submeter a um tratamento médico recomendado. Fala mais alto a voz da consciência do paciente do que todo aparato médico colocado à sua disposição. Na realidade, ele não está fazendo a opção pela morte e sim pela não realização de tratamento que considera inconveniente.

É até difícil aceitar esta nova postura sabendo que a recusa ao tratamento poderá acarretar danos maiores à saúde. Mas o divisor agora determinante é justamente a autonomia da vontade do paciente, encartada definitivamente na dignitas hominis. O filósofo italiano Ordine, em seu reconhecido manifesto, fazendo referência a Pico della Mirandola, revela que a dignidade humana baseia-se no livre arbítrio e proclama que "quando Deus criou o homem, não podendo atribuir-lhe nada específico, porque tudo já havia sido concedido aos outros seres viventes, decidiu deixá-lo indefinido, para conceder a ele mesmo a liberdade de escolher o seu próprio destino"3.

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1 Mãe luta na Justiça para obrigar filho a fazer tratamento que pode evitar morte.

2 Gracia, Diego. Pensar a bioética: metas e desafios. Tradução de Carlos Alberto Bárbaro. São Paulo: Centro Universitário São Camilo; Loyola, 2010, p. 313.

3 Ordine, Nuccio. A utilidade do inútil: um manifesto. Tradução Luiz Carlos Bombassaro. Rio de Janeiro: Zahar, 2016, p. 155.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp.

 

 


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