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Uma arbitragem mortal - Trilogia

Nesta fábula o autor cuida de alguns dos aspectos essenciais da arbitragem.

quarta-feira, 29 de março de 2017

Atualizado em 28 de março de 2017 08:36

O paciente encontrava-se sozinho em seu quarto na UTI de um hospital. O médico acabara de sair e lhe dera uma notícia nada boa. Depois dos preâmbulos de praxe e dentro do acordo que haviam feito no sentido de nada ser escondido, o médico dissera ao paciente que ele teria um horizonte de vida de um a dois meses, dependendo de como evoluísse (ou pior, involuísse) a sua situação de saúde.

- Entre um a dois meses?

- Isto mesmo. E não há mais nada que possamos fazer. A hemodiálise está começando a não resolver o seu problema e o seu coração está muito fraco. Continuaremos fazendo tudo o que for possível, inclusive o milagre de um duplo transplante de rins e de coração, se surgirem órgãos compatíveis. Mas não sei se seu organismo aguentaria uma intervenção cirúrgica como essa.

- Obrigado, doutor. Pode deixar que eu falarei com a minha família. Enquanto isso não diga nada.

Logo depois o enfermeiro entrou no quarto e levou o paciente para o centro de hemodiálise, onde passaria um bom tempo tentando purificar o seu sangue. Ali enquanto a máquina trabalhava, o paciente ficou ruminando os últimos acontecimentos. De volta ao quarto e já em sua cama, apertou a campainha chamando o enfermeiro de plantão. Sabia que era a hora do Samuel.

- Bom dia, dotô, cumprimentou o enfermeiro. Como vai essa força?

- Que força nada, Samuel, se não acontecer nada você vai ficar livre de mim não demora muito. Mas alguma coisa vai acontecer sim e você irá me ajudar.

Durante o tempo de sua já longa internação, nascera uma amizade entre o paciente e os enfermeiros e no tempo em que podiam, conversavam bastante sobre muitas coisas.

- Samuel, me diga uma coisa, tem gente aí que está chegando nos "finalmente"?

- Tem, dotô, a dona do 11. O médico já avisou a família que ela se vai a qualquer momento. Não voltará do coma e o coração dela está por um fio. Ela está sempre sozinha porque a família já perdeu as esperanças e o pessoal dela somente passa por aqui no horário da noite, se revezando. Mas por que?

- É que eu tive uma ideia. Quando a situação chega perto do clímax os aparelhos dão um alarme, não?

- Sim. É apito por todo o lado.

- Então quando isto acontecer e for o seu plantão, você lá no quarto 11 lerá em voz alta o que estará escrito em um papel que vou lhe entregar. Haverá alguém ouvindo. Só isto. Não se preocupe. Não é qualquer coisa espírita. É somente um recurso jurídico que vou dirigir a uma certa velha senhora.

- Dotô, o senhor está me assustando.

- Que nada Samuel, você já viu por aqui coisas muito piores. Me coloque na poltrona e me dê o meu laptop.

Durante o resto do dia o paciente ficou trabalhando no laptop e fez o mesmo acordo com os demais plantonistas da UTI. No momento em que a paciente do 11 exalasse o último suspiro seria lido e voz alta o texto do papel de que cada um receberia uma cópia. Nele estava escrito:

"Ilustríssima Senhora Morte:
Por meio deste instrumento particular fica V.Sa. intimada para a instalação de uma arbitragem com o fim resolver a questão da vida (ou da morte) e da saúde do signatário, nos termos do art. 9º, § 2º da Lei de Arbitragem, devendo V.Sa. fazer o devido contato no quarto 17, para o fim da assinatura do competente compromisso arbitral.
São Paulo, (...) de (...) de (...)
Ass.
O Paciente".

Passados alguns dias, a internada do 11 deixou este mundo tão quietinha como a luz de um candeeiro que se apaga lentamente quando o pavio vai se acabando. Foi no plantão do Samuel que, um pouco branco de medo, entrou no quarto do paciente e disse que havia feito o combinado e lhe devolveu o papel que havia recebido.

- Obrigado, Samuel disse o paciente. Agora só resta esperar.

- Esperar quem, perguntou o enfermeiro?

- Depois você saberá. Agora vou dormir. Estou um pouco cansado.

Depois de algum tempo o paciente sentiu uma presença no quarto e ao lado de sua cama estava uma senhora elegante e de boa presença, na casa dos cinquenta ou sessenta.

- Boa tarde, senhor! Isto é bastante inusitado, mas muito fiquei curiosa com o sucedido. Foi a primeira vez que aconteceu de alguém pedir uma audiência prévia comigo e logo para requerer uma arbitragem?

- Boa tarde, D. Morte, ou devo chamá-la por outro nome, respondeu o paciente? E onde está sua famosa roupa preta e sua foice?

- Pode ser D. Morte mesmo, não me importo. Quanto à roupa e à foice, trata-se de lenda urbana. Me apresento conforme a ocasião. Às vezes sou horrenda, às vezes sou linda e desejável. Mas a que vem isto?

- Quanto tempo em tenho de vida? Meu médico disse que viverei entre um ou dois meses apenas. É isto mesmo?

- Não costumo dar informações sigilosas aos meus clientes, mas já que se trata de situação nova, é isto mesmo.

- Então vamos prosseguir com o meu pedido de instauração de uma arbitragem ad hoc. Aquele documento que o Samuel leu para a senhora é uma convocação para a assinatura entre nós dois de um compromisso arbitral. A senhora sabe o que é uma arbitragem ad hoc?

- Claro que sei. O que eu não aprendi durante todos esses últimos milênios? Muitos advogados passaram pelas minhas mãos. Trata-se de uma alternativa para solução de conflitos entre particulares. E ad hoc vem do latim e quer dizer para esta finalidade, ou seja, trata-se de uma roupa sob medida, diferente da arbitragem institucional que é do tipo prêt-à porter, ou seja, um pacote pronto a ser comprado em uma câmara de arbitragem. Mas uma arbitragem entre nós dois para que?

- Porque eu vou requerer nesta arbitragem a anulação do decreto da minha morte, juntamente com o acréscimo de mais vinte anos de vida com saúde e que quando eu morrer seja passamento do tipo dormiu e acordou morto.

- Mas a arbitragem é destinada a direitos patrimoniais disponíveis e sua vida não preenche esses requisitos.

- Claro que sim, eu posso resolver me matar, não? Então tenho direito disponível sobre a minha vida. A mesma coisa com relação à minha saúde: posso beber até cair no chão; fumar até ficar verde e morrer de câncer; varar noites sem dormir em farras e assim arruiná-la; e posso gastar todo o meu dinheiro no jogo. Ou, de outro lado, cuidar bem da minha saúde e do meu dinheiro. A livre escolha - e, portanto, o meu direito - é minha. E sobre a questão patrimonial, se a vida das pessoas não tem um valor a esse título, por que fazer seguro de vida e por que tantos herdeiros mataram tantas pessoas, inspirando tantos romances policiais?

- São argumentos, afirmou a D. Morte. Mas isto abre um precedente perigoso e eu preciso consultar o meu superior. E estou atrasando o meu trabalho. Tem muita gente esperando para ser levada.

- Um pouco de demora não faz mal a ninguém, disse o paciente. Tenho mais alguns pontos a colocar para serem apresentados ao seu Chefe. Tem que ser arbitragem por equidade e não de direito.

- Por que, indagou a Morte?

- Porque com esses milhares de leis jurídicas e morais que existem por aí, quem é que, mesmo agindo de boa-fé como eu, não quebrou algumas ou até mesmo muitas?

O senhor mostra-se ser um pouco presunçoso. E o que pretende a título de arbitragem por equidade, redarguiu a vetusta senhora?

- É fácil! Está tudo resumido no velho ensinamento do Direito Romano que a senhora deve conhecer muito bem: "Honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere"(para quem não sabe,"viver honestamente, não prejudicar ninguém e dar a cada um o que é seu"). Para mim isto representa a essência da equidade.

- E como iremos instituir essa arbitragem perguntou a Morte?

- Eu sugiro um tribunal de três árbitros, que dá mais segurança. Claro que temos de procurar um critério de escolha de árbitros imparciais. Se eu escolher um anjo bom e a senhora optar por um anjo mau o voto deles já está definido. Além disto, eles jamais chegarão a concordar sobre a escolha do terceiro árbitro que será o presidente do Tribunal e, portanto, com voto de Minerva, decisivo no caso de empate.

- Mas qual o critério, afinal?

- Faço a seguinte sugestão: qualquer do povo. O Samuel no dia da sua folga irá até uma agência de empregos (tem uma aqui bem perto) escolherá entre as pessoas que ali estiveram duas para serem árbitros e elas escolherão o Presidente.

- Até vejo a cena, disse a Morte, será muito engraçada: "Vocês dois desejam ser contratados para árbitros em um caso?". É claro que eles pensarão que o convite é para uma partida de futebol e eu sei que esta piada já é bem antiga.

- O Samuel poderá convidá-los para um café e irá explicar-lhes a coisa bem direitinho. E eles aceitarão, principalmente porque o pagamento será muito bom.

- Quanto você pretende que os árbitros recebam por esse trabalho e quem arcará com as consequências, perguntou D. Morte? Eu é que não. Não tenho dinheiro. Meus mortos não deixam heranças para mim.

- Eu pago tudo. Pretendo oferecer cem mil reais para cada árbitro. Acho que será bom para eles e justo para o meu caso. Se a senhora perder, sua condenação será suspender seu trabalho por um mês inteiro, no mundo todo. O local da arbitragem será aqui no meu quarto.

- Bem que eu preciso de umas férias. Como disse, estou atrasada. Volto para o trabalho e trarei a resposta em dois dias, depois de consultar a Administração Superior.

- Por que não amanhã mesmo? O tempo está passando rápido, disse o paciente.

- Porque amanhã não tenho qualquer compromisso marcado neste hospital.

- Paciência, até depois de amanhã então, despediu-se o paciente.

(O leitor aguarde paciente o próximo capítulo. Vamos a um intervalo para os nosso comerciais)
_____________

A primeira parte desta narrativa (Migalhas de 29.03.17) terminou quando a senhora Morte combinou com o paciente que faria uma consulta à Administração Superior a respeito do insólito pedido da realização de uma arbitragem para o fim de resolver questões ligadas à morte do interessado, então prevista para um horizonte muito curto à sua frente. É hora de voltarmos aos fatos ocorridos desde então.

Como acontecera da última vez, de repente o paciente sentiu a presença da Velha Senhora, antes mesmo de vê-la. Desta vez ela vestia um costume de um rosa discreto e na lapela do seu casaco notava-se uma flor de um branco imaculado.

- Boa tarde, Senhora, seja bem vinda, ainda que não muito na verdade, disse o paciente. Roupa nova, não?

- É que acabei de passar pelo quarto de um recém-nascido. Achei essa roupa apropriada.

- E a Senhora não sente qualquer remorso nesses casos?

- Não sou dada a esses luxos. Além disso, do jeito que está este mundo, eu sou a melhor solução. Melhor assim do que crescer em meio a tanto sofrimento.

- Discordo, redarguiu o paciente. A esperança nunca morre. Então, como ficamos?

- Estou autorizada a prosseguir. O Chefe está curioso para saber qual será o resultado. Se bem que ele já sabe, claro.

- Eu esperava por isto. Preciso apenas de dois dias para organizar as coisas. O Tribunal Arbitral já foi escolhido pelo Samuel. Depois de amanhã estará bom para a senhora?

- Essas paralisações do meu trabalho me matam. De acordo. Vamos adiante.

- Vamos marcar às 9 horas. Tudo bem? Depois informarei o local da audiência. Mas precisamos estabelecer os termos. A minha sugestão é a seguinte. Será tudo verbal. Não precisamos de Termo de Audiência ou de Carta de Missão escritos. Fica tudo combinado no fio do bigode. Depois que o Tribunal Arbitral declarar que a audiência está instalada eu começarei com as minhas Alegações Finais com direito a meia hora de duração. A Senhora responderá no mesmo tempo. Depois eu apresentarei minha Réplica em quinze minutos e a Senhora fará a Tréplica também em quinze minutos. Em nossas falas não interromperemos um ao outro. A qualquer momento o Tribunal Arbitral poderá fazer perguntas, devendo ficar parado o relógio enquanto isto acontece. Não haverá testemunhas. Pericias só post mortem, há, há! Em seguida o Tribunal Arbitral terá meia hora para se reunir e depois dará a sentença que será definitiva. Eventualmente cada um de nós poderá pedir o suprimento de omissões, contradições ou incompletudes da sentença. O Tribunal Arbitral terá quinze minutos para responder, encerrando-se o processo com o resultado definitivo. Quem perder cumprirá a sentença de boa fé. Devo lembrar que se trata de arbitragem por equidade. Alguma observação?

- Do meu lado nenhuma. E eu sempre cumpri a minha palavra. Que sobre isto não reste dúvida. Meus clientes jamais se queixaram. Mas preciso ir. Tenho muito que fazer.

Depois que a Vetusta Senhora se foi, o paciente começou a tomar as providências necessárias para a audiência marcada. Não precisamos enfadar o leitor com a descrição de tudo o que aconteceu. Basta dizer que as coisas ficaram muito facilitadas porque durante a sua longa estadia naquele hospital o paciente fizera amizade com um dos diretores. O lugar da audiência seria uma das salas especialmente reservadas para as famílias de pacientes em risco iminente de deixar esta vida, as quais podiam contar com ajuda psicológica e/ou religiosa conforme desejassem, em um lugar recôndito e tranquilo.

No dia e hora designados, todos os participantes encontravam-se presentes na sala que havia sido preparada para a audiência. Antes disto, bem cedo pela manhã quando o paciente tomava café, o enfermeiro Samuel disse que precisavam conversar.

- O que foi, perguntou o paciente?

- Preciso lhe contar uma coisa, dotô. Quando eu fui procurar as pessoas para serem árbitros, não tive coragem de dizer a verdade. E nem eu mesmo até agora acredito em tudo isto. Então eu falei para eles que se tratava de uma peça de teatro, em que eles seriam atores.

- Samuel, você me traiu, disse o paciente enfático!

- Dotô, desculpe, mas o povo na agência de empregos ia achar que eu estava maluco. Eu até poderia ser mandado embora do hospital se alguém me denunciasse.

O paciente coçou a cabeça por uns instantes e disse:

- Acho que foi até melhor mesmo. Assim eles se sentirão mais à vontade. E a execução da sentença qualquer que seja não dependerá de qualquer medida dos árbitros. O enforcement virá de cima. Mas então o dinheiro prometido seria muito alto para apenas uma breve encenação.

- Dotô, eu ofereci bem menos e mesmo assim será uma boa grana para os três.
Na pequena sala estavam todos reunidos: partes, árbitros e o enfermeiro Samuel que funcionaria como secretário e copeiro. A Inefável Senhora viera vestida com um terninho cinza, blusa branca e sapatos altos pretos. Em seu pescoço brilhava um colar de pedras de cor verde, azul, vermelho, amarelo e negro.

- De cinza hoje, perguntou o paciente?

- Sim, respondeu a Ré. Cinza é a cor da indefinição, não é mesmo? Não sei o que acontecerá neste dia.

- E o colar?

- Representa os resultados prováveis do julgamento: amarelo, cuidado; verde, esperança; negro, seguirei em frente; azul e vermelho, um dos seus dois destinos finais, caso perca a causa.

Os três árbitros (José, Pedro e Antônio, vamos chamá-los assim. Antônio era o Presidente) mostravam-se um pouco nervosos e inquietos, mesmo depois que o paciente lhes deu todas as instruções necessárias. Chegou, então, depois das formalidades de praxe, o momento das Alegações Iniciais do paciente.

- Senhores Árbitros, disse ele, serei breve e objetivo. Este Tribunal Arbitral foi requerido para mudar a sentença de morte que pesa sobre a minha cabeça, por motivo de doença incurável, a cargo da Requerida aqui presente (Senhora Morte). Segundo o meu médico, tenho entre um a dois meses de vida, o que foi confirmado pela Ré. Desejo reverter essa decisão, tomada em âmbito superior, do qual ela é o instrumento de execução. Este é o meu primeiro pedido, ao qual está ligada uma extensão da minha vida por mais vinte anos. Terceiro ponto: quando eu morrer, bem lá na frente, desejo uma morte tranquila, sem dores e sem sofrimento, o apagar de um passarinho.

Enquanto o paciente falava, os árbitros se entreolhavam sem saber muito bem qual deveria ser a sua deixa naquela trama.

- Senhor paciente perguntou então Antônio, Nós vamos ouvir tudo o que for dito aqui e daremos uma sentença a seu favor ou contra. E depois? A peça termina?

- Sim. O enredo estará definido, respondeu o paciente, pensando uma coisa, enquanto os árbitros pensavam em outra.

- Prosseguindo, disse o paciente, trata-se de uma arbitragem a ser decidida com fundamento na equidade. Este Tribunal Arbitral analisará os argumentos que passo a expor. Na verdade, eu desejo que no meu caso seja aplicada uma solução de justiça equitativa. Mas antes de expor os meus pontos sobre a matéria de fundo, desejo reforçar o que já disse sobre o aspecto de versar o meu pedido sobre bens patrimoniais disponíveis. Como disse, posso dispor da minha vida e outros (como assaltantes que matam para roubar) também podem fazê-lo. Posso atentar a favor ou contra a minha saúde. Posso preservar o meu patrimônio ou dissolvê-lo inteiramente em uma mesa de jogo. Posso fazer um seguro de vida ou deixar que os herdeiros se virem sem uma previsão em tal sentido. Não há dúvida, portanto, quanto a este aspecto.

O paciente acomodou-se melhor em sua cadeira e prosseguiu.

- Durante toda a minha vida eu tenho procurado ser honesto e não lograr qualquer pessoa em relação aos seus direitos. Pelo contrário, sempre procurei reconhecer e agir em relação a cada um segundo o seu merecimento. Posso ter falhado em um ou outro ponto, mas quando descobri que assim havia agido eu prontamente procurei reparar o prejuízo causado. Não fiz diferença entre rico e pobre; preto ou branco; letrado ou analfabeto; católico ou budista; homem ou mulher; criança ou adulto. Ajudei muitas instituições. Posso muito ainda fazer pelos outros e para isto preciso de mais tempo.

O paciente tomou um gole de água e prosseguiu.

- Além disto, pensando em mim mesmo. Na idade em que me encontro, cheguei a um tempo de tranquilidade, podendo me dedicar mais à minha família e aos meus amigos. E olhe que ainda tenho tantos livros para ler, tanta música para ouvir, tantos lugares para conhecer. Tomando a equidade como uma forma de retribuição da prática da justiça, vejam que injustiça está presente em se antecipar a minha viagem definitiva. Enquanto muitas pessoas sobram neste mundo pelo seu extremo egoísmo e por sua inutilidade, tenho certeza de que nele eu farei alguma falta. Por isto eu peço que os meus pedidos sejam julgados procedentes.

Outros argumentos foram apresentados pelo paciente ao Tribunal Arbitral, mas os acima reproduzidos formaram o cerne de suas pretensões. Nada tendo para perguntar, o Tribunal Arbitral passou a palavra para a D. Morte.

- Prezados Senhores, esta arbitragem é um total absurdo. Preliminarmente eu sou parte ilegítima neste processo. Não é contra mim que o paciente deveria tê-la ajuizado. Eu não sou o responsável pelo fim da vida das pessoas. Sou apenas aquela que recolhe suas almas e as encaminha para os seus respectivos destinos. Sou a bala que mata, mas não sou aquele que puxa o gatilho. Obedeço às ordens que recebo sem questionar. Trato todos igualmente, tanto como o paciente diz que fez em relação aos seus semelhantes. Levo comigo no mesmo dia um imperador e o mais miserável dos mendigos, se assim sou ordenada. Deixo um inocente e encaminho um culpado. Não faço juízos de valor. Outra coisa: eu não existia, fui inventada no dia em que Caim matou Abel. Portanto, eu mesma fui criada pela ação do próprio homem e desde então minha atuação depende de um comando superior que assumiu a gestão do negócio. Não sou autônoma.

D. Morte levantou-se de sua cadeira e caminhou um pouco no espaço da pequena sala - Não me sinto bem quando estou parada, explicou. E deu continuidade às suas alegações.

- Por outro lado, não é verdade que o objeto desta arbitragem corresponda a um campo de direitos patrimoniais disponíveis. O paciente até poderia ser vendido como escravo que isto não lhe daria razão. Se ele der cabo de sua vida ou arruinar sua saúde ou o seu patrimônio, tais atos não se encontram no campo do comércio, digamos assim. A vida e a saúde colocam-se no plano da dignidade humana. E a existência de patrimônio é acidental. Milhões de pessoas não possuem qualquer bem, além da própria vida. E se ela não é respeitada, a culpa está na maldade humana.

A Antiga Senhora estava bastante agitada, andando de lá para cá, falando mesmo sem olhar os árbitros.

- E do ponto de vista do mérito, o que o paciente alegou não subsiste. No fundo, se é verdade tudo o que ele disse sobre o seu comportamento, não fez mais do que sua obrigação. Afinal de contas o dever principal de cada pessoa na vida em sociedade depende de um mandamento, amar o seu próximo como se ama a si mesmo, tirando o caso daqueles que se matam porque se amam demais. E quando se trata de um mandamento, então o julgamento é pela lei e não por equidade. E o que ele deseja, no fundo, é de natureza egoísta e não altruísta como ele afirma. Ele quer para si mesmo o benefício da vida para dividi-la com sua família e amigos; para ler; para ouvir música; e para viajar. E se afirma que ajudará outras pessoas, como disse que tem feito, mais uma vez eu enfatizo, não fará mais do que sua obrigação na sociedade em que vive.

Os árbitros e Samuel estavam como que embasbacados diante da veemência da Requerida. E para nós, ou era uma grande atriz ou acreditava mesmo em tudo o que dizia.

- Senhores membros deste Tribunal Arbitral, a pretensão do Autor se deferida irá desequilibrar todo o sistema da sociedade humana. Pela mesma regra da equidade então qualquer pessoa terá direito a suspender a sua sentença de morte para que se mantenha mais tempo no bom caminho ou tenha outra oportunidade para arrepender-se e mudar de rumo. Não haveria mais passamentos. Ou quase nenhum. Eu ficaria desempregada ou em regime de free lancer, sem carteira assinada. Outro efeito seria o da superpopulação da terra e a rápida perda de sua sustentabilidade para alimentar tanta gente. Daí que somente morrendo pessoas aos milhões é que a situação voltaria à normalidade. Tal como a peste negra, que teve o seu lado bom. Mas isto seria, portanto, um paradoxo. Insisto, portanto, em que todos os pedidos do Autor sejam julgados improcedentes.

Caros leitores, eu sei que desejam conhecer o resultado do julgamento, mas como antes teremos a réplica, e a tréplica, convém parar com a narrativa neste ponto, dando-lhe fim na próxima oportunidade.

_____________

Caro leitor, o caso está chegando ao fim e retomamos a narrativa pela réplica do paciente. Antes disto houve uma pausa e todos os presentes confraternizaram educadamente ao lado de uma mesa na qual havia sido colocado um gostoso lanche que constava de salgadinhos, bolos, doces, sucos, refrigerantes e café. É sabido que no campo da arbitragem o fair play entre partes, advogados e árbitros é um princípio que sempre deverá regê-la, pois seu objetivo é a busca da verdade, animosidades à parte. Ninguém conversou sobre qualquer aspecto do processo, tendo tratado apenas de amenidades, o que no Brasil atual representa uma grande dificuldade e um único assunto que normalmente seria trivial, ligado a um posto onde se lava carros a jato. O paciente comeu e bebeu de tudo porque qualquer que fosse o resultado do julgamento, a dieta não teria mais sentido para ele.

Pouco depois, tendo os participantes retornado aos seus lugares, o paciente tomou a palavra para iniciar a sua réplica.

- Prezados senhores árbitros, tratemos inicialmente os pontos colocados pela Requerida. Claro que ela é parte legítima neste processo arbitral. Minha relação direta é com ela mesma e, se ela tem um monopólio inerente ao seu campo trabalho, concertado com terceiro, isto não me diz respeito. Se ela desejasse, poderia ter requerido o ingresso do seu Chefe como parte interessada ou até mesmo alegar que se trataria de parte relacionada, assunto sobre o qual este tribunal arbitral deveria então resolver. Mas não o fez e o seu eventual direito neste campo, portanto, está precluso. O fato da sua alegada imparcialidade a respeito de quem leva ou deixa nesta terra é irrelevante na presente arbitragem. Apenas observo que ela tem mais trabalho com pobres do que com ricos, mas não discutirei as causas dessa situação.

- Não repetirei argumentos a respeito da patrimonialidade e disponibilidade do meu direito, o que para fim está suficientemente provado. E, considerando-se que vivemos em uma sociedade extremamente egoísta, a prova de que agi com bondade e misericórdia em relação ao meu próximo mostra que consegui superar de forma eficaz e benfazeja a índole malévola que caracteriza o nosso DNA comportamental. É uma vitória pessoal, digna de merecimento, sou obrigado a dizer em relação a mim mesmo. Eu poderia ter tido o melhor sítio em Atibaia ou o melhor apartamento no Guarujá, mas preferi condições mais modestas para o descanso do meu corpo cansado. Meu único luxo foram os meus livros e algumas viagens que fiz ao exterior apenas com o intuito de conhecer a diversidade de culturas que formam o nosso mundo e para compreender melhor a sociedade em que vivemos. Neste sentido, tenho direito ao deferimento das minhas pretensões dentro de um julgamento por equidade.

- De outro lado, não se trata de pedir que a Ré perca o seu emprego e, com isso, fique subvertida a ordem que reina na terra ("ordem", tem até graça!). Mas eu fiz o meu pedido e outras pessoas se desejarem façam o mesmo. Para este efeito não tenho procuração da humanidade.

- Finalmente, eu trago um argumento definitivo: requeiro a aplicação de um precedente. Se não sabem os ilustres árbitros porque não são experts no métier jurídico, especialmente quanto ao direito anglo-norte-americano, afirmo que se trata de uma decisão tomada anteriormente por algum tribunal que se torna de adoção obrigatória nos futuros julgamentos de casos idênticos.

- Cerca de sete séculos antes de Cristo, reinava o rei Ezequias em Israel (mais precisamente no Reino do Sul ou de Judá, com capital em Jerusalém). Um dia, quando estava doente, Deus mandou avisá-lo por meio do profeta Isaias que ele não seria curado e que deixasse seus negócios em dia porque era chegado o tempo da Ré (ou seja, de sua morte). Tendo o profeta ido embora, aquele rei virou-se no seu leito para o lado da parede e fez um pedido: "Ó Senhor, lembra-te como sempre me esforcei por te obedecer e te agradar em tudo o que fiz". Tendo ouvido esta petição, o Senhor mandou naquela mesma hora que Isaias retornasse e dissesse ao monarca que ele havia sido atendido e que seria curado, tendo se lhe dado mais quinze anos de vida.

- Este é o meu precedente. As lágrimas que escorreram durante estes últimos meses pelo meu rosto provam que tenho repetido o mesmo pedido daquele rei até a exaustão e, não tendo sido ouvido até o momento, requeri a presente arbitragem. E aqui termino a exposição do meu caso.

Os presentes estiveram completamente silenciosos durante a defesa do paciente, notando-se que os árbitros se sentiram tocados pelas palavras daquele. Logo em seguida a Senhora Morte tomou a palavra para fazer sua tréplica.

- Senhores membros deste Tribunal Arbitral. Ainda que a situação pessoal do Requerente possa ser considerada bastante triste, aqui não é lugar para sentimentalismos. Não tem qualquer árbitro o direito, mas sim o estrito dever de aplicar os princípios que devem reger seu julgamento. Neste caso a equidade, que não pode ser confundida com a vontade de se conceder ao Autor um benefício indevido sob aquele título. O paciente ao recorrer à equidade neste caso está desejando fugir à aplicação da lei, que existe e é vigente desde que eu surgi neste planeta. E não se esqueça de que os tribunais arbitrais têm sido acusados de condescendência, aplicando penas menos graves quando sentem os julgadores que o peso da condenação poderá ser muito grave para o perdedor. Não se trata disto. Lei ou equidade (a verdadeira), cada uma delas deve ser aplicada em toda a sua extensão, conforme o caso, sob pena de desmoralização do instituto da arbitragem.

- O precedente invocado pelo Requerente não tem lugar neste caso. A cura e a sobrevida do finado (finalmente) Ezequias não estiveram fundadas na equidade e muito menos na lei. Sua base foi a graça, princípio que sempre regeu o relacionamento entre meu Superior e a raça humana. Nas relações com o Conselho Máximo de Administração cada indivíduo tem um tratamento de natureza particular e não se pode discutir o mérito das orientações que são tomadas particularmente quanto a cada ser humano. É estabelecida uma determinação de transporte para o destino final e eu a cumpro. E, somente para argumentar, se tal precedente pudesse ser aqui aplicado, então o médico que anunciou a doença e morte do paciente seria unicamente aquela mesma pessoa responsável por trazer a boa nova da sua cura, tal como foi o papel do profeta Isaias. Senhores membros do Tribunal Arbitral, já externei todos os meus pontos de vista. Aqui encerro meus argumentos.

Os árbitros, não tendo perguntas a fazer e tendo sido instruídos pelo secretario ad hoc Samuel, pediram que o paciente e a Senhora Morte se retirassem da sala para que pudessem deliberar sobre a decisão a ser tomada. Foram ambas as partes para o quarto do paciente, onde aguardariam o resultado, porque este estava bastante fatigado com a duração da audiência.

E agora, caros leitores, sinto que os frustrarei, mas aqui encerro a minha narrativa por determinação expressa do paciente. A cada um caberá imaginar como foi a decisão daquele terminal arbitral. Na verdade, tomem vocês mesmos o lugar dos árbitros e construam a sua decisão segundo a sua própria convicção e, se forem bondosos para com este escriba, me informem como teria sido a sua sentença.
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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados



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