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O sertanejo e a vias de fato

E o círculo do inconformismo vai por aí afora, assistindo a um verdadeiro concubinato entre a sociedade civilizada e a criminalidade cada vez mais agressiva e comprometida com seus ilícitos.

domingo, 16 de abril de 2017

Atualizado em 13 de abril de 2017 13:49

A esposa do cantor sertanejo Victor compareceu à delegacia de polícia da mulher de Belo Horizonte e noticiou ter sido agredida pelo marido, que a empurrou e a derrubou no chão, indicando que tudo seria mais um processo relacionado com a Lei Maria da Penha no combate à violência doméstica. Na sequência dos fatos, a esposa publicou uma carta em um perfil de rede social negando qualquer crime praticado por Vitor. A Divisão Especializada no Atendimento à Mulher rapidamente realizou as diligências necessárias, inclusive de submeter a vítima a exame de corpo de delito, que resultou negativo para lesão corporal.

A notícia mais recente dá conta de que o Ministério Público ofereceu denúncia contra Victor pela prática da contravenção penal de vias de fato, prevista no artigo 21 da lei respectiva, com base nas imagens captadas pelo circuito de segurança do prédio onde reside o casal.

A autoridade policial agiu corretamente e determinou as investigações necessárias, legitimada que é tanto para apurar eventual agressão relacionada com a Lei Maria da Penha, como com relação à contravenção já referida, não dependendo da representação da ofendida.

Na mesma senda trilhou o Ministério Público em ofertar a denúncia instauradora da ação penal em obediência não só ao princípio da legalidade, que estabelece a obrigatoriedade da persecução penal em havendo indícios suficientes, como também para o esclarecimento do fato, que já é do domínio público e guarda elevado interesse da população.

O caso teve demasiado alardeamento por se tratar de pessoa com publicidade reconhecida no meio artístico e com participação semanal como jurado em programa musical infantil de grande audiência da Rede Globo, do qual pediu para se afastar e, certamente eventual prática de ilícito contra a esposa, iria acarretar sérios prejuízos a sua imagem.

A Lei das Contravenções Penais (decreto-lei 3.688 de 3/10/1941), da mesma forma que o Direito Penal, preocupa-se em definir condutas humanas contrárias à lei, porém estabelecendo a elas menor gravidade, como se fossem figuras subsidiárias do crime. "As contravenções, em sua maior parte, esclarece com autoridade Teles, são simples comportamentos considerados proibidos, pois não dão causa a qualquer consequência concreta. São as chamadas infrações de mero comportamento ou de mera atividade, não exigindo os tipos que as definem a produção de qualquer consequência concreta"1.

Mas, atento ao tema, causou certa estranheza a capitulação pela prática contravencional porque, nos dias atuais, em razão de crescente violência em todas as tonalidades, a tendência é combater o delito considerado grave, com repercussões sociais relevantes e que assolam o país nas mais diferenciadas modalidades. Basta ver, a título de exemplo, se alguém subtrair para si ou para outrem determinada soma em dinheiro ou um objeto de valor, a população, de forma pacata e consciente, assimila a ação ilícita e muitas vezes se dá por satisfeita por não ter ocorrido o crime de roubo. A própria Justiça, por seu turno, não aplicará a pena de prisão e sim alternativa. E o círculo do inconformismo vai por afora, assistindo a um verdadeiro concubinato entre a sociedade civilizada e a criminalidade cada vez mais agressiva e comprometida com seus ilícitos.

Tanto é que o Direito Penal moderno faz uma leitura mais branda da lesão ao direito alheio, entendendo que sendo mínima e sem repercussão que justifique a intervenção penal, é caso de aplicação do princípio da insignificância.

Mas, é interessante observar que, no caso focado, por se tratar de lesão originária da Lei Maria da Penha, que não admite a aplicação de pena pecuniária, de acordo com o artigo 17 da lei 11.340/2006, e nem mesmo a transação penal disposta no artigo 41, apesar de referir-se somente a crime, com proteção constitucional assegurada às mulheres, o fator determinante probatório residirá na oitiva da vítima, que ganha contornos de total credibilidade perante a Justiça. Nessa linha de pensamento, levando-se em consideração que a ofendida já se manifestou no sentido de que Victor não cometeu qualquer ilícito contra ela, compreendendo o crime e a contravenção, basta interpretar a filmagem existente de acordo com seu relato.

A Justiça analisa a pretensão acusatória e seu correspondente probatório para dirimir a lide penal. Tudo indica, pelo material ofertado pela imprensa, que a ação penal será fadada ao insucesso.

Assim o sertanejo continuará cantando "Vai me Perdoando", uma das canções de sucesso da dupla.

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1 Teles, Ney Moura. Direito Penal: parte geral: arts. 1º a 120, volume I. São Paulo: Atlas, 2004, p.164.
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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp.





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