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Diretrizes interpretativas do recurso especial repetitivo sobre reajustes por faixa etária em contratos de planos de assistência à saúde

Mesmo em meio à aparentemente interminável crise político-econômica pela qual o Brasil vem passando, este tema tão relevante não pode deixar de receber a atenção que efetivamente merece por parte do Judiciário e da sociedade, sob pena de um retrocesso incompatível com a proteção especial conferida ao consumidor idoso e àquele em vias de adentrar a terceira idade.

sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Atualizado em 10 de agosto de 2017 10:12

O ano de 2016 marcou a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça pelo começo da utilização da técnica de julgamento de demandas repetitivas, introduzida no ordenamento jurídico brasileiro pelo Código de Processo Civil de 2015 (art. 927, inciso III). Grosso modo, a tese firmada no recurso especial eleito como paradigma valeria para todos os casos acerca do mesmo tema. Um desses temas foi, justamente, o dos reajustes por faixa etária em planos de assistência à saúde, analisado em sede do REsp 1.568.244/RJ.

A decisão em si, a 'ratio decidendi' deste 'precedente obrigatório' (para uns1), em análise mais aprofundada, potencialmente reúne todos os elementos para prover proteção aos interesses dos consumidores sem descurar da manutenção do equilíbrio econômico-financeiro da avença, atendendo, a um só tempo, os interesses de consumidores e de prestadores desses serviços. Explica-se: reconheceu-se a licitude de tais reajustes, contanto que sejam observados requisitos cumulativos, alguns simples ('expressa previsão contratual'), outros, complexos ('demonstração de base atuarial idônea' e 'reajustes que não gerem desequilíbrio ensejador de prejuízo manifesto ao consumidor' - sobretudo quando idoso).

Como se vê, a densidade de tal 'precedente' fica relativizada, em princípio pela sua aplicação restrita aos planos individuais e familiares (apesar de sua aplicação analógica reiterada em casos de planos coletivos por adesão), ao passo que apenas caso a caso se pode verificar o efetivo desequilíbrio gerado ao contrato em decorrência de reajuste aplicado, seja após os sessenta anos (quando tais reajustes, a considerar o tempo de duração do contrato e o fato de terem sido celebrados durante a vigência da lei 9.656/98 e do Estatuto do Idoso, podem ser proibidos, por expulsar o idoso do plano de saúde), seja na última faixa antes dos sessenta anos (já que os 59 anos são a derradeira faixa etária para reajustes, conforme a ANS), assim como a necessidade de comprovação, por parte da operadora, da base atuarial idônea (que seria, resumidamente, a demonstração de documentos contábeis aptos a demonstrar a metodologia que resultou no percentual efetivamente aplicado) a justificar os elevados percentuais aplicados, bem como a conformidade com as resoluções da ANS.

Julgados que primam pela melhor técnica tendem a aplicar o entendimento de modo adequado, e, se já não é tão usual a declaração de nulidade das cláusulas que preveem tais reajustes, o mesmo não se pode dizer quanto à revisão (seja pela fixação em estudos contábeis idôneos, seja pela adequação aos termos da resolução normativa 63 da ANS), que se impõe, na maioria das vezes, como medida de Justiça. Afinal, a decisão do STJ determina que a licitude decorre do cumprimento conjunto dos três requisitos estabelecidos: não basta a previsão expressa no contrato, sendo passíveis de serem tachados como ilícitos reajustes "desarrazoados ou aleatórios que onerem o consumidor ou discriminem o idoso", assim como aqueles reajustes que violem disposições da RN 63 da ANS, mesmo que possuam previsão expressa no contrato.

Contudo, tem-se notícia com frequência maior que a desejada de decisões desfavorecendo (e muito) o consumidor, inclusive o idoso, seja por se aterem de modo demasiadamente simplista ao pacta sunt servanda (limitando-se a fundamentar apenas no primeiro dos três requisitos, a 'previsão contratual expressa', ignorando que ele obrigatoriamente tem de ser combinado aos outros dois, que, longe de serem objetivos, devem ser verificados caso a caso), em nítida violação ao artigo 15, §3º do Estatuto do Idoso, e ignorando a relativização imposta ao princípio da força vinculativa dos contratos em decorrência de influxos oriundos da nova Teoria Contratual2, da Teoria do Diálogo das Fontes3, e estranhamente desconsiderando as consequências da imperatividade da aplicação do Código de Defesa do Consumidor, norma de ordem pública, ao direito dos contratos que versem sobre direitos fundamentais, como é o caso do direito à saúde.

Tais decisões (autênticas deturpações do espírito da tese firmada pelo STJ no tema 9524), deficitárias em termos de densidade jurídica, poderiam ser creditadas eminentemente a um misto de fatores: primeiramente, a natural insegurança dos primeiros momentos de aplicação de um novo instituto (como o das demandas repetitivas); de outra banda, a uma superada e indesejada resistência de certa parcela dos julgadores em reconhecer a imperatividade das normas do CDC. Entretanto, é passado o momento de compreensão e efetiva aplicação adequada da tese firmada, sob pena de ensejar a proliferação de reclamações ao Superior Tribunal de Justiça, por inobservância de precedente por ele próprio firmado, com fulcro no art. 988, inciso II do CPC.

Portanto, impõe-se assentar diretrizes interpretativas sólidas para a tese firmada pelo STJ, a fim de evitar que tais consumidores, com vulnerabilidade agravada5 pela idade avançada (não raro portadores de enfermidades graves) e a imprescindibilidade de contar com a cobertura de plano de saúde não sejam prejudicados pela aplicação equivocada de um 'precedente' que, em tese, permite garantir o equilíbrio da ordem econômica sem deixar de levar em consideração os interesses úteis e legítimos dos consumidores6. Caberá aos Judiciários estaduais a tarefa de, "com calma e com alma"7, nos dizeres de Claudia Lima Marques, sensibilizar-se a esta realidade, aplicando o entendimento soberano do STJ.

Mesmo em meio à aparentemente interminável crise político-econômica pela qual o Brasil vem passando, este tema tão relevante não pode deixar de receber a atenção que efetivamente merece por parte do Judiciário e da sociedade, sob pena de um retrocesso incompatível com a proteção especial conferida ao consumidor idoso e àquele em vias de adentrar a terceira idade.

Não basta o STJ apenas fixar a tese quanto aos reajustes por faixa etária em planos de assistência à saúde; tão ou mais importante será velar pela adequada interpretação da tese firmada, atendendo aos norteadores advindos da aplicação dialógica do CDC, da Lei dos Planos de Saúde, do Estatuto do Idoso e, acima de tudo, da Constituição.

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1 Necessária menção à crítica à equiparação da sistemática dos julgamentos repetitivos com um suposto 'sistema de precedentes' no Brasil: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Brazilian Precedents. Migalhas, 24 jun. 2014. Disponível em: (Clique aqui). Acesso em: 30 nov. 2016.

2 Ver, por todos: MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor. 2ª. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1995

3 MARQUES, Claudia Lima. BENJAMIN, Antonio Herman V. BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.

4 Tema 952: "O reajuste de mensalidade de plano de saúde individual ou familiar fundado na mudança de faixa etária do beneficiário é válido desde que (i) haja previsão contratual, (ii) sejam observadas as normas expedidas pelos órgãos governamentais reguladores e (iii) não sejam aplicados percentuais desarrazoados ou aleatórios que, concretamente e sem base atuarial idônea, onerem excessivamente o consumidor ou discriminem o idoso."

5 SCHMITT, Cristiano Heineck. Consumidores hipervulneráveis: a proteção do idoso no mercado de consumo. São Paulo: Atlas, 2014.

6 MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 5. Ed, rev. atual. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

7 MARQUES, Cláudia Lima. Nota sobre a proteção do Consumidor no Novo Código De Processo Civil (Lei 13.105/2015). Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 104, p. 557, mar./abr. 2016.

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*Roberto Oleiro Soares, é advogado no escritório Vilhena Silva Advogados, especialista em Direito Processual Civil e mestre em Direito com ênfase em Direito do Consumidor e Concorrencial.

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