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Planejamento e controle: uma reflexão sobre ética

O planejamento prévio e transparente converte-se em um importante aliado no controle de atos de corrupção.

terça-feira, 22 de agosto de 2017

Atualizado em 21 de agosto de 2017 07:46

RESUMO: Trata-se de artigo que aborda o tema do planejamento como regra de atuação estatal que viabiliza o controle das políticas de fomento. Inicia ressaltando a importância do planejamento como regra constitucional. O apresenta como corolário dos princípios da segurança jurídica, publicidade e da eficiência. Demonstra ainda, em uma perspectiva interconstitucional, seu âmbito de aplicabilidade como transcendente à intervenção do estado no domínio econômico. Por fim, ressalta que estas características tornam a regra constitucional do planejamento indispensável ao combate à corrupção, como exercício do controle dos comportamentos desviantes.

Considerações iniciais

Ética diz com escolha. Em um universo de valores complexos, a reflexão sobre a ética evoca uma decisão, em um universo social, sobre qual caminho será seguido por todos1. A definição e implementação de políticas públicas representa uma escolha de valores2, em um movimento de simplificação de uma complexidade inapreensível em prol de situações que promovam a melhoria da convivência. O direito, neste paradigma, é instrumento, ferramental para a formação de uma ética compartilhada.

Corrupção diz com o desvirtuamento desta ética compartilhada, postura canalha que pretende "fazer prevalecer o próprio interesse particular em detrimento da convivência, em detrimento do outro"3. Quando se fala em combate à corrupção, tem-se o objetivo de restaurar a ética definida coletivamente e que está no cerne da norma transgredida.

O presente trabalho adota o tema do planejamento como instrumento de controle das políticas públicas. O controle da atuação dos envolvidos se torna possível por meio do conhecimento dos meios que serão empregados e da exposição clara das finalidades que se pretende atingir com a política. Como sói demonstrar, o planejamento expõe os valores protegidos e traz à tona a ética compartilhada que está por trás da política, viabilizando assim controle dos comportamentos desviantes.

O planejamento como regra constitucional

O planejamento surge no texto constitucional no enunciado do art. 174, que remete ao exercício, pelo Estado, de uma chamada "função de planejamento". Em uma primeira aproximação, questiona-se se este dever de planejar sua atuação no domínio econômico deriva de uma regra ou de um princípio.

Ao tratar do planejamento, a Constituição o condiciona como vinculante ao setor público e indicativo ao privado. Isto significa que planejamento estatal no Brasil está distante da planificação nos moldes do sistema socialista, posto que remanesce no setor privado a decisão econômica sobre a adesão ou não aos objetivos traçados no plano4.

Nesta perspectiva, o planejamento não tem o objetivo imediato de promover um Estado ideal de coisas. Não é ele um fim. A atuação planejada introduz, junto aos agentes privados, uma perspectiva de previsibilidade sobre os fins do Estado e os meios que serão usados na sua busca.

Humberto ÁVILA define princípios como normas de caráter finalístico, com conteúdo deontológico, que visam imediatamente a promover um Estado ideal de coisas (fins) e vinculam a adoção das condutas necessárias para a promoção dos fins pretendidos. Os princípios jurídicos impõem um dever de justificação que importa na correlação necessária entre os efeitos da adoção de determinada conduta e os fins que o ordenamento visa promover5.

Regras, por sua vez, estabelecem como dever imediato a adoção de uma conduta especificamente descrita, visando à manutenção de fidelidade a uma finalidade subjacente e aos princípios superiores do ordenamento jurídico. A justificação para a aplicação de uma norma deriva de um juízo de correspondência entre o fato identificado e o conceito presente na norma6.

Sobre este escólio, defende-se que o dever de planejar não decorre de um princípio constitucional, mas de uma regra que vincula a atuação estatal. A vinculação do agir do Estado ao planejamento, para além de justificar-se nos benefícios deste, visa ao atendimento de outros fins estabelecidos pela ordem jurídica.

O planejamento, como regra constitucional, dispõe sobre o exercício de uma competência7, que converte em obrigatório o agir planejado, sendo as disposições do plano de ação do Estado vinculantes ao setor público. Seu cumprimento (dever imediato) é meio para a realização dos objetivos pretendidos. O agir planejado não se justifica em si mesmo, mas como veículo para o atendimento da finalidade almejada.

Na perspectiva do dever de motivação imposto ao gestor público na formulação de políticas públicas, impõe-se ressaltar que esta atuação deve ser necessariamente transparente, em contraste com a opacidade da atuação dos agentes do poder econômico8.

Quer se invocar que o agir planejado, como regra constitucional, possibilita uma discussão sobre os valores e finalidades que orientam a conduta do gestor público, no momento da elaboração das políticas públicas. Este paradigma possibilita uma discussão sobre a legitimidade social da escolha.

A regra do planejamento, neste contexto, está diretamente relacionada com a transparência, corolário do princípio da publicidade, valor que visa a difundir uma ideia clara sobre os objetivos e formas por meio das quais o Estado atuará. O ganho de transparência gerado pode ser traduzido como elemento para a garantia da segurança jurídica em seu viés de previsibilidade da atuação estatal. Como ressalta Geraldo ATALIBA, a adoção de instituições republicanas no quadro constitucional torna a atuação estatal absolutamente incompatível com a surpresa e "postula absoluta e completa previsibilidade da ação estatal pelos cidadãos e administrados"9. Pode-se defender que o planejamento se justifica também na realização deste fim que lhe é externo, qual seja na difusão de uma previsibilidade em tributo ao princípio da segurança jurídica.

A previsibilidade está atrelada ao dever do Estado de não agir de modo a surpreender a sociedade. Neste recorte, a segurança jurídica, vista em seu sentido formal, visa a evitar a arbitrariedade. Todavia, como explica Humberto ÁVILA, a definição de segurança jurídica, no sentido material, circunscreve também a aceitabilidade das decisões que levaram à sua atuação, de modo que o agir estatal seja recebido como racional pelos seus próprios fundamentos pelos destinatários da decisão10.

O planejamento é método de ação estatal que correlaciona meios para a realização de determinados fins e, enquanto tal, evita atuações aleatórias e ad hoc. Justifica-se, nesta medida, como veículo de racionalidade no agir do Estado11, que difunde consistência e aceitabilidade às decisões que lastreiam sua atuação.

Se a unidade da Constituição confere fins para a atuação estatal, o Estado contemporâneo encontra legitimidade na capacidade de realizá-los12. Como ressalta Alexandre ARAGÃO, o Princípio da Eficiência impõe a adoção de meio de atuação que visa à "eficiente e menos onerosa possível realização dos objetivos constitucionais que estivem em jogo"13. Por esta toada, a concretização do planejamento, enquanto regra constitucional, obriga o Estado a planejar seu agir, ou seja, vincula a busca e justificação dos meios escolhidos como mais adequados para potencializar os resultados na realização dos fins pretendidos, legitimando-se também no ganho de eficiência gerado pela ação planejada.

Toma-se por premissa que a regra de planejamento estatal remete à necessária coordenação dos meios para o atendimento dos fins pretendidos. Embora topograficamente localizada no capítulo destinado à intervenção estatal no domínio econômico, a regra constitucional do planejamento não se restringe às relações entre Estado e mercado. Em uma interpretação interconstitucional14, o agir planejado não pode ser tomado como característica exclusiva da intervenção do Estado no domínio econômico, mas como uma regra aplicável a toda a sua atuação, dado que em todos os domínios a Constituição estabelece fins a serem perseguidos pelo Estado, objetivos estes que igualmente devem ser atingidos de maneira racional (transparente, eficiente, previsível, etc.).

Neste contexto, para que haja controle (interno, externo e social) das políticas públicas, desde a elaboração até a avaliação de seus resultados, é necessária a fixação de metas e objetivos a serem atingidos com determinado programa, bem como estabelecer indicadores de acompanhamento15. Assim, o planejamento é condição de eficiência, eficácia e efetividade do controle.

Por outros torneios, o planejamento foi o método escolhido pelo constituinte para potencializar os resultados de seu agir (racionalidade/eficiência), promovendo a transparência (publicidade) de sua atuação e com isso difundindo a previsibilidade (segurança jurídica) no domínio dos agentes privados.

Considerações finais

No fundo da construção de uma regra constitucional de planejamento está a necessidade de reflexão sobre os fins a serem atingidos com determinada atuação estatal e meios que serão empregados nesta busca16. Precisamente neste contexto, a reflexão sobre o planejamento se converte em uma reflexão sobre a ética.

Formular políticas públicas é escolher entre valores e esta escolha, para além de uma absoluta liberdade, é vinculada pelos deveres de transparência, eficiência e previsibilidade. Por outros torneios, publicidade, eficiência e segurança jurídica são valores socialmente eleitos como relevantes e cabe ao administrador, pelo seu dever de motivação, explicitar a compatibilidade das políticas propostas com os aludidos princípios. O planejamento prévio e transparente é a forma de compatibilização.

É somente a partir do agir planejado que o administrador viabiliza o debate sobre a pertinência e os valores que passarão a ser adotados por todos, institucionalizados em norma jurídica derivada de uma escolha ética que orientará a convivência. Planejar é tornar clara uma ética compartilhada, consubstanciada em política pública e imposta a todos indistintamente por meio de normas jurídicas.

O planejamento prévio e transparente converte-se, assim, em um importante aliado no controle de atos de corrupção - comportamentos desviantes que visam a imposição de interesses individuais em detrimento da convivência -, por viabilizar o confronto entre os valores pretendidos com a formulação de determinada política e aqueles de fato identificados com sua efetiva implementação.

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1 BARROS FILHO, Clovis; POMPEU, Julio. A filosofia explica as grandes questões da humanidade. São Paulo: Casa do Saber, 2013, p. 32.

2 BUCCI, Maria Paula Dallari. Fundamentos para um teoria jurídica das políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 104.

3 BARROS FILHO, Clovis; POMPEU, Julio. Somos todos canalhas, filosofia para uma sociedade em busca de valores. Rio de janeiro: Casa da Palavra, 2015, p. 302.

4 GRAU, Eros. Planejamento econômico e regra jurídica. Tese de livre docência. São Paulo: USP, 1977, p. 29.

5 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. 12. Ed., São Paulo: Malheiros, 2011, p. 78.

6 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. 12. Ed., São Paulo: Malheiros, 2011, p. 78.

7 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. 12. Ed., São Paulo: Malheiros, 2011, p. 81.

8 FARJAT, Gérard. Pour un droit économique. Paris: Presses Universitaires de France, 2004, p. 26.

9 ATALIBA, Geraldo. República e constituição. 3. Ed., São Paulo: Malheiros, 2011, p. 169.

10 ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. 3. ed., São Paulo: Malheiros, 2015, p. 358.

11 GRAU, Eros. Planejamento econômico e regra jurídica. Tese de livre docência. São Paulo: USP, 1977, p. 27.

12 COMPARATO, Fábio Konder. Juízo de constitucionalidade das políticas públicas. In MELLO, Celso Antônio Bandeira de (ed.). Estudos em homenagem a Geraldo Ataliba v. 2, São Paulo: Malheiros, 1997, p. 350.

13 ARAGÃO, Alexandre Santos de. O princípio da eficiência. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, n. 237, jul/set. 2004, p. 3.

14 TORRES, Heleno Taveira. Teoria da constituição financeira. Tese de titularidade. São Paulo: USP, 2014, p.

15 RIBAS, Lídia Maria; SILVA, Hendrick Pinheiro. Reflexões sobre a importância do estabelecimento de limites orçamentários e indicadores de monitoramento na gestão de Políticas Públicas no Brasil. In SILVA, Suzana Tavares da; RIBEIRO, Maria de Fátima. Trajectórias de Sustentabilidade tributação e investimento. Coimbra: Instituto Jurídico da Faculdade de Direito de Coimbra, 2013, p. 398.

16 VIDIGAL, Geraldo Camargo. Teoria Geral do Direito Econômico. São Paulo: RT, 1977, p. 28.

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*Hendrick Pinheiro da Silva é especialista em Direito Tributário e advogado do escritório Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques Sociedade de Advogados.

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