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O crime hediondo e a criminalidade, Eudes Quintino

O crime hediondo e a criminalidade

É mais do que sabido que o sistema penal brasileiro apresenta-se desgastado e não é a lei, por melhor que seja, que irá resgatá-lo.

domingo, 12 de novembro de 2017

Atualizado em 10 de novembro de 2017 10:00

Já está vigendo a lei 13.497, sancionada e publicada em 27 de outubro de 2017, que transformou em crime hediondo a posse ou o porte ilegal de arma de fogo de uso restrito. O decreto 3665/2000, em seu artigo 3º, XVIII, define arma de uso restrito como sendo aquela que "só pode ser utilizada pelas Forças Armadas, por algumas instituições de segurança, e por pessoas físicas e jurídicas, devidamente autorizadas pelo Exército, de acordo com a legislação específica".

O Estatuto do Desarmamento, lei 10.826/2003, por sua vez, em seu artigo 16, traz o tipo penal específico, criminalizando a posse e o porte de arma de uso restrito, com ações múltiplas representadas por vários núcleos penais, com pena de reclusão de três a seis anos e multa.

Os crimes hediondos, assim como também os equiparados, previstos na lei 8.072/1990, por seu turno, são assim considerados o homicídio, quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio; homicídio qualificado; lesão corporal dolosa de natureza gravíssima e lesão corporal seguida de morte contra autoridades e seus parentes; latrocínio; extorsão qualificada pela morte ou mediante sequestro; estupro; genocídio; falsificação de medicamentos; favorecimento de prostituição ou de exploração sexual de criança, adolescente ou vulnerável e agora o porte ou a posse de arma de fogo de uso restrito.

A intenção do legislador foi punir mais severamente a posse ou o porte de arma de fogo de uso restrito, direcionando seu foco para o combate ao crime organizado que, ostensiva e reiteradamente, exibe armas de grosso calibre em suas ações, demonstrando, de forma inequívoca, seu potencial de ataque.

E é comum, no embate entre policiais e os grupos organizados de criminalidade e até mesmo entre facções contrárias, com relevo principal para a cidade do Rio de Janeiro, perceber a desigualdade das armas entre os grupos belicosos. Tanto é que, pela estatística constantemente atualizada, até o presente, mais de cem policiais militares tombaram mortos em vários confrontos.

Não se pretende, na realidade, fazer uma dissecação técnica da novatio legis, mas sim perquirir a respeito de possíveis resultados positivos visando, pelo menos, ofertar uma esperança, mesmo que tênue, do abrandamento da violência, uma vez que nós, cidadãos comuns degredados, vítimas de todas as modalidades criminosas, além das traiçoeiras balas perdidas, com os olhos marejados pelas velhas e empedernidas promessas de combate à criminalidade, aguardamos o advento de tempos melhores.

Assim, nosso legislador se apega novamente à Lei dos Crimes Hediondos como se fosse ela a tábua de salvação, com um simples acréscimo de uma nova conduta no já relevante rol de crimes assim considerados. O caráter de hediondez do crime revela-se pela conduta ignóbil, repulsiva, que provoca a indignação seguida da reprovação unânime da sociedade. Em razão disso, carrega um plus legislativo diferenciado, que permite ao Judiciário segregar provisoriamente, negar o benefício da liberdade provisória, o pagamento da fiança, indeferir qualquer pleito com relação à graça, anistia, indulto e o cumprimento da pena em regime mais rigoroso.

Ledo engano. As leis se complicam quando se multiplicam, já preconizava Marquês de Maricá.

Apesar de se apresentar como norma de endurecimento penal, a lei ordinária foi se atritando com o regramento constitucional e a consequência foi a suavização do preceito que previa o direito de se obter a liberdade provisória e o regime fechado integral de cumprimento da pena. Assim, ficou em aberto a possibilidade ao juiz de conceder liberdade provisória ao acusado pela prática de crime hediondo, sem o pagamento de fiança. De igual forma, em obediência ao princípio da individualização da pena, preceito contido no capítulo dos direitos e garantias individuais da Constituição Federal, o sentenciado passou a ter direito à progressão do regime de cumprimento de pena, como se tivesse praticado um crime comum, observando-se, no entanto, a exigência de cumprimento de 2/5 da pena se for primário e 3/5, se reincidente. Permanece também o livramento condicional somente após o cumprimento de dois terços da pena, se não for reincidente específico. Tais benefícios praticamente retiraram o rótulo de hediondo do crime, que passa para a vala comum, com tratamento idêntico aos demais, justificando-se a prisão não mais pela gravidade da ação do agente e sua imediata reprovação popular, mas pelos parâmetros utilizados para os crimes comuns.

Na realidade, é mais do que sabido que o sistema penal brasileiro apresenta-se desgastado e não é a lei, por melhor que seja, que irá resgatá-lo. Deve-se, sim, reconstruir a educação a começar pelo lar, sequencialmente nas escolas com a finalidade de repassar às crianças e jovens preceitos básicos da ética da convivência e respeito mútuo, por meio de políticas públicas responsáveis e exequíveis, de acordo com a realidade do país. De nada adianta brandir ao vento um arsenal de boas intenções, com medidas simplistas e paliativas se a corrupção, a violência e o desemprego continuam ganhando corpo e sedimenta cada vez mais o incômodo paradoxo que aflige a sociedade.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp.





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