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Criminalização e extermínio de defensores e defensoras dos direitos humanos no Brasil

Hugo Melo Filho e Anjuli Tostes Faria

A criminalização dos defensores e das defensoras de direitos humanos é, lamentavelmente, a face menos selvagem da perseguição.

terça-feira, 20 de março de 2018

Atualizado em 19 de março de 2018 16:55

Um dos temas a merecer maior atenção da Comissão Interamericana de Direitos Humanos é a criminalização dos defensores dos direitos humanos. Essas pessoas têm sido sistematicamente sujeitas a processos penais sem fundamento, em diversas circunstâncias. Por outro lado, busca-se consolidar na opinião pública a ideia de que os movimentos sociais são dirigidos com propósitos criminosos, simplesmente para paralisar ou deslegitimar as causas que perseguem. Tais práticas, para além de interferirem no trabalho de defesa e promoção dos direitos humanos, afetam, sobremodo, a consolidação da democracia e do Estado de Direito.

Em dezembro de 2015, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos publicou um informe intitulado "Criminalización de defensoras e defensores de derechos humanos", analisando detalhadamente o problema. De acordo com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a criminalização dos ativistas vem ocorrendo com maior frequência em contextos onde existem tensões ou conflitos com atores estatais e não estatais, como o caso de comunidades que ocupam terras de interesse para o desenvolvimento de megaprojetos e a exploração de recursos naturais; nas hipóteses de protestos sociais, durante ou posteriormente ao desenvolvimento de uma manifestação, bloqueio, plantão ou mobilização, pelo simples fato de haver participado de forma pacífica dela; contra ativistas que apresentam denúncias contra funcionários públicos; contra líderes campesinos e movimentos que defendem o direito à terra e ao meio-ambiente; indígenas e afrodescendentes; defensores de direitos trabalhistas, líderes sindicais e sindicatos; movimentos em defesa dos direitos sexuais e reprodutivos e das pessoas LGBT.

Apurou-se que a criminalização se inicia mediante a apresentação de denúncias infundadas, geralmente vinculadas a condutas puníveis como indução à rebelião, terrorismo, sabotagem, apologia ao crime, ataque ou resistência à autoridade pública. Por outro lado, revela-se comum a estratégia de os ativistas serem objeto de declarações estigmatizantes ou pronunciamentos de autoridades, nos quais são acusados da prática de delitos, mesmo que não existam processos em curso ou decisões judiciais que a reconheçam, tudo no propósito de deslegitimar a ação dos militantes. O problema é que este tipo de declaração costuma motivar a abertura de processos criminais sem fundamento, contra ativistas e defensores de direitos humanos, pelo simples fato de haverem sido mencionados pela autoridade estatal.

Mas a criminalização dos defensores e das defensoras de direitos humanos é, lamentavelmente, a face menos selvagem da perseguição. Relatório da Anistia Internacional de 2017 aponta que, na região das Américas, o Brasil é o país com o maior número de defensores de direitos humanos assassinados todos os anos e que os números vêm aumentando a cada ano, num padrão contínuo de homicídios. No ano de 2017, causou espécie a chacina de Pau D'Arco, no Pará, quando uma operação policial na fazenda Santa Lúcia terminou com dez trabalhadores rurais assassinados. Dois meses depois, em julho, um dos líderes do grupo de trabalhadores rurais, Rosenildo Pereira de Almeida, também foi morto a tiros. O documento de 2017 ainda cita que o Brasil tem um dos maiores números de homicídios registrados de transgêneros no mundo, o que aumenta os riscos para ativistas transgêneros que reivindicam direitos humanos. O relatório da Anistia Internacional afirma que o problema parece ter piorado desde que o Programa Nacional para a Proteção dos Defensores de Direitos Humanos foi enfraquecido em 2016. Diz que o desmonte do programa e a falta de investigação e responsabilização coloca centenas de homens e mulheres em risco todos os anos. Tanto que o governo brasileiro foi cobrado a adotar medidas mais eficazes no combate às violações de direitos humanos no país, na reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em maio de 2017. O saldo macabro: apenas no ano passado, cerca de 70 ativistas foram mortos no país.

A estatística de 2018 confirma a conclusão do relatório, quanto à escalada da violência. Nestes primeiros 73 dias do ano foram mortos 24 defensores e defensoras dos direitos humanos, mais de um a cada três dias. A última e mais notória execução foi a da vereadora do Rio de Janeiro, Marielle Franco, aos 38 anos, em uma emboscada, no último dia 14 de março, que vitimou, também, o motorista Anderson Gomes.

Marielle era uma socióloga negra, criada no Complexo da Maré, líder política e defensora dos direitos humanos, ferrenha opositora da violência da Polícia Militar e da intervenção militar nas comunidades periféricas cariocas. Em 2016, foi eleita vereadora com 46 mil votos, pelo PSOL. Na Câmara, era relatora da comissão que fiscaliza a atuação da intervenção federal nas favelas, condição na qual vinha denunciando casos de abuso de violência policial no bairro de Acari, no Rio. Antes de ser vereadora, trabalhou em organizações como a Brasil Foundation e o Centro de Ações Solidárias da Maré (Ceasm), foi presidente da Comissão de Defesa da Mulher e coordenadora da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj).

Pouco antes de ser covardemente assassinada, Marielle participou do evento "Jovens Negras Movendo as Estruturas", na Casa das Pretas, Lapa, Centro do Rio de Janeiro. No evento, afirmou: "A gente tem diferenças, mas é a gente que está morrendo, é o nosso povo que está morrendo, então a gente tem que lidar para avançar". E na véspera de seu extermínio, perguntara, nas redes sociais: "Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?".

O martírio de Marielle não será em vão. Como já foi destacado por alguns jornalistas, há muito um assassinato não causa tanta revolta e indignação neste país, anestesiado por golpe de Estado, intervenção militar, violência policial seletiva, desmantelamento do aparato estatal de proteção aos direitos humanos e desconstrução dos direitos sociais, em tão curto espaço de tempo.

O exemplo que ela nos deixa como herança haverá de nos animar e inspirar a todos, defensores e defensoras dos direitos humanos, comprometidos com os menos favorecidos, os vulneráveis e os discriminados, nas lutas que travaremos, com coragem e determinação.

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*Hugo Melo Filho é juiz do trabalho, presidente da Associação Latino-americana de Juízes do Trabalho e professor da UFPE.

*Anjuli Tostes Faria é advogada popular, integrante da Comissão de Direitos Humanos da OAB/DF e Auditora da CGU.

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